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Paula Mantera Doutora em Antropologia

Professora da Universidade Estadual de Campinas


e da Universidade de São Paulo

MAGIAE
PENSAMENTO
MÁGICO
2.• edição
Sumário
1. lntrodução s
2. Magia e religião 8
Imanência e transcendência ~
Individualidade e coletividade 12

3. O poder mágico li

4. As categorias do pensamento mágico_21


Os princípios da magia 2]
Lei da contigüidade 23
Lei da similaridade 2(i
Lei da contrariedade 2!:J
A "mentalidade primitiva" 32
A lógica do concreto 33
A lógica da participação 3.:l
A lógica da causalidade mágica 3(i
Repensando a causalidade mágica Js
A causalidade nos sistemas da bruxaria africana_4(]

5. Magia e pensamento: o social


como modelo 4J
O problema da razão 4C!
Pensar é classificar 4'1

6. Magia e ciência s~
A ciência do concreto 5(
O mito como bricolage s«
Os signos do mito e os conceitos da ciência--5~
7. A eficácia simbólica 60
A magia como crença coletiva 60
A produção de significados: a cura mágica 63
A cura mágica e a cura psicanalítica 65
A cura mágica na umbanda 67

8. Vocabulário crítico 70

9. Bibliografia comentada 76
1
Introdução

Muito já se escreveu sobre magia. Este tema inquieta


até hoje o pensamento antropológico, que procura entender
a lógica que orienta maneiras de pensar diferentes das
nossas. Com relação à magia, a antropologia tem-se colo-
cado inúmeras questões. A primeira delas tem a ver com
a própria crença: por que as pessoas acreditam na magia?
A essa questão muitas respostas foram dadas. Para
a antropologia clássica, do final do século passado e do
início deste, a crença na magia nada mais era do que uma
tentativa, ilusória e falsa, de intervir na ordem do mundo.
O homem primitivo, ignorante das leis da natureza e sub-
jugado pela sua impotência diante dela, atribuiria ao pen-
samento mágico a capacidade de produzir sobre a realidade
os efeitos desejados. Para Frazer a magia não passava de
uma "falsa ciência"; para Lévy-Bruhl seria a prova da
existência de uma "mentalidade primitiva", para quem "o
milagre é banal" e "o impossível não existe".
No fundo dessas colocações está escondida uma preo-
cupação típica dos pensadores racionalistas do final do
século; era preciso saber se os povos chamados primitivos,
subjugados pelo temor e pela crença em espíritos todo-
6

-poderosos e vingativos, seriam ainda assim capazes de


pensar racionalmente o mundo. A crença na razão faz
parte, como sabemos, das convicções racionalistas. Segundo
estas, as pessoas são mantidas ignorantes e supersticiosas
pelos poderosos para serem mais bem exploradas por eles.
Ora, essa mesma perspectiva enformava a análise dos
eruditos que procuravam entender a mente "primitiva". Se
as crenças religiosas e mágicas pudessem ser entendidas
corno uma aberração intelectual, estaria implícito que reli-
giões mais desenvolvidas, como o cristianismo, poderiam
ser objeto de julgamento crítico semelhante. Assim, pro-
curava-se encontrar no modo de pensar dos povos sem
escrita uma arma letal contra o cristianismo.
Mas, se a crença na magia parecia absurda a esses
antropólogos, e, diga-se de passagem, ainda hoje assim se
apresenta para muitos, era preciso encontrar uma expli-
cação para tal disparate. Era preciso explicar por que
pessoas que sob muitos aspectos mostravam-se perfeita-
mente razoáveis persistiam em atribuir veracidade a cren-
ças tão contrárias à lógica mais elementar. Veremos então
neste trabalho como esses autores clássicos, em sua busca
da razão, acabaram por trazer elementos importantes para
a compreensão de sistemas de pensamento que, num pri-
meiro momento, pareceriam muito distantes dos nossos.
Durkheim e Mauss foram dos primeiros antropólogos
a deixar de lado a pergunta anterior. Para eles a questão
fundamental deixava de ser "por que as pessoas crêem?"
e se tornava "qual o sentido da crença?". Essa colocação
abandona o espinhoso e insolúvel problema de tentar
explicar por que as pessoas se mostram tão ingenuamente
crédulas na eficácia dos atos mágicos. Trata-se de saber o
que a magia diz sobre o mundo e de onde vêm as catego-
rias que ela utiliza.
A magia passa a ser compreendida como um sistema
simbólico. E, quando se fala em símbolos, está-se falando
7

em elementos (idéias, objetos, gestos) que representam,


por uma lógica implícita que cabe ao antropólogo desco-
brir, noções vitais para a organização social: unidade do
grupo, poder etc. Veremos ainda como esses autores
analisam os símbolos que a ação mágica utiliza.
Mas afirmar que o rito mágico tem um sentido pura-
mente simbólico nos coloca o problema de saber como ele
é capaz de intervir na ordem do mundo. Porque as pessoas
que se utilizam do rito o fazem, é claro, esperando obter
dele resultados práticos. Seria inconcebível pensar que,
após seguidos e reincidentes fracassos, permanecesse incó-
lume a crença em tais atos. Alguma eficácia eles devem
ter, já que se mostram tão perenes, sobretudo quando se
consideram sociedades como as nossas, em que o avanço
tecnológico faria presumir o total desaparecimento da
magia. O que vemos, ao invés disso, é a crença na magia
acompanhar o crescimento industrial das cidades e se
difundir com ele, como é o caso da umbanda no Brasil.
Qual é então a eficácia da magia? Veremos no final
deste ensaio como Lévi-Strauss responde a essa questão
ao propor a noção de "eficácia simbólica".
Finalmente, se considerarmos que os sistemas mágicos
são sistemas de pensamento, seria preciso analisar de que
maneira esses sistemas se assemelham ou diferem de nossa
própria maneira de pensar. O pensamento mágico foi
inúmeras vezes comparado ao pensamento científico. Sua
racionalidade, ora afirmada, ora questionada. Tentaremos
reproduzir aqui esse debate, introduzindo, por um lado,
a interessante comparação que o antropólogo inglês Evans-
-Prítchard faz entre os sistemas de bruxaria africana e a
nossa ciência, e, por outro, a analogia de Lévi-Strauss
entre cura psicanalítica e cura mágica.
Mas, antes de nos aprofundarmos em todas essas
discussões, façamos uma pequena pausa para pensar no
assunto que aqui nos trouxe: o que é, afinal, a magia?
2
Magia e religião

Desde que James Frazer, antropólogo do final do


século passado, levantou o problema da relação entre
magia e religião, a discussão a respeito jamais cessou. Mas,
apesar da abundância de material e da progressiva sofisti-
cação das interpretações psicológicas e sociológicas da
magia, não se chegou a um acordo quanto ao problema
central: por onde passaria a linha de demarcação que
separa os fenômenos religiosos dos fenômenos mágicos?
As tentativas de distinção concentraram-se fundamen-
talmente em torno de duas oposições básicas:
• a magia trabalharia com forças que seriam ima-
nentes à natureza, enquanto a religião veneraria forças
transcendentes;
• a magia se definiria como um culto individual,
tendendo para o privado, enquanto a religião constituiria
um fenômeno coletivo e público.
Vejamos como se dá o debate em torno dessas pola-
ridades.
9

Imanência e transcendência
Para James Frazer 1, existiria um antagonismo básico
entre religião e magia fundado na concepção diferencial
que as duas teriam a respeito do funcionamento da na-
tureza.
A religião acredita na existência de poderes superiores
aos homens (transcendência), a quem se atribui o controle
da natureza. A natureza não teria, portanto, do ponto de
vista da religião, um curso independente dos caprichos
divinos. Essa crença tem como resultado prático o fato
de que os homens, para interferir nos acontecimentos, se
vêem obrigados a aceitar e promover a mediação dos deu-
ses: é preciso estimular a sua boa vontade; é preciso propi-
ciá-los e agradá-los para que governem bem o mundo.
Para a magia, ao contrário, a natureza não é regida
pelos caprichos pessoais das divindades, mas por leis rigo-
rosamente mecânicas. A sucessão de eventos é concebida
como regular e certa, determinada por leis imutáveis, cuja
operação pode ser calculada e antecipada com precisão.
Para intervir no seu curso não é preciso, pois, apelar para
qualquer tipo de persuasão, mas, ao contrário, aplicar
simplesmente as leis de causa e efeito.
Esse antagonismo entre magia e religião explicaria,
para Frazer, a hostilidade entre padre e feiticeiro ao longo
da história. Este último, acreditando poder intervir na
ordem do mundo, se mostra arrogante e auto-suficiente
no trato com as forças sobrenaturais. Já o primeiro, de-
pendente que é da vontade dos deuses, deve, para agradá-
-los, percorrer o difícil caminho da obediência e submissão ..
Para Prazer, essa hostilidade irredutível entre magia
e religião é um indício evidente de que a crença na magia
é anterior, na história do pensamento humano, à crença

1
Magic and religion. London, Thinker's Library, 1944.
10

na religião. Segundo ele, a descoberta da ineficiência de


certos ritos mágicos provoca uma verdadeira revolução na
mente dos homens, que passam a ter consciência de sua
fraqueza e ignorância diante das leis que organizam o
mundo. O homem descobre que as forças naturais não
podem ser controladas por ele . .B este sentimento de impo-
tência que estaria na base do surgimento das crenças
religiosas. O homem inventa os deuses quando descobre
que o mundo lhe resiste.
Na história das idéias de evolucionistas como Frazer,
a prova de que a magia antecede à religião está na sim-
plicidade das crenças mágicas: elas se atêm à imagem dos
fenômenos concretos sem enveredar pelo caminho abstrato
e especulativo das reflexões religiosas. A religião, pelo
grau de abstração de seus conceitos e pela complexidade
de sua reflexão, seria o pensamento verdadeiramente ante-
cipador da ciência.
Os argumentos de Frazer em favor da precedência
histórica da magia com relação à religião são, na verdade,
pouco convincentes. Em primeiro lugar porque a magia
está longe de ser mais simples do que a religião. Aliás,
a crença de que o simples precede historicamente o mais
complexo é um preconceito evolucionista já devidamente
superado pela antropologia. Como bem observa o sociólogo
francês Georges Gurvitch, as sociedades arcaicas não são
menos complexas do que as avançadas, mas de uma com-
plexidade específica 2• Em segundo lugar porque muitas
vezes a magia lança mão, em seus ritos, do auxílio de
entidades sobrenaturais, e a religião introduz atos mágicos
em seus cultos.
Também para autores como Marcel Mauss e Henri
Hubert, não se pode separar dessa maneira religião e magia.
E não se pode fazê-lo porque as duas são igualmente

2 La vocation actuelle de la Sociologie, Paris, PUF, 1969.


11

complexas e se interpenetram. Por um lado, a maior parte


das religiões conhecidas contém elementos mágicos e se
utiliza da magia em seus rituais, e, por outro, toda magia,
seja ela praticada visando finalidades benéficas ou malé-
ficas, faz apelo a divindades sobrenaturais 3. Podemos citar
como exemplo um ritual que é para nós muito conhecido:
a religião umbandista. Na umbanda, o uso da magia é
corrente. E as próprias divindades é que, ao possuir o corpo
de seus fiéis, praticam a magia: a cura para uns, o tão
esperado emprego para outros, a solução de problemas
amorosos para outros ainda. Para todos a magia se mostra
capaz de encontrar uma saída.
Esse exemplo demonstra como é complicado tentar
distinguir religião e magia em termos de oposições como
simplicidade/ complexidade e imanência/transcendência.
Para autores como Lévy-Bruhl essa distinção seria um
falso problema. Segundo ele, os povos "primitivos" não
fazem a mesma distinção que nós fazemos entre natural
e sobrenatural para que se possa falar em transcendência.
A vida mental do "primitivo" se caracteriza pelo fato de
que o mundo sensível e o mundo sobrenatural permanecem
intelectualmente indistintos. O conjunto dos seres visíveis
faz parte, integralmente, do conjunto dos seres invisíveis,
4
e estes não são menos reais do que os primeiros • O
misticismo peculiar à "mentalidade primitiva" tornaria im-
possível a distinção entre magia e religião na base da
imanência da primeira em oposição à transcendência da
segunda: esta linha de demarcação estaria, para Lévy-
-Bruhl, sempre em movimento.
A definição do sobrenatural seria uma experiência
mais afetiva do que intelectual. A representação do sobre-

3 MAuss, Marcel & HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da


:za,;ia. São Paulo, EPU/EDUSP, 1974. v. 1. (Texto de 1902.). ,
LEVY-BRUHL, Lucien. Le surnaturel et la nature dans la mentalité
primitive, Paris, PUF, 1963.
12

natural não é uma atividade intelectiva e abstrata. Ela


invade a experiência do sujeito e o mergulha num estado
afetivo já muitas vezes experimentado e, portanto, rapida-
mente reconhecido. Aceita a definição do sobrenatural
como uma experiência essencialmente afetiva, toma-se
difícil distinguir magia e religião na base da oposição ima-
nência/transcendência. Ambas fariam parte de uma mesma
"mentalidade mística, que se esforça em interpretar, co-
nhecer e provocar a manifestação das potências sobre-
naturais".

Individualidade e coletividade
o outro critério utilizado na distinção entre magia e
religião, a oposição ato individual/ ato coletivo, não é
menos controvertido que o primeiro. Alguns autores ten-
dem a considerar a magia como uma simples manifestação
da malícia pessoal do mágico, que se aproveita, em bene-
fício próprio, da credulidade dos membros do grupo a
que pertence. Na verdade, como bem mostra Marcel Mauss
em seu Esboço de uma teoria geral da magia, a magia,
mesmo quando praticada por indivíduos isolados, nunca
é a criação de um homem só; ela está sempre fundada em
crenças coletivas. Qualquer rito ou cerimônia só tem sentido
e eficácia porque quem está agindo através do mágico é
a própria sociedade. A magia é, por definição, objeto de
uma crença a priori. Porque a crença é anterior ao resul-
tado, a operação mágica que fracassa nunca coloca em
xeque o sistema. Quando o resultado esperado não vem,
refazem-se os ritos, varia-se a técnica e, no limite, substitui-
-se o mágico. Mas a crença no sistema permanece.
Também o mágico retira sua força dos poderes que
a sociedade lhe atribui. Ele é o que é, sente o que sente
porque segue a opinião pública da tribo: ele é ao mesmo
tempo seu explorador e escravo. A própria sociedade o
13

empurra a preencher seu personagem. Lévi-Strauss nos dá


um interessante exemplo de como isso acontece.
Um jovem zuni das tribos do Novo México foi acusa-
do de ser feiticeiro por ter provocado uma crise nervosa
numa adolescente ao tocá-la nas mãos. O jovem é imediata-
mente julgado pelo grupo. No início ele nega veemente-
mente ser feiticeiro. Mas suas negativas são vãs. A tribo
não queria que ele provasse sua inocência, mas, ao con-
trário, que explicasse como havia recebido e utilizado seus
poderes de feiticeiro. Vendo serem inúteis seus esforços,
o menino muda de estratégia e improvisa uma longa his-
tória em que explica a obtenção de seus poderes e os
remédios que conhece.
Segundo Lévi-Strauss, o debate em tomo do menino
não visava inocentá-lo da acusação de feitiço mas espe-
cificar as circunstâncias em que isso aconteceu. Tal exi-
gência adviria da necessidade, para a tribo, de tornar
objetivo um sistema do qual ela detém apenas fragmentos
isolados. O próprio menino não tem certeza de ser ino-
cente, já que não conhece de antemão os sinais que reve-
lariam sua condição. Ele constrói o personagem que a
tribo lhe impõe, a partir de seus conhecimentos e expe-
riências. Basta que a jovem fique curada e que ele inte-
riorize como sua a história que criou, para que ninguém
mais duvide de sua real condição de feiticeiro.
No fundo o julgamento não tinha por objetivo repri-
mir um crime, mas comprovar a realidade de um sistema
que torna o feitiço possível 5•
Esse exemplo ilustra bem o fato de que a eficácia
dos gestos mágicos se assenta na tradição que o oficiante
observa. O mágico não inventa ritos ou representações,
ele age armado pelos poderes que a sociedade lhe empresta.
Os atos individuais, supersticiosos, não podem ser consi-

5 LÉv1-STRAUSS, Claude. Le sorcier et sa magie. ln: -. Anthro-


pologie structurale. Paris, Plon, 1974.
14

derados mágicos. E isto porque não se repetem, não estão


sancionados pela tradição e pelo consenso social.
Tanto os fenômenos mágicos quanto os fenômenos
religiosos são, pois, para Mauss igualmente eficazes: ambos
derivam do mesmo caráter social. Assim, ernbora ele de-
fina os rituais mágicos como sendo aqueles que não fazem
parte de cultos organizados e públicos, ainda que a magia
se constituísse unicamente em ritos privados e secretos ten-
dendo para o proibido, sua forma, como no caso da reli-
gião, depende da sociedade e só tem razão de ser com
relação a ela.
Seria, então, o caráter maléfico dos ritos mágicos, e
não seu caráter individual, o que os distinguiria dos ritos
religiosos. Mas mesmo essa distinção também não se pode
fazer com rigor. Na verdade, entre os atos mágicos que
tendem para o ilícito e os atos religiosos que tendem para
o sacrifício, existe todo um conjunto de ritos mágicos,
como os ritos de cura, que não são nem secretos, nem
proibidos.
Assim, urna definição da magia que se construa unica-
mente a partir de sua oposição com a religião, deixa de
abordar, por um lado, um setor importante do fenômeno
mágico, que é a chamada "magia branca", pública e bené-
fica, e não é capaz, por outro, de tocar no que para Mauss
se constitui no próprio fundamento da magia, a base sobre
a qual está assentada sua força: o maná.
Veremos a seguir como o conceito de maná foi defi-
nido e interpretado nos textos antropológicos. No entanto,
antes de encerrarmos este debate em torno da oposição
religião/magia, gostaríamos de acrescentar uma observação
final.
Saber se magia e religião são fenômenos distintos e
irredutíveis entre si, ou se, ao contrário, resultam de uma
mesma fonte comum, toma-se aos poucos uma questão
periférica na reflexão antropológica. E isto porque o que
- ---- - 15
a fazia cande
.
subJacente nte e atu a 1 como po1Aermca. era a preocupaçao -
- com a ; sobretudo da escola francesa de antropologia
sociedades c ro~ressiva desorganização da vida social nas
Durkhe?italistas européias.
dade de se e rn, como outros autores, apontava a necessi-
mulo da coen~ontrarem mecanismos para a defesa e o estí-
anomia, . tão sao so eia. l e d e se l utar contra as ten dAencias
. a,
perspectiva Presente em sociedades como as nossas. Nessa
pois, centrzj .º estudo da religião e da magia tornava-se,
caro a coleti _as duas são fenômenos sociais que re-signiíi-
pelo conteúdVidacte. No entanto a magia, embora coletiva
O
cício. O exe ~~ suas crenças, não o é quanto ao seu exer-
tende Para ic~ci~ da magia, ao contrário do da religião,
Para Durkhe· 1nd1vidual, para a separação mágico/grupo.
vimento do ~lll ~al fato tem como conseqüência o desenvol-
são de tabus g~18~o. E, mais ainda: enquanto a transgres-
te condenadare igiosos é socialmente reprimida e moralmen-
não o é. Esse Pel~ grupo, a transgressão dos tabus mágicos
giosos e cont dois elementos - coletividade dos atos reli-
heim a afirrnroJe social das transgressões - levam Durk-
( coesão socia~r que, se a religião é fonte de moralidade
Essa ma '. a magia é fonte de imoralidade (anomia) .
passada pela ne~ra de pensar os conflitos sociais ficou ultra-
modernas. N Propria complexidade crescente das sociedades
religioso cirn a Verdade, não se pode pensar mais um sistema
lidade tão coentancto a coesão social, de sociedades de tota-
gioso como folllplexa. E muito menos pensar o universo reli-
nte ,,. ·
~anta esse tipo d ~mca de repres~ntaçõe~ do mundo. No en-
mterpretaçôes e ~terpretação ainda deixa suas marcas em
Tendo lll.ais recentes dos fenômenos mágicos.
. ~tn.o .
tattv?, Roger B pano de fundo esse esquema mterpre-
paulista ª· Para ª5hde analisou, nos anos 50, a macumba
ele a macumba seria o resultado de uma
:-:---------
6A macumba .
Perspectiva, [g~~~hsta. ln: _ Estudos afro-brasileiros. São Paulo,
16

dupla desagregação: por um lado, a desorganização dai


tradições afro-brasileiras que vêm do campo para a cidade:
por outro, o estado de margiaalidade em que se encontra-
~ª~
1 1 tanto os negros egressos da escravidão quanto 01
m ~rantes P~bres recém-chegados. Enquanto o candomble
sena na Bahia um meio de equilíbrio social, em São Paulo
a religião iria evoluir para a magia, desencadeando ?~
insti~tos m~is torvas da personalidade. A macumba paul,~-
ta, dJZ Bastide, invadida pelo homem branco e pelo desejo
de ascensão social e de lucro substitui a mentalidade
primiti~a - caracterizada pelo auxílio mútuo - por_ uma
mentalidade perversa, que visa explorar a creduhd_ade
popular. Daí à assimilação da macumba com a crimina.
lidade foi só um passo.

Não se pode, é claro, questionar a real marginalidade


em que se encontravam no início do século, os grupos
negros e os imigrantes pobres. Embora a marginalidade
persista até hoje, a expansão industrial dos anos 30 come-
ça a integrar ao mercado de trabalho os negros e sobretudo
os imigrantes. Parece-nos que a magia é em certa rn~dida
uma :esposta aos pequenos grandes dramas dos que vivem
nas cidades - desempregados em busca de trabalho, doen-
tes sem dinheiro, mocinhas à procura de noivo, famílias
que não vivem bem etc. Os mesmos dramas de então
permanecem. E permanece também a magia. Não se _pode
inferir da situação marginal desses grupos O caráter anô,
mico da magia. Relegá-Ia ao supersticioso e imoral é
assumir o discurso da polícia, que, até os anos 50, pe_rs:-
guiu e fechou, em nome da lei e da ordem pública, mu,
meros terreiros. E é também recuperar a posição da Igreja
católica, que, por muitos anos, persistiu em ver as "Supers-
tições" e crenças mágicas como fonte de desregramento
moral e de loucura.
3
O poder mágico

E ele que faz com que a rede pegue


peixe, com que a casa seja sólida,
com que a canoa enfrente o mar ...
Mauss e Hubert

Para Marcel Mauss, maná é a fonte comum da religião


e da magia. Na definição que ele nos dá, maná é mais
do que uma força distinta de toda força material que age
para o bem e para o mal. Maná designa fundamentalmente
uma ação: a manipulação eficaz de forças sobrenaturais.
Mas significa também uma qualidade que podem ter certos
objetos (calor e resistência) ou seres (prestígio social ou
riqueza, por exemplo). É ainda uma substância que pode
ser transmitida, manipulada, aumentada ou diminuída. Ele
é, por natureza, contagioso: comunica-se o maná que está
numa pedra para a colheita ou para outras pedras pondo-as
em contato. Nesse sentido a idéia de maná está muito
próxima da idéia de axé nos candomblés africanos tradi-
cionais. O axé nos cultos nagôs é um princípio vital.
Enquanto força, é transmissível e acumulável, mas só pode
ser adquirido por introjeção ou contato. Cada terreiro
18

deve, pois, receber axé, mantê-lo e desenvolvê-lo. Dessa


capacidade depende a força e importância do terreiro.
A noção se refere ainda a uma série de outras idéias,
tais como o poder do feiticeiro, o objeto da ação mágica,
o ser mágico, estar encantado etc. Essa riqueza de sentidos
levou Mauss a afirmar que o termo

é ao mesmo tempo um substantivo, um adjetivo e um


verbo ... (Ele) realiza essa confusão entre o agente, o rito
e a coisa, que nos pareceu fundamental na magia 1.

J;;: somente a partir da idéia de maná que se pode


entender a magia e o poder mágico. O poder da magia
é ao mesmo tempo material e espiritual; ele pode agir a
distância mas também por contato direto; é um poder
flexível, que se move sem se mexer, natural e sobrenatural
ao mesmo tempo, divisível e contínuo. Ao Jado dele nossas
idéias a respeito do acaso e do destino parecem incapazes
de explicar qualquer coisa. Tudo se passa como se o maná
fosse uma quarta dimensão do espaço à qual estaria super-
posto o mundo da magia. Ele é um dado a priori, precur-
sor de toda experiência, condição necessária para o fun-
cionamento das representações mágicas: o maná é uma
categoria inconsciente do entendimento que toma possível
as idéias mágicas. Nesse sentido, funciona como qualquer·
categoria abstrata, indispensável ao pensamento humano.
Segundo Mauss, o maná estaria para a magia assim como
o postulado de Euclides estaria para nossa concepção de
espaço.
Mas, contrariamente às nossas categorias de tempo e
espaço, que são para Mauss categorias do entendimento
individual, o maná é uma noção do pensamento coletivo.
1
Introduction à l'analyse de quelques phénomenes religieux. ln: -
Oeuvres. Org. por Victor Karady, Paris, Minuit, 1968. v. 2.
19

Ela só existe na consciência individual em razão de sua


existência na sociedade.
A qualidade do maná se associa às coisas ou pessoas
em função da posição social que elas ocupam: quanto
maior sua importância para a vida social, maior o seu
maná. Tudo o que é relativo à morte, por exemplo, ocupa
um lugar privilegiado nos ritos mágicos. Todos os mortos
formam, em relação aos vivos um mundo à parte, miste-
rioso, de onde o mágico retira seus poderes. Também as
mulheres detêm uma função mágica importante em inúme-
ras sociedades. Elas são consideradas qualitativamente
düerentes dos homens e dotadas de poderes específicos:
a menstruação, a sexualidade, os mistérios da gestação
são sinais evidentes dos poderes mágicos que lhes são
atribuídos. "A mulher é a morte" dizem os textos brâmanes.
Essa desconfiança que a sociedade masculina alimenta com
relação às mulheres explicaria, para Mauss, a posição de
inferioridade, do ponto de vista religioso e jurídico, que
lhes é atribuída em tantas sociedades. Mas explicaria tam-
bém a importância de seu papel na magia, onde ocupariam
um lugar social inverso àquele que lhes é atribuído pela
religião.
Esses exemplos mostram que o valor mágico das
coisas e seres resulta de sua posição relativa na sociedade.
"A virtude mágica e a posição social coincidem", diz
Mauss, "na medida em que uma faz a outra" 2• Assim,
o valor na magia é sempre um valor socialmente atribuído
e não uma qualidade inerente à coisa: esse valor depende
do lugar atribuído à coisa ou à pessoa pela opinião do
grupo. Dito de outro modo, a idéia de maná pode ser
compreendida como uma projeção dos desejos e aspirações
mais profundas da sociedade. Maná e magia nada mais
2
Mxuss, Marcel & HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da
magia. São Paulo, EPU/EDUSP, 1974. v. 1.
20

são do que uma representação dos medos e necessidades


coletivas. Toma-se, pois, evidente que tais noções só ga-
nham seu verdadeiro sentido quando apreendidas como
uma resultante do próprio funcionamento da vida coletiva.
Mas o maná não é somente a qualidade que se acres-
centa à coisa em função de seu lugar social: ele é a própria
razão de ser, o fundamento das posições diferenciais dos
seres. A noção de maná é uma categoria do pensamento
coletivo que impõe uma hierarquia aos seres. O maná
classifica coisas e pessoas. Une as que considera homo-
gêneas, separa as que define diferentes, estabelece relações
de superioridade e inferioridade, funda limites, determina
linhas de influência. A noção de maná é, portanto, central
quando se procura compreender a magia como um sistema
de conhecimento.
4
As categorias do
pensamento mágico

Se conhecer , ..
parecem ter d . e classificar, as colocações anteriores nos
e1xado ·d .
preendida como u ~vi ente que a magia pode ser com-
ender intelectu m sistema que se organiza para compre-
M - ª 1 mente o mundo.
as de que .
mitivo conhe manerra se pode dizer que o homem pri-
ce O mundo?
Essa é a que 8 t-
procura desv d ao que a antropologia se coloca quando
h omens di..f en ar os mistenos · , · · Entender como
da magia.
erentes d , .
perguntar se a r _ e nos pensam significa de certo modo
gorias seri azao, 0 pensamento racional e suas cate-
arn uma 1·
autores se d b qua idade humana universal. Diferentes
nir as cate e. ruçaram sobre esse problema tentando defi-
gonas I' ·
mento Vei ogicas que orientam essa forma de pensa-
. Jamos ·
magia anal· ' pois, como a abordagem intelectualista d:..
isa seu fun c10namento.
.

Os princípios da magia

. na~
Segundo Prazer, a magia - tem na dfuncionamento
a de místico:
seu fundamento é puramente racional. 0
22

da magia está assentado na idéia-base de que os fatos se


produzem numa sucessão invariável e previsível, sem a
intervenção de forças sobrenaturais. A magia é, portanto,
um sistema de pensamento que pressupõe a ação regular
e mecânica da natureza. Assim, é possível conhecer essa
regularidade e intervir sobre ela desde que se compreen-
dam as leis fundamentais que a regem: as leis da simpatia.
A simpatia, no sentido que Frazer empresta ao termo,
nada tem a ver com a afetividade. Ela designa essencial-
mente uma relação de afinidade entre coisas e seres. Nessa
concepção abrangente, todo ato mágico é regido pelas ieis
da simpatia.
Existem basicamente dois tipos de relações simpáticas:
as relações de contigüidade e as relações de similaridade.
Essas relações respondem respectivamente às seguintes leis:
1. lei da contigüidade: "Coisas que estiveram em
contato continuam unidas", isto é, continuam, mesmo a
distância, a agir uma sobre a outra;
2. lei da similaridade: "O semelhante produz seme-
lhante", isto é, o efeito se parece com a causa que o
produziu.
Essas duas leis definiriam para Frazer · dois tipos dis-
tintos de magia: a magia de contágio, em que o mágico,
agindo sobre o material que pertenceu a alguma pessoa,
pensa agir sobre a própria pessoa (lei da contigüidade),
e a magia imitativa, em que o mágico, por imitação (lei
da similaridade), pensa produzir o efeito desejado.
A essas duas leis Mauss soma uma terceira, que in-
cluiria a relação inversa da simpatia: a antipatia. Segundo
essa lei, "o contrário age sobre seu contrário", isto é, o
semelhante faz partir o semelhante para suscitar um con-
trário.
Essas leis nada mais são do que uma aplicação do
princípio da associação de idéias (associação por simila-
ridade, por contigüidade e por contrariedade). No entanto
23

a magia pressupõe que à associação subjetiva de idéias


corresponde uma associação objetiva de fatos, ou, dito de
outro modo, que as ligações mais ou menos fortuitas de
idéias são equivalentes às relações causais entre as coisas.
A magia assume, pois, que os princípios que regem sua
arte regem também a natureza: e por isso Frazer é levado
a afirmar que ela é uma "falsa ciência". A magia seria
para ele uma "filha bastarda da ciência" posto que nada
mais faz do que uma aplicação equivocada do princípio
de associação de idéias.
Mas vejamos agora como operam essas leis no campo
da magia.

Lei da contigüidade

A lei da contigüidade 1 pressupõe que toda parte é


equivalente ao todo a que pertence. Os cabelos, a saliva,
as unhas de uma pessoa, por exemplo, a representam
integralmente. O mágico pode então, atuando ritualmente
sobre esses elementos, produzir os efeitos desejados sobre
o indivíduo: seduzi-lo, enfeitiçá-lo e até mesmo matá-lo.
A distância entre o corpo e suas partes não interrompe a
continuidade do todo. Pode-se reconstituí-lo ou suscitá-lo
através de qualquer um de seus elementos.
Essa lei vale tanto para pessoas quanto para coisas:
a personalidade de uma pessoa é indivisa e está em cada
uma de suas partes. Do mesmo modo a essência de cada
coisa pertence a cada um de seus elementos. E, mais
ainda: cada parte de um todo é portadora dos mesmos
princípios essenciais que o definem como uma espécie.

1 A análise que segue refere-se ao cap. 3 do Esboço de uma teoria


geral da magia, de Mauss e Hubert (São Paulo, EPU/EDUSP,
1974).
24

Assim, por exemplo, todo osso de um morto contém a


morte, todo fio de cabelo contém o princípio vital etc.
A lei da contigüidade implica que tudo que entra em
contato de uma maneira ou de outra com a pessoa passa
a fazer parte integrante de sua totalidade. Assim, o prin-
cípio de contigüidade se expande dos elementos do corpo
(unhas, cabelos, dentes) para elementos externos ao corpo,
mas que de algum modo se comunicam com ele. Nessa
categoria entram os objetos de uso pessoal que estão em
contato direto com o corpo (roupas, acessórios etc.), e
também coisas por ele tocadas passageiramente (algum
caminho por onde se passou, restos de comida, água do
banho etc.). Relação de contigüidade idêntica se estabelece
entre o homem e sua família.
Age-se seguramente sobre uma pessoa agindo-se sobre
seus parentes, observa Mauss, nem é preciso nomeá-la nas
fórmulas mágicas, ou escrever seu nome sobre os objetos
mágicos destinados a lhe fazer mal.

Ainda a mesma continuidade define a relação entre um


homem e sua casa, seus animais, seus campos; entre uma
arma e a ferida que ela produziu; entre o assassino e sua
vítima. Em qualquer desses casos, basta agir sobre o resul-
tado de uma ação para que se obtenham os efeitos dese-
jados sobre o próprio agente.
As leis da contigüidade trazem em si, como conse-
qüência lógica, o fato de que uma pessoa ou coisa está
associada a um número praticamente infinito de ligações
simpáticas. Assim, rituais mágicos que à primeira vista
poderiam parecer desprovidos de sentido - como no
exemplo citado por Mauss em que uma mulher abandonada
pelo amante pensa vingar-se contra ele enrolando mechas
de seu próprio cabelo nas patas de um caranguejo -
desvendam a sua razão de ser quando se compreende a
pertinência que associa elementos tão arbitrários na busca
de uma ação eficaz.
- --- 25

Subjacente à noção de continuidade está a idéia de


que todo influxo mágico é transmissível através de uma
c~deia
O
de ligações simpáticas. A essa característica, Frazer
da nome de lei do contágio. A doença, a sorte, o azar
se expandem. sobre as coisas e seres que estiveram em
cont~to como numa espécie de contágio. No entanto é
pr~c!so Pôr alguns limites a essa expansão da influência
magica.st Se, como dissemos, ilimitadas associações podem
ser e abelecidas entre pessoas e coisas, em última análise
tu_1do Poderia agir sobre tudo. A aplicação generalizada da
~ 1st.da contigüidade, no limite, tomaria a magia impossível.
o porque, cada vez que o rito pretendesse transmitir
ª quahdade de um ser para outro, afetaria simultanea-
m~nte todos os elementos da cadeia. E, mais ainda, 0
univ~rso se tomaria rapidamente homogêneo posto que as
qualidades de um elemento da cadeia, qualquer que ele
fosse, se transmitiriam integralmente para todos os outros.
• Na verdade, existem direções preferenciais em que os
fenome · , ·
. _ nos percorrem a cadeia de relações sunpàticas,
di~e?oes estas definidas pela sociedade e controladas pelo
magico.

. Segundo Mauss, três mecanismos essenciais regula-


riam ª transmissão de idéiâs e qualidades ao longo da
cadeia simpática.

O Prinieiro deles orienta o alcance do rito mágico


ao e!eito irnediato desejado. :B esse desejo o fio condutor
do n!o: ele dá o tom da cerimônia, dirige e comanda as
associações de idéias a serem acionadas.
O segundo impõe limites aos efeitos do rito: por um
lado 10 · t · ' · d
. .' errompe-se, num momento preciso e a cnteno 0
o_ficiante, o fluxo da corrente simpática; por outro, sele-
ciona-se de antemão o número das qualidades a serem
trans 't·d 1 ' · d
mi
nd as. Assim, por exemplo, quando um médium e
umba a recebe sobre si a descarga negativa de um doente,
ele não t· ·, te
ica por isso necessariamente doente, ja que m
26

o poder de interromper o "contágio" transmitindo esses


fluidos para um pólo neutro (a terra), ponto final da
cadeia transmissiva.
O terceiro permite fixar em algum objeto ou anim.-1
as qualidades que se quer transmitir ou conter, o que as
toma facilmente manipuláveis. O axé dos terreiros de Ca.Jl-
domblé, por exemplo, é fixado através de rituais em pedras
que são colocadas nos alicerces da casa de culto: essa
força permanece ali sem expandir-se para outros objetos.

Lei da similaridade

Embora toda magia possa ser chamada de simpátita


na medida em que se funda no pressuposto da existência
de uma afinidade entre as coisas, a lei da similaridade é
uma expressão menos direta da noção de simpatia. A
similaridade vai definir, como vimos, uma forma diferen-
ciada de atuação mágica, a que Prazer chama de magia
imitativa.
Contrariamente à magia de contágio, que opera no
nível da transmissão de forças invisíveis, a magia imitativa
põe em relação as imagens dos fenômenos. Dois elementos
que se assemelham são considerados capazes de influir um
sobre o outro. Essa relação, que se estabelece por unia
similaridade icônica, esconde dois princípios fundamentais
que importa distinguir:
• "o semelhante evoca o semelhante";
• "o semelhante age sobre o semelhante, e particular-
mente cura o semelhante".

A primeira fórmula implica a afirmação mais geral


de que toda representação mantém uma relação com a
coisa representada. Esta relação é ao mesmo tempo sitn-
bólica (porque evoca a coisa) e física (porque produz
27

resultados sobre a coisa). A relação de similaridade é


na verdade equivalente à relação de contigüidade: a ima-
gem está para a coisa assim como a parte está para o
todo. As cerimônias de enfeitiçamento aplicam esse prin-
cípio ao esperar infligir efeitos maléficos a alguém através
da manipulação ritual de sua imagem.
Mas a semelhança pressuposta pela lei da similari-
dade é muito mais abrangente do que a simples idéia de
identidade de imagens. Na verdade, a imagem do objeto
representado não precisa ser necessariamente fotográfica.
Na maior parte das vezes é uma similaridade convencional:
o boneco ou o desenho da pessoa a ser atingida não
precisa reproduzi-la na integridade de seus traços físicos.
E uma semelhança produzida abstratamente pela conven-
ção ritual. "A imagem e seu objeto", observa Mauss, "só
têm em comum a convenção que os associa". No limite,
0
ritual pode até mesmo substituir a imagem por qualquer
outro elemento convencionalmente assimilado à pessoa
que se deseja evocar. A menção do nome, a associação
da pessoa a uma imagem qualquer que a represente (ani-
mal, agulha, corda, anel) substituem a imagem em sua
funç~o fundamental, que é a de tornar presente a pessoa
deseJada.
O objeto utilizado para evocar alguém pode tomar
múltiplos sentidos durante a cerimônia e representar si-
multaneamente o malefício, o maleficiante e a substância
maléfica. O que importa não é tanto, pois, o objeto esco-
lhido, mas a sua função de representação.
A generalidade com que se pode aplicar a lei da
similaridade - para as coisas e seu modo de ser, para
o possível, para o moral - faz com que a noção de
imagem acabe se comportando como um verdadeiro sím-
bolo. Pode-se representar simbolicamente qualquer coisa
ou evento desde que o rito produza a assimilação entre
o objeto e a coisa a ser evocada: a chuva, o sol, a febre
28

através de uma cabeça de animal, por exemplo, a uniãc


de uma tribo por um pote de água, o amor por um né
numa corda etc. Cabe, pois, ao antropólogo descobrir,
em cada ritual específico, quais os elementos que foram
simbolicamente retidos pelo mágico para produzir a assi-
milação entre objeto e coisa representada. Assim em algum
casos será a cor ou o peso do objeto que contarão; em
outros, seu cheiro, sua função etc. Pode-se, na verdade,
imaginar infinitas associações. E por causa disso mesmo,
em última instância, acontece com a similaridade o mesmo
que já havíamos observado para a contigüidade: tudo está
associado a tudo. O mágico deve, portanto, limitar, dire-
cionar os efeitos da associação. Quando ele quer provocar
um malefício em alguém através da imagem de um boneco,
deve limitar os efeitos de seu gesto a uma finalidade espe-
cífica. Sem esse limite definido, as desgraças se expandiriam
associativamente, trazendo conseqüências mais graves do
que aquelas desejadas pelo feiticeiro.
A segunda fórmula da lei da similaridade, "o seme-
lhante age sobre o semelhante", é mais específica do que
a primeira. Enquanto esta refere-se à evocação como uma
qualidade geral do rito, a segunda determina uma direção
para a associação. Tomemos por exemplo o ritual da ben-
zedeira no tratamento das bichas. A benzedeira enrola uma
linha branca ao redor do punho fechado da criança dando
várias voltas e depois corta na ponta de cima e na ponta
de baixo a mecha formada. Em seguida coloca os fios
de linha de igual comprimento num copo cheio de água
(em que devem ficar 24 horas) enquanto reza alguma
coisa, pondo a mão direita sobre a cabeça da criança. A
mecha de linha, pela sua cor e forma, é assimilada 2.s
lombrigas, que se quer eliminar. O seu corte age simbo-
licamente; cortando-a, corta-se, por analogia, os vermes da
criança. O que se pretende ao colocar os fios na superfície
da água é reduzir as lombrigas ao estado de linha, isto é,
29

ao estado de linha da água. Vemos neste exemplo as inú-


mer_as associações que um ritual simples é capaz de pro-
duzir, As linhas, assimiladas aos vermes, que se quer elimi-
nar, são manipuladas cortadas reduzidas à linha da água.
O ri_tual define, pois', a direçio do efeito esperado pela
m&rupulação da coisa simbolizada.
Mas, quando o semelhante cura o semelhante, faz
surgir exatamente o seu contrário. Assim, a lei da simila-
ridade nos leva à lei da contrariedade.

Lei da contrariedade

, . No exemplo de cura acima mencionado a magia ::m-


patica pressupõe que o semelhante ( as linhas), ao evocar
º. semelhante ( os vermes), provoca o seu contrário ( ausê~-
eia de vermes). A fórmula contida nesse tipo de rito sena,
pois, a seguinte: "o semelhante faz partir o semelhante
C,e ~uscita seu contrário)". Vemos, portanto, que a própria
logica da similaridade nos leva à formulação da contra-
ri_edade. Se o semelhante age sobre o semelhante, faz sur-
gir O seu contrário. De maneira correlativa, podemos pen-
sar em ritos em que a similaridade age banindo O seu
co n t rano:
, . o semelhante ao evocar o semelhante, faz pa rtiir
0
seu contrário - quando eu evoco a chuva, por exemplo,
a~ravés de um ritual em que despejo água sobre O solo,
viso fazer desaparecer a seca.
A noção de contrariedade está, pois, intimamente
ligada à noção de similaridade, mas é sua aplicação in-
vertida. Se substituirmos a fórmula "o semelhante atrai e
age sobre o semelhante" pela sua formulação inversa -
"o ~º1:1trário é banido pelo seu contrário" -, teremos, que
ª suniJaridade estaria contida na contrariedade. A agua
atrai a chuva fazendo partir seu contrário (a seca) do
30

mesmo modo que as linhas evocam os vermes e fazen


aparecer seu contrário ( a inexistência dos vermes).
O contraste é uma noção fundamental na magia. A
maior parte dos ritos trabalha com sistemas inteiros dt
oposições, tais como frio/quente, sorte/azar, água/fogo
etc. f: interessante observar que, embora não possa ser
chamado de mágico, o sistema popular de classificação de
doenças que prevaleceu no Brasil desde a difusão dos
princípios hipocráticos nos séculos XVII e XVIII organiza
as doenças em quatro grandes grupos definidos pelas opo,
sições quente/frio, seco/úmido. As doenças das vias respí,
ratórias, compreendidas como vindas de fora para dentr:>,
são percebidas como frias; as doenças de pele, advindas
de dentro para fora, são quentes. A combinatória dessas
oposições classifica também os diferentes órgãos do corpo
- o coração seria quente e seco, o cérebro, úmido e frie,
o fígado, quente e úmido etc. Finalmente os diversos
tipos de alimentos a serem ingeridos pelo doente tambén
são organizados em função da mesma dicotomia, estabe-
lecendo-se uma homologia entre doenças quentes e alimej;
tos quentes e doenças frias e alimentos frios.
A oposição por contraste corresponde, portanto, a
uma maneira de pensar que não se restringe somente aos
fenômenos mágicos. Para alguns autores, como Lé'Ã-
-Strauss, essa organização dualista do pensamento sera
mesmo universal. Ela definiria o modus operanâi do si:-
tema mental inconsciente de todo ser humano .


Para Marcel Mauss todos os simbolismos produzid(s
por qualquer sociedade podem, na verdade, ser reagrup.,
dos no interior das categorias abstratas implícitas nas Ies
da magia. As três formulações fundamentais - "o sem-
31

lhante produz o semelhante" "o semelhante age sobre 0


semelhante" e "o contrário 'age sobre o contrário" -
correspondem três idéias esquemáticas: a ausência de um
st
e ado que se quer eliminar; a presença de um estado que
se quer eliminar; a presença do estado contrário ao estado
que se deseja produzir. No primeiro caso se pensa, por
exemplo, produzir chuva por meio de um símbolo que ª
evoque: joga-se água no chão. No segundo caso o símbolo
f , a
az cessar um estado que se lhe assemelha: joga-se agu
num doente para curá-lo de hidropisia. No terceiro c,a~o
0
elemento simbólico utilizado (a água) chama o contrario
desejado ( a seca) , fórmula esta que nada mais é do que
uma combinação das duas idéias anteriores: elimina-se ao
mesmo tempo uma ausência e uma presença.
E bem verdade que, quando se passa da ana'li se das
1·d,. ' ·
eras magicas para a observação do rito, pode-se per ceber
.
que essas leis na prática se misturam. As leis de simt~a-
ridade e contigüidade tendem a se entrecruzar: todo rito
de similaridade usa normalmente O contato; e, inversa-
mente, todo rito de contigüidade pressupõe a tra~s-
rnissão de qualidades fundadas na similaridade. Assim,
poderíamos ter, por exemplo, o enfeitiçamento atrav~s
de um boneco que contém elementos pertencentes a&
vestimentas da vítima que se quer destruir; ou então um
despacho para Exu que contivesse um elemento represen-
tativo da qualidade do mal que se quer enviar (um pou:o
de dinheiro para arruinar alguém). As possibilidades sao
infinitas. Na verdade, tendo em vista que a magia é .um
rito essencialmente voltado para a obtenção de efe1.tos
práticos, a superposição e a combinatória de analogias,
contigüidades, contradições podem talvez, aos olhos do
observador, retirar a consistência lógica do rito (com ª
qual, é claro, o mágico não está imediatamente preocupa-
do)' mas acrescenta, aos olhos do oficiante, maior eficácia.
32

A "mentalidade primitiva"

O fato de que os padrões de pens:


mento são diferentes não impede o
primitivo de pensar como nós. N elle
sentido seu pensamento não é mGfr
nem menos lógico do que o nosss,
Lévy-BruM_
Acompanhando as interrogações inauguradas por
Frazer, o filósofo Lucien Lévy-Bruhl parte em busca de
uma definição mais acabada desse "pensamento primitivo",
que, por estar inteiramente embebido no misticismo, desa.
fiava a crença na universalidade da razão. O raciocínio e
a reflexão não seriam então faculdades naturais e cons
tantes do espírito humano?
Em sua obra Lévy-Bruhl procura penetrar os cantos
mais obscuros do sistema de idéias dos povos que ele
chama de "primitivos". Mas, contrariamente aos observa.
dores seus contemporâneos que pressupunham que o espí-
rito desses povos se orientava segundo os mesmos hábitos
mentais que os nossos, Lévy-Bruhl abandona o postulado
da identidade de espíritos e sai em busca de uma "menta-
lidade primitiva" tal como ela se manifesta nas instituições
e representações coletivas dessas sociedades. Assim fazendo,
diz ele, "a atividade mental dos primitivos não será mais
interpretada como uma forma rudimentar da nossa própria
2
mentalidade" • Ela aparecerá como normal, desenvolvida
e complexa quando considerada no interior das condições
em que se exerce.
Duas características principais definiriam, para o
autor, a "mentalidade primitiva" como diferente da menta-
lidade racional: sua funcionalidade prática e seu aspecto
místico.

2
La mentalus primitive. 15. ed. Paris, PUF, 1960. p. 15.
33

. A aversão do "pensamento primitivo" pelo racioc~o


mais abstrato se deve ao fato de que toda sua energia
reflexiva está voltada para os objetos da vida prática - a
c~ça, a pesca, a comida -, fora dos quais qualquer r~fle-
xao se torna sinônimo de tristeza e aborrecimento. Lévy-
-Bruhl dá o exemplo de um observador que perguntou a
um esquimó: "Em que pensas?" E ele respondeu: "Vocês,
brancos, se preocupam demais com os pensamentos; nós,
esquimós, só pensamos em nossa caça e nossa carne: tere-
mo~ 0 bastante para a longa noite do inverno? Se a car~e
st
e a em quantidade suficiente, então não precisamos mais
pensar".
A qualidade essencialmente mística da "mentalidade
primitiva" faz com que esta seja capaz de perceber rela-
ções lá onde nosso pensamento costuma conceber elemen-
tos isolados. A essa característica Lévy-Bruhl dá o nome
de "mentalidade participativa". Vejamos então de que ma-
neira essa mentalidade opera.

A lógica do concreto

O modo de pensar do "homem primitivo" está p~o-


fuodamente marcado pela sua vida coletiva. Nesse típe
de organização social o indivíduo é pouco demarcado co
conjunto dos membros do grupo. Essa maneira de viver
cri_a_ hábitos mentais. Contar, por exemplo, no se~ti_d.° ~~t-
metico da palavra não tem para o "homem pnnutivo, .ª
mesma importância que tem para nós. Assim, sua m~mo~a
guarda a imagem de conjuntos numéricos (que nao sao
confundidos -entre si), mas as unidades não são isoladr-
El
e usa termos genéricos tais como , · muitos · " , "urea
1
mu ltidãao " , " uma massa" ou' então imagens d o t·1Pº "tanl'·5
quantas as estrelas do céu" ou "tantos quantos os decos
d
ª. mao,,
- " para expressar quantidades ma~ores
· ou m enof' '
CUJOS numeras exatos jamais são conhecidos.
34

Esse traço característico da "mentalidade primitia"


seria, para Lévy-Brubl, uma evidência de que ela n~ é
regida, como a nossa, por um ideal conceptual aristotéli:o.
A abstração, a generalidade não está contida nas idéias O
elemento de generalidade não é objeto de percepção i111e-
Jectual: ela é mais sentida do que pensada. A generalidde
é, para o "primitivo", uma categoria afetiva. Assim, tn-
bora se possa dizer que a crença na existência de fon;as
invisíveis exige um reconhecimento da generalidade, ese
reconhecimento não se faz através do uso de concebs
abstratos, mas, sim, pela experiência vivida, que, ao rere-
tir-se, permite ao sujeito reconhecer sua natureza.
Lévy-Brubl não chega a afirmar, é claro, que esa
categoria afetiva é exclusiva da "mentalidade primitiw-,
Ela é talvez mais facilmente percebida nas "sociedares
primitivas" por causa do papel preponderante que têm en
sua vida as representações emocionais. Segundo ele, Ol!Je
o modo conceptual de pensar se desenvolveu, os elemenos
intelectuais tomaram um lugar cada vez mais importa-j,
nas representações relativas ao mundo sobrenatural. Mis
a categoria afetiva do sobrenatural subsiste ainda. Nenhuna
religião pode ignorá-la.

A lógica da participação

Segundo Lévy-Bruhl, a atividade cotidiana do hom'11


"civilizado" implica, nos seus mínimos detalhes, a cre.Qa
na invariabilidade das leis naturais. Mesmo quando ns
aparece subitamente um fenômeno misterioso, para o q\Jl
não temos explicação, supomos que nossa ignorâncía g
transitória, que as causas existem e que cedo ou tar:Je
serão corretamente determinadas. A natureza do meio ~
que nos movemos é de antemão intelectualizada.
A atitude do "homem primitivo" é bem diferente. 1?)
meio em que ele se move, todos os objetos e seres S;,)
35

concebidos como estando mergulhados numa rede de par-


ticipações e exclusões místicas. Assim, quando algo acon-
tece, ele se volta naturalmente para o sobrenatural.
O princípio lógico implícito nas representações mís-
ticas do "pensamento primitivo" é a lei da participação.
A participação não distingue ação objetiva de ação sobre-
natural: aquilo que afeta urna coisa afeta todas as outras,
porque tudo está ligado numa rede de participação. Segun-
do essa lógica, nenhum homem, por exemplo, revela seu
nome a um inimigo, pois, do contrário, este terá para
sempre o portador do nome nas mãos. Do mesmo modo
o pai participa em seu filho. Quando este adoece, o pri-
meiro é quem toma o remédio.
A noção de participação utilizada por Lévy-Bruhl
está muito próxima dos princípios de associação de id~ias
implícitos no pensamento mágico tal como foram descntos
por Frazer. No entanto, enquanto para este último as leis
da magia nada mais são do que O resultado de um racio-
cínio incorreto, uma dedução equivocada do funciona-
mento da natureza, para o primeiro é uma forma de pensa-
mento que surge em determinadas condições sociais. Pro-
curar definir o "pensamento primitivo" através da lógica
da participação não significa, para Lévy-Bruhl, imputar ao
"primitivo" uma inabilidade qualquer de raciocínio. Trata-
-se de definir certos padrões de pensamento, certos axiomas,
que orientam determinadas representações.
O "pensamento primitivo" vê o mundo que o cerca
da mesma maneira que o nosso. A diferença está na
percepção. Enquanto as nossas representações coletivas
nos fazem perceber as coisas de maneira objetiva, as
representações coletivas "primitivas" percebem os objetos
místicamente. A realidade em que os "primitivos" vivem
é toda ela mística. Quase tudo que nós vemos lhes escapa
ou lhes é indiferente, enquanto eles vêem coisas das quais
nem sequer suspeitamos. Todo homem percebe apenas uma
36

pequena parte daquilo que é capaz de ver ou de ouvi-,


Para o "primitivo" essa seleção se faz na base da aíetiv,
dade. Por exemplo, ele presta muito mais atenção do qie
nós nas sombras porque para ele as sombras são alma.,
enquanto para nós são simples negação da luz. A c'tença
apura, pois, certos tipos de percepção. As representações,
pelos valores diferenciais que dão aos fenômenos, dirigen
de maneira seletiva a atenção para o mundo, produziam
percepções desiguais.

A lógica da causalidade mágica

Embora o pensamento místico diferencie o munco


natural do mundo sobrenatural, essa distinção não aparece
em suas representações. O sucesso ou o fracasso, o ben,
-estar ou a desgraça, a vida ou a morte dependem da açio
de potências invisíveis. A julgar pela banalidade com q1e
o "impossível" acontece, observa Lévy-Bruhl, parecera
que o próprio sobrenatural faz parte da natureza. Para o
"primitivo" nada é incompatível com a experiência objeti/a
do mundo - tudo pode acontecer. O mundo sobrenatual
é objeto de uma experiência constante, inseparável la
experiência ordinária.
A despreocupação aparente do pensamento mági:o
com relação ao encadeamento lógico das causas advên,
segundo Lévy-Bruhl, desse apelo constante ao sobrenatual
na explicação dos acontecimentos. As ligações causais, qie
para nós são o próprio fundamento da realidade, ão
secundárias para o "pensamento primitivo". Para esse ~s-
tema de representações, o que nós chamamos de caisa
nada mais é do que um instrumento a serviço de for1as
ocultas. Fossem as causas diferentes, o acontecimento teia
se produzido de qualquer maneira: a ocasião poderia er
sido outra, o instrumento diferente, mas o fato seria o
mesmo.
37

Comparando o pensamento lógico ao pensamento


mágico, Lévy-Bruhl observa que, quando acontecimentos
nefastos se verificam em nossas vidas, buscamos sua expli-
cação no conjunto das circunstâncias concretas em que eles
se produzem. Procuramos, por exemplo, uma relação de
causa/efeito entre excesso de chuva e má colheita expli-
cando o excesso pelas condições meteorológicas. Mas não
nos perguntamos de onde vem esse súbito desregramento
da natureza: não saímos da esfera dos fatos verificáveis.
Para o "pensamento primitivo" o que há de pior na des-
graça não é a desgraça em si, mas o presságio de acidentes
futuros, que acontecerão num encadeamento infindável se
as forças nefastas não forem neutralizadas. Assim, embora
não ignore as relações naturais e positivas dos aconteci-
mentos, o pensamento mágico se interroga principalmente
sobre a origem e o destino das forças místicas que os pro-
duziram.
A "mentalidade primitiva" vive num mundo onde
inúmeros poderes ocultos estão a todo momento prestes
a agir. Os acontecimentos do mundo visível dependem a
todo momento das potências invisíveis. Vem daí a impor-
tância dos sonhos, dos presságios, das adivinhações e da
magia. Por aí explica-se também a aparente negligência
dessa forma de pensamento com relação às causas objetivas
dos fenômenos. Se um homem se fere nos galhos de uma
árvore, se os rios secam, árvore e chuva não constituem
a causa eficiente do acontecido. Elas nada mais são do que
instrumentos nas mãos de forças invisíveis. O conheci-
mento das leis naturais nos satisfaz. A atitude do "homem
primitivo" é outra: ele procura suas respostas na meta,
física. Para ele a coincidência e o acaso não existem, <l
nascimento e a morte não são da ordem do puramente
natural.
De um modo geral, quando um homem morre, diz-se
que foi condenado por um feiticeiro. A morte por acidente
38

nada mais é do que o resultado de uma magia malé:ica.


A morte violenta, num combate entre tribos, por exemplo,
se explica pela perda momentânea da habilidade do guer-
reiro de aparar o golpe mortífero por efeito da magia. ~ão
se concebe a morte simplesmente pela doença: a doença,
quando segue seu curso normal, não leva à morte, a
menos que se dê a intervenção da feitiçaria.
Para a "mentalidade primitiva" o acidente e o acaso
não existem. E isso não porque esteja convencida do
determinismo rigoroso de tudo que acontece. Ao contrário,
ela não se preocupa com o determinismo porque as carsas
já estão reveladas de antemão. Lévy-BruhJ dá um exemplo
interessante dessa exigência de uma causa que expLque
todo acaso.
Durante uma reunião de domingo numa tribo africa,
na, um homem atira uma lança numa árvore. Ao cair, a
lança ricocheteia e atinge o pescoço de um velho, matando-
-o. A morte teve que ser imediatamente vingada, e seu au-
tor, ·voluntário ou involuntário, punido. E isso porque afir-
mar que foi um acidente não responde às questões: por que
a lança, ao cair, cravou-se justamente no pescoço do velho
e não na sua frente ou atrás dele? Como tornar evidente
a ausência de intenção daquele que a lançou? A intenção
poderia existir até mesmo sem que ele o soubesse. Os
feiticeiros não têm necessariamente consciência da ação
mortal que exercem.

*
O "pensamento primitivo" não procura, pois, conexões
causais objetivas porque não tem as mesmas exigências
lógicas que o nosso. Suas representações coletivas são,
como as chama Lévy-Bruhl, "pré-lógicas". Isso não signi-
fica que o "homem primitivo'.' seria incapaz de pensar
coerentemente, mas, sim, que suas crenças são incom-
patíveis com uma visão científica do universo. O pensa-
39

mento "pré-lógico" não se preocupa em evitar contradições.


Ele está regido pela lei da participação: porque tudo está
ligado a tudo, duas coisas podem ser ao mesmo tempo
distintas e idênticas. O pensamento mágico-religioso é,
portanto, um pensamento lógico, mas que parte de premis-
sas diferentes daquelas que orientam nosso pensar.

Repensando a causalidade mágica


Lévy-Bruhl foi um dos primeiros autores a abandonar
a explicação da magia e da religião através de urna teoria
de suas origens. Aceitou-as como consumadas e procurou
encontrar sua estrutura interna. Ele acreditou encontrá-la
ao definir a existência de urna "mentalidade primitiva",
tão lógica quanto a nossa, mas fundamentalmente distinta
dela.
No entanto, apesar da contribuição de Lévy-Bruhl
para a compreensão dos mecanismos do pensamento má-
gico, hoje não é mais possível aceitar a teoria da "menta-
lidade primitiva". Em primeiro lugar porque, se essa men-
talidade fosse assim tão distinta da nossa, seríamos
totalmente incapazes de compreendê-la. Em segundo lugar
porque é virtualmente impossível definir o "homem pri-
mitivo". Nos exemplos coligidos pelo autor, chineses, es-
quimós, melanésios e africanos aparecem lado a lado numa
indicação de que primitivo é quase tudo aquilo que difere
de nós mesmos. O próprio autor reconhece, no final da
vida, que não há uma "mentalidade primitiva" que pode
ser distinguida de outra pelo seu caráter místico e pré-
-lógico 3• Tendo partido da hipótese de que sociedades
com estruturas diferentes têm lógicas diferentes, ele se vê
obrigado a postular uma "lógica pré-lógica", cujos critérios
de racionalidade acabam por não ficar esclarecidos.

3
LÉVY-BRUHL, Lucien. Carnets, Paris, PUF, 1960.
40

Finalmente, os "povos primitivos" são mais prático.,


mais próximos da realidade objetiva do que as descrições
de seu misticismo deixam perceber. Sua "incapacidade de
distinguir as contradições evidentes" nada mais é do que
uma ilusão do antropólogo, que alinha lado a lado crenças
que, na realidade, se encontram em diferentes situações
e níveis de experiência. Não é muito óbvio por que se
deve comparar a magia e a religião primitiva com a ciência
ocidental em vez de compará-las com nossas próprias
religiões. Esse tipo de comparação transcultural acaba
representando o "primitivo" como mais místico do que ele
realmente é.
Por outro lado, afirmar que "um homem é um croco,
dilo" não significa que o autor da afirmação é incapaz de
perceber contradições. Duas coisas podem ser ao mesmc,
tempo distintas e idênticas em diferentes níveis: homem e
animal são ao mesmo tempo distintos e idênticos porque
seus atributos se adicionam.
Não há contradição alguma entre a explicação causai
e a mística. Atribuir ao acaso a intervenção de forças
mágicas é uma análise muito mais aguda da situação. ~
tentar explicar por que duas cadeias de eventos que tende,
riam a permanecer independentes se cruzam num espaçe,
e num tempo determinados.

A causalidade nos sistemas da bruxaria africana

O antropólogo inglês Evans-Pritchard retoma critica,


mente o trabalho de Lévy-Bruhl e procura compreendet
o sistema da bruxaria africana como uma teoria das causas,
O problema que o africano procura solucionar com sua
crença na bruxaria é o seguinte: por que acontece :i. mim,
e não aos outros, uma desgraça? Com efeito, o iomcm
cujo filho se afogou viajando numa piroga se pegunt.i:
"Se ele viajava com freqüência nesse rio, no qual 1emp1e
41

há hipopótamos, e nunca lhe aconteceu nada, por que


nesta exata ocasião o hipopótamo resolveu atacá-lo e
afogá-lo?" Nós dizemos que foi a má sorte que provocou
o encontro entre animal e menino. Ele! dizem que foi
bruxaria.
O africano sabe perfeitamente que o menino morreu
porque seus pulmões se encheram de água. No entanto,
se diz que foi a bruxaria a responsável pela sua morte,
procura explicar uma coincidência que a ciência deixa
sem explicação. A bruxaria não pergunta "de que morreu",
mas "por que morreu" uma pessoa. Nesse sentido, longe
de significar um descaso para com os determinismos
causais, como queria Lévy-Bruhl, a crença na bruxaria
apontaria para uma mentalidade extremamente sensível às
relações causais. Ela anteciparia relações causais entre
fenômenos onde o pensamento lógico não vê relação
nenhuma.
A crença nas forças maléficas da bruxaria não impede
que o africano reconheça a falta de habilidade e os deslizes
morais como causas de desgraças. Se um artesão princi-
piante deixa quebrar seus potes no momento de queimá-
-los, não pode culpar um bruxo pelo acidente, pois nin-
guém lhe daria crédito; mas, se a um artesão experiente,
que segue corretamente as regras de seu ofício, acontece o
mesmo, a afirmação de bruxaria passa a ser encarada
como procedente.
Mas o africano vai mais longe. A bruxaria não age
ao acaso. Embora a bruxaria seja uma agressão incons-
ciente - o suspeito nunca sabe se ele é ou não um bruxo
-, sabe-se que o bruxo sempre procura atingir as pessoas
que odeia, que inveja ou com quem brigou. Assim, quandc
algum malefício acontece, a lista de suspeitos se compõ:
das pessoas que, por uma razão ou outra, estão em conüiu
com a vítima.
O sistema da bruxaria enquanto uma teoria das causas
das desgraças está, pois, vinculado às relações pessoais
entre vítimas e vizinhos. Nesse sentido, controla, comanda
e explica as relações sociais entre os homens. E, na
medida em que explica a intersecção de duas séries de
acontecimentos mediante a antipatia entre pessoas, opera
num campo distinto daquele em que o faz a ciência.
Dentro da rede de crenças que constitui o sistema
da bruxaria, o africano pensa de forma tão lógica quanto
os ocidentais na rede do pensamento científico. Se prote-
gemos, por exemplo, nossa casa com um pára-raios e
mesmo assim ela é atingida por um raio, dizemos que a
haste foi mal instalada ou que os cabos estavam soltos.
Se o africano protege, sua aldeia com a magia da chuva
e ainda assim os campos permanecem secos, dirá que o
rito foi mal feito ou algum tabu transgredido. Assim, con-
e! ui Evans-Pritchard, a mente dos povos africanos trabalha
com os mesmos modelos lógicos que a nossa, apenas
utilizando materiais culturais diferentes. A crença no siste-
ma da bruxaria teria o mesmo tipo de fundamento que
a crença na teoria da conspiração na história, no valor
terapêutico da psicanálise ou, enfim, em qualquer propo-
sição que se apresente de maneira não-verificável.
5
Magia e pensamento:
o social como modelo

Para Marcel Mauss a vida social é um mundo de


relações simbólicas. O símbolo representa coisas, pessoas,
idéias para alguém: ele está sempre no lugar da coisa
representada. Os sistemas simbólicos são sempre uma
construção coletiva. As condutas individuais não são sim-
bólicas em si mesmas: elas ganham sentido em relação
a uma cultura dada. Todo sistema simbólico exprime
aspectos da realidade física e social de um grupo humano
determinado. Assim também o sistema da magia. Com-
preender os sistemas mágicos como sistemas simbólicos
significa, portanto, perguntar o que eles nos dizem sobre
as sociedades que os produziram. Compreender como os
homens pensam diz algo a respeito de corno eles são.
Mas para Mauss o espírito do homem tem uma
história: o homem não pensa sempre da mesma maneira
em todos os lugares. E a história do pensamento é a
história da sociedade. Nesse sentido Mauss critica Lévy-
-Bruhl por não ter sido historiador suficiente em sua
análise. Se ele tivesse comparado corretamente as socieda-
des "primitivas" às nossas sociedades modernas, teria se
dado conta de que existem entre as duas mais semelhanças
44

do que as que ele realmente admitiu. As práticas adina-


tórias persistem, as crenças mágicas não parecem tder
ao desaparecimento, as noções teológicas de expiao e
pecado contêm as mesmas contradições que ele dencia
nas crenças "primitivas".
Por outro lado, continua Mauss, não se pode >m-
preender um pensamento qualquer (seja ele "prínvo"
ou "civilizado") restringindo-se à avaliação de sua µca
interna. B preciso ir além e procurar alcançar qu: as
emoções, as intenções, os valores sociais fundamtais
sobre os quais se assentam tais pensamentos. Por ni ter
percebido isso, Lévy-Bruhl reduziu a idéia de "partpa-
ção" a uma simples incapacidade do "primitivo" doer-
ceber diferenças. Na verdade a "participação" é dee o
começo uma tentativa de estabelecer relações ent as
coisas. Ela supõe ao mesmo tempo um esforço paraon-
fundir e um esforço para fazer aparecer. Assim, um tua!
mágico de cura pode ser considerado um ritual de "rrti-
cipação"; mas isso não nega o fato de ele ser ant de
tudo um ritual de revelação: mostra aos novos entes
que aquilo que lhes aparecia como doença tem a veeom
a existência e atuação de seres espirituais invisíveis.
Todo ato simbólico é um ato social em que o hoem
se identifica com as coisas e identifica as coisas corele.
Nesse processo guarda o sentido das semelhanças eliíe-
renças que ele mesmo produziu. Não basta descrevi um
mito ou um rito mágico e apontar suas íncoerênas e
confusões. Para compreendê-los, por detrás de sua ap-ên·
eia contraditória, é preciso analisar a organização cisl
que os criou.
Mauss ilustra esse procedimento em sua análi da
noção de "pessoa" 1• Começa criticando Lévy-Bruh por
1
Msuss, Marcel. Répresentations collectives et diversité deiivili·
sations. 2. -. Oeuvres. Org. por Victor Karady. Paris, mui~
1922. V. ln:
45

ter limitado seu estudo do "pensamento primitivo" a uma


simples descrição de suas categorias. Isso o levou a con-
cluir que os "primitivos" são incapazes de distinguir alma
e pessoa. Mas não basta afirmar que em grande número
de sociedades "alma" e "pessoa" apareçam como sendo
a mesma coisa. :f: preciso compreender a razão dessa indis-
tinção. Para Mauss, a razão está no fato de que a perso-
nalidade e a alma vêm, como o nome, da própria sociedade.
O nome designa o conjunto de posições específicas que
o indivíduo ocupa em seu grupo. A posição do indivíduo
em seu clã, em sua família, no conjunto da vida social,
define sua personalidade. Alma, pessoa e posição social
são, pois, uma só coisa.
Assim, embora o estudo da magia nos permita com-
preender como se apresentam as categorias do entendimen-
to no espírito do "primitivo", para Mauss é preciso deslo-
car o foco da reflexão antropológica. Os fenômenos mágico-
-relig10sos não podem ser simplesmente apreendidos a
partir da forma que adquirem nas consciências individuais.
As operações mentais da magia não podem se reduzir
simplesmente ao raciocínio analógico e a aplicações con-
fusas do princípio de causalidade. :f: preciso descobrir qual
a parte do social que se manifesta no pensamento indi-
vidual.
Quando as pessoas se juntam, quando conformam seus ges-
tos a um ritual, suas idéias a um dogma, estão elas moti-
vadas por intenções puramente Individuais ou por intenções
cuja presença em sua consciência só se explica pela pre-
sença da sociedade? 2

A magia não é uma prática individual em que um


mais esperto abusa da credulidade dos outros. Na magia o
indivíduo age dirigido pela tradição ou, pelo menos, por

2 Id., ibid., p. 121.


46

urna sugestão que ele dá a si mesmo sob pressão da


sociedade. Por mais isolado ou carismático que um má-
gico seja, a magia só funciona porque pela sua boca é a
sociedade quem fala.

O problema da razão
As operações mentais da magia não se reduzem à
aplicação de princípios lógicos. Muitos autores têm con-
cordado com Lévy-Bruhl ao perceber que elas comportam
verdadeiros julgamentos, julgamentos de valor, fundados,
portanto, mais na afetividade do que na razão. Os julga-
mentos de valor não são menos racionais que os jul-
gamentos objetivos. A lógica racional tende a opor
radicalmente inteligência e sentimentos. No entanto, quan-
do se estudam essas duas lógicas na consciência dos
indivíduos vivendo em grupo encontramo-las intimamente
associadas. Com efeito, os julgamentos e raciocínios im-
plícitos na magia e na religião são aqueles mais funda-
mentais para o grupo como um todo. A dimensão afetiva
não retira o rigor desse pensamento já que a lógica que
governa o pensamento coletivo é mais exigente do que
a que governa o pensamento individual. As necessidades
reais, comuns e constantes que a magia satisfaz dão a ela
sua razão de ser, sua coerência. É claro que as idéias dos
grupos podem ser feitas de elementos contraditórios. Mas
as contradições são ao mesmo tempo inevitáveis e úteis.
Por exemplo, o espírito de Exu na umbanda é um ser
espiritual maléfico que trabalha para o bem. Essa aparente
contradição é uma síntese indispensável onde se equili-
bram sentimentos e sensações que são também contraditó-
rias: o bem para um se acompanha do mal para outro;
Exu é um espírito inferior porque maléfico, mas, porque
manipula o mal, é superior aos outros espíritos.
47

É porque simboliza certos aspectos fundamentais da


vida coletiva que a magia faz sentido. :É preciso, pois,
perguntar, em cada contexto determinado, que tipo de
simbolismo envolve o pensamento e a ação mágica. É
preciso saber em termos de que tipo de representação as
pessoas acreditam que a magia é eficaz.

Pensar é classificar

A magia, como qualquer sistema de pensamento, clas-


sifica os seres e as coisas. O próprio espaço do rito não
é homogêneo, podendo ser diferenciado através de oposi-
ções tais como esquerda/direita, alto/baixo, fora/dentro,
sagrado/profano etc. Também as entidades espirituais em
ação se diferenciam: são masculinas/femininas, brancas/
/negras, superiores/inferiores etc. A organização dessas
entidades pode realizar-se a partir de combinações múlti-
plas. No caso da umbanda, por exemplo, os seres espirituais
se organizam numa hierarquia onde cada linha de espíritos
se agrupa em legiões, falanges, subfalanges etc. Dividir
o mundo e as idéias em classes é uma maneira de esta-
belecer relações significativas: classificar unifica o pensa-
mento porque mantém as idéias ligadas entre si.
Mas quais as forças que induzem os homens a separar
e ajuntar as coisas em diferentes classes?
Para Mauss e seu mestre Durkheim, a hierarquia lógica
nada mais é do que uma tradução da hierarquia social.
Os homens classificam as coisas e as idéias porque se
concebem a si mesmos como organizados em diferentes
grupos e subgrupos. As idéias se relacionam do mesmo
modo que os homens se relacionam. Preocupados em des-
vendar as primeiras categorias lógicas utilizadas pelo pen-
samento humano, Mauss e Durkheim voltam-se para a
análise da organização social das sociedades primitivas.
Observam então que esses povos, por estarem organizados
48

em duas classes matrimoniais complementares (as tr a-


trias), classificam a natureza em duas classes opostas. As
coisas, os seres, as idéias são masculinos ou femininos e
pertencem necessariamente a uma ou outra fratria. Os
homens classificavam, pois, as coisas porque estavam eles
mesmos divididos em classes, clãs e subclãs: os próprios
quadros da sociedade serviram de base ao sistema. No
interior dessa lógica que atribui qualidades humanas às
coisas, seres e objetos pertencentes a uma mesma classe
são considerados parentes; as relações lógicas são, portanto,
relações domésticas; as coisas se subordinam do mesmo
modo que os homens se subordinam. Coisas relacionadas
com o chefe são superiores, o que, do ponto de vista das
idéias, se traduz em maior grau de abrangência e abstração:
as relações lógicas acompanham a linha das relações
sociais.
Se as coisas se atraem e se opõem do mesmo modo
que os homens, o sistema que as classifica traduz os laços
afetivos que unem grupos e pessoas. A análise de Robert
Hertz sobre a polaridade esquerda/direita põe em evidên-
cia o caráter afetivo das classificações. Para ele, a oposição
básica que está no fundo de toda oposição dual é aquela
que fundamenta a própria existência da vida social: a
oposição entre a vida e a morte. Tudo o que promove
e alimenta a vida é pensado como sagrado, e tudo o que
a diminui é profano. Nesse sentido, a saúde, a coragem
na guerra, a excelência no trabalho são sagrados, enquanto
a covardia e a imperícia são profanas. Essa dualidade
vida/sagrado, morte/profano orienta todas as outras opo-
sições que os sistemas simbólicos produzem: luz/trevas
(a luz está do lado da vida; as trevas, do lado da morte),
masculino/feminino (o homem está do lado da afirmação
da cultura - e, portanto, é sagrado; a mulher ameaça
a cultura, dela vêm os males que ameaçam a vida - e,
portanto, é profana). A polaridade esquerda/direita seria

)
49

um caso particular desse dualismo que caracteriza o "pen-


samento primitivo". Na magia adivinhatória, por exemplo,
essa polaridade adquire papel importante para a interpre-
tação dos desígnios divinos: o que vem da esquerda geral-
mente anuncia maus presságios, o que vem da direita
anuncia felicidade 3•
O estudo das classificações mostra, pois, que as coisas
não são simples objetos de conhecimento: elas se agrupam
e se opõem em função de razões mais sentimentais do que
intelectuais. Elas são amigas ou inimigas, favoráveis ou
desfavoráveis, sagradas ou profanas. Há afinidades senti-
mentais entre as coisas do mesmo modo que entre os
homens, e é de acordo com essas afinidades que elas
se classificam. Porque afetam diferentemente a sensibili-
dade social de cada grupo, as mesmas coisas são classi-
ficadas de maneira diferente nas diversas sociedades. O
espaço, por exemplo, que é concebido por nós como sendo
perfeitamente homogêneo e indiferenciado, é percebido por
muitos povos como heterogêneo. Cada região teria virtudes
distintivas e um valor afetivo próprio.
A lógica que orienta o "pensamento primitivo" dife-
riria da que organiza o nosso próprio pensamento na
medida em que a primeira classifica sentimentos enquanto
a segunda classifica conceitos.

*
Seguindo a tradição da antropologia francesa, Lévi-
-Strauss retoma o problema do "pensamento primitivo" e
tenta ir mais além no desvendamento de sua lógica. Anali-
sando a linguagem de muitos povos, procura demonstrar

3 HERTZ, Robert. A proeminência da mão direita: um estudo sobre


a polaridade religiosa. Religião e Sociedade, (6), Rio de Janeiro,
Tempo e Presença, 1980. Orig. francês: Sociologie religieuse e1
[olklore, Paris, PUF, 1970.
a raracia do argumento, como o de Lévy-Bruhl, que invo-
cava uma suposta inaptidão dos "primitivos" para o
pensamento abstrato. Citando um exemplo da observação
de Boas entre os chinuques da América do Norte, ele
mostra que a língua indígena recorre com freqüência a
conceitos abstratos para designar propriedades ou quali-
dades das coisas. Por exemplo, para exprimir a idéia de
que "o homem mau matou a pobre criança", o chinuque
diz "a maldade do homem matou a pobreza da criança",
Outro preconceito freqüente na antropologia é o de
que os homens "incivilizados" vivem subjugados pelas
forças hostis da natureza; sua inteligência, estimulada pela
hostilidade do mundo, só seria capaz de pensar o que é
útil e necessário para a sobrevivência social e orgânica.
Lévi-Strauss é um dos primeiros a dizer que o "primitivo"
pensa a si e ao mundo pelo simples prazer de conhecer.
E nesse sentido o "pensamento primitivo" se assemelha ao
pensamento científico: os dois abordam o universo tanto
como objeto de pensamento, quanto como meio de satis-
fazer necessidades 4• O conhecimento botânico que os indí-
genas têm não está determinado, como queria Malinowski,
pela necessidade de comer. Na maior parte dos casos, eles
são capazes de dar nome e classificar a totalidade dos
recursos naturais de que dispõem. Lévi-Strauss arrola exem-
plos retirados das mais variadas regiões do mundo: os
fang, no Gabão, são capazes de perceber as características
genéricas de todas as espécies vivas; os hanuoo, nas Fili-
pinas, utilizam e conhecem inteiramente a flora local· os
índios tewa, no Novo México, têm nome para toda; as
espécies coníferas da região, mesmo aquelas que o homem
branco _é_ incapaz de distinguir. Tais exemplos indicam
q_ue a utilidade não é o critério que orienta tão vasto conhe-
cimento. As espécies não são conhecidas porque são úteis,

4 Ltv1-Snuuss,
cional, 1970. Claude. O pensamento selvagem. São Paulo, Na-

CSH I UFRG
Sl

observa Lévi-Strauss, "mas são classificadas úteis ou inte-


ressantes porque são primeiro conhecidas" 5•
st Conhecer o mundo da natureza é, como já dissemos,
e abeJecer classificações. Pode-se, no entanto, questionar
s~ as classificações produzidas pelo pensamento mágico
tem ef , ·
icacía no plano prático. No entanto, antes do que
sua, eficácia prática, o que importa em tal ciência é seu
carater especulativo. Colocar elementos diferentes numa
mesma classe é estabelecer algum princípio de congruência
entre
. as coíisas, e' mtro
· d uzir
· um pnncipio
· ' · d e or d em no
universo. Qualquer classificação é melhor do que a desor-
dem: a exigência de ordem está na base de qualquer tipo
de pensamento. Os rituais mágico-religiosos participam
dessa exigência classificatória na medida em que cada
gesto, canto, invocação atribui a cada coisa seu lugar.
0 Essas considerações levam Lévi-Strauss a afirmar que
P:nsamento mágico se distingue da ciência não pela
sua 1gn0rancia• ·
das causas reais que afetam os f enomenos,

ma~, ~o contrário, "por uma exigência de determinismo
1
mais _~periosa e mais intransigente" do que a postulada
pela ciencia. Enquanto esta última diferencia níveis e for-
mas de determinismo o primeiro formula a crença num
determm ·· , . "d d -
ismo global em que as leis de causali a e sao
pressupostas e arriscadas antes de serem concretamente
conh_ecidas. Os ritos e crenças mágicas poderiam, pois, ser
~on_si~e.rados uma predisposição inconsciente do espírito
P~!hvo" para compreender, muito antes do nascimento
da_1stc!encia, a "verdade do determinismo como modo de
e~ e~cia dos fenômenos científicos" 6• A qualquer explica-
~ªº
0rd científica sempre corresponde a descoberta de uma
enação", observa Lévi-Strauss. Toda sistematização dos
dados se , . . · · , · s
_ . ns1ve1s, mesmo se ela se inspira em pnncipio
nao-científicos, pode encontrar uma ordenação verdadeira.
~ ld'
O Id
·• Ibid
'b• .• p. 29 '
•• 1 id., p. 32.
6
Magia e ciência

Segundo Prazer, a magia estaria mais próxima da


ciência do que a religião. Apesar de considerá-la "irmã
bastarda da ciência", Prazer ressalva seus efeitos positivos
para a evolução da humanidade.
Em primeiro lugar, a 'magia contribuiu para o forta-
lecimento de uma série de instituições sociais, segundo
ele, de primeira importância, tais como o poder real e o
Estado, a propriedade privada, o casamento, todas elas
fundamentais "sustentáculos da sociedade civilizada". A
magia age, pois, em benefício de toda a comunidade. O
mágico se torna um funcionário público, o que significa
um importante passo para a evolução política e religiosa
da sociedade. A magia pública tende a colocar o controle
da comunidade nas mãos dos mais inteligentes e hábeis,
já que o feiticeiro é aquele indivíduo que domina os demais,
explorando sua superstição em proveito próprio. Quando
a prosperidade do clã ou da tribo inteira depende do
sucesso dos ritos mágicos, tais como os ritos dos fazedores
de chuva e dos medicine man, a profissão de mágico
atrai os homens mais inteligentes e ambiciosos da comu-
nidade. Nesse momento a magia contribui para a eman-
53

cipação da humanidade: ela permite a substituição da demo-


cracia selvagem, baseada no Conselho dos Velhos, pela
monarquia. O selvagem não é livre; ele é escravo do pas-
sado e da tradição. A magia abre caminho para o talento,
dá autoridade às habilidades humanas, contribuindo assim
para arrancar a humanidade da selvageria.
Em segundo lugar a magia está na origem da ciência
moderna. E isto porque, segundo Frazer, a magia admite
como pressuposto que um acontecimento resulta de outro
necessária e invariavelmente, sem a intervenção de agentes
espirituais. Todo o sistema repousa, pois, na certeza, talvez
cega, mas real e firme, de que a natureza é uniforme e
ordenada. O mágico está convencido de que as mesmas
causas produzirão sempre os mesmos efeitos. Assim, ele
só será eficaz no exercício de sua arte se respeitar estrita-
mente as regras da natureza tal como ele as concebe.
Não há dúvida de que o evolucionismo frazeriano,
associado aos pressupostos do liberalismo europeu, é inca-
paz de explicar corretamente a passagem histórica das
"democracias primitivas" para o Estado burguês. Parece-
-nos que atribuir à magia e à habilidade dos feiticeiros
o papel de foco propulsor de transformações tão complexas
é reduzir a história ao voluntarismo de alguns de seus
personagens. Mas, além dessa visão reducionista da mu-
dança, o trabalho de Prazer se ressente de um erro
metodológico fundamental. Este consiste na aplicação
indevida de categorias tomadas de empréstimo de nossa
mentalidade para compreender sociedades diferentes. Pra-
zer retoma noções tais como "contigüidade", "similitude",
"causalidade" e procura analisar como elas operam no
pensamento mágico. Entretanto essa análise intelectualista,
que retira da magia todo elemento místico e afetivo, só
poderia levá-lo a constatar os erros e incoerências desse
pensamento. Esforçando-se em descobrir na magia as ori-
gens da ciência, encontra nas sociedades que analisa os
elementos que ele mesmo, a priori, lhes havia atribuído.
O antropólogo polonês B. Malinowski recusa a inter-
pretação evolucionista e procura compreender a magia a
partir das funções sociais a que ela responde. Segundo ele,
o "homem primitivo" recorre à magia sempre que seja
compelido a reconhecer a impotência de seu conhecimento
e técnicas racionais. Para alguns povos a pesca na lagoa,
por exemplo, não requer nenhum rito mágico, posto que
podem confiar por inteiro no seu conhecimento e perícia.
O mesmo não acontece com a pesca no mar, porque é
perigosa e incerta. A magia controlaria, pois, circunstâncias
em que a margem de imprevisibilidade é muito ampla,
e a presença da adversidade, aguda. Para o "homem pri-
mitivo" trata-se, pois, de explorar a natureza em seu bene-
fício e burlar o destino. Ele diferencia as forças naturais
das forças sobrenaturais e procura utilizar as duas em
benefício próprio.
Comparando o pensamento mágico com o cientí-
fico, Malinowski afirma a superioridade do segundo sobre
o primeiro. A ciência pode ser definida, diz ele, como
um corpus de regras baseadas na experiência, capaz de
produzir sucessos materiais e encarnado numa forma de
tradição. Nesse sentido, os conhecimentos que o "homem
primitivo" detém sobre a natureza estão num estágio rudi-
mentar do saber científico. E isso porque as leis de conduta
prática que ele conhece não permanecem abertas ao con-
trole pela experiência 1.
Durkheim e Mauss, ao contrário de Malinowski, se
preocupam menos com o conteúdo do pensamento mágico
do que com as categorias conceptuais com que ele opera.
Desse ponto de vista, a maneira de pensar do homem
"primitivo" aparece para eles como sendo análoga à nossa.

l MALINOWSKI, B. Magia, ciencia, re/igi6n. Barcelona, Ariel, 1974.


p. 33-5.
55

As classificações primitivas se ligam, sem solução de conti-


nuidade, às classificações que chamamos de científicas. As
duas apresentam os mesmos traços essenciais: são sistemas
de noções hierarquizadas em que as coisas não aparecem
isoladas umas das outras mas mantêm relações entre si e
formam um todo coerente· os dois sistemas têm uma fina-
lidade especulativa - têm' por objeto não simplesmente
facilitar ou organizar a ação, mas conhecer, tornar inte-
ligível a relação entre os seres. As classificações primitivas
visam antes de tudo relacionar idéias, unificar o conheci-
mento. Pode-se afirmar que são verdadeira obra de ciência
e constituem uma primeira filosofia da natureza.
No entanto há uma dimensão em que, para Mauss,
magia e ciência se diferenciam _ a dimensão afetiva do
conhecimento mágico. A magia, por estar fundada na
emoção, é refratária à análise de suas próprias categorias.
A emoção, sobretudo quando é de origem coletiva, desafia
o exame crítico e a dúvida. A magia é um objeto de
crença por definição. A experiência que a contraria não a
coloca em questão como sistema. A pressão exercida pelo
grupo social sobre cada um de seus membros não permite
aos indivíduos julgar em liberdade as noções que a própria
sociedade elaborou. Estas, por serem valores coletivos
fundamentais, tornam-se sagradas. O sagrado constitui-se,
no limite, na encarnação plena da totalidade social e é,
em conseqüência, inquestionável pelos indivíduos. No fun-
do, o rito realiza concretamente a homenagem que os
homens tributam a sua própria coletividade.
Assim, a história da classificação científica é, para·
Mauss, a história das etapas ao longo das quais esse ele-
mento de afetividade social foi se enfraquecendo progres-
sivamente até permitir o surgimento da ciência. No entanto
o pensamento racional não eliminou de todo os efeitos,
ainda presentes, das classificações primitivas: o suporte de
toda classificação é esse
56

conjunto de hábitos mentais em virtude dos quais concel!Je.


mos os seres e os fatos sob a forma de grupos coorde-
nados e subordinados uns aos outros 2.

A ciência do concreto
O mito como bricolage

Apesar de tratar o determinismo mágico como uma


forma de conhecimento que antecipa o pensamento cien-
tifico, Lévi-Strauss se recusa a reduzir a magia a uma
forma rudimentar de ciência. Para ele, magia e ciência não
são tipos de pensamento que se opõem, nem a primeira
é um esboço da segunda. São dois sistemas de pensamentos
articulados e independentes, semelhantes quanto ao tipo
de operações mentais que exigem, mas diferentes quanto
ao tipo de fenômenos a que se aplicam.
Para caracterizar o modus operandi desse tipo de
pensamento, Lévi-Strauss lança mão da idéia de bricolage.
O bricoleur é aquele que trabalha com as mãos, conser-
tando ou fabricando utensílios a partir de restos, pedaços
de outros objetos.
O pensamento mítico também trabalha com um reper-
tório de elementos retirados de outros conjuntos culturais
e por isso se constituiria numa espécie de bricolage inte-
lectual. Esse tipo de atividade se distingue, portanto, da
atividade técnico-científica pela ausência de um plano
preconcebido do resultado esperado e pelo uso de material
já anteriormente elaborado. O engenheiro, por exemplo,
a cada nova tarefa escolhe as matérias-primas e ferra-

2 Dull1lliEIM, Emile & Mxuss, Marcel. Algumas formas primitivas


de classificação. ln: RODRIGUES, José Albertino, org. Durkheim;
sociologia. São Paulo, Atica, 1978. p. 203. (Col. Grandes Cientistas
Sociais.)
S7

mentas necessárias. O bricoleur tem que trabalhar com os


elementos heterôclitos de que dispõe. Esse conjunto de
elementos nunca é perfeitamente adequado ao projeto pre-
tendido. O repertório se constitui de resíduos de constru-
ções ou destruições anteriores que se conservam indepen-
dentemente do uso que terão. Por serem restos de utili-
zações anteriores, cada elemento já traz em si um número
delimitado de aplicações possíveis: eles só podem servir
para operações de um certo tipo.

Os signos do mito e os conceitos da ciência

Os elementos da reflexão mítica, por serem resíduos


de construções culturais anteriores, estão a meio caminho
entre o puro conceito e a percepção. O conceito é cons-
truído a partir de um conjunto de idéias abstratas ligadas
entre si, que não mantêm urna relação necessária com a
realidade representada. Ele é uma convenção, e, enquanto
tal, pode-se dizer que todo conceito é arbitrário. Ele se
opõe, rompe com a aparência dos fenômenos.
O pensamento mítico não trabalha com conceitos.
Está mais próximo da realidade concreta tal como ela
aparece à nossa percepção. Suas representações são menos
abstratas do que aquelas que o conceito produz. Elas têm
um grau de abstração intermediário entre a concretude da
imagem e a arbitrariedade do conceito. Esse operador in-
termediário entre a imagem e o conceito é, para Lévi-
,.:_Strauss, o signo.
De uma maneira geral, o signo é o que substitui a
coisa concreta no nível das idéias. Ele é composto de dois
elementos: o significante - que é o suporte material do
signo, a maneira como ele se concretiza ( uma palavra, um
gesto, uma imagem etc.) - e o significado - que é a
coisa concreta designada pelo signo. Podem-se distinguir
três tipos de signos em função da relação entre significante
e significado:
a) o índice: é um signo em que seu suporte material
( o significante) mostra diretamente o objeto significado.
Por exemplo, quando apontamos com o dedo indicador
uma coisa qualquer. O gesto aponta para a coisa signi-
ficada. Ou quando observamos na areia as pegadas de
um cachorro. As marcas materiais indicam o cachorro;
b) o ícone: é um signo em que o suporte (signifi-
cante) evoca imediatamente o objeto significado. :e o caso
particularmente das imagens. A imagem é um signo que
já contém em si mesmo o seu sentido. A magia trabalha
preferencialmente com ícones, embora também se utilize
de índices e símbolos. Quando se faz um feitiço contra
alguém, por exemplo, usa-se um boneco que representa a
pessoa para quem o rito se destina. Quando se quer sim-
bolizar a idéia de morte, usa-se a imagem do esqueleto.
Já. a de purificação, a imagem do banho e da lavagem;
c) o símbolo: é um signo em que o suporte material
(significante) designa um objeto exterior com o qual ele
não tem nenhuma relação direta. :e particularmente o caso
das palavras, cujo som mantém com a coisa designada uma
relação convencionalmente estabelecida. A relação entre
o som e a coisa é, portanto, arbitrária, depende de um
sistema de regras estabelecidas, o sistema da língua.
A diferença entre o cientista e o mágico reside no
fato de que o primeiro lança mão de conceitos, enquanto
o segundo opera por meio de signos. O signo e o conceito
se assemelham porque os dois são capazes de se colocar
no lugar da coisa e transmitir a idéia da coisa para alguém.
A diferença entre eles reside no fato de que o conceito
tem um poder de referência ilimitado, já que o conjunto
de elementos de que se serve não estão apoiados na per-
cepção, enquanto o signo tem que se conformar aos sen-
59

tidos já contidos nos materiais que utiliza. O cientista,


para realizar o seu projeto, interroga a natureza ( o uni-
verso), enquanto o mágico ou o mítico interroga a cultura:
ele se dirige a uma coleção de resíduos de obras humanas,
a um subconjunto da cultura. Assim, as interrogações que
o cientista pode dirigir a seu universo são ilimitadas, en-
quanto o pensamento mítico é obrigado a adequar-se à
história contida nos pedaços de cultura de que dispõe.
Todavia a diferença entre os dois tipos de pensamento
não é tão absoluta, já que o cientista não dialoga com a
natureza em seu estado puro, mas com uma natureza me-
diada pelo estado da cultura tal como ela se organiza
naquele momento.
A imagem, quando transformada em signo, adquire
o grau de abstração necessário para constituir um pensa-
mento generalizador. O pensamento mítico, embora per-
maneça preso às imagens, é capaz de estabelecer relações
abstratas, analogias e aproximações, que o tornam com-
parável ao pensamento propriamente científico. Utilizando
resíduos culturais - palavras, experiências, objetos -, o
mito reordena incansavelmente os acontecimentos para lhes
descobrir um sentido. :é certo que, diferentemente da
ciência, que inventa seus instrumentos (hipóteses e teorias),
o pensamento mítico não cria o novo, limita-se a orde!ll!,t
Q existente. No entanto, assim fazendo, diz Lévi-Strauss,
ele é também libertador porque se constitui num "protesto
contra a falta de sentido, com que a ciência estava, a prin-
cípio, resignada a transigir" 3•

3 A ciência do concreto. ln: -. O pensamento selvagem. São Paulo


Nacional, 1970. p. 43.
7
A eficácia simbólica

A magia como crença coletiva


Não é a manipulação técnica da natureza que define,
como pretendia Frazer, a eficácia do rito mágico. A eficácia
só existe quando sustentada por uma crença coletiva. A
magia é uma arte que comporta uma multiplicidade com-
plexa de operações. Os elementos com que trabalha são
triturados, diluídos, transformados em bebidas e infusões;
eles viram pasta, pó, fluidos, a serem bebidos ou comidos;
ou ainda imagens a serem guardadas como amuletos. Essa
química não tem como único objetivo tomar os produtos
objetivamente utilizáveis. Na verdade, a preparação dos ob-
jetos mágicos é parte integrante do ritual que os torna efica-
zes. Nenhuma pedra, folha, cocção ou imagem tem algum
poder sobre o real pelas suas propriedades intrínsecas: essa
eficácia lhe é atribuída necessariamente pelo rito.
Os ritos são os gestos, palavras e operações realizadas
pelo mágico. Eles podem ter variações de todo tipo segun-
do as culturas que os elaboram. Referindo-se a eles, Mauss
descreve os rituais de purificação dos hindus, as cerimônias
sacrificiais dos gregos, as encantações presentes em quase
61

to_das. Mas, embora vários desses rituais operem segundo as


1~1s da simpatia, não são as idéias que conferem eficácia ao
tito. A eficácia da magia se assenta na crença num poder
lllístico, sem o qual ela se torna pura técnica. Assim, não
se pode duvidar de que a magia seja realmente eficaz, mas
s~u poder depende de uma crença a priori: a magia fun-
ciona porque as pessoas crêem.
. A essa espécie de poder sagrado Mauss dá, como
Vimos, o nome de maná 1. A idéia de maná torna a crença
na magia um ato coletivo. Procura-se o mágico não porque
el: provou ser eficaz, mas porque se acredita nele de ante-
lllao. Dessa crença participam o mágico, o cliente e o gru-
po social como um todo.
Lévi-Strauss nos dá dois exemplos interessantes desse
aspecto coletivo da crença 2•
fine r Um in_divíduo que está persuadido de ter sido eníei-
, ·' içado partilha com seus amigos e parentes a certeza de
:ac\
l. /., que vai morrer. A partir de então o próprio grupo se
om retrai, comportando-se com ele como se já estivesse morto.
sã~ Excluído brutalmente dos laços sociais que o ligavam ao
ões grupo, ele sucumbe fisicamente à dissolução de sua perso-
dos nalidade social.
~SS, Mas é através da história do xamã Quesalid que essa
utos as~ociação eficácia mágica-crença coletiva se torna m~s
ob. evidente 3• Quesalid não acreditava nos poderes dos xamas-
ica, No intuito de desmascarar suas mentiras e trapaças, acabou
tum aceitando passar pelos ritos de iniciação. O que ali apren-
essa deu - técnicas de simulação de crises nervosas e desmaios,
emprego de espiões para a escuta de conversas privadas e
das ª técnica de apresentar uma pluma ensangüentada ao
un- 1
uss M:A_uss, Marcel & HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da
~agia. São Paulo, EPU/EDUSP, 1974. v. 1. .
tias p l..e socier et sa magie. ln: -. Anthropo/ogie structurale. pans,
ase 3
lon, 19_74; . . .
Essa história analisada por Lévi-Strauss foi recolhida pelo antro-
Pologo americano Franz Boas.
doente como prova da expulsão da doença - confirmou
suas piores suspeitas. Mas, tendo chegado a esse estágio
de conhecimento, ele não estava mais livre: começou a
ser chamado pelas famílias, e seus tratamentos foram co-
roados de pleno êxito.
Seu espírito crítico começa ~ ceder diante da crença
quando seus sucessos o levam a confrontar-se com técnicas
de cura de xamãs de tribos vizinhas. Numa delas a doença
não é extraída pela técnica da pena ensangüentada, o xamã
se contenta em cuspir um pouco de saliva nas mãos.
Ouesalid testa sua técnica contra a do colega e obtém
melhores resultados. Ele descobre, pois, que há sistemas
terapêuticos ainda mais falaciosos do que o seu. Um, que
não mostra nada ao paciente e pretende ter capturado o
mal, e o dele, que pelo menos mostra algo ao doente.
Segundo Lévi-Strauss, o problema com que se defronta
Ouesalid tem seu equivalente no desenvolvimento da ciên-
cia: dois sistemas igualmente inadequados oferecem, um
em relação ao outro, do ponto de vista de sua lógica e de
sua eficácia, resultados diferentes. A partir de que critérios
julgá-los? Se está correta a teoria de que toda doença é um
homem e de que para dominá-la é preciso capturar a alma
dele, então não há o que mostrar ao paciente. Se Que-
salid mostra algo, isto acontece porque a doença é outra
coisa ou porque ele usa um truque diferente?
A teoria explicativa das doenças apresentada pelo
xamã a Ouesalíd não é, evidentemente, uma invenção
individual. Ela se funda numa tríplice experiência: a crença
do xamã em seus próprios poderes; a melhora ou não do
paciente; a adesão coletiva.
Quesalid não se tomou um grande xamã porque
curava seus doentes, mas, ao contrário, ele curava porque
era considerado um grande xamã 4• E a grandeza de um
4
LÉVI-STRAuss, C. Le sorcier ... , Anthropologie ... , p. 198.
63

xamã é dada pela sua capacidade de angariar o consenso


coletivo em torno de si e de seu sistema. Teríamos aqui
uma situação não muito diferente daquela descrita por
Kuhn a respeito dos paradigmas científicos: não são os
frac_assos em alcançar uma solução que desacreditam um
conJunto de teorias. Um paradigma teórico é abandonado
quando desaparece num momento histórico o consenso da
comunidade científica em torno dele 5• Assim também, é
na atitude do grupo, mais do que nos sucessos e fracassos
do. xamã, que se deve procurar a razão da vitória de Que-
sahd Sobre seus adversários.

A Produção de significados: a cura mágica

, . A eficácia da magia na cura de distúrbios psicossn,


~aticos se funda na sua capacidade de atribuir significados
as_ desordens fisiológicas. o mito que o xamã ou o feiti-
ceiro produz torna coerentes as dores e sintomas. O doente,
tendo compreendido O sentido daqueles sinais, fica bom.
O mito lhe dá, pois, uma linguagem a partir da qual esta-
dos de dor, ansiedade, confusão possam ser formulados .
. Nesse sentido, a linguagem simbólica do mit~ evocado
no ntual mágico é muito mais eficiente do que a linguagem
médico-científica. Saber, por exemplo, que a causa da doen-
ça que temos é um vírus não interfere na nossa possi-
bilidade de cura. A relação micróbio--doença é exterior
ao espírito do doenteª. Mas O conhecimento de que uma
dor é causada pela intromissão de um espírito maléfico é
fundamental no processo da cura mágica. Isso é muito evi-
dente quando tentamos compreender o que acontece, por
exemplo, nas curas realizadas nos terreiros de umbanda.
:-::--_
:; KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São
:au_Io, Perspectiva, 1975.
g,e vi-snA.uss, e. L'efficacité symbolique, ln: -. Anthropolo.
_L.e...
64

Para o umbandista a concepção médica da doen~a é


noção inadequada para explicar os males de que padece.
Essa noção de doença é incapaz de apreender a comple-
xidade de sensações e emoções que o indivíduo experi-
menta. A medicina somente leva em conta os sinais fí5icos
e os interpreta como sintomas de alguma disfunção orgâ-
nica. A interpretação mágico-religiosa, muito mais ab:an-
gente do que a médica, integra não só os sintomas fisioló-
gicos, mas também os problemas domésticos, amoros<>s e
financeiros do doente. Para a magia, a doença não é senão
simples aparência. A doença é uma maneira que as fo:ças
espirituais têm de aparecer, de se revelar no mundo dos
homens. Ela faz parte de um conjunto maior de problenas
que têm a ver com a desorganização pessoal, familür e
social do sujeito: desemprego, conflitos familiares, Ctises
etc. Ao atribuir um sentido mítico às tensões cotidiang, a
que o indivíduo vive submetido, a ação mágica deixa de
ser uma intervenção puramente técnica sobre um ccrpo
fragmentado em partes doentes ( que é a maneira como a
medicina concebe o paciente). A ação mágica, em cora
vise ritualmente o corpo do indivíduo, se propõe, atnvés
dele, reorientar a causalidade do mundo: procura suprimir
as forças maléficas - exus, pombagiras, obsessores -,
verdadeiras causas das desordens que afligem a vida do
paciente. E este, ao assumir a interpretação mítica, adq~re
uma linguagem, uma maneira socialmente codificada de
expressar as contradições em que se encerra sua vivêi:cia
cotidiana. Este fato adquire sua total relevância qu~do
se observa que a maior parte dos freqüentadores de ier-
reiros de umbanda pertence às classes mais desfavorecicas.
Estes grupos estão, pela posição social que ocupam, re.Ju-
zidos ao controle de uma psiquiatria que é incapaz de
incorporar a multiplicidade de dimensões em que a ex;e-
riência mórbida é por eles vivida.
6S

:E:, Portanto, atribuindo um sentido coletivamente


es_truturado às desordens individuais que o rito se torna
eficaz. Ao associar distúrbios vividos como experiências
ca~ticas
0
e estritamente pessoais a significações coletivas,
n~o ~rranca o indivíduo do puro subjetivismo de sua dor.
st
O -~• urbio, tornando-se acessível à linguagem dos símbolos
1
; ticos, se constitui, para o indivíduo, num instrumento
e compreensão de seus conflitos e da forma como esses
conflitos se relacionam com a ordenação do mundo social.
st
Fru rações, antagonismos, contradições pessoais se arti-
culam num sistema significativo que permite ao indivíduo
compreender que os males que o afligem não advêm sim-
plesmente de sua "fraqueza" ou "incapacidade" pessoal,
rnas têm a ver com o lugar social que ocupa. Nesse pro-
cesso de articulação simbólica entre distúrbio e mito, 0
mal deixa de ser vivido como pura negatividade - falta
~e força física, falta de dinheiro, falta de laços familiares
normais" - e passa a ser compreendido como uma mani-
festação positiva das forças espirituais e sagradas 7.

A cura mágica e a cura psicanalítica


Para Lévi-Strauss a cura mágica, realizada pelo xamã
ou f . . . d'
. eiticeuo, se situa a meio caminho entre a nossa me 1-
cina orgânica e a psicanálise. Os dois processos terapêuti-
co~ se propõem trazer para a consciência conflitos e
res is t'encias
· inconscientes. No caso da cura psicanal'ítica
·
? ?ªciente deve reviver intensamente a situação traumática
Inicial que deu origem a seu distúrbio. Nesse momento de
descarga emocional intensa o indivíduo se liberta do estado
afetivo penoso ligado à recordação do acontecimento
traumático, que deixa de ser então patogênico. A esse

~ p ,.
u 111 b nd o, aula. Da doença à desordem: a cura magica na
ª a. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
66

processo a psicanálise dá o nome de ab-reação. Para


curar, o xamã revive, em toda sua intensidade e violência,
a crise inicial que revelou seus poderes mágicos. Tudo ie
passa como se ele revivesse o momento traumático no lugar
do paciente, induzindo-o simbolicamente a liberar-se de
seu afeto desagradável. É nesse sentido que se pode dizer,
observa Lévi-Strauss, que "todo xamã é um ah-reator
profissional". No entanto, na cura xamanística, é o xarni
quem fala: ele faz a ab-reação no lugar do paciente. Na
cura psicanalítica, é o paciente quem fala: ele faz a ab-
-reação contra o médico que o escuta. Assim, na psicaná-
lise, o mito produzido pelo paciente é um mito individual
produzido ern função de sua biografia, e ré-significado em
função das interpretações fornecidas pelo médico. No xa-
manismo, o mito é produzido coletivamente, cabendo ao
xamã adequar o vivido do paciente a essas significações
pré-construídas.
A diferença entre os dois sistemas está também no
fato de que o ritual mágico não procura uma causa objetiva
para os estados de confusão psicológica. Na verdade, ele
busca organizar essas sensações em um sistema capaz de
lhes dar coerência e um meio de expressão ( uma lingua-
gem). O feiticeiro e o doente formam uma polaridade
antagônica de desordens complementares. O primeiro é
ativo, revive emoções, atribui sentidos; o segundo é passivo,
incapaz de formular a desordenada experiência de seus
afetos. A cura, ao colocar em relação estados opostos,
assegura a passagem de um para o outro.
Essas diferenças representam, na verdade, para Lévi-
-Strauss, urna analogia invertida. A cura psicanalítica e li
cura xamanística seriam análogas na medida em que as
duas induzem transformações orgânicas a partir de uma
manipulação de símbolos. Essas operações simbólicas pres-
supõem, nos dois casos, uma homologia entre a estrutura
dos processos orgânicos e a estrutura dos processos psíqui-
67

cos. Em função dessa homologia, toda transformaçãc


induzida num nível deve produzir resultados análogos no
outro. No entanto a inversão reside no fato de que os sim
bolos, no primeiro caso, são produzidos pelo paciente,
enquanto, no segundo, são por ele recebidos 8•

A cura mágica na umbanda


No processo mágico-terapêutico umbandista poden
ser observados elementos semelhantes aos analisados por
Lévi-Strauss na cura xamanística. O ritual umbandista asso-
cia três planos diferentes, que caracterizam o mal do
paciente: o plano da desordem natural, que se maniíesa
na desorganização biológica do corpo; o plano da desor-
dem social, que se manifesta na desorganização que a
doença provoca na vida do paciente ( desemprego, conüi-
tos familiares etc.); o plano da desordem transcendente,
que se manifesta na presença de forças maléficas ameaça-
doras. Ao associar os três planos, tomando-os homólogos
entre si, o ritual passa a operar simbolicamente no último
deles ( procura dominar as forças maléficas atuantes),
esperando obter resultados sobre os outros dois. :B possível
manipular a dor e a doença porque é possível atrair para
o doente a boa vontade dos espíritos.
A doença, na umbanda, tem um papel central na
conversão religiosa: a maior parte dos médiuns se inicia
no culto depois de ter passado por uma experiência dolo-
rosa dessa natureza. O poder que os médiuns têm para

8 Individual ou coletivo, o mito resulta, no fundo, de uma mesma


fonte criadora: o inconsciente. O inconsciente é, para Lêvi-Strauss,
uma estrutura universal, que tem por função a produção de signi-
ficados. Ele impõe aos elementos desarticulados das emoções, das
representações míticas (individuais ou coletivas) e das lembranças,
leis estruturais. Conhecer, pois, o significado dos mitos é desvendar
a sua estrutura inconsciente.
68

a cura se funda no fato de eles terem passado pela mesma


experiência que pretendem suprimir. O transe, a possessão
pelos espíritos, é, na verdade, um estado de "doença"
controlado, na medida em que o médium aprendeu a
entrar e sair dele. Analisando-se a relação mágico-tera-
pêutica sob esse prisma, percebe-se que não há ruptura
fundamental entre aquele que cura e aquele que é curado:
o médium é um "ex-doente", e o doente é instado, para
que a cura se dê, a tornar-se médium. E, mais ainda.
Durante o ritual terapêutico, o médium está sempre tomado
pelos espíritos. Assim, é no momento em que revive a
crise, agora de maneira controlada pelo rito, que ele a
suprime no paciente. A ambivalência de seu papel - ele
é ao mesmo tempo um "curado-doente" - permite-lhe
demonstrar ao consulente que suas experiências particula-
res de dor e desordem são, na verdade, "coisas de grupo".
O paciente, tendo então compreendido isso, pode permitir
que as manifestações contraditórias e indesejáveis de sua
pessoa individual se transformem em manifestações institu-
cionalizadas do grupo como um todo.
A singularidade da relação mágico-terapêutica na
umbanda fica mais evidente quando se a compara com
as relações a que as camadas populares são submetidas
quando têm, por exemplo, que consultar um psiquiatra.
Nesses casos tem-se que o terapeuta não passou pela
mesma experiência de seu paciente, havendo, portanto,
uma descontinuidade entre sua função e o vivido que ele
analisa. Por outro lado, não basta ser um "ex-doente"
para tornar-se médico. É preciso submeter-se à especiali-
zação formal e racional. Assim, à descontinuidade das
posições se acrescenta, nessa relação, uma ruptura de con-
dição da classe (médico e paciente pertencem a grupos
sociais distintos) e de universo de linguagem ( o médico
detém uma certa autoridade sobre o paciente por dominar
os "segredos" inerentes à sua especialidade).
69

dlS Jã O médium que cura é alguém que, na maior parte


sra/ezes, vem do mesmo grupo social de seu "cliente",
ei,p º.• capaz, portanto, de compreender e incorporar a
Stn :nencia vivida do indivíduo que o procura. Nesse
a.!do, pode-se dizer que a cura mágica representa, para
nar llladas populares, um universo de conhecimento alter-
di ivo ao saber médico. Se é verdade que o saber racional
étque este último é portador nunca é posto em questão,
de ¾lbém verdade que médiuns e mães-de-santo se consi-
e :tn portadores de uma sabedoria divina, de um dom,
an Pazes de igualar e até mesmo ultrapassar o médico na
e~ e d e curar. Se os membros das classes populares falam
n,tn admiração das curas de certos chefes de terreiro, é
t"'tq .
<li • u.e elas fornecem a prova de que os médicos não são
lllá U~co~ d~~ositários do saber sobre as doenças. A. cu~a
e rg·ca significa, portanto, a possibilidade de apropnaçao
tid ein~erpretação do discurso médico pelos grupos sobme-
os a sua sujeição.
8
Vocabulário crítico

Bruxaria: no sistema de crenças dos azande, povo africano


descrito pelo antropólogo Evans-Pritchard, a bruxaria é
um fenômeno orgânico e hereditário que se materializa
no intestino dos indivíduos. Ao contrário do feiticeiro,
que exige um complexo ritual de iniciação e vasto co-
nhecimento, qualquer pessoa pode ser bruxo. E as pes-
soas o são inconscientemente. No fundo a bruxaria é uma
metáfora que significa tudo que há de mal na sociedade:
inveja, desgraça, fome, morte etc.
Discurso: texto ou fala produzida por um sujeito e/ou
instituição. A noção de discurso pressupõe que aquilo
que está sendo dito tem um sentido simbólico oculto,
que deve ser desvendado pelo observador. O discurso
ganha sentido· quando relacionado com a posição social
da pessoa ou grupo que o emitiu. Todo discurso sempre
diz algo sobre o social porque é uma produção coletiva.
Eficácia simbólica: Marcel Mauss foi um dos primeiros
autores a chamar a atenção dos estudiosos para o aspecto
ativo dos símbolos. "O rito faz", dizia ele. Mas a noção
foi desenvolvida por Lévi-Strauss, que cunhou a expres-
71

são para designar a propriedade que os símbolos têm de


induzir resultados concretos no real.
Feiticeiro: é um agente mágico por excelência. Ao contrá-
rio da religião em que os poderes sagrados estão cuida-
dosamente codificados pelo rito, os poderes do feiticeiro
são indeterminados, deixando-lhe grande margem de
criatividade pessoal. O feiticeiro é pensado como um
ser excepcional, que mantém relações com esferas não-
-humanas da realidade. Sua excepcionalidade se constrói
a partir de três eixos: revelação, iniciação, tradição. Mas,
apesar da pessoalidade de seu poder, a personagem que
ele encarna é produto de um consenso coletivo.
Maná: noção largamente difundida entre os povos da
Melanésia e registrada por Codrington em 1891. A des-
coberta de representações análogas em diferentes partes
do globo (manitou, na América do Norte, Arung-quitta,
na Austrália etc.) aumentou o interesse dos estudiosos
pelo maná. Nas interpretações clássicas de Mauss e
Durkheim, maná é uma força sagrada que está na base
da magia e da religião. Tudo o que é sagrado ou reli-
gioso tem a ver com o maná, mas nem tudo que tem
maná é necessariamente sagrado. Segundo a interpre-
tação de Mauss, maná é uma categoria de pensamento
e condição de possibilidade de todo ato mágico. Como
toda força social, ele é uma projeção simbólica dos
desejos coletivos.
Médium: adepto da umbanda que recebe as entidades es-
pirituais.
Mito: é, para Lévi-Strauss, uma produção ao mesmo tempo
afetiva ( estética) e intelectual. O pensamento mítico
opera através de signos (elementos de significação que,
ao contrário dos conceitos, estão mais perto da percep-
ção, da experiência). Os mitos significam o espírito que
os elabora: eles têm a mesma arquitetura binária que
72

organiza a estrutura inconsciente do pensamento huna-


no. Isto quer dizer que todos os mitos têm em comun
uma semelhança estrutural da qual cada mito específüo
é uma versão entre outras possíveis.
Racionalidade: desde Frazer o problema da racionalidale
das crenças mágicas alimentou grande parte do debae
antropológico. A preocupação fundamental que susterta
essa polêmica é saber se há ou não padrões uníversus
de pensamento. A resposta a essa questão tem variaio
em função das definições de racionalidade. Para Lé'Y-
-Bruhl, ela se define pela sua coerência interna, coere-
cia esta de que o pensamento místico é desprovido. Paa
Evans Pritchard, não é a coerência lógica que defne
a racionalidade. Um pensamento pode bem ser coerene
e místico ao mesmo tempo. O que define um pensameito
racional é sua adequação com a realidade objetiva. A
bruxaria não pode, desse ponto de vista, ser consiíe-
rada um pensamento racional. Já para o antropôlgo
inglês Peter Winch, não há critérios universais de raco-
nalidade. Assim, diversas crenças tidas como irracioais
pelo observador que as analisa segundo seus próptos
critérios podem ser reinterpretadas como racionais à uz
de critérios de racionalidade a serem descobertos na
cultura .em que ocorrem. O problema da racionalidde
ou não das crenças mágicas foi evitado por autores cena
Durkheim, Mauss e, mais recentemente, Leach e Fith,
que deixam de se perguntar sobre sua coerência, vra-
cidade e/ou adequação com a realidade objetiva e ias-
saro a interpretá-las enquanto símbolos. Toda creça,
por ser um símbolo, diz algo sobre a realidade qu a
criou. Nesse sentido, toda representação é fonte de
racionalidade.
Representações coletivas: categorias do entendimento ro-
duzidas coletivamente. Através delas os membros de ma
sociedade se comunicam, compreendem e controlai a
73

realidade. Para Durkheim, qualquer análise das repre-


sentações coletivas deve partir da realidade social. Esta,
por sua vez, só pode ser compreendida pela descoberta
do sentido oculto (simbólico) que orienta as relações.
Está presente na obra de Durkheim uma crítica à filo-
sofia idealista de Kant, que postula a existência de cate-
gorias de entendimento universais e inatas no homem,
tais como tempo e espaço. Durkheim e sua escola, ao
contrário, vão buscar as raízes sociais dessas categorias.
O interesse pelo estudo das religiões fundava-se no fato
de que elas eram concebidas como a matriz de toda
representação coletiva.
Rito: a magia age pelo rito. Mauss procura agrupar a
diversidade dos ritos que abundam na 'literatura antro-
pológica em categorias como manuais, orais, simpáticos,
purificadores etc. O importante a ressaltar é que em
todos os exemplos coligidos os ritos aparecem como
sendo rigorosamente controlados pelo coletivo, o que
lhes dá sua dimensão simbólica.
Sagrado: para a escola durkheimiana o sagrado deve ser
entendido como uma força coletiva. Ele se distingue
da religião, embora seja sua própria fonte. O sagrado é
uma força genérica, universal, e a religião, um corpus
específico de práticas e crenças que variam de uma
sociedade para outra. A idéia de sagrado determina
toda forma de representação. Enquanto categoria do
conhecimento, a dualidade sagrado/profano está na base
de todas as classificações. As coisas tidas como mais
importantes para a vida coletiva são consideradas sa-
gradas. No limite a própria sociedade é sagrada, e tudo
aquilo que a ameaça, profano. Essa afirmação dos
valores coletivos embutida na categoria de sagrado faz
com que toda classificação, ao reproduzir essa dualidade,
reafirme as hierarquias e valores inerentes à organização
social do grupo.
74

Símbolo: o símbolo é, na definição de Pierce, "aquilo que


substitui uma coisa para alguém". Ele é o substituto
ideacional de uma coisa ou idéia que se quer comunicar.
Muitos autores consideram atualmente a antropologia
como uma ciência do simbólico. Pode-se dizer que foi a
escola francesa de antropologia que primeiro se preo-
cupou em buscar os sentidos simbólicos que se escondem
atrás dos fatos sociais. E nisto ela se diferenciou de sua
congênere inglesa, que opera no plano da interação
social procurando perceber como as relações entre pes-
soas que ocupam lugares diferentes garantem o funciona-
mento social. Para Marcel Mauss, entender a realidade
social é entender cada fenômeno como fato de signifi-
cação. Todo fenômeno social encerra representações
coletivas. Assim, conhecer a sociedade é conhecer como
ela pensa. Também para Lévi-Strauss, na antropologia
tudo é símbolo. E isto porque é o símbolo que instaura
a sociedade; ele faz o homem, distinguindo-o do animal.
O universo natural é o universo da necessidade instin-
tiva, enquanto o da cultura é o universo da regra social-
mente constituída. Mitos, técnicas, ritos e sobretudo a
linguagem são sistemas simbólicos.
Totemismo : segundo Durkheim, o totem é a encarnação
emblemática da organização clânica dos povos austra-
lianos. Se alguns animais ou plantas são sagrados e
tabus, é porque representam a coletividade de que fazem
parte, devendo, portanto, ser preservados. Durkheirn
recusa, pois, a interpretação "utilitarista" dos tabus totê-
micos, segundo a qual são os animais e plantas mais
preciosos e raros que se tomam proibidos. Se certos
espécimes animais e vegetais são usados como totem,
não é porque são "bons para comer", mas porque "são
bons para pensar": os seres e as coisas se classificam
em espécies e gêneros do mesmo modo que os homens
em clãs, fratrias e tribos. Lévi-Strauss critica as inter-
75

pretações do totemismo que o tornam um sistema de


organiz - · 1
ble ª~ªº, social realmente existente. Para_ e e, o pro-
. tlla nao e entender o totemismo mas aboli-lo. O tote-
n11sni0 - . -
.
soc1a1 d nao é um . "traço" etnográfico da orgaruzaçao
fA

llleno os· australianos


· e de outros povos, mas um eno- d
~e. muito mais geral: é uma forma , entre outras, e
cionar, organizar intelectualmente e estruturar as
sell\elhanças e diferenças que os homens percebem na
natur .
os ob·eza e no mundo . social ' por um lado,. e relacionar
Jetos culturais com os objetos naturais, por outro.
Xamã-· um tipo
e anactá. · de feiticeiro · . entre os ,índios
· kwa kiu lt , no
9
Bibliografia comentada·

BRUMANA, Fernando Giobellina. Antropologia dos senti-


dos: introdução às idéias de Marcel Mauss. São Paulo,
Brasiliense, 1983. (Col. Primeiros Vôos.)
Neste trabalho o autor retoma a obra de Mauss e analisa
sua contribuição para o desenvolvimento de uma ciência
do significado.
DoUGLAS, Mary. Brujería: el estado actual de la cuestión.
ln: -; GLUCKMAN, Max; HoRTON, Robin. Ciencia y
brujería. Barcelona, Anagrama, 1976.
O texto é um apanhado interessante e um balanço das
variadas interpretações antropológicas da bruxaria.
DuRKHEIM, Emile. O problema religioso e a dualidade da
natureza humana. Religião e Sociedade, (2). São Paulo,
Hucitec, 1977.
Neste artigo o autor faz um resumo das idéias funda-
mentais que orientaram seu trabalho sobre as formas
elementares da vida religiosa.
EvANs-PRITCHARD, E. Brujería, magia y oráculos entre los
Azande. Barcelona, Anagrama, 1976.
Neste livro muito detalhado, o autor analisa pormeno-
rizadamente o sistema da bruxaria azande.
77

Antropologia social da religião. Rio de Janeiro, Cam-


pus, 1978.
O autor retoma criticamente a obra de Lévy-Bruhl e a
coloca numa nova perspectiva, que acentua suas contri-
buições para uma compreensão do pensamento mágico.
PRAZER, James. Magic and Religion. London, Toinker's
Library, 1945. (Tradução espanhola: La rama dorada:
magía y religiân. México, Fondo de Cultura Económica,
1944.)
Nesse trabalho o autor analisa os princípios da magia e
sua relação com a religião.
GLUCKMAN, Max. La lógica de la ciencia y de la brujería
africana. ln: DouGLAS, Mary; GLUCKMAN, Max; HoR-
TON, Robin. Ciencia y brujería. Barcelona, Anagrama,
1976.
O autor retoma resumidamente as colocações de Evans-
-Pritchard em seu livro sobre a bruxaria azande.
GURVITCH, Georges. La magie, la religion et le droit. ln:
-. La vocation actuelle de la sociologie. Paris, PUF,
1969. t. 2. Ed. em português da Martins Fontes, 1968.
Neste texto o autor retoma, a partir da concepções de
Prazer, Lévy-Bruhl, Durkheim e Mauss, o debate sobre
a oposição magia-religião.
HERTZ, Robert. A proeminência da mão direita: um estudo
sobre a polaridade religiosa. Religião e Sociedade ( 6),
Rio de Janeiro, Tempo e Presença, 1980.
Nesse texto o autor mostra que a assimetria orgânica
entre a esquerda e a direita é determinada por valores
sociais. Somente através do estudo das representações
coletivas se pode, segundo ele, entender o privilégio da
mão direita.
HoRTON, Robin. El pensamiento tradicional africano Y la
ciencia occidental. ln: DOUGLAS, Mary; GLUCKMAN,
Max; HoRTON, Robin. Ciencia y bruieria. Barc~lona,
Anagrama, 1976.
78

O autor analisa neste artigo a natureza e a função do


pensamento teórico e o compara ao pensamento mágico.
LÉPINE, Claude. O inconsciente na antropologia de Lévi-
-Strauss. São Paulo, Atica, 1979.
O autor analisa a teoria estruturalista de Lévi-Strauss
à luz da categoria do inconsciente. Faz uma apresen-
tação clara e acessível sobre o estatuto do simbólico em
sua obra.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Le sorcier et sa magie. ln:
Anthropologie structurale. Paris, Plon, 1974.
Neste artigo o autor procura mostrar, a partir de dois
exemplos, de que maneira o consenso coletivo age (
confere poder ao feiticeiro.
-. L'efficacité symbolique. ln: -. Anthropologie struc-
turale. Paris, Plon, 1974.
A partir de um caso de cura o autor analisa a capaci-
dade dos símbolos de produzir efeitos sobre o real.
-. O pensamento selvagem. São Paulo, Nacional, 1970.
O autor procura demonstrar a precisão e a capacidade
de análise que caracterizam o pensamento selvagem
Este pensamento não se distingue em sua estrutura do
pensamento cultivado do homem contemporâneo.
LÉVY-BRUHL, Lucien. La mentalité primitive. 15. ed. Paris,
PUF, 1960. 1.ª ed. 1922.
O autor procura analisar o funcionamento do "pensa.
mento primitivo" a partir de duas indagações: quais a;
categorias de que esse pensamento dispõe e qual o qua-
dro experimental que o determina. O autor se detén
particularmente na análise da categoria de causalidade,
- . Les [onctions mentales dans les sociétés ínf érieures.
9. ed. Paris, PUF, 1951.
Neste livro o autor analisa sobretudo o que ele cham
de lei da participação, considerada em sua relação con
o princípio de identidade e contradição.
79

-. Le surnaturel et la nature dans Ia mentalité primitive.


Paris, PUF, 1963.
Neste livro o autor analisa como os povos "primitivos"
pensam o mundo sobrenatural e como reagem diante
dele. Ele dá particular atenção à feitiçaria e aos rituais
de purificação.
MAUNOWSKJ, Bronislaw. Magía, ciencia, religión. Barce-
lona, Ariel, 1974.
O autor retoma rapidamente as contribuições clássicas
sobre o tema magia e religião. Ele procura aprofundar
o debate sobre o problema da racionalidade das práticas
mágicas.
- & DURKHEIM, Emile. Algumas formas primitivas de
classificação. ln: Mxuss, Marcel. Ensaios de sociologia.
Trad. por Luiz João Gaio e J. Vinsburg. São Paulo,
Perspectiva, 1981.
Neste texto já clássico, Mauss e Durkheim relacionam
as formas de classificação dos povos australianos com
sua organização social bipartite. Eles querem demonstrar
a relação existente entre sistema social e sistema lógico.
- & HuBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia.
São Paulo, EPU/Edusp, 1974. v. 1.
Importante ensaio onde o autor faz uma análise geral
do fenômeno mágico, definindo e interpretando seus di-
versos componentes e variações culturais.
MAUSS, Marcel. Mentalité primitive et participation. ln:
-. Oeuvres. Org. por Victor Karady. Paris, Minuit,
1968. V. 2.
Este texto é um breve comentário sobre os conceitos de
"mentalidade primitiva" e "participação" cunhados por
Lévy-Bruhl.
-. Mentalité archaique et catégories de pensée. ln:
Oeuvres. Paris, Minuit, 1968. v. 2.
Breves observações a respeito da eficácia mágica.
80

-. Introduction à l'analyse de quelques phénomênes reli-


gieux. ln: Oeuvres. Paris, Minuit, 1968. v. 1.
Neste artigo o autor aponta para o caráter coletivo dos
ritos mágicos. Faz algumas considerações sobre a noção
de sacrifício e de sagrado e analisa as operações mentais
da magia.
WILSON, Bryan, org. ln rationality, 3. ed. London, Oxford
Basil Blackwell, 1979.
Coletânea de artigos que retomam o problema da racio-
nalidade na ciência e no pensamento mágico.

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