REIS, Daniel Aarão; RIDENDI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.).
O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois. Bauru: Edusc, 2004.
Cães de guarda: entre jornalistas e censores – Beatriz Kushnir
Houve colaboracionismo de uma parcela da imprensa com os órgãos de repressão pós-AI-5: muitos censores eram jornalistas e havia jornalistas que eram policiais na grande imprensa. Acordo entre as empresas jornalísticas e o Estado para a manutenção do poder e do controle sobre a sociedade. (p. 250) A autora utiliza o termo colaboração ao invés de adesão, porque o primeiro implica compromissos, mais do que apoio aos pressupostos do pós-64. A análise introdutória do periódico Folha da Tarde, seu objeto de estudo, inclui uma contextualização dos principais jornais do país e uma breve história do grupo ao qual pertence. As transformações no âmbito empresarial na década de 60, que marcariam o tom golpista na década seguinte. Foi o momento de ampliação do público leitor e de conformação do seu perfil empresarial, com investimentos em tecnologia. (p. 252) No momento de ressurgimento da Folha da Tarde, o país estava em ebulição, o que também se refletiu em suas páginas, assim como os jornalistas possuíam algum tipo de engajamento político. Contudo, pós-AI-5, frente a censura do regime e a interna (dos diretores do jornal), não seria mas possível manter os posicionamentos. (p. 254-255) “Acusam-se o jornal e a empresa Folha da Manhã de algo extremamente sério: de terem sido entregues à repressão como órgãos de propaganda, enquanto papel, tinta e funcionários eram pagos pelo Grupo. Neste sentido, buscando um perfil desse periódico, encontrei muitos depoimentos que se auto-atribuíam a criação da célebre frase que definiu a Folha da Tarde a parte de julho de 1969. O jornal era tido como ‘o de maior tiragem’, devido ao grande número de policiais que compunham sua redação no pós-AI- 5. Muitos também a conheciam, por isso, como ‘a delegacia’.” (p. 256) Pós AI-5 o cenário na Folha da Tarde era de aumento da presença policial na equipe de redação, substituição do espaço editorial por charges, guinada à direita e adoção da censura interna e autocensura – o jornal escolheu não enfrentar o regime. (p. 258) No começo dos anos 80, o grupo muda o corpo editorial do jornal, adequando-se aos novos tempos. “Visto desta forma, ao que parece, tudo tomou um lugar, apaziguando dilemas, o que pode causar um certo desconforto para quem não se enquadrou na ‘nova ordem social’. Por isso, é importante sublinhar o tom dessa transição, tanto na Folha da Tarde, como no país. Ela assinala como as elites brasileiras não perderam o controle e reafirmaram, nesses episódios, e em muitos outros, a tradição da conciliação.” (p. 261)
A pluralidade das censuras e das propagandas da ditadura – Carlos Fico
Ao lado da censura política dos jornais advinda com o AI-5, a ditadura patrocinou intensa propaganda política que poderia ser lida como uma outra face da censura – a veiculação da farsa montada pelo regime. (p. 266) Para o autor, a interpretação de que os “pilares básicos” do regime (censura, propagando, polícia política e tortura), visto como os “porões da ditadura”, tem contribuído para uma visão homogeneizante das instâncias mencionadas. Não havia um continuum burocrático-policial, censura e propaganda política não obedeciam a uma lógica global, etc. (p. 266) Ainda que não se possa falar de um projeto ideológico autoritário levado a cabo por um Estado integrado e centralizado, desde o primeiros momentos do golpe assumiu- se uma luta pela implantação de um projeto repressivo, centralizado e coerente. A dicotomia entre a linha dura e os moderados, apesar de simplista, ajuda a compreender a trajetória de constituição, institucionalização, auge e decadência das comunidades de segurança e de informações. (p. 266-267) Neste sentido, no governo Castelo Branco surgiu a “força autônoma”, grupo de oficiais superiores que posteriormente apoiaria Costa e Silva. Acreditava ser possível levar o país ao “seu destino de grandeza” por meio ao combate do comunismo e da corrupção, com “operações de limpeza”, um largo período de suspensão das garantias constitucionais, etc. A “força autônoma” empreendeu a “operação limpeza” mesmo antes da posse de Castelo Branco e após isso demandou novos períodos de “punião revolucionária”. Sua primeira vitória sobre o presidente militar seria o AI-2. Essa é a origem da linha dura. Foram no âmbito na “força autônoma” que se gestaram as práticas que em 1969 foram institucionalizadas no sistema DOI-CODI. (p. 267) O SNI foi criado por um general “moderado”, Golbery do Couto e Silva, em 1964. Após 1969, o projeto inicial foi substituído por um amplo sistema de espionagem que se ramificou por todo o país. Foi a vitória da linha dura “endureceu” o SNI, o que aconteceria com outros órgãos, mantendo-se seus especificidades. (p. 268) “Assim, pode-se falar de um projeto repressivo global, precisamente o da antiga forma autônoma, que passou a se intitular comunidade de segurança e informações. Liderando o processo repressivo, este grupo tornou-se porta-voz autorizado do regime e muitos militares moderados passaram a ser coniventes com as práticas repressivas (...).” (p. 268) A paulatina adoção, pelo regime militar, de práticas repressivas cada vez mais violentas, não decorreu de uma dinâmica causal, na qual episódios conjunturais levariam ao endurecimento do regime. O AI-5, neste sentido, não significou uma ruptura, mas foi, antes, a expressão vitoriosa de um anseio da força autônoma existente desde 64. (p. 269) Censura moral: já existia desde 1946, possuía um ethos próprio, era totalmente legalizada. A DCDP assumia orgulhosamente o seu papel na sociedade brasileira e supunha expressar a vontade da maioria da população. Era uma atividade oficial, regulamentada por legislação ostensiva, com funcionários de carreira. Contudo, a partir do AI-5, a censura de diversões públicas passou a se preocupar mais enfaticamente com a política – o que protestou do diretor da DCDP. A censura moral é preponderante a parte de 1978 – mudança nos costumes, ao contrário da censura política da imprensa, que verificou-se durante o auge da repressão (1968-1974) . (p. 269-270) A politização da censura de diversões públicas deu a impressão de unicidade às duas censuras, quanto, na verdade, possuíam lógicas muito diferentes, segundo o autor. Outra diferença: legal x revolucionário. O regime diferenciava as atividades repressivas/de controle que poderiam ser admitidas no escopo das garantias constitucionais (por isso a preocupação com elaboração de leis) daquelas que eram excepcionais, “revolucionárias”. Por exemplo, a diferença entre o SNI (criado por uma lei aprovada pelo Congresso Nacional) e o Sistema DOI-CODI (instituído por diretrizes secretas do CSN e da presidência). (p. 271). De igual maneira, a censura moral era legalizada e a censura da imprensa era “revolucionária”. A propaganda política também foi multifacetada. A Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP) foi criada para melhorar a imagem de Costa e Silva e não sob o influxo da linha dura. Era fazia propagandas que destacavam os valores morais da “democracia ocidental cristã”, os supostos traços característicos do Brasil, etc. Para a linha dura, a propaganda da AERP deveria ser substituída por uma contra-propaganda, uma guerra psicológica. (p. 272-273) Para o autor, o que unificava as diversas instâncias, apesar de suas diferenças, eram a “utopia autoritária”: “Essa utopia assentava-se na crença de uma superioridade militar sobre os civis e realizava-se em duas dimensões: a primeira, a mais óbvia, podemos chamar de ‘saneadora’, e visava a ‘curar o organismo social’ extirpando-lhe (fisicamente) o ‘câncer do comunismo’; a segunda, de base pedagógica, buscava suprir supostas deficiências do povo brasileiro, visto como despreparado (para o voto, por exemplo) e manipulável (pelos políticos corruptos, digamos).” (p. 273-274)