Os espíritos

em prisão
A. J. Anthero

Um estudo sobre I Pedro 3:18-20, explicando

o significado desta frase tão controversa.

H
á muita controvérsia entre bons irmãos sobre os versí-
culos acima. A maior dificuldade envolve a afirmação
de que Cristo foi e “pregou aos espíritos em prisão”.
Realmente não é fácil interpretar estas palavras, mas também
não é impossível. Talvez, uma das razões porque essa passagem
é tão debatida seja porque gostamos de explicações complexas,
partindo da falsa ideia de que quanto mais difícil for a expli-
cação, mais acertada ela é. Neste artigo, porém, vamos tentar
olhar para esses versículos da forma mais simples possível,
porque na verdade as perguntas mais profundas são melhor
explicadas através das respostas mais simples. Para facilitar,
vamos considerar essa passagem sob quatro assuntos: a pre-
gação, as pessoas, uma pergunta e alguns perigos.
“O Caminho” nº 68 25
 a. A pregação
A primeira parte do v. 18
é bem clara e não gera ne-
nhuma confusão. O Senhor
Jesus “padeceu uma vez pelos
pecados, o Justo pelos injustos,
para levar-nos a Deus”. A di-
ficuldade começa na segunda
parte. Depois de Cristo ter
sido morto, qual espírito O
ressuscitou, o Seu próprio
espírito humano ou o Espí-
rito Santo? A ARA traduz a
palavra “espírito”, aqui, com
inicial minúscula, sugerindo
que seja o Seu espírito hu-
mano. Já as versões ARC e
ACF traduzem a palavra com
inicial maiúscula, sugerindo
que seja o Espírito Santo. Sem
entrar em detalhes técnicos da
gramática grega (o que pode
ser feito consultando fontes
confiáveis), sugiro que este
“Espírito”, citado aqui, não é
o espírito humano do Senhor,
mas sim, o Espírito Santo. J.
B. Nicholson afirma e cita F.
W. Grant dizendo:
“Em espírito” não pode
significar o espírito huma-
no de Cristo, pois “não é
pelo espírito humano que
o corpo é ressuscitado”.*
Confirmando esta inter-
* NICHOLSON, J. B. Comentário Ritchie do
Novo Testamento. Pirassununga: Sã Doutrina,
2002, vol. 14, pág. 231.
26 “O Caminho” nº 68
pretação, Romanos 8:11 diz:
“E, se o Espírito dAquele que
dentre os mortos ressuscitou
a Jesus habita em vós, Aquele
que dentre os mortos ressusci-
tou a Cristo também vivificará
os vossos corpos mortais, pelo
Seu Espírito que em vós habi-
ta”. Os corpos dos santos serão
ressuscitados pelo poder do
Espírito Santo, não pelo poder
dos seus próprios espíritos.
Da mesma forma, não foi o
espírito humano do Senhor
Jesus que O ressuscitou, foi
o Espírito Santo. Portanto,
a palavra “espírito” aqui é, na
verdade, “Espírito”.
Logo a seguir, no v 19,
vem a afirmação da pregação
de Cristo: “No qual também
foi e pregou aos espíritos em
prisão”. Repare três detalhes
antes de prosseguir.
• No final do v. 18 não há
ponto final. As principais
versões em português usam
vírgula ou ponto-e-vírgula,
indicando que a frase não
terminou. O que segue é
uma continuação.
• As palavras iniciais do v.
19 — “no qual” — mere-
cem uma pergunta: Quem
é este “no qual”? Basta
uma leitura do versículo
anterior para se perceber
que é o Espírito Santo.
 • A palavra “também”, no v.
19, esclarece que o Espírito
Santo não só ressuscitou
o corpo do Senhor Jesus,
como também foi a Pessoa
divina por meio de Quem
Cristo foi e pregou.
Este terceiro item pode
parecer estranho, à primeira
vista, mas basta uma leitura
de outras partes do Novo
Testamento para se perceber
que isto não é incomum. O
próprio Pedro nos dá uma óti-
ma chave para entender esta
verdade. Nesta mesma carta
ele afirma que “o Espírito de
Cristo” (não o espírito hu-
mano, mas o Espírito Santo)
estava nos profetas enquanto
estes escreviam e pregavam (I
Pe 1:10-11). Paulo escreve aos
efésios dizendo que o Senhor
Jesus evangelizou a paz entre
eles (Ef 2:17). O Senhor não
voltou a este mundo em carne
e pregou para os crentes em
Éfeso, mas estava pregando
a eles por meio do Espírito
Santo que estava nos pregado-
res que evangelizaram naquela
cidade.
Creio que esta primeira
parte pode ser resumida da
seguinte forma: o corpo do
Senhor Jesus foi ressuscitado
pelo Espírito Santo. Por meio • Olhando para os detalhes
do Espírito Santo o Senhor
Jesus foi e pregou aos espíritos
em prisão. Na próxima parte
tentaremos identificar quem
são estes espíritos em prisão a
quem o Senhor Jesus pregou
por meio do Espírito Santo.
b. As pessoas
Já vimos que Cristo foi
e pregou aos espíritos em
prisão por meio do Espírito
Santo. Portanto, imagino que
a pergunta sobre como Cristo
pregou já foi respondida em
parte. Agora vamos tentar
achar respostas às outras per-
guntas sobre quem são estes
espíritos e quando lhes foi
pregado. Repare novamente
três detalhes entre os vs. 19
e 20.
• No final do v. 19 novamen-
te não se usa ponto final.
As versões em português
usam vírgula ou ponto-
-e-vírgula, indicando que
o assunto não terminou,
mas continua no próximo
versículo.
• As palavras iniciais do v. 20
— “os quais” — também
merecem uma pergunta:
quem são estes “os quais”?
Uma leitura do versículo
anterior mostrará que estes
sãos os espíritos em prisão.
acima, fica mais fácil en-
tender que estes “espíritos
“O Caminho” nº 68 27
 em prisão”, na época de
Noé, foram rebeldes. Ou
seja, eles eram pessoas
comuns como você e eu,
compostos de espírito,
alma e corpo.
Mais uma vez pode ser que
o terceiro item precise de uma
explicação mais detalhada.
Mas para não estender mui-
to (o que não é o propósito
deste artigo), podemos fazer
a seguinte pergunta: quando
os espíritos em prisão foram
rebeldes? A resposta está no
v. 20. Eles foram rebeldes
“quando a longanimidade de
Deus esperava nos dias de
Nóe, enquanto se preparava a
Arca”. Durante todos os anos
em que Noé preparou a Arca,
a humanidade esteve debaixo
da longanimidade (paciência)
de Deus. Mas eles preferiam
não dar ouvidos aos avisos
divinos e, por isso, Deus não outro lugar que pudessem
lhes perdoou (II Pe 2:5) e
eles pereceram pelas águas do e espíritos deles estão presos
Dilúvio (II Pe 3:6).
c. Uma pergunta
Considerando o que foi
dito acima, podemos então
fazer a seguinte pergunta:
Cristo pregou aos espíritos em
prisão? Sim, pregou. Mas na
ocasião quando isso aconteceu,
eles não eram espíritos em desta passagem de I Pedro
prisão, eram pessoas comuns 3:18-20, que deram origem
28 “O Caminho” nº 68
que viviam na época de Noé.
Como fica claro pela leitura
cuidadosa desses versículos,
o Senhor Jesus não foi pes-
soalmente pregar às pessoas
na época de Noé. Ele foi no
Espírito Santo. E assim como
o Espírito Santo estava nos
profetas do passado, também
estava em Nóe. Sendo que
Noé era um “pregador da
justiça” (II Pe 2:5), não resta
dúvida de que enquanto ele
preparava a Arca e pregava, o
Senhor pregava à humanidade
através do Espírito Santo que
estava nele.
Depois que o Dilúvio veio,
apenas Noé e sua família fo-
ram salvos (Hb 11:7). Quanto
ao restante da humanidade, o
Dilúvio “os levou a todos” (Mt
24:39). Desde então, seus cor-
pos foram decompondo-se na
água, na lama e em qualquer
ser encontrados, mas a alma
no inferno, aguardando o dia
do juízo (Ap 20:11-15). Na
época em que Pedro escreveu
esta carta ele os chamou de
“espíritos em prisão” porque é
isso que são desde o Dilúvio.
d. Os perigos
Há muitas interpretações
 a algumas doutrinas das mais
estranhas. Por isso, como
forma de enfatizar a verdade
desta passagem e ajudar al-
guém que talvez tenha dúvida,
vamos olhar rapidamente para
algumas destas doutrinas es-
tranhas e tentar mostrar por-
que elas não têm fundamento.
d.1. Cristo foi ao inferno
Alguns entendem que I
Pedro 3:19 está descrevendo
uma possível ida do Senhor
Jesus ao inferno. Dizem que
logo depois da Sua morte, e
antes de ressuscitar, Ele foi
até lá. Os possíveis motivos
da Sua aparente ida ao inferno
teriam sido pelo menos dois.
Uns entendem que Ele teria
ido pregar o Evangelho aos
perdidos que estão no infer-
no e teria dado a eles uma
segunda chance de serem
salvos. Outros entendem que
Ele teria ido ao inferno para
proclamar a Sua vitória às
hostes infernais. No entanto,
uma olhada cuidadosa ao NT
mostrará que nenhuma destas
linhas de pensamento pode ser
sustentada.
d.1.1. Onde o Senhor
esteve antes de ressuscitar?
A resposta a esta pergunta vesse aquele malfeitor também
ficará mais fácil se entender- estaria. Se o Senhor tivesse ido
mos as partes que compõem ao inferno naquele mesmo dia,
uma pessoa. A Bíblia mostra
que uma pessoa é constituída
de “espírito, e alma, e corpo”
(I Ts 5:23). Quando uma
pessoa morre, seu corpo é
deixado aqui neste mundo
e vai desfazendo-se em pó,
aguardando a ocasião da res-
surreição. A alma e o espírito
vão direto para o Céu (se era
salvo) ou para o inferno (se
não era salvo).
O Senhor Jesus, como
uma Pessoa, tinha espírito
( Jo 19:30), alma (Mc 14:34)
e corpo (Hb 10:5). Depois
de ser crucificado, Seu corpo
foi colocado num “sepulcro
novo, em que ainda ninguém
havia sido posto” ( Jo 19:38-
42), e ficou ali até a ocasião
da Sua ressurreição. Seu es-
pírito (e Sua alma, visto que
são inseparáveis) foi entregue
nas mãos do Pai (Lc 23:46),
e ficou ali até a ocasião da
ressurreição.
Além desses detalhes, re-
pare outra coisa, só para re-
forçar o que estamos vendo.
O Senhor afirmou para o
malfeitor que se arrependeu:
“Em verdade te digo que hoje
estarás comigo no paraíso” (Lc
23:43). A palavra “comigo”
indica que onde o Senhor esti-
“O Caminho” nº 68 29
 o malfeitor também teria ido. no Senhor Jesus) pode ir
Mas como o Senhor foi para para o Céu;
o Pai, o malfeitor também foi • quem está na Terra (se não
para lá. Nem o corpo, nem a
crer no Senhor Jesus) pode
alma, nem o espírito do Se-
ir para o inferno.
nhor Jesus foram ao inferno.
Durante os dias da Sua morte, Depois que uma pessoa
Ele estava com o Pai. parte deste mundo, seu des-
tino não pode ser alterado.
d.2. O Senhor foi Está ordenado por Deus que
dar uma segunda chance morrerá apenas uma vez, vin-
do depois disso o juízo (Hb
Crendo que Pedro estava
9:27). Se enquanto estava
falando que Cristo pregou aos
neste mundo a pessoa não
perdidos no inferno (o que
depositou a fé em Cristo,
já vimos que não aconteceu),
alguns sugerem que Ele foi agora que está no inferno não
lhes dar uma segunda chance. poderá ser salva, mesmo que
Com isso, concordam com a mostre arrependimento e fé.
ideia (também estranha) do Isto é muito sério!
purgatório, que prega que uma d.3. O Senhor foi ao
pessoa parte deste mundo
inferno proclamar Sua vitória
sem salvação, sofre por um
tempo no inferno e, depois Esta também é uma in-
que sofreu o suficiente pela terpretação estranha ao NT, e
quantidade dos seus pecados, não combina com o contexto
recebe uma oportunidade de de I Pedro 3:19. Olhando de
ir para o Céu. No entanto, o uma forma geral podemos
próprio Senhor Jesus mostrou afirmar que o Senhor Jesus
em Lucas 16:19-31 que: venceu a morte (I Co 15:54),
que Ele venceu “o que tinha
• quem está no Céu não
o império da morte, isto é, o
pode ir para o inferno;
diabo” (Hb 2:14), e que Ele
• quem está no inferno não venceu todo o poder das hos-
pode ir para o Céu; tes infernais (Cl 2:15). Tudo
• quem está no inferno não isso foi feito na cruz (Cl 2:14).
pode voltar à Terra. Se há alguma proclamação
de vitória, ela foi feita en-
Por outro lado,
quanto Ele era humilhado e
• quem está na Terra (se crer zombado na cruz. Se Satanás
30 “O Caminho” nº 68
tivesse conseguido desviá-Lo
do propósito de obedecer até
ao ponto de morte, e morte de
cruz (Fp 2:8), o inimigo teria
vencido. Mas já que Cristo
aceitou toda e qualquer humi-
lhação, não fazendo qualquer
objeção a obedecer a vontade
do Pai, Ele estava com isso
proclamando a maior vitória
que este mundo já conheceu.
Todos os triunfos futuros
são apenas resultados deste
triunfo do Calvário. Thomas
Bentley diz:
Eles são um inimigo derro-
tado. Ele vai adiante deles
na Sua procissão vitoriosa,
proclamando a Sua sobe-
rana superioridade sobre
eles. Isto foi realizado na
cruz. A cena da Sua humi-
lhação mais profunda é o
lugar da Sua vitória mais
estupenda; o Seu sofrimen-
to é a sujeição deles; a Sua
morte é a derrota deles;
a Sua cruz é a vergonha
deles.*
Neste artigo tentamos ver
que o texto de I Pedro 3:18-
20 não está afirmando que
Cristo foi ao inferno pregar
o Evangelho aos perdidos ou
gabar-se da Sua vitória sobre
os inimigos. Na verdade, du-
* BENTLEY, Thomas. Comentário Ritchie do
Novo Testamento. Pirassununga: Sã Doutrina,
1998, vol. 10, pág. 117.
rante os dias da Sua morte,
Ele esteve no Céu, não no
inferno.
O texto fala da pregação
dEle, pelo Espírito Santo,
aos seres humanos normais
na época de Noé. O Senhor
estava sendo longânimo (pa-
ciente) com eles, dando tempo
e oportunidade para que se
arrependessem e evitassem
a necessidade do Dilúvio (I
Pe 3:20), mas não se arre-
penderam e foram levados à
perdição. Seus espíritos estão
hoje em prisão, aguardando a
ocasião quando seus corpos
serão ressuscitados e unidos
novamente à alma e espírito
e, como um ser completo
novamente, serão lançados no
lago de fogo (Ap 20:11-15).
Se alguém que está lendo
isto agora ainda não depositou
a sua fé no Senhor Jesus, con-
fiando nEle para o perdão dos
pecados e a vida eterna, fica
aqui o solene aviso: não siga o
exemplo das pessoas na época
de Noé, que foram rebeldes e
não se arrependeram. Se você
não quer perecer junto com
eles no inferno e depois no
lago de fogo, creia no Senhor
Jesus Cristo para ser o Salva-
dor da sua vida.
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