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2 UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VII · Nº1 · 2011

FICHA TÉCNICA

Diretora
M. Lacomblez (Pt)

Direção Lusófona:
Brito, J. (Br), Cunha, L.  (Pt),  Gil-Mata, R.  (Pt),  Nascimento, A. (Br), Santos, M.  (Pt),  Valverde, C.  (Pt),  Vasconcelos, R. (Pt)
 

Direção Hispânica:
Boix, P. (ES), Díaz Canepa, C. (CL), De La Garza, C. (FR), Poy, M. (AR), Vogel, L. (BE)   
 
Comité Científico Internacional:
Acevedo, M. (CL), Alaluf, M. (BE), Alvarez, D. (BR), Apud, E. (CL), Araújo, C. (PT), Arezes, P. (PT), Athayde, M. (BR), Barcenilla, J. (FR), Barros
Duarte, C. (PT), Barroso, M. (PT), Berthelette, D. (CA), Bronckart, J. P. (CH), Cadilhe, A. (PT), Caramelo, J. (PT), Castillo, J. J. (ES), Chatigny, C.
(CA), Clot, Y. (FR), Cloutier, E. (CA), Correia, J. A. (PT), Cru, D. (FR), Daniellou, F. (FR), David, H. (CA), De Troyer, M. (BE), Duarte, F. M. (BR),
Estanque, E. (PT), Falzon, P. (FR), Fraga De Oliveira, J. (PT), Gadea, R. (ES), Garrigou, A. (FR), Gonzaga, L. (PT), González, R. (VE), Hansez, I. (BE),
Kerguelen, A. (FR), Leal Ferreira, L. (BR), Lopes, L. (PT), Maggi, B. (IT), Marquié, J. C. (FR), Martinez, E. (BE), Massena, M. (PT), Matos, M. (PT),
Mendes, J. M. (PT), Montreuil, S. (CA), Poirot-Delpech, S. (FR), Ramos, S. (PT), Re, A. (IT), Rebelo, F. (PT), Rebelo Dos Santos, N. (PT), Schwartz,
Y. (FR), Seifert, A. M. (CA), Silva, C. (PT), Simões, A. (PT), Snzelwar, L. (BR), Teiger, C. (FR), Thébaud Mony, A. (FR), Torres, I. (PT), Villena, J. (ES),
Volkoff, S. (FR), Weill-Fassina, A. (FR)

Secretariado de Redação
C. Monteiro (PT)

Design e Paginação
Parada, J. (PT)

Revista apoiada por


UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VII · Nº1 · 2011 3

Editorial
Marianne Lacomblez

Apresentação do Dossier
Clara Araújo & Duarte Rolo

Texto Introdutor
Christophe Dejours

Arqueologia do Conhecimento
Leda Leal Ferreira

Pesquisa Empírica
Seiji Uchida, Laerte Sznelwar, Juliana Barros & Selma Lancman

Pesquisa Empírica
Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

Estudo de Caso
Marisa Ridgway

Discurso Sobre o Vivido no Trabalho


Valérie Ganem

Importa-se de repetir?…
Christophe Dejours

Revisão Temática
Conceição Ramos

Textos Históricos
Armand Imbert &Antonin Mestre
(Indrodução de Marcel Turbiaux)

O dicionário
Utopia
Renato Di Ruzza

O dicionário
Visibilidade
Serge Volkoff
4 UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VII · Nº1 · 2011

PT

8 – 9 Editorial
Marianne Lacomblez

10 – 12 Dossier Temático: Psicodinâmica e psicopatologia do trabalho


Clara Araújo & Duarte Rolo

13 – 16 Texto Introdutor: Psicopatologia do trabalho - Psicodinâmica do trabalho


Christophe Dejours

17 – 2 7 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução do


pessoal
Leda Leal Ferreira

2 8 – 41 O trabalho em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação


Seiji Uchida, Laerte Sznelwar, Juliana Barros & Selma Lancman

42 – 55 Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho


Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

5 6 – 67 Psicodinâmica do trabalho e análise do trabalho de «apresentação de si


próprio» do director de empresa
Marisa Ridgway

68 – 75 Relato de uma experiência de terreno de uma intervenção em psicodinâmica


do trabalho
Valérie Ganem

76 – 8 0 «Trabalhar» não é «derrogar»


Christophe Dejours

81 – 10 4 Economia solidária, plural e ética na promoção do emprego, da cidadania e da


coesão social
Conceição Ramos

10 5 – 10 7 Introdução ao texto “Estatísticas de acidentes de trabalho” de Armand Imbert


e Antonin Mestre
Marcel Turbiaux

1 0 8 – 11 4 Higiene Pública: Estatística de acidentes de trabalho


Armand Imbert &Antonin Mestre

11 5 – 11 8 Utopia
Renato Di Ruzza

11 9 – 1 2 1 Visibilidade
Serge Volkoff
UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VII · Nº1 · 2011 5

ES

8 – 9 Editorial
Marianne Lacomblez

10 – 12 Dossier Temático: La Psicodinámica y la Psicopatología del Trabajo


Clara Araújo & Duarte Rolo

13 – 16 Texto Introductorio: Psicopatología del trabajo - Psicodinámica del trabajo


Christophe Dejours

17 – 2 7 Una luta pelo reconhecimen to do trabalho contra a política de redução do


pessoal
Leda Leal Ferreira

2 8 – 41 El trabajo en los servicios de salud mental: entre el sufrimiento y la


cooperación
Seiji Uchida, Laerte Sznelwar, Juliana Barros & Selma Lancman

42 – 55 Sufrimiento psíquico del bailarín: una mirada de la psicodinámica del trabajo


Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

5 6 – 67 Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo»


del director de empresa
Marisa Ridgway

68 – 75 Informe de un estudio de campo sobre una intervención basada en la


psicodinámica del trabajo
Valérie Ganem

76 – 8 0 «Trabajar» no es «derogar»
Christophe Dejours

81 – 10 4 Economía solidaria, plural y ética, en la promoción del empleo, de la


ciudadanía y de la cohesión social
Conceição Ramos

10 5 – 10 7 Introducción al texto “higiene pública: estadística de accidentes de trabajo” de


Armand Imbert & Antonin Mestre
Marcel Turbiaux

1 0 8 – 11 4 Higiene pública: estadística de accidentes de trabajo


Armand Imbert &Antonin Mestre

11 5 – 11 8 Utopía
Renato Di Ruzza

11 9 – 1 2 1 Visibilidad
Serge Volkoff
6 UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VI · Nº2 · 2010

FR

8 – 9 Editorial
Marianne Lacomblez

10 – 12 Dossier thématique : psychodynamique et psychopathologie du travail


Clara Araújo & Duarte Rolo

13 – 16 Texte d’Introduction : Psychopathologie du travail – psychodynamique du


travail
Christophe Dejours

17 – 2 7 Une lutte pour la reconnaissance au travail et contre la politique de réduction


du nombre des travailleurs
Leda Leal Ferreira

2 8 – 41 Travailler dans des services de santé mentale: entre la souffrance et la


coopération
Seiji Uchida, Laerte Sznelwar, Juliana Barros & Selma Lancman

42 – 55 La souffrance psychique du danseur: un regard de la psychodynamique du


travail
Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

5 6 – 67 Psychodynamique du travail et analyse du travail de «présentation de soi» du


dirigeant d’entreprise
Marisa Ridgway

68 – 75 Retour sur une expérience de terrain de l’intervention en psychodynamique du


travail (PDT)
Valérie Ganem

76 – 8 0 Travailler» n’est pas «déroger»


Christophe Dejours

81 – 10 4 Économie solidaire, plurielle et éthique dans la promotion de l’emploi, de la


citoyenneté et de la cohésion sociale
Conceição Ramos

10 5 – 10 7 Introduction au texte « Hygiène publique: statistique d’accidents de travail »


de Armand Imbert & Antonin Mestre
Marcel Turbiaux

1 0 8 – 11 4 Hygiène publique : statistique d’accidents de travail


Armand Imbert &Antonin Mestre

11 5 – 11 8 Utopie
Renato Di Ruzza

11 9 – 1 2 1 Visibilité
Serge Volkoff
UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VI · Nº2 · 2010 7

EN

8 – 9 Editorial
Marianne Lacomblez

10 – 12 Thematic Dossier: Psychodynamics and psychopathology of work


Clara Araújo & Duarte Rolo

13 – 16 Introductory Text: Psychopathology of work – psychodynamics of work


Christophe Dejours

17 – 2 7 A struggle for the recognition of work against workforce reduction policy


Leda Leal Ferreira

2 8 – 41 Working at mental health services: between suffering and cooperation


Seiji Uchida, Laerte Sznelwar, Juliana Barros & Selma Lancman

42 – 55 A dancer’s psychological suffering: from a psychodynamics of work


point of view
Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

5 6 – 67 Psychodynamics of work and the top manager’s analysis of self-presentation


Marisa Ridgway

68 – 75 A field experience in the domain of psychodynamics of work


Valérie Ganem

76 – 8 0 «Working» is not «derogating


Christophe Dejours

81 – 10 4 The role of solidarity, plural and ethical economy in the promotion of


employment, citizenship and social cohesion
Conceição Ramos

10 5 – 10 7 Introduction to the text “Public health: work accidents’ statistics” by Armand


Imbert & Antonin Mestre
Marcel Turbiaux

1 0 8 – 11 4 Public health: work accidents’ statistics


Armand Imbert &Antonin Mestre

11 5 – 11 8 Utopia
Renato Di Ruzza

11 9 – 1 2 1 Visibility
Serge Volkoff
8 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 8-9

EDITORIAL

Marianne Lacomblez

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Se considerarmos os campos de investigação e de inter-


Universidade do Porto venção abrangidos até agora pelos sucessivos números de
Rua Dr. Manuel Pereira da Silva Laboreal, esta 11ª edição acaba por colmatar, pelo menos
4200-392 Porto, Portugal parcialmente, uma lacuna da revista. Era tempo, na verda-
lacomb@fpce.up.pt de, de tratar da especificidade da abordagem da Psicodi-
nâmica do trabalho. Agradecemos então, vivamente, a
Clara Araújo e Duarte Rolo por terem assumido a coorde-
nação deste dossier. E a introdução que conceberam -
completada pelo texto redigido nesta circunstância por
Christophe Dejours - irá permitir perceber a lógica da sua
estrutura interna.

Para além das contribuições que compõem este dossier,


apresentamos ainda um artigo, de revisão temática, de Ma-
ria da Conceição Pereira Ramos, que diz respeito às ques-
tões da Economia solidária. O que, de certo modo, irá apoiar
as opções assumidas para a edição do nosso Dicionário, já
que Renato Di Ruzza destinou a letra "U" para uma defini-
ção da palavra "Utopia”. O desafio não é nada obsoleto: o
texto dá para perceber quanto o vocábulo é, sim, carregado
de história e de polémicas já bem conhecidas; mas também
revela a constância e a grande actualidade da procura de
"um outro possível”.
Serge Volkoff aborda a mesma problemática por uma
outra via: escolheu tratar a letra "V”, desenvolvendo
uma reflexão sobre "Visibilidade”. E encontramos nes-
sas linhas a riqueza da reflexão de um colega que, é bom
dizê-lo porque até agora não o tornámos suficientemen-
te visível, teve um papel decisivo no arranque inicial do
projecto de Laboreal.
Editorial • Marianne Lacomblez 9

Enfim, a nossa rubrica dos textos históricos fica ampliada


por mais um contributo, sempre sob a coordenação de Ré-
gis Ouvrier-Bonnaz. Desta vez Marcel Turbiaux introduz um
texto de Armand Imbert e Antonin Mestre, marco histórico
na interpretação de dados estatísticos sobre os acidentes
de trabalho. E, realmente, convém não esquecer algumas
ilações enunciadas já há mais de um Século…

Uma excelente leitura para todas e todos – qualquer que


seja o lado do Atlântico onde consultam o Site de Laboreal.

Pelas direcções, hispânica e lusófona, da revista,


Marianne Lacomblez

Como referenciar este artigo?

Lacomblez, M. (2011). Editorial.


Laboreal, 7, (1), 8-9.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV6582235338944525472
10 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 10-12

DOSSIER TEMÁTICO: PSICODINÂMICA E PSICOPATOLOGIA DO TRABALHO


Apresentação do dossier

Clara de Araújo1 & Duarte Rolo2

1. Instituto Politécnico de Viana do Castelo, A publicação em Portugal de um número da revista Labore-


Escola Superior de Saúde al cujo dossier é dedicado inteiramente à psicodinâmica e à
Rua D. Moisés Alves de Pinho, psicopatologia do trabalho constitui um acontecimento
4900-314 Viana do Castelo, Portugal científico de relevo. Este dossier temático surge no segui-
claraaraujo@ess.ipvc.pt mento do sexto Congresso Internacional de Psicopatologia
e Psicodinâmica do Trabalho, realizado em Abril de 2010 em
2. Equipa de Psicodinâmica do Trabalho e da Acção, São Paulo, Brasil, e este número da revista Laboreal permi-
Conservatoire National des Arts et Métiers te desta forma dar um seguimento às discussões iniciadas
41 rue Gay-Lussac, 75005 Paris, França nessa ocasião.
duarte.rolo@cnam.fr Herdeira dos trabalhos pioneiros da psicopatologia do tra-
balho e da ergonomia desenvolvidos em França na segunda
metade do século XX, a psicodinâmica do trabalho surge
definitivamente enquanto disciplina autónoma na década de
noventa e dedica-se ao estudo dos processos psicodinâmi-
cos mobilizados pelas situações de trabalho, interessando-
-se particularmente pela relação entre trabalho e saúde.
Esta relação está sempre enraizada num acto, numa activi-
dade, numa conduta individual sobre o «real do trabalho».
Daí que também a realização do EU, passe necessariamen-
te por uma mediatização, na relação ao REAL que constitui
o trabalho. Assim, a negação e/ou o não reconhecimento da
realidade do trabalho duma pessoa pode ser fonte de sofri-
mento mental. Mas em contrapartida, o reconhecimento no
trabalho é um elemento determinante da realização pesso-
al e contribui para a construção da identidade, sendo fonte
de prazer no trabalho: a relação com os pares donde emer-
ge o reconhecimento e a identidade de pertença a um colec-
tivo; a relação com a hierarquia que pode fazer reconhecer
a utilidade do operador, a relação com os subordinados
donde pode emergir o reconhecimento da autoridade e das
suas competências. Destas primeiras considerações pode-
remos deduzir a importância considerável da questão da
intersubjectividade e da organização do trabalho enquanto
causas de aparecimento de sofrimento ou ao contrário de
prazer no trabalho.
Tanto a psicodinâmica como a psicopatologia do trabalho
conhecem actualmente um desenvolvimento notável, no-
meadamente no plano internacional, como atestam os arti-
gos reunidos neste dossier. Com efeito, a divulgação das
questões do sofrimento no trabalho (podemos referir entre
Apresentação do dossier • Clara de Araújo & Duarte Rolo 11

outros acontecimentos a vasta mediatização dos suicídios traponto ao estipulado pela concepção do trabalho pela
ocorridos na empresa francesa France Telecom em 2009) chefia em geral simplificado e subestimada.
representa uma consequência dos trabalhos desenvolvidos As contribuições respectivas de Seiji Uchida, Laerte Sze-
em psicopatologia e psicodinâmica do trabalho, que trouxe- lwar, Juliana Barros & Selma Lancman e de Marina Segni-
ram estas questões para debate público, assim como o re- ni & Selma Lancman, propõem uma análise da construção
sultado de uma evolução do pedido social. Estes desenvol- de estratégias de defesa contra o sofrimento no trabalho e
vimentos, dos quais ainda não podemos certamente medir evidenciam aspectos menos visíveis das relações de traba-
os efeitos, terão sem dúvida repercussões importantes lho. Baseados em pesquisas empíricas que realçam as vi-
para o crescimento futuro da disciplina. vências dos trabalhadores de um Centro de Atenção Psicos-
A evolução actual do mundo do trabalho, marcada pelo de- social e dos trabalhadores de dança respectivamente, os
senvolvimento de métodos de organização do trabalho e de autores estudam a consequente relação entre sofrimento e
gestão dos recursos humanos que tendem a individualizar prazer e as estratégias desenvolvidas para obter resulta-
os trabalhadores e a favorecer uma lógica de concorrência dos, identificando os factores críticos e as formas de os ul-
em detrimento de uma lógica de cooperação, não augura trapassar. Ambos os artigos dão conta da maneira como os
nada de bom. No entanto, a situação actual não é irremedi- trabalhadores mobilizam as suas subjectividades para en-
ável e cabe à comunidade científica produzir conhecimentos frentar o sofrimento no trabalho construindo estratégias de
que contribuam para inverter esta tendência. defesa que movimentam a inteligência individual e colectiva
Foi com este intuito que procurámos reunir contribuições na experiência concreta de trabalho a partir da criação de
de variados autores acerca deste tema. Os artigos aqui espaços colectivos de discussão.
reunidos não pretendem oferecer uma visão exaustiva da A pesquisa com trabalhadores de um Centro de Atenção
disciplina, mas apenas uma perspectiva do estado actual Psicossocial evidencia um paradigma de gestão favore-
das pesquisas na área da psicodinâmica e psicopatologia cedor da construção da identidade e consequentemente
do trabalho. Desta forma, as contribuições dos diversos da saúde dos que lá trabalham. As carências e dificulda-
autores que participaram neste número têm em comum des que possam existir na equipe de trabalhadores deste
um interesse partilhado pelo estudo da relação entre saú- Centro são compensados e protegidos psiquicamente
de e trabalho, mas na sua maioria abordam temas diferen- pela cooperação e solidariedade da equipe onde aconte-
tes e utilizam material empírico proveniente de sectores cem os julgamento de utilidade e de beleza, isto é, teste-
profissionais distintos. munham a utilidade económica, social ou técnica do tra-
O texto introdutório de Christophe Dejours, para além de balho e dão conta do respeito do trabalho pelas regras do
descrever o itinerário histórico da psicodinâmica do traba- ofício considerando os constrangimentos da situação
lho enquanto disciplina, expõe igualmente de forma precisa respectivamente.
as questões teóricas e práticas que enfrentamos actual- No texto de Segnini & Lancman sobressai a relação en-
mente nesta área da clínica do trabalho. Para que haja uma tre o trabalhador bailarino e a organização do trabalho
redução do sofrimento no trabalho e das patologias labo- em dança e consequentemente é claro que também esta
rais, a produção de conhecimentos não basta. É necessário organização de trabalho gera constrangimentos e confli-
desenvolver por igual uma teoria da acção que permita uma tos e conduz os trabalhadores a construírem mecanis-
transformação racional da organização do trabalho. mos de defesa para conseguirem continuar a trabalhar
sem adoecer. Mas a pesquisa dá conta da não existência
O primeiro artigo deste dossier temático, da autoria de Leda de cooperação nos trabalhadores e pelo contrário apon-
Leal Ferreira, dá visibilidade a uma dimensão fulcral em ta a competição imposta como fragilizadora do colectivo
psicodinâmica do trabalho – o afastamento entre trabalho de trabalho e por conseguinte levando a um sofrimento
prescrito e trabalho real. É neste afastamento que pode es- individualizado e desprotegido.
tar a fonte de saúde ou de sofrimento dependendo do grau Por seu lado, o estudo de caso proposto por Marisa Ridgway
de flexibilização potencial da organização do trabalho. A aborda uma questão relativamente nova em psicodinâmica
psicodinâmica do trabalho insiste no facto de que este afas- do trabalho e que têm merecido particular interesse ulti-
tamento mobiliza a subjectividade de cada sujeito na cons- mamente: o trabalho dos dirigentes ou quadros superiores.
trução da organização do trabalho e sobretudo no facto de, Através do estudo de um aspecto do trabalho do dirigente, a
em contrapartida a esta contribuição na organização, o su- «apresentação de si», Ridgway pretende demonstrar de
jeito esperar uma retribuição de cariz simbólico que assen- que forma o modelo teórico da psicodinâmica do trabalho
ta no reconhecimento, não tanto da pessoa mas sobretudo permite uma melhor compreensão do trabalho concreto
do que a pessoa faz. Na verdade é conclusão deste estudo o dos dirigentes de empresa, oferecendo desta forma recur-
valor do conhecimento e compreensão do trabalho real face sos para a análise do aparecimento de manifestações de
à justa determinação do número de trabalhadores em con- sofrimento ou de prazer neste contexto.
12 Apresentação do dossier • Clara de Araújo & Duarte Rolo

O artigo de Valérie Ganem baseia-se num relato da sua ex- ES

periência de terreno enquanto interveniente em contextos Presentación del Dossier temático: La


profissionais variados. Para além de nos propor uma ilus- psicodinámica y la sicopatología del trabajo
tração das dificuldades e obstáculos que devem enfrentar
os psicólogos quando intervêm nas organizações, ou admi-
nistrações, permite igualmente discutir a pertinência do
modelo metodológico desenvolvido em psicodinâmica do FR

trabalho, tendo em conta a natureza e objectivo das inter- Présentation du Dossier Thématique :
venções de terreno nesta disciplina. psychodynamique et psychopathologie du
Por fim, escolhemos igualmente publicar neste número ou- travail
tro texto da autoria de Christophe Dejours, publicado pela
primeira vez aquando da inauguração da Revista Travailler,
revista que constitui desde 1998 o principal suporte de di-
vulgação dos trabalhos desenvolvidos na área da psicodinâ- EN

mica e psicopatologia do trabalho. Este texto foi escolhido Thematic Dossier’s Presentation:
não apenas pela sua importância histórica, mas igualmente Psychodynamics and psychopathology of
porque constitui um texto fundamental em psicodinâmica work
do trabalho, na medida em que apresenta as principais
ideias que constituem a base da disciplina e a démarche que
caracteriza a psicodinâmica do trabalho.
Pese embora o desenvolvimento desta disciplina seja ainda
incipiente em alguns países, e nomeadamente em Portugal,
esperamos com este número da revista Laboreal contribuir
para uma maior visibilidade destas questões e suscitar o
interesse pelo estudo da saúde no trabalho. Embora muito
fique ainda por fazer, esperamos que esta contribuição pos-
sa constituir um primeiro passo nesse sentido.

Como referenciar este artigo?

Araújo, C. & Rolo, D. (2011). Apresentação do Dossier


Temático: Psicodinâmica e Psicopatologia do trabalho.
Laboreal, 7, (1), 10-12.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV6582235338944745462
VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 13-16 13

TEXTO INTRODUTOR
Psicopatologia do trabalho - Psicodinâmica do trabalho

Christophe Dejours

Conservatoire National des Arts et Métiers Embora as primeiras questões a propósito da relação entre
41, Rue Gay-Lussac trabalho e saúde mental, em França, tenham surgido entre
75005 Paris, France as duas grandes guerras, foi apenas a partir do fim da Se-
christophe-dejours@cnam.fr gunda Guerra Mundial que a investigação clínica em psico-
patologia do trabalho começou verdadeiramente (Billiard,
2011). Numa primeira fase, estes estudos procuravam iden-
A tradução deste texto para português foi realizada por tificar patologias mentais específicas de certos tipos de tra-
Duarte Rolo balho (tais como a neurose das telefonistas descrita por J.
Bégoin em 1957), mas foi necessário admitir que não existe
nenhum síndroma psicopatológico exclusivamente produzi-
do pelos constrangimentos do trabalho, contrariamente ao
que pode acontecer com algumas doenças físicas devidas
exclusivamente à poluição do meio de trabalho (saturnismo
relacionado com os vapores de chumbo, silicose dos minei-
ros de carvão,…).
Tornou-se possível estender a investigação clínica após a
identificação de um conflito específico entre os constrangi-
mentos provenientes da organização do trabalho e o funcio-
namento psíquico dos trabalhadores. Algumas formas de
organização do trabalho revelaram-se desta forma mais
nocivas do que outras para o funcionamento psíquico.
Quando este conflito leva ao aparecimento de uma doença
mental, a resistência e as fragilidades da personalidade
conferem à descompensação a sua forma clínica definitiva.
Deste modo, a configuração sintomática (passagem ao acto,
depressão, baforada delirante, neurose traumática…) re-
flecte mais as características idiossincrásicas do paciente
do que a natureza dos constrangimentos organizacionais
em causa no desencadeamento da crise psicopatológica.
A montante da descompensação, a normalidade representa
o resultado de um compromisso, de uma luta entre o sofri-
mento provocado pelos constrangimentos organizacionais
e as estratégias de defesa inventadas pelos trabalhadores
para conter esse sofrimento e evitar a descompensação.
Mas tais estratégias de defesa, estritamente ajustadas aos
constrangimentos exercidos pela organização do trabalho
sobre o funcionamento psíquico, têm a marca específica e
reconhecível da organização do trabalho em causa.
Podemos assim descrever estratégias individuais e colecti-
vas cuja riqueza e diversidade constituem a matéria-prima
14 Psicopatologia do trabalho - Psicodinâmica do trabalho • Christophe Dejours

de uma clínica apelidada de «clínica do trabalho». conhecimentos científicos. Encontra-se igualmente impli-
Mas o trabalho não gera unicamente sofrimento psíquico ou cada na acção pois não há investigação possível sem que
doenças mentais. Pode, dentro de certas formas de organi- haja um pedido emitido por um paciente, um trabalhador,
zação do trabalho, tornar-se num mediador importante da um colectivo de trabalho, ou uma instituição como seja uma
génese do prazer no trabalho e da construção da saúde comissão de saúde, higiene e segurança no trabalho; um
mental. Ou, dizendo de outra forma, o trabalho nunca é neu- serviço de saúde no trabalho; um sindicato; uma empresa;
tro relativamente à saúde mental. Pode gerar aquilo que há uma administração… A acção, indissociável do processo de
de pior, como o suicídio ou a crise clástica, mas também produção do conhecimento, suscita em retorno investiga-
aquilo que existe de melhor: a realização pessoal através do ções teóricas e confrontos interdisciplinares sobre o tema
trabalho, a sublimação, a contribuição para as obras da cul- da teoria da acção.
tura e da civilização. Desta feita, desenvolveram-se novos confrontos interdisci-
A tarefa incumbente à clínica do trabalho consiste em for- plinares, com a teoria crítica e os filósofos da Escola de
necer uma análise das condições que fazem oscilar a rela- Frankfurt (A. Honneth, E. Renault, J.P. Deranty), com a fe-
ção subjectiva com o trabalho no sentido da patologia ou, ao nomenologia, e em particular com a fenomenologia da vida
invés, da conquista da identidade. Desde logo, a psicopato- (M. Henry).
logia do trabalho, ou seja a análise das descompensações Actualmente, o debate prossegue com investigadores pro-
psicopatológicas ocasionadas pelo trabalho, constitui ape- venientes de diversas disciplinas: não só com a ergonomia e
nas um capítulo específico da clínica do trabalho. Foi essen- a medicina do trabalho, mas também com a psiquiatria, a
cialmente esta razão que levou à alteração do nome da dis- psicanálise, a psicologia, a psicologia social, a antropologia,
ciplina. A denominação "psicodinâmica do trabalho" dada à a sociologia, a história, a linguística, a economia, a tecnolo-
disciplina no início dos anos 1990 contém três dimensões: gia, a engenharia (Dejours, 1987).
Desde os anos 70, quando a psicodinâmica do trabalho dava
• A primeira implica uma expansão do campo da clínica do os primeiros passos no laboratório de ergonomia de Alain
trabalho da qual acabámos de falar. Wisner, no CNAM em Paris, a organização do trabalho atra-
vessou diversos momentos de mutação (reestruturação
• A segunda refere-se a uma teoria e a uma prática espe- das tarefas industriais, modelo japonês, modelo gestioná-
cíficas. A teoria em questão tem vindo a ser progressi- rio, novas tecnologias e técnicas de informação e de comu-
vamente elaborada a partir de 1980, graças a um traba- nicação, crescimento da economia das actividades de servi-
lho de investigação interdisciplinar ininterrupto. Desde ço…). Nesse contexto, os trabalhadores tentaram elaborar
o príncipio deste trabalho três disciplinas foram chama- estratégias de defesa face ao sofrimento provocado pelas
das a dialogar: novas imposições organizacionais, com maior o menor su-
cesso. As patologias relacionadas com o trabalho aumenta-
> A psicologia: tendo por ponto fulcral a teoria psica- ram de forma constante, ao mesmo tempo que apareceram
nalítica do sujeito fundada sobre a metapsicologia novas patologias, o que leva a pensar que as defesas que
de S. Freud e a teoria da sedução de J. Laplanche. referimos não foram suficientemente eficazes. A partir da
> A sociologia: tendo por ponto fulcral a sociologia da segunda metade dos anos 90, as tentativas de suicídio e os
ética fundada sobre a abordagem compreensiva de suicídios multiplicaram-se nos locais de trabalho, não só
W. Dilthey, M. Weber e A. Schütz. em França, como também no Japão ou na China… Embora
> As ciências do trabalho: tendo por ponto fulcral a haja um aumento global da riqueza nestes países, observa-
ergonomia francófona de A. Ombredane, J.M. Fa- mos um aumento da violência no seio das nossas socieda-
verge e A. Wisner. des, acompanhado por uma cronicidade crescente do de-
semprego e por um agravamento da pobreza. De forma
• A terceira diz respeito ao método de investigação cujo paradoxal, ao aumento da riqueza corresponde ao mesmo
objectivo é a análise do trabalho psíquico imposto ao su- tempo um aumento do sofrimento e das patologias. Como
jeito pelo conflito entre os constrangimentos da organi- explicar que tanto homens como mulheres continuem a
zação do trabalho e os próprios constrangimentos do participar numa transformação do mundo e da organização
psiquismo, tendo por objectivo evitar o risco de destabi- do trabalho que tende a voltar-se contra eles próprios e
lização da identidade. O termo de "psicodinâmica" re- ameaça porventura o «ser genérico do homem»? No con-
flecte especificamente a prioridade dada, no processo texto actual, assistimos ao retorno da questão da alienação,
de análise, ao conflito psíquico e aos seus destinos. abordada múltiplas vezes desde o fim do século XVIII.
Poderão as pesquisas clínicas em psicodinâmica do traba-
Mas a psicodinâmica do trabalho não representa um tipo de lho contribuir para a análise desta mudança significativa do
investigação exclusivamente orientada para a produção de devir da «condição do homem moderno»? No final dos anos
Psicopatologia do trabalho - Psicodinâmica do trabalho • Christophe Dejours 15

90, a psicodinâmica do trabalho iniciou o debate sobre o pa- ameaça de despedimento, cada qual se encontra dora-
pel do trabalho na génese das novas formas de servidão vante sozinho.
voluntária e acerca da sua responsabilidade na deteriora- A glorificação do desempenho individual, ao desestruturar
ção da saúde mental no trabalho. Esta análise gerou con- as solidariedades, atinge um dos garantes fundamentais da
trovérsias cujas consequências se manifestam hoje no seio saúde mental no trabalho. Para recuperar aquilo que foi
das organizações sindicais e no espaço público. No entanto, destruído no decorrer desta evolução nefasta, é necessária
este debate não se restringe unicamente a França, onde os uma transformação da organização do trabalho que resta-
meios de comunicação, o cinema, os documentários, o tea- beleça as condições necessárias para a cooperação. De
tro…lhe conferiram nos últimos anos uma difusão particu- facto, a psicodinâmica do trabalho demonstra que a coope-
larmente importante. Decorrem actualmente estudos em ração não se pode dissociar de uma actividade de produção
vários países, na América do Norte, nomeadamente no Ca- de regras de trabalho e que tais regras de trabalho são
nadá; na América do Sul, nomeadamente no Brasil; na Eu- igual e invariavelmente regras de savoir-vivre, de convivên-
ropa, nomeadamente na Bélgica, na Suíça, na Alemanha; na cia e de vida em conjunto.
Ásia, nomeadamente no Japão e em Taiwan; na Austrália. O trabalho não produz aquilo que temos de melhor ou de
Mas, para além de iniciar debates com outras disciplinas, a pior unicamente a nível individual. Pode também gerar
psicodinâmica do trabalho também provoca controvérsias aquilo que há de melhor a nível colectivo ou seja, a concór-
na própria área da clínica. Com efeito, em grande parte dos dia e o "vivre-ensemble" [1], tal como pode provocar o pior, ou
países e organizações internacionais, o estudo da relação seja, a solidão – e até a desolação – a desconfiança, o medo
entre trabalho e saúde mental é essencialmente dominado e a instrumentalização dos seres humanos que pode chegar
pela temática do stress, pelos inquéritos quantitativos, es- ao extremo de levar alguns de entre nós a matarem-se na
tatísticos e epidemiológicos. presença dos próprios colegas.
Para lá das diferenças fundamentais que existem entre os O tratamento "etiológico" do sofrimento no trabalho pressu-
fundamentos científicos (no que diz respeito à teoria do su- põe que nos apoiemos numa teoria e numa prática da re-
jeito, à teoria social e à teoria do trabalho) que opõem os construção do trabalho colectivo e do «vivre-ensemble». Esta
modelos do stress e a psicodinâmica do trabalho, devemos teoria não pode ser elaborada a partir de estudos quantitati-
ainda considerar as implicações práticas de tais diferenças. vos sobre o stress e a epidemiologia.
As acções que adoptam por referência a teoria do stress Numa outra dimensão da clínica, que se refere ao trata-
traduzem-se essencialmente por recomendações relativas mento dos doentes que sofrem de patologias laborais, os
à gestão individual do stress. De uma forma geral, não princípios do cuidar serão diferentes consoante nos referir-
põem em causa a organização do trabalho e limitam-se mos às teorias do stress ou à psicodinâmica do trabalho. É
portanto a um "tratamento sintomático". Ao invés, qualquer portanto em ambas as dimensões da acção, individual e co-
acção que tenha por referência a psicodinâmica do traba- lectivamente, que a psicodinâmica e as teorias do stress
lho, procura elaborar os requisitos de uma intervenção que tomam caminhos diferentes. Os artigos apresentados neste
não vise apenas os indivíduos, mas que procure igualmente volume da revista Laboreal darão ao leitor uma ideia do
a transformação da organização do trabalho. O objectivo é campo que se abre para a investigação científica e para a
desde logo a concepção de um "tratamento etiológico" do acção na área da clínica e da psicodinâmica do trabalho.
sofrimento e das patologias mentais engendradas pelo tra-
balho.
Este tipo de orientação levou os investigadores em psico-
dinâmica do trabalho a chamarem a atenção para o tra-
balho colectivo e para a questão das possibilidades de
cooperação. Efectivamente, as investigações em psicodi-
nâmica do trabalho dos últimos dez anos demonstram
que a introdução e rápida generalização dos novos méto-
dos de avaliação individual do desempenho levada a cabo
pelas ciências da gestão tem um papel de primeiro plano
na destruição das possibilidades de trabalho colectivo,
de cooperação e de solidariedade. Sendo assim, estes
métodos de organização do trabalho estão implicados
nos processos de servidão voluntária e de deterioração
da saúde mental no trabalho. No lugar da entreajuda e da
solidariedade, a solidão e o medo invadem o mundo do
trabalho. Face à dominação, à injustiça, ao assédio, à
16 Psicopatologia do trabalho - Psicodinâmica do trabalho • Christophe Dejours

Notas ES

Texto Introductorio: Psicopatología del


[1] Nota do Tradutor: literalmente «viver em conjunto». trabajo – psicodinámica del trabajo

Referências bibliográficas
FR

Billiard, I. (2011). Santé mentale et travail: L’émergence de la Texte d´Introduction : Psychopathologie du


psychopathologie du travail. La Dispute. travail – psychodynamique du travail
Dejours, C. (1987). Plaisir et souffrance dans le travail: Séminaire
interdisciplinaire de psychopathologie du travail. Paris: Centre
National de la Recherche Scientifique.
EN

Introductory Text: Psychopathology of work


– psychodynamics of work

Como referenciar este artigo?

Dejours, C. (2011). Psicopatologia do Trabalho - Psicodinâmica


do Trabalho.
Laboreal, 7, (1), 13-16.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=37t45n
SU5471124227833834371
VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 17-27 17

ARQUEOLOGIA DO CONHECIMENTO
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução
de pessoal

Leda Leal Ferreira

Fundacentro - Ministério do Trabalho e Emprego Introdução


Rua Capote Valente,710
São Paulo, SP Este texto pretende revisitar um estudo realizado no início
Brasil da década de 1990 numa refinaria de petróleo, no Brasil
leda@fundacentro.gov.br (Ferreira, Iguti & Jackson, 1991). Seu motivo foi a resistên-
cia de operadores de uma unidade de processo [1] da refina-
ria à política de redução de pessoal que a empresa começa-
va a aplicar e foi o primeiro de uma série de outros que se
desenvolveram por mais de uma década, sempre sobre o
mesmo assunto e na área do petróleo [2] e dos quais partici-
Resumen El texto busca analizar algunos pei, com diferentes status (Ferreira, Iguti, Donatelli, Duarte
resultados de un estudio desarrollado por la & Bussacos, 1997; Ferreira, Iguti & Bussacos, 1998, 1999,
autora hace veinte años, a la luz del concepto de 2000a e 2000b). Sem canais de negociação com a empresa,
"reconocimiento del trabajo”, tal cual lo presenta os operadores não hesitaram em explicitar a sua posição
la Psicodinámica del Trabajo. La investigación fue através da imprensa local, onde alertavam a população vi-
la primera de una serie de otros estudios zinha sobre os riscos que corria pela diminuição de pessoal.
realizados los quince años siguientes, siempre Com isto, sensibilizaram autoridades, entre elas o Ministé-
concernientes a la lucha de trabajadores rio Público [3], que nos solicitou um estudo para dimensiona-
petroleros brasileños contra la política de "recorte mento do número de operadores através do estudo de
"tempos e movimentos”.
de personal" (enxugamento de pessoal, según la
Não conhecíamos refinarias e nunca tínhamos realizado
traducción brasileña de downsizing), aplicada por
nenhum dimensionamento de pessoal. Além do mais, o mé-
la dirección de la empresa en los años 90, en el
todo de "tempos e movimentos" não fazia parte (e ainda não
marco de las políticas llamadas de
faz), de nossas ferramentas de trabalho. Mesmo assim o
reestructuración productiva, que invadieron las
assunto nos interessou e, inspirados na Análise Ergonômi-
empresas brasileñas y mundiales, de modo
ca do Trabalho [4], propusemos ao Ministério Público proce-
particular el sector petrolero. der a uma análise do trabalho destes operadores e a uma
avaliação de sua carga de trabalho. Assim, dizíamos nós,
Palabras clave trabajo, petróleo, recorte de poderíamos oferecer subsídios para a definição do número
personal, reconocimiento del trabajo, de pessoas necessárias para a operação. Nossos termos
psicodinámica del trabajo. foram aceites e o estudo se iniciou. Depois de sete meses,
nos quais fizemos várias observações sobre o trabalho rea-
lizado (em diferentes horários, realizando diferentes tare-
fas e em diferentes situações), além de analisar vários tipos
de materiais (documentos técnicos sobre o funcionamento
da unidade, documentos sobre a segurança da unidade, do-
cumentos administrativos sobre a alocação de pessoal e
sobre o perfil dos operadores) e de entrevistar várias pes-
soas, de vários níveis hierárquicos, concluímos que a única
justificativa da empresa para a redução do seu efetivo ope-
18 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira

racional era a diminuição de custos: embora ela alegasse Em seguida, fomos conhecer a "unidade" que era motivo da
melhorias tecnológicas, não foi o que observamos. Tendo nossa presença. Para chegar até lá precisamos de um car-
em vista a natureza perigosa e complexa do trabalho reali- ro porque a distância era grande. No caminho, a impressão
zado, nos pareceu injustificável diminuir o número de ope- era a de um local deserto: só víamos tubulações e, de quan-
radores, uma vez que isto significava sobrecarga de traba- do em quando, aglomerados de equipamentos gigantescos:
lho e consequente aumento do risco. tanques, esferas, torres, chaminés. Aqui e ali, nuvens de
Nossa conclusão ensejou uma ação civil pública que culmi- fumaças brancas pareciam sair do solo e chamas tremula-
nou na condenação da empresa em aumentar o número de vam no alto de imensas estruturas metálicas.
seus operadores [5]. No entanto, a mesma recorreu da sen- Ao chegar à unidade, logo nos explicaram que ela tinha
tença e foi apenas depois de muitas lutas em várias unida- dois espaços: a "sala de controle" e o "campo" ou a "área”.
des operacionais da empresa por todo o país que, com a A primeira ficava numa construção de alvenaria com vá-
mudança do governo federal e da direção da empresa, em rios compartimentos (como vestiários, refeitório e banhei-
2003, a política de redução de efetivos começou a mudar, ros). Da sua grande janela vidrada, podíamos ver grande
com a realização de concursos públicos para a contratação parte dos equipamentos do campo, que ocupavam uma
de novos operadores [6]. extensa área de mais de 70 mil metros quadrados. A sala
Neste texto, meu propósito é tentar interpretar o conflito de controle assim se chamava porque era de lá que se
entre operadores e empresa como uma espécie de luta pelo controlava o processo, isto é, o conjunto das transforma-
reconhecimento do seu trabalho. Como se sabe, o reconhe- ções pelas quais as matérias primas passavam para a fa-
cimento do trabalho é um conceito fundamental da psicodi- bricação dos produtos derivados de petróleo que a unida-
nâmica do trabalho, tema deste número especial da Labore- de produzia e que ocorriam "no campo”, dentro de
al. Acredito que, o fazendo, não estou a diminuir a numerosos, volumosos e variados equipamentos: um con-
importância política do conflito nem seu caráter de luta junto de torres; vasos e bombas interligados entre si e a
contra a intensificação do trabalho (Ferreira, 2000); estou um sistema de tochas; trocadores de calor; um sistema de
apenas procurando iluminar uma de suas facetas. resfriamento; um sistema de tratamento de água; fornos e
Na primeira parte, vou descrever alguns aspectos do de- um parque de armazenamento de produtos. A sala era
senvolvimento do estudo para, posteriormente, tentar in- ocupada por um grande painel analógico [8]. Centenas de
terpretar alguns de seus resultados à luz do conceito de informações, referentes a registros de temperaturas,
reconhecimento do trabalho, conforme o mesmo está sen- pressões, volumes e fluxos de várias partes do que acon-
do desenvolvido por Dejours (1993, 2007 e 2009). tecia com os produtos dentro dos equipamentos lá fora,
estavam ali. Também estavam ali alguns dispositivos a
partir dos quais se podia interferir à distância no proces-
Primeiras impressões em uma refinaria so, fechando ou abrindo algumas válvulas ou acionando
alguns comandos; e uma grande quantidade de alarmes -
Era a primeira vez que eu estava entrando numa refinaria visuais e sonoros - para avisar a todos sobre o que não
de petróleo. Do primeiro contato com a direção me lembro estava dando certo. À primeira impressão, tudo parecia
apenas da tentativa do Superintendente de desqualificar o extremamente moderno e altamente automatizado.
assunto, minimizando sua importância e atribuindo-o ape- A sala nunca ficava vazia. Havia sempre pelo menos três
nas a "reivindicações sindicais de caráter político”. Foi nes- operadores ali [9] e os demais, quando iam ou voltavam do
ta ocasião que, também pela primeira vez, ouvi a expres- campo, sempre passavam por ela, assim como o faziam
são "enxugamento de pessoal”: a unidade (e a refinaria) operadores de outras unidades, da manutenção e a hierar-
estaria com um número de operadores muito superior ao quia do setor. Seu funcionamento era contínuo. Dia e noite,
das refinarias norte-americanas, tidas como exemplo de durante todos os dias do ano, operadores se revezavam no
eficiência e modernização, porque vinha trabalhando com serviço porque a unidade não podia parar de produzir [10].
mais operadores do que necessário. A redução, portanto,
era necessária para se "cortar gorduras”, uma vez que
"como já estava demonstrado internacionalmente, segu- Compreender o processo e o trabalho dos
rança era sinônimo de efetivos reduzidos”. Com estas de- operadores
clarações, o caráter político do conflito ficava imediata-
mente visível. Após apresentar minhas credenciais, Nosso primeiro contato com os operadores, quando chega-
informei que o estudo seria realizado por uma equipe de mos à sala de controle, foi lhes explicar quem éramos. Dis-
técnicos [7], sob minha coordenação e que passaríamos semos que estávamos ali por solicitação do Ministério Pú-
uma boa temporada ali, necessitando ter acesso a alguns blico para fazer um estudo e que deveríamos fazer uma
documentos e aos locais de trabalho. série de observações sobre o trabalho deles, acompanhan-
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira 19

do-os em várias situações, em diversos dias e em diferen- uma tabela de rodízio que eles próprios tinham elaborado.
tes horários e turnos e conversando com eles, além de ter Quem ficava na sala era responsável pela vigilância dos pai-
acesso a documentos de trabalho. A reação deles foi um néis de controle. Pelo menos duas pessoas o faziam: uma
misto de curiosidade e descrença, de incômodo e alívio. Afi- era responsável por uma parte do processo e a outra, pela
nal, se por um lado o estudo lhes interessava, por outro outra. Quem ia para a área, deveria seguir uma "rotina”, que
nossa presença realimentava uma situação extremamente incluía várias operações como o exame dos equipamentos,
desconfortável: o conflito com a direção. Além do mais, éra- a execução ou o acompanhamento de uma manobra, a leitu-
mos totalmente desconhecidos: entenderíamos realmente ra de alguns indicadores, etc. O importante, porém, era que
o problema? O que faríamos ali? Os resultados de nosso estes dois tipos de atividades se complementassem de
trabalho iriam ajudá-los ou, ao contrário, prejudicá-los? [11]. modo que a unidade funcionasse e produzisse normalmen-
E nossa presença, como toda presença externa em uma si- te. Por isso, era importante que cada um conhecesse bem o
tuação de trabalho, poderia atrapalhar sua atividade. As- que deveria fazer e, principalmente, acompanhasse o que
sim, foi com uma natural desconfiança que os operadores estava acontecendo no processo. Toda vez que os operado-
nos receberam. Foi só na medida em que eles começaram a res de campo voltavam da área e entravam na sala de con-
nos conhecer melhor que foram escasseando os "testes" trole, davam uma olhada no painel de onde tiravam muitas
que nos fizeram passar, levando-nos para longas e cansati- informações importantes. Para conseguir fazê-lo, era im-
vas caminhadas no campo, forçando-nos a subir e descer portante que tivessem um bom conhecimento da unidade e
escadas que nos levavam a alturas elevadas, verificando de seu funcionamento. O rodízio entre "campo" e "painel"
nossas reações ao sermos obrigados a vestir alguns pesa- era um mecanismo para garantir esse conhecimento. Cada
dos e desconfortáveis equipamentos de proteção individual, instrumento no painel correspondia a uma parte do proces-
testando nossa compreensão durante as explicações que so real que acontecia lá fora e era preciso que o operador
nos davam em resposta às nossas questões sobre o funcio- fizesse essa correspondência, visualizando-a "na sua ima-
namento de um equipamento, o significado de uma ação, o ginação”, como nos explicaram." Apertar um botão para
sentido de uma palavra, em nossas tentativas de compre- abrir ou fechar uma válvula todo mundo sabe. O problema é
ender o processo. apertar o botão da válvula certa no momento certo "diziam"
Para nós, compreender o processo era fundamental para e "saber todas as implicações" deste ato aparentemente tão
compreender a função dos operadores no seu controle, simples. Esta era uma grande preocupação para eles, pois
isto é, o trabalho deles. Por isso, além de observá-los tra- quanto melhor fosse seu conhecimento geral do processo,
balhando e falar com eles, estudamos uma série de docu- melhor poderiam atuar e melhor poderiam controlar o ris-
mentos internos e externos da refinaria. Tudo indicava o co. Devido ao elevado grau de complexidade do processo,
seu risco e a sua complexidade. Risco pela natureza e a para bem conhecê-lo os operadores estimavam serem ne-
grande quantidade de produtos utilizados, explosivos, in- cessários vários anos de prática e de estudos teóricos (um
flamáveis e/ou tóxicos, submetidos a condições anormais operador nos mostrou todas as anotações que fizera, ao
de temperatura e pressão. Complexidade pela grande longo de seus vinte anos de trabalho, a respeito dos "alinha-
quantidade de variáveis que interagiam, adquirindo, a cada mentos" do sistema, isto é, do caminho que os produtos
momento, uma nova configuração e representando assim percorriam pelas tubulações, para estudá-los e não esque-
"acontecimentos" diferentes e muitas vezes, imprevisí- cê-los).
veis. Compreendemos que o trabalho dos operadores con- Além disso, o controle do processo exigia um grau de aten-
sistia em controlar o risco para produzir o produto final. ção constante. A qualquer momento, podia ocorrer uma va-
Ou seja, controlar o risco não era uma tarefa secundária; riação que exigisse uma providência rápida, quase instan-
era o pano de fundo de seu trabalho e estava, explícita ou tânea, para se evitar uma ocorrência anormal ou até uma
implicitamente, permeando todas as atividades. catástrofe. Bons operadores eram aqueles que, além de
Além disso, a análise nos ensinou que o controle do processo conhecer bem o processo, o sentiam. Eles viam uma fuma-
e do risco era um trabalho coletivo. Por diversas vezes, pen- ça diferente, sentiam um odor estranho, percebiam uma
sei em um jogo de futebol para explicar o trabalho dos opera- vibração nova, escutavam um barulho peculiar, visualiza-
dores. Em uma unidade de processo, como numa partida de vam a posição de uma válvula e já sabiam o que estava cer-
futebol, o resultado do trabalho é fruto não de uma pessoa, to ou errado. Estas informações "corporais" eram tão im-
mas de uma equipe na qual cada um tem uma função diferen- portantes como os registros formais e a eles eram
te, mas complementar, à dos outros e na qual ocorrem vários integradas para que cada um tivesse, continuamente, uma
tipos de interações, sequenciais ou simultâneas. boa representação do que estava acontecendo.
Na unidade em questão, os operadores (seis por turno, Seu trabalho era um constante resolver problemas. Todas
equivalentes ao "número mínimo" [12]) se alternavam entre as vezes que algo anormal acontecia (o que era freqüente),
os que ficavam dentro e fora da sala de controle, segundo era preciso entender suas causas e suas conseqüências
20 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira

para poder atuar bem e no momento certo. Nessas situa- nharia com o operador parado? Porque isto significaria que
ções, as conversas entre vários operadores se adensavam, o processo estaria andando sem problemas que necessi-
sempre em linguagem operacional (levamos vários meses tassem de alguma intervenção deste operador. O operador
para compreender um pouco melhor esta linguagem). Era a poderia ficar sentado, parado, observando o seu funciona-
partir desta troca de informações que muitos problemas mento através das indicações do painel. No entanto, parado
eram resolvidos, evitando perdas de produtos ou situações não significa ausente: pelo contrário, significa que o opera-
perigosas. dor, atento ao que está acontecendo, sabe que não tem que
atuar naquele momento. E por que o engenheiro detestaria
ver operador parado? Porque acharia que ele estaria ocio-
Quando o número de operadores diminui so, o que é um dos maiores "pecados" que os trabalhadores
podem cometer no mundo do trabalho. Em várias situações,
Retomando a comparação esportiva, podemos dizer que a vimos chefias incomodadas com a aparente ociosidade dos
ausência de uma ou mais pessoas na equipe, além de so- operadores quando estavam diante dos painéis, como se a
brecarregar as demais, modifica a posição de todos e de única coisa que pudesse comprovar o seu trabalho fosse a
cada um. No futebol, um time desfalcado pode até vencer sua movimentação física.
uma partida, mas dificilmente consegue ganhar um campe- De um modo geral, as direções creditam à tecnologia um
onato jogando sistematicamente com menos de onze joga- poder que apenas os operadores possuem: a capacidade de
dores em cada jogo. Na refinaria, a diminuição do número pensar e resolver problemas, inclusive aqueles gerados por
de operadores estava obrigando a um remanejamento do falhas na tecnologia. Por isso, muitas vezes, nos disseram
serviço de cada um e de todos os operadores que restavam que o trabalho dos operadores era só (sic) vigiar o painel do
para dar conta do trabalho que não era feito por aqueles que controle, ignorando as limitações na automação da unida-
não estavam mais lá. Com vários efeitos negativos. Com de, o caráter complexo e imprevisível do funcionamento do
menos pessoas, as conversas entre os operadores rarea- processo e as próprias falhas da tecnologia: observamos
vam e eles não podiam mais "perder tempo" com a rotina. inúmeras ocasiões nas quais os operadores, frente a indi-
Ora uma rotina bem feita era uma condição necessária para cações no painel, se perguntavam se elas seriam reais ou
se atualizar o grau de conhecimento do estado do processo apenas fruto de defeitos nos instrumentos de medições,
e dos equipamentos. A sobrecarga de trabalho era visível sem contar as possibilidades de paradas de emergência,
porque o perigo e a complexidade do processo não permi- por exemplo, por falta de energia, que obrigavam os opera-
tiam que se deixasse de fazer determinadas operações. Ao dores a retomar o processo em "modo manual”.
mesmo tempo, a impossibilidade de fazer tudo o que se fa- Estas diferenças entre as concepções das chefias e a dos
zia antes, obrigava-os a priorizar o que fazer entre várias operadores sobre o trabalho dos mesmos eram visíveis em
coisas importantes, criando situações verdadeiramente vários aspectos, como já mostramos (Ferreira, 1996): en-
conflituosas, psicológica e moralmente. quanto a direção considerava os riscos sob controle desde
No entanto, estes problemas pareciam não ser considera- que as normas de segurança fossem respeitadas, os opera-
dos pela hierarquia. A concepção do trabalho dos operado- dores diziam que os riscos podiam fugir ao controle, mesmo
res como sendo perigoso, complexo e coletivo [13] não era que as normas de segurança fossem respeitadas. Enquanto
compartilhada por ela, que tinha a tendência de considerá- a direção considerava o funcionamento do dispositivo tec-
-lo bem mais simples. nológico normalizado e com poucas alterações, os opera-
Não é de se estranhar, portanto, que os trabalhadores se dores diziam o contrário. Enquanto para a direção os opera-
indignassem com algumas manifestações de menosprezo dores tinham poucas tarefas, todas relativamente simples,
pela sua atividade: um operador nos mostrou um bilhete de os operadores afirmavam que tinham muitas tarefas dife-
um chefe, guardado há anos, que dizia: ‘operador não deve rentes, algumas de alta complexidade. Enquanto para a di-
pensar’. reção a alocação das tarefas entre os operadores era bem
delimitada, para os próprios operadores esta delimitação
nunca era tão nítida. Enquanto, para a direção, os modos
Duas concepções diferentes sobre o trabalho dos operatórios eram fixos e repetitivos, para os operadores
operadores eles eram variáveis e heurísticos porque deveriam corres-
ponder às situações reais do sistema. Enquanto para a che-
“A refinaria ganha quando o operador está parado, mas en- fia havia um predomínio de tarefas de simples vigilância,
genheiro [14] detesta ver operador parado”. Esta frase reflete para os operadores o importante eram as tarefas de plane-
bem um dos problemas que logo identificamos: a diferença jamento e de pronta intervenção. A direção também não le-
entre a concepção que a chefia tinha do trabalho dos opera- vava em consideração as variações do estado dos operado-
dores e a que eles próprios tinham. Por que a refinaria ga- res em função das mudanças de horário devidas ao sistema
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira 21

de turnos alternantes; já os operadores, sabiam como seu


estado era alterado física e mentalmente em função das Considerar trabalhadores como "gordura" a ser cortada é
trocas de horários. Para a direção a gestão da unidade de- extremamente pejorativo e dá bem a idéia do caráter de
veria ser baseada na hierarquia, com valorização do de- desvalorização do trabalhador e de seu trabalho. Presen-
sempenho individual; para os operadores, a gestão do tra- ciamos várias manifestações desta desvalorização, rela-
balho na unidade era um processo coletivo e, portanto, a cionadas a diferentes aspectos: ao tipo de conhecimento
experiência prática coletiva deveria ser valorizada. Enfim, dos operadores (“não sabem nem fazer uma média ponde-
se para a direção o trabalho da equipe era considerado o rada”); à natureza de seu trabalho (“só têm que vigiar os
"somatório" de trabalhos individuais, para os operadores o painéis”); ao emprego de seu tempo (“ficam ociosos”). Com
trabalho da equipe era o resultado de uma "integral" dos esta desvalorização, a hierarquia conseguia defender a di-
trabalhos individuais. Dizendo em outras palavras, para as minuição do tempo de treinamento para ser operador e pre-
chefias o trabalho dos operadores era um problema; para gava a polivalência entre vários setores (Cequinel, 2003).
os operadores, a solução dos problemas.
Como sintetizou mais tarde um operador experiente (Cequi-
nel, 2003), na sua concepção de trabalho, as chefias confun- Uma reunião de reconhecimento
diam o real com o ideal, o que era com o que gostariam que
fosse, e, com este comportamento, desvalorizavam e sim- Quando o estudo chegou ao fim, quisemos fazer uma reu-
plificavam o trabalho dos operadores, fornecendo argu- nião [17] para apresentá-lo aos operadores de modo que os
mentos técnicos ao processo político de redução de efetivos mesmos conhecessem o nosso trabalho e verificassem se
ou downsizing. não tínhamos nos enganado em algumas terminologias téc-
nicas e próprias do petróleo. A reunião deveria ser feita fora
do local de trabalho e, por isso, alguns operadores nos pro-
A política de redução de pessoal puseram a sede de um clube local. Lá chegando, no dia
marcado, encontramos todos os operadores da unidade,
Na linguagem empresarial, a redução do número de traba- com exceção dos que estavam naquele momento traba-
lhadores é expressa como "enxugamento de pessoal" ou lhando na refinaria, o que era, no mínimo, uma demonstra-
"corte de gorduras" [15]. Trata-se da versão brasileira do do- ção de interesse pelo nosso trabalho.
wnsizing norte-americano ou do dégraissage francês, uma Primeiro, lhes explicamos em linhas gerais nossas conclusões
forma eufêmica de falar sobre o corte de empregos, como e o propósito da reunião. Eles imediatamente se organizaram
dizia Wacquant: em três grupos (cada grupo acompanhando um de nós, os três
pesquisadores) e verificaram todas as nossas dúvidas técnicas,
Le verbe to downsize est un terme technique qui provient corrigindo alguns pequenos erros que havíamos cometido.
de l’industrie automobile où Il designe la réduction de la Compreenderam, de imediato, alguns esquemas gráficos que
taille des véhicules. C’est en 1982 que s’amorce son appli- tínhamos feito para ilustrar seu trabalho, como os que repre-
cation aux employés plutôt qu’aux produits d’une firme. sentavam os longos percursos que faziam durante as rotinas de
Depuis, les directeurs des ressources humaines ont in- trabalho, caminhando dentro da unidade, e imediatamente des-
nové un vaste lexique visant ‘à "adoucir" voire à masquer cobriram algumas incoerências dentro deles que nós, pronta-
sémiotiquement les suppressions d’emplois. Dans l’Amé- mente, corrigimos. Quando viram um esquema onde represen-
rique d’aujourd’hui, notamment au sein des grandes távamos, num gráfico, uma comparação entre o que a empresa
compagnies, un salarié n’est point licencié, limogé ou mis considerava ser o seu trabalho e o que eles efetivamente fa-
à la porte, et encore moins viré; il est "séparé”, "désélec- ziam, que mostrava uma grande diferença (isto é, que eles fa-
tionné" ou "désembauché”, ‘’transitionné" ou "réduit”, ziam muito mais coisas e coisas muito mais variadas do que as
"non realloué" ou "déprogrammé”, "délogé" ou bien en- chefias previam), sua satisfação foi visível: finalmente alguém
core "non-renouvelé" Quant à l’entreprise, elle se havia compreendido toda a complexidade e o perigo do trabalho
contente de procéder à un "recentrage du mix des qualifi- que realizavam. Alguns chegaram mesmo a expressar o alívio
cations”, à une "correction du déséquilibre de main- que sentiam por ver que o que estavam tentando demonstrar
d’oeuvre" ou encore à une "élimination des redondances”. quando denunciavam a diminuição de efetivos não era sinal de
Maints autres vocables diffcilement traduisibles, tels de- covardia ou de falta de vontade de trabalhar: pelo contrário, de-
cruited, excessed, ou surplussed, expriment bien cette idée monstrava um sentimento de responsabilidade profissional
que les employés sont devenus une charge excédentaire, com a produção e segurança e de indignação contra decisões
un poids mort, un fardeau inutile, bref une tare dont la empresariais baseadas apenas em motivos econômicos. Seu
firme a le droit mais aussi le devoir de se délester preste- trabalho tinha sido reconhecido por nós e, mais importante,
ment. (Wacquant,1996, p. 70) [16]. este reconhecimento iria se tornar público.
22 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira

O reconhecimento do trabalho na psicodinâmica do Este reconhecimento do qual fala Dejours é um reconheci-


trabalho mento simbólico e, segundo ele, pode adquirir duas formas:
a da constatação e a da gratidão, pela "contribuição dos tra-
O conceito de reconhecimento do trabalho tem sido desenvol- balhadores à organização do trabalho”. Insiste Dejours que
vido por Christophe Dejours desde, pelo menos, 1993, quando o reconhecimento não é sobre o trabalhador, mas sobre o
foi publicado um addendum teórico chamado "Da psicopatolo- seu fazer e passa sempre por julgamentos proferidos por
gia do trabalho à psicodinâmica do trabalho" na segunda edição outrem: julgamentos de utilidade, como ele os chama, pro-
ampliada de seu primeiro livro, Travail usure mentale, essai de feridos principalmente pelos superiores hierárquicos e jul-
psychopathologie du travail, de 1980 (traduzido no Brasil, em gamentos de beleza, proferidos pelo pares.
1987, como A loucura do trabalho). Foi nesse momento que o
trabalho de Dejours deu uma importante guinada: ao invés da Estes julgamentos têm uma particularidade em co-
psicopatologia, o que passou a ser o foco das suas preocupa- mum: se referem ao trabalho feito, isto é, ao fazer e não
ções foi a normalidade psíquica: como era possível permane- à pessoa. Mas, em retorno, o reconhecimento da quali-
cer saudável apesar das graves dificuldades encontradas dade do trabalho realizado pode se inscrever ao nível
para se realizar o trabalho? [18] Se a psicopatologia do trabalho da personalidade em termos de ganhos no registro da
era definida como" o sofrimento psíquico resultante da con- identidade. Em outras palavras, a retribuição simbólica
frontação dos homens à organização do trabalho”, as preocu- conferida pelo reconhecimento pode adquirir um senti-
pações da nova disciplina eram ampliadas no sentido de fazer do em relação a expectativas subjetivas sobre a reali-
uma "análise psicodinâmica dos processos intersubjetivos zação pessoal. (Dejours, 1993, p.227, tradução livre).
mobilizados pelas situações de trabalho" (Dejours, 1993, p.
207, tradução livre). Se o trabalho podia ser fonte de sofri- É aí que se fecham os "elos intermediários da dinâmica do
mento e de distúrbios mentais, ele também podia ser fonte de reconhecimento”: o reconhecimento do trabalho é funda-
prazer e de realização pessoal. mental para a constituição da identidade, que, por sua vez,
Foi nesse contexto que o reconhecimento do trabalho apa- é fundamental para a saúde mental. "A identidade necessita
receu como conceito fundamental. Era a partir dele que o do olhar dos outros" diz ele. E a "identidade insuficiente-
sofrimento do trabalho poderia ser, de certo modo, não só mente fundada é uma porta aberta à doença mental" (De-
neutralizado como até transformado em prazer no traba- jours, 2009, p.118, tradução livre). O trabalho pode ser um
lho. A explicação dada era, mais ou menos e resumidamen- mediador na construção da identidade, fortalecendo psiqui-
te, a seguinte: no curso dos enfrentamentos das dificulda- camente o sujeito frente aos riscos de doenças mentais e
des inerentes à realidade do trabalho, os sujeitos se em dois importantes registros: o da identidade de cada um
esforçam, isto é, mobilizam suas capacidades físicas, suas e o da identidade coletiva. "Com o reconhecimento, são ob-
inteligências, habilidades e disposições, suas capacidades tidas gratificações preciosas no registro da identidade: de
de relacionamento, suas subjetividades, enfim, para conse- um lado, pertencimento a um coletivo ou a uma comunida-
guirem um bom resultado. "A mobilização subjetiva é muito de; de outro, identidade singular" (Dejours, 2009, p.117, tra-
forte na maioria dos sujeitos. Tudo se passa como se o su- dução livre).
jeito, confrontado à organização do trabalho, não pudesse Este breve resumo já mostra a importância conferida pela
evitar a mobilização dos recursos de sua inteligência e de psicodinâmica do trabalho ao reconhecimento do trabalho.
sua personalidade" (Dejours,1993, p.225, tradução livre). Não é demais lembrar que, além da psicodinâmica do tra-
Se estes esforços forem reconhecidos, todo o sofrimento balho, o tema do reconhecimento, tem sido recentemente
que causaram pode ser, de certa forma, neutralizado e os motivo de atenção de filósofos e sociólogos de diversas par-
sujeitos podem experimentar até prazer. Por outro lado, se tes do mundo, como Ricoeur (2005 e 2006) e Renault, (2007),
estes esforços não forem reconhecidos, o sofrimento que na França; Honneth (2007, 2008 e 2009), Voswinkel (2007) e
causaram é apenas sofrimento, sem sentido, e pode levar a Kocyba (2007), na Alemanha; Fraser (2005 e 2007) nos Esta-
descompensações psíquicas. Haveria, portanto, no traba- dos Unidos e Taylor (1994) no Canadá [19], para só citar os
lho, uma dinâmica entre contribuição e retribuição: nomes mais (talvez) conhecidos deste movimento. O suges-
tivo título de um livro editado na França, em 2007, A busca de
Na contrapartida da contribuição que dá à organização reconhecimento: novo fenômeno social total (Caillé, 2007), reu-
do trabalho, o sujeito espera uma retribuição e, às ve- nindo um conjunto de textos de vários autores sobre, princi-
zes até, ele só espera que suas iniciativas e seu desejo palmente, a problemática da falta de reconhecimento, mos-
de contribuir e de não ser apenas um estrito executan- tra como o assunto pode ser analisado sob os mais
te, condenado à obediência e à passividade, não sejam diferentes pontos de vista.
sistematicamente sufocados. (Dejours,1993, p.225, tra-
dução livre)
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira 23

À guisa de conclusões prescindível. É aí que as diferentes concepções sobre o tra-


balho adquirem todo o seu valor. E é só na medida em que os
A questão de diminuição de efetivos abordada neste estu- trabalhadores ousam apresentar e defender o seu trabalho
do foi apenas o início de um processo de "reestruturação concreto, e confrontá-lo com aquele concebido pela chefia
produtiva" pela qual a empresa passou, no afã de dimi- (em geral simplificado e subestimado) que o processo pode
nuir custos e na esteira do que acontecia em todo o mun- progredir, como aconteceu no caso da negociação anterior-
do nos anos 80 e 90. Nas empresas petrolíferas, em par- mente citado.
ticular, o downsizing foi tão grande que, como disse o Mas ainda restam questões, entre elas saber por que os pe-
ICEM (1998), as empresas petrolíferas começaram a troleiros resistiram tão bravamente. Parece-me que a no-
apresentar sinais de "anorexia empresarial”, pois os cor- ção de perda também é importante: a redução de efetivos
tes de "gorduras" passaram a atingir seus órgãos vitais representou uma perda na qualidade do trabalho, que sem-
[20]
. pre foi prezada na empresa e reconhecida nacionalmente;
No caso brasileiro, alguns grandes acidentes, que culmina- uma perda na qualificação dos trabalhadores e um baque
ram em março de 2001 com o afundamento da plataforma na imagem de competência dos próprios operadores e na
P- 36 que resultou na morte de 11 operadores e na perda sua reconhecida capacidade de organização e luta.
total da plataforma, com a comoção nacional que ocasio- É por isso que podemos considerar a luta dos petroleiros
nou, parecem ter sido um sinal definitivo para que a política contra a redução de efetivos como uma luta pelo reconheci-
de redução de pessoal fosse interrompida e, com a mudan- mento de seu trabalho, pelo reconhecimento de sua compe-
ça de governo, começasse uma política de contratação de tência e pelo reconhecimento de sua responsabilidade. O
pessoal. que aconteceu foi a feliz coincidência entre a vontade de ob-
No entanto, se durante todo este período os trabalhadores ter este reconhecimento e as condições de obtê-lo. Estas
petroleiros não tivessem se manifestado contra esta políti- condições foram dadas pela tradição de participação políti-
ca, provavelmente seus efeitos teriam sido ainda mais dele- ca e de luta que historicamente marcaram esta categoria
térios. De fato, desde o início, os trabalhadores reagiram e, no Brasil.
como fizeram no estudo que estamos apresentando, sem
canais de negociação com a direção da empresa não hesita-
ram em levar suas apreensões ao Ministério Público e à Notas
Justiça. Só a nossa equipe participou de vários deles, de
modo que pudemos nos aprofundar no assunto, conhecer [1] Cada "unidade" ou "unidade de processo" da refinaria é uma
melhor os argumentos de ambos os lados, compreender espécie de fábrica que produz um produto específico derivado do
que a questão da determinação de efetivos era uma questão petróleo, como gasolina, diesel, etc.
de negociação e, assim sendo, que caberia a cada uma das [2] Na década de 1990, a política de pessoal da empresa foi
partes apresentar seus argumentos e seus números. A in- responsável por diminuir o número de seus trabalhadores
sistência da resistência dos sindicatos forçou a empresa a efetivos de cerca de 60 mil para 33 mil e de terceirizar grande
colocar no seu Acordo Coletivo de Trabalho uma cláusula parte de seus serviços.
que previa um fórum de discussão sobre a questão dos efe- [3] A Constituição Brasileira, desde 1988, deu evidências ao
tivos e tive a oportunidade de acompanhar um estudo piloto Ministério Público, que passou a ser uma espécie de Ouvidoria da
previsto nesta cláusula enquanto assessora do sindicato. sociedade brasileira, atuando na tutela dos interesses difusos e
Foi uma experiência de três anos que terminou, enfim, com coletivos. www.mpu.gov.br/navegacao/instituicional/historico.
uma vitória (Ferreira, 2003). Acesso em 27/10/2010.
Neste longo processo, uma questão sempre me intrigou: [4] A Análise Ergonômica do Trabalho ou AET é uma metodologia
por que as empresas, que não se negam a negociar salá- criada na década de 70, pelo Laboratório de Ergonomia do CNAM
rios, se negam a negociar o número de seus trabalhadores, em Paris, França, quando seu diretor era Alain Wisner. Represen-
uma vez que nos dois casos trata-se de uma questão econô- ta uma seqüência de etapas para se realizar um estudo ergonô-
mica (na medida em que ocorre dentro de limites vigentes e mico das quais as mais importantes são a análise da demanda, a
aceitos socialmente) e política (porque depende da correla- análise das condições da empresa e a análise da atividade dos
ção de forças entre as partes) e que o custo do trabalho de- trabalhadores (através de várias técnicas dentre as quais
pende não só do nível salarial como do número de empre- observações detalhadas da mesma são as mais importantes).
gados? Uma das explicações para esta discrepância me [5] Em 15 de dezembro de 1993, por sentença do juiz Roberto Maia
parece estar na diferença da natureza dos dois tipos de Filho, fundamentada na ação impetrada pela Promotoria de Meio
questão: pode-se arbitrar a questão salarial sem discutir o Ambiente de Cubatão, a empresa foi obrigada a aumentar o
trabalho concreto. Mas para se determinar o número de número de operadores da unidade em questão e manter um
trabalhadores, a discussão sobre o trabalho concreto é im- número mínimo de oito operadores por turno (eram seis)
24 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira

acrescidos de um efetivo de mais 30%, totalizando 52 operadores. dos mais que aos produtos de uma firma. Desde então, os
(A Tribuna, 21/12/1993). gerentes de recursos humanos inovaram um vasto léxico visando
[6] Concursos públicos de ingresso para a admissão de pessoal, "adoçar"e mascarar semioticamente a supressão de empregos.
que estavam suspensos na década de 1990, foram abertos e o Nos Estados Unidos atuais, principalmente nas grandes compa-
efetivo operacional da empresa começou a ser reposto, de modo nhias, um trabalhador não é mais demitido, posto na rua: ele
que em 2010 o efetivo próprio era de cerca de 70 mil trabalhado- é"separado», «desselecionado»,"transicionado"ou"reduzido»,"n
res. Os sindicatos reconhecem a importância destas novas ão realocado»,"desprogramado"ou"não renovado». Quanto à
contratações, mas continuam a denunciar que os trabalhadores empresa, ela se contenta em proceder a uma"recentragem do
estão expostos a cargas de trabalho excessivas (FUP, 2007). mix de qualificações», a uma"correção do desequilíbrio de mão de
[7] A Dra. Aparecida Mari Iguti, médica e doutora em Ergonomia, o obra"ou ainda a uma"eliminação de redundâncias». Muitas outras
engenheiro José Marçal Jackson Filho que, na época, estava em palavras dificilmente traduzíveis, como decruited, excessed, ou
formação em ergonomia e eu mesma. surplussed exprimem bem esta idéia que os empregados se
[8] Poucos anos depois, os painéis analógicos foram substituídos tornaram uma carga excedente, um peso morto, um fardo inútil,
por sistemas de controle computadorizados e as salas de enfim, uma tara de cuja firma tem não só o direito mas o dever de
controle de cada unidade de processo foram agrupadas em uma se desfazer rapidamente"(Wacquant,1996, p70,tradução livre).
única sala, distante do "campo”. [17] Esta etapa está prevista no método que inspirou este estudo:
[9] Indústria capital intensivo, as refinarias de petróleo funcionam a Análise Ergonômica do Trabalho (AET).
com pouquíssimos trabalhadores. Por isso, qualquer alteração no [18] Ao longo de todos estes anos, a busca de respostas para
seu número representa uma grande alteração: quando, por estas questões e de teorias para respaldá-las constitui o
exemplo, uma unidade que funcionava com dois operadores passa principal esforço de Dejours. Como ele diz, a psicodinâmica do
a ter um operador, ela perde 50% de seu pessoal. Este estudo foi trabalho"é uma disciplina clínica […] mas também uma disciplina
decorrente de uma redução de onze para oito operadores por teórica, que se esforça para inscrever os resultados da investiga-
turno. ção clínica sobre a relação no trabalho em uma teoria do sujeito,
[10] As refinarias têm um funcionamento contínuo e, portanto, que leva em conta a psicanálise e a teoria social.”(Dejours, 2001,
têm equipes de trabalhadores se revezando dia e noite, segundo p.1,tradução livre).
diferentes esquemas de turnos, com duração de seis ou oito [19] O tema do reconhecimento mereceria um estudo mais
horas e, no mínimo cinco equipes (a cada dia, quatro trabalhando aprofundado que ultrapassa as possibilidades deste artigo. No
e uma de folga). entanto, gostaria de lembrar alguns resultados de uma breve
[11] Alguns anos depois, soubemos que alguns operadores tinham pesquisa que realizei ao escrever o presente texto. Em 2007, a
sido punidos por terem levado a questão a público, com transfe- revista Travailler publicou um dossier especial (sob os cuidados de
rências para regiões distantes e com mudanças de funções. C. Dejours), sobre o tema do reconhecimento, com um artigo do
[12] Como não há interrupção no processo, é necessário que o francês Emmanuel Renault, Reconnaissance et travail, e de três
número de operadores seja maior do que o número necessário pesquisadores todos eles do Instituto de Pesquisa Social da
para operar cada unidade, a fim de poder cobrir ausências Universidade de Frankfurt, inclusive de seu diretor atual Axel
eventuais e férias. Portanto, existem dois números a serem Honneth. O artigo de Honneth, Travail et agir instrumental. À propos
considerados no dimensionamento de pessoal: o chamado des problèmes catégoriels d’une théorie critique de la société é a
"número (ou quadro) mínimo" e o"número (ou efetivo) total”, o tradução francesa de um artigo publicado em alemão em 1980.
qual, por definição, é sempre maior que o mínimio. Quando não se Kocyba escreveu Reconnaissance, subjectivisation, singularité e
alcançava o "número mínimo”, operadores do turno anterior Voswinkel escreveu L’admiration sans appréciation. Les paradoxes
deveriam "dobrar" turno, ou seja, permanecer trabalhando por de la double reconnaissance du travail subjectivisé. Honneth é o
mais uma jornada de trabalho. Estes conceitos estavam no autor de Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos
coração das discussões sobre dimensionamento de pessoal. sociais, tradução brasileira de uma obra publicada em alemão em
[13] "O trabalho dos petroleiros: perigoso, complexo contínuo e 1992 e fruto de sua tese de livre docência, onde ele"tenta
coletivo" foi o título de um livro que escrevemos, posteriormente, desenvolver os fundamentos de uma teoria social de teor
com Aparecida Mari Iguti, sobre o assunto (Ferreira & Iguti, 1996). normativo partindo do modelo conceitual hegeliano de uma"luta
[14] Neste caso, os "engenheiros" eram os chefes operacionais por reconhecimento"(Honneth, 2009). O livro de Ricoeur,
das unidades de processo. traduzido no Brasil em 2006, se chama Percurso do reconhecimen-
[15] Nos dois casos, significa considerar a empresa como um to. Em um outro texto que tem o sugestivo título de"Tornar- se
corpo humano, a ser modelado pelos atuais padrões de beleza: capaz, ser reconhecido"(2005, tradução livre) onde brinca com os
juventude, magreza e flexibilidade. dois polos da identidade pessoal de cada um: as capacidades que
[16] "O verbo to downsize é um termo técnico que vem da indústria a pessoa sabe possuir e a necessidade que sente de que outros as
automobilística, onde designa a diminuição do tamanho dos reconheçam, diz ele:"eu me identifico pelas minhas capacidades,
veículos. Foi em 1982 que começou sua aplicação aos emprega- pelo que sei fazer”
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira 25

[20] Nos Estados Unidos, um estudo revelou o número de Ferreira, L. L., Iguti, A.M & Bussacos, M. A. (1998). A diminuição de
empregos nas indústrias de petróleo e gás diminuiu drasticamen- efetivos em um terminal marítimo de petróleo e o trabalho de seus
te entre 1982 e 1999, passando de um nível máximo de 1.650.000 operadores. Estudo solicitado pelo Ministério Público à
empregados a aproximadamente 640.000. Entre 1988 e 2000, as Fundacentro. São Paulo: Fundacentro (datilografado)
empresas de petróleo dos Estados unidos despediam em média Ferreira, L. L., Iguti, A. M & Bussacos, M. A.(1999). Laudo
5,25% de seus empregados a cada ano. (Gas Daily, Arlington, complementar ao estudo"A diminuição de efetivos em um terminal
Virginia, 2 de junho de 2000). marítimo de petróleo e o trabalho de seus operadores”. Estudo
solicitado pelo Ministério Público à Fundacentro. São Paulo:
Fundacentro (datilografado)
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26 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira

reproduction sociale. Actes de la Recherche en Sciences PT/ES

Sociales, 115, 65-79. Cahier"Les nouvelles formes de domina- Una lucha por el reconocimiento del trabajo
tion dans le travail (2)". contra la política de recorte de personal

Resumo O texto pretende discutir alguns


resultados de um estudo desenvolvido pela autora
há vinte anos, à luz do conceito de"reconhecimento
do trabalho"tal qual a psicodinâmica do trabalho o
apresenta. O estudo foi o primeiro de uma série de
outros que se seguiram nos quinze anos
posteriores, sempre relacionados à luta de
trabalhadores petroleiros brasileiros contra a
política de"enxugamento de pessoal”, versão
brasileira do downsizing, aplicada pela direção da
empresa nos anos 90, na esteira das políticas
chamadas de reestruturação produtiva que
invadiram as empresas brasileiras e mundiais,
particularmente, o setor de petróleo.

Palavras-chave trabalho, petróleo, redução de


efetivos, reconhecimento do trabalho,
psicodinâmica do trabalho.
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira 27

FR EN

Une lutte pour la reconnaissance au travail et A Struggle for the recognition of work against
contre la politique de réduction du nombre workforce reduction policy
des travailleurs
Abstract The text presents the results of a study
Résumé Le texte cherche à discuter quelques developed 20 years ago by the author in light of the
résultats d’une étude développée par l’auteur il y a concept of"recognition of work"according to the
vingt ans, à la lumière du concept psychodynamics of work. This study was the first
de"reconnaissance au travail”, tel que la of a series of other works that followed in the next
psychodynamique du travail le conçoit. Cette étude 15 years related to the struggle of petroleum
a été la première d’une série qui s’est étendue au workers against the"enxugamento de
cours des quinze années suivantes, toujours en pessoal"policy, the Brazilian version of downsizing.
rapport avec la lutte des travailleurs pétroliers A policy applied in the 1990s by the company
brésiliens contre la politique de"enxugamento de management in the wake of a policy known as
pessoal”, expression brésilienne qui correspond productive restructuring which was widely adopted
au dégraissage d’effectifs (downsizing). Cette by Brazilian and international firms and
politique a été appliquée par la direction de particularly by the petroleum sector.
l’entreprise au cours des années 1990, dans le
contexte des politiques de restructuration Keywords work, petroleum, reduction of
productive qui ont envahi les entreprises permanent staff, recognition of work,
brésiliennes et mondiales et qui ont atteint, psychodynamics of work.
particulièrement, le secteur pétrolier.

Mots-clé travail, pétrole, dégraissage d’effectifs,


reconnaissance du travail, psychodynamique du
travail.

Como referenciar este artigo? Manuscrito recebido em: Dezembro/2010


Aceite após peritagem: Maio/2011
Ferreira, L. L. (2011). Uma luta pelo reconhecimento do
trabalho contra a política de redução de pessoal.
Laboreal, 7, (1), 17-27.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=37t45n
SU5471124227833:84381
28 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 28-41

PESQUISA EMPÍRICA
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação

Uchida, S.1, Sznelwar, L. I.l.2 Barros, J.O.3, Lancman, S.4

1. Fundação Getulio Vargas Resumen El propósito de este trabajo es presentar


Av. 9 de Julho, 2029 – Bela Vista el resultado de una acción en psicodinámica del
CEP 01313-902 – São Paulo, SP trabajo (PDT), desarrollado con un equipo de
Brasil trabajadores de un Centro de Atención Psicosocial
Seiji.uchida@fgv.br (CAPS), que se encuentra en Sao Paulo, Brasil. Es
un servicio especializado en atención de salud
2. Escola Politécnica da USP mental dirigido principalmente a personas con
Departamento de Engenharia de Produção trastornos mentales severos y persistentes.
Av. Prof. Luciano Gualberto, travessa 3, nº 380
Buscamos, a través de una acción en PDT,
CEP 05508-010 – São Paulo, SP
comprender las experiencias de los trabajadores,
Brasil
la relación sufrimiento y el placer en su trabajo,
laertesz@usp.br
así como las estrategias desarrolladas para lograr
resultados mediante la identificación de factores
3. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
críticos y los medios para superarlos. La creación
Av. Dr. Arnaldo, 455 – Cerqueira César
de espacios colectivos de discusión que permita
CEP 01246903 – São Paulo, SP
Brasil
identificar y dar visibilidad a las estrategias de
Juliana.obarros@usp.br trabajo creado por la inteligencia individual y
colectiva de los sujetos en su experiencia real es
4. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo un punto clave de este enfoque. Se considera que
Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e la inclusión de las experiencias de los trabajadores
Terapia Ocupacional para mejorar la aplicación de las políticas públicas
R. Cincinato Braga, 184, apto 51, sobre salud mental en Brasil permite mejorías en
CEP 01333-010 – São Paulo, SP las instituciones.
Brasil
lancman@usp.br Palabras clave sistema de salud pública, salud
mental y trabajo, la cooperación y el trabajo en
equipo, acción en psicodinámica del trabajo.
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 29

Introdução lítica e dos serviços de saúde mental, propondo a adoção


das redes municipais como referência para um tratamento
No Brasil, até o final da década de 1970, a assistência ofere- integrado, a partir da interlocução entre os vários níveis de
cida no campo da saúde mental era centrada nas grandes atenção em saúde. Foi nesta época que os Centros de Aten-
instituições asilares, configurando uma determinada forma ção Psicossocial (CAPS) foram designados como principal
de compreensão da loucura e conseqüentemente de práti- referência para o tratamento das pessoas com transtornos
cas terapêuticas, hoje consideradas bastante restritas e mentais (Brasil, 1992; 2005; Barros, 2010).
ultrapassadas. O modelo assistencial adotado, que tinha Essa proposta do Ministério da Saúde ganhou, em 2001, o
como foco a doença e a sintomatologia psiquiátrica mani- estatuto de lei, que reafirmou a garantia e defesa dos direi-
festa, favorecia a utilização de práticas que terminavam por tos de cidadania das pessoas com transtornos mentais e
promover a permanência das pessoas com transtorno apoiou a construção das redes de serviços que asseguras-
mental nas instituições hospitalares por tempo indetermi- sem esses direitos como uma forma para a organização da
nado gerando um grande contingente de pacientes crôni- atenção em saúde mental (Brasil, 2001a,b; Barros, 2010).
cos, moradores dos hospitais. Em decorrência das interna- Segundo a legislação brasileira, os CAPS’s são serviços vin-
ções prolongadas nestas instituições, conhecidas como culados à rede pública de saúde, estão inseridos na comuni-
manicômios, na maior parte das vezes precárias, e pela dade e oferecem atendimento especializado em saúde men-
falta de opções terapêuticas que não as medicamentosas, tal. Têm como missão acolher prioritariamente pessoas
os usuários dos serviços encontravam-se em situação de com transtornos mentais severos e persistentes em uma
abandono e perdiam o contato com seus familiares e com área de abrangência delimitada. Oferece três regimes de
redes sociais de suporte que pudessem oferecer qualquer tratamento: intensivo, semi-intensivo e não-intensivo, va-
possibilidade de desospitalização. Os hospitais psiquiátri- riando segundo as necessidades das pessoas com transtor-
cos brasileiros chegaram a ser comparados com campos nos mentais, em diferentes momentos da vida (Brasil, 2002).
de concentração, ou seja, não asseguravam aos pacientes Estes serviços estão organizados em diferentes modalida-
condições de vida e tratamento, e feriam seus direitos de des: CAPS I, CAPS II e CAPS III, destinados a adultos, maio-
cidadania (Machado et al 1978; Lancman, 1999). res de 18 anos e definidos por ordem crescente de porte,
Assim, em diálogo com contextos internacionais e reformas complexidade, abrangência populacional, horário de fun-
da assistência no campo da saúde mental, como as que cionamento, número de funcionários e de pessoas atendi-
ocorreram na Itália, França, EUA e Inglaterra, o Brasil, vem das. Existem ainda aqueles especializados no atendimento
buscando produzir respostas mais adequadas diante das a crianças e adolescentes com transtornos mentais (CAPS
necessidades apresentadas pelas pessoas com transtor- i), além daqueles destinados ao atendimento de pessoas
nos mentais. Para tanto, no final da década de 1980, foram que fazem uso abusivo ou tem dependência de substâncias
criados serviços extra-hospitalares no intuito de tentar ga- psicoativas (CAPS ad) (Brasil, 2002).
rantir atendimento na própria comunidade, o mais próximo A proposta é que o atendimento oferecido no CAPS seja di-
possível dos locais de moradia dos sujeitos e de seus fami- ferente daquele oferecido no contexto hospitalar. O entendi-
liares, reforçando assim uma rede social mais próxima, mento é que o foco do trabalho deva ser a vida da pessoa
com vistas a evitar internações prolongadas e recorrentes. com transtorno mental e não apenas a sintomatologia psi-
Outra etapa desenvolvida paralelamente foi a reorganiza- quiátrica manifesta. Rede social, família, trabalho e habita-
ção e humanização dos hospitais psiquiátricos brasileiros ção, por exemplo, são alguns dos eixos também trabalha-
visando diminuir a situação de abandono e a falta de assis- dos nestes serviços para que o sujeito possa realmente
tência e, por fim, foi dado início ao processo de desmonta- reconstruir sua vida para além do circuito saúde-doença.
gem destes hospitais e de desospitalização dos usuários Procura-se ainda aprimorar e/ou desenvolver sua capaci-
que haviam se tornado moradores (Brasil, 2005). dade de gerar e gerir normas para a própria vida de forma a
Atualmente um dos principais desafios deste processo, no- viabilizar sua circulação e, conseqüentemente, a realização
meado como Reforma Psiquiátrica, está na implementação e de trocas sociais. Dessa forma, os atendimentos oferecidos
desenvolvimento de serviços de saúde mental na comunida- no CAPS vão para além daqueles oferecidos dentro do es-
de que consigam atender às necessidades cotidianas das paço físico dessas instituições estendendo-se para a comu-
pessoas com transtornos mentais. Compreende-se que es- nidade (Pereira, L.M.F et al, 2008).
sas necessidades não estão relacionadas apenas a cuidados Apesar de ter aproximadamente 30 anos, trata-se de um
de saúde, mas também a outras esferas da vida dessas pes- processo recente e que têm se desenvolvido com velocida-
soas, tais como: alimentação, moradia, atenção psicológica e des e constância distintas nos vários estados e cidades do
psicossocial (Nicácio, 2003; Brasil, 2005; 2007; Barros, 2010). país. Desta forma, em muitos destes lugares, a desmonta-
Assim, a partir da década de 1990, o Ministério da Saúde do gem do modelo hospitalocêntrico está acontecendo simul-
Brasil passou a definir e reorganizar a estruturação da po- taneamente à implantação do modelo territorial. Assim não
30 O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S.

é difícil supor que possa haver uma desorganização do sis- neira poderia contribuir para o desenvolvimento de ações
tema de atenção como um todo, acarretando algumas dis- que ajudassem a aprimorar esse tipo de dispositivo de saú-
sonâncias, relacionadas, sobretudo, ao possível estado de de pública (Lancman et al,. 2007).
desequilíbrio entre demanda e oferta; ao desenvolvimento O objetivo deste artigo é o de mostrar como a ação em psi-
parcial, incompleto e provisório das ações assistenciais; a codinâmica do trabalho (PDT), através da criação de um es-
sobrecarga de trabalho e seus reflexos no cotidiano laboral paço de expressão e de circulação de experiências entre os
dos agentes responsáveis pelo cuidado aos usuários. trabalhadores, pode contribuir tanto para a elucidação,
As mudanças nos espaços físicos, do modelo centrado na avanço e superação de alguns aspectos que dificultam a im-
internação para outro que prioriza o tratamento na comuni- plantação do novo modelo quanto para o conhecimento das
dade e as práticas terapêuticas voltadas para a inserção dificuldades e das estratégias criativas geradas no traba-
dos usuários na comunidade, geram a necessidade de defi- lho. Esperava-se encontrar indicações de sofrimento entre
nição de novos processos de trabalho e de capacitação dos os trabalhadores, relacionado a diferentes aspectos tais
trabalhadores. Assim, esta nova perspectiva de cuidado e como: a precariedade dos serviços onde trabalhavam, uma
tratamento somada à desmontagem e implantação simul- eventual descrença e o não-reconhecimento dos esforços
tânea de modelos distintos, coloca desafios para os traba- que realizavam para que o trabalho acontecesse.
lhadores e gestores. Um deles está na superação das difi- Por outro lado, para dar conta de um desafio de tal magni-
culdades operacionais e políticas para a implantação do tude, esperava-se também dar visibilidade para as estraté-
modelo, pois a criação de uma estrutura desse porte requer gias e soluções criativas que os trabalhadores estivessem
além da implantação de um conjunto de serviços, a concep- desenvolvendo, fruto da inteligência individual e coletiva,
ção e a criação simultânea de novas práticas e projetos or- além de discutir seu papel na promoção da saúde mental
ganizacionais de atenção (Lancman, 2008). destes. Procuramos ainda, contribuir para o avanço do novo
Acrescenta-se ainda a precariedade e a morosidade do pro- modelo, ou seja, para o aprimoramento e exeqüibilidade
cesso de constituição do sistema como um todo, gerando das propostas de atenção em saúde mental, considerando-
número insuficiente de serviços e de profissionais para a -se os diferentes cenários de produção destes serviços; e,
demanda desses serviços. Essa precariedade pode ocasio- sobretudo, favorecer o processo de transformação do sofri-
nar um deslocamento de equipes para alguns serviços e o mento em prazer no trabalho.
conseqüente esvaziamento de outros.
Além disso, esses novos equipamentos requerem a cons-
trução de processos de trabalho e de capacitação de profis- O Cuidar em Saúde Mental
sionais que também sejam inovadores, afinal trata-se de
um modelo novo, que pressupõe a construção de novas for- A atividade de cuidar de pessoas com transtornos mentais é
mas de saber-fazer e de novos paradigmas. Temos ainda o constituída, entre outros fatores, pelo encontro entre uma
pouco investimento em recursos materiais que não assegu- pessoa que sofre e outra encarregada de lhe propiciar a in-
ram que esses serviços, por vezes, funcionem em espaços tervenção técnica que visa diminuir o seu sofrimento. Sen-
adequados e que tenham a infra-estrutura necessária. do o próprio aparelho psíquico o instrumento terapêutico
Como já mencionado, trata-se de uma proposta inovadora principal do trabalhador, este tem que lidar tanto com o so-
e, desta forma, tanto o processo de produção quanto a ma- frimento do usuário quanto com o seu próprio. Um desafio
neira como os CAPS’s são organizados, fazem com que o importante é criar meios para que os trabalhadores pos-
conteúdo das tarefas e o desenvolvimento das atividades sam realizar seu trabalho, evitando que se constitua um
também estejam em construção. Há ainda o desafio de criar processo de sofrimento patogênico.
e instaurar formas de conexão com os outros níveis de A possibilidade de o trabalhador contribuir com seu conhe-
atenção que compõem a rede de assistência à saúde. cimento e inteligência no aprimoramento do processo de
Diante das possíveis dificuldades na implantação da nova trabalho é a forma de superação e transformação deste so-
Política de Saúde Mental, o Ministério da Saúde do Brasil, frimento em prazer. Afinal, o que mobiliza e motiva as pes-
em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia do soas para o trabalho é a retribuição simbólica pela contri-
Brasil, lançaram um edital para financiamento de projetos buição que elas trazem ao trabalho. Este reconhecimento
de pesquisa que pudessem contribuir neste processo. Foi favorece a possibilidade de contribuição do profissional
no contexto desse edital que a pesquisa que será apresen- para a construção de uma produção de melhor qualidade e,
tada neste artigo foi desenvolvida. Teve como objetivo con- ao mesmo tempo, possibilita o processo de realização de si.
tribuir, através de uma abordagem baseada nos preceitos Um dos conceitos fundamentais que adotamos é o de que o
da psicodinâmica do trabalho, para a compreensão das vi- trabalhar implica o fortalecimento do processo de identifi-
vências do trabalho dos sujeitos envolvidos de um determi- cação do trabalhador com o seu trabalho, através de um
nado CAPS do município de São Paulo, que de alguma ma- processo de reconhecimento do esforço, isto é, da contri-
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 31

buição individual e coletiva para se superar as dificuldades do trabalho e a ação dos trabalhadores é um excelente meio
encontradas no confronto com o real. de detectar os problemas na operacionalização das tarefas
Nessa perspectiva, para Dejours (2004), é central o concei- e suas implicações psíquicas, assim como as possíveis for-
to de identidade, entendido como uma armadura psíquica – mas de superá-los. A PDT, entendida como clinica do traba-
resultado de um processo de unificação psíquica que cons- lho, visa dar visibilidade e refletir sobre o trabalhar tendo
trói o sentimento de estabilidade, continuidade e integração como foco a racionalidade subjetiva (pathica) das ações. Isto
de si no interior de uma história que é simultaneamente significa pesquisar as relações entre os indivíduos e um co-
singular e social - que protege a saúde mental das pessoas letivo (grupo de pessoas que compartilham regras de ofício
no interior das instituições. Trata-se de uma construção in- ou experiências acerca das atividades realizadas).
tersubjetiva, pois depende do olhar do outro. Nesse sentido, A PDT ao estudar o trabalhar evidencia aspectos menos visí-
é essencial que a organização do trabalho e o conteúdo das veis e conhecidos das relações de trabalho, tais como: o
tarefas propiciem condições para a realização de si, fruto trabalho como construção identitária, as relações sofri-
de uma ressonância simbólica entre atividade de trabalho e mento e prazer que decorrem disso, a construção de defe-
história pessoal. sas individuais e coletivas, o desenvolvimento da inteligên-
Este processo de constituição identitária relacionada com o cia astuciosa, os riscos de alienação e a construção da
trabalho, que é constantemente colocada à prova, ocorre inter-subjetividade (Dejours, 2009; Dessors, 2009; Lanc-
mediante reconhecimento da ação dos sujeitos que se dá man & Uchida, 2003; Molinier, 2006).
pelo julgamento de outros,segundo dois prismas: o da utili- Trabalhar em um serviço como o CAPS, requer que o traba-
dade e o da estética (Dejours, 2003). O primeiro é feito prin- lhador construa cotidianamente um conjunto de práticas
cipalmente pelos superiores hierárquicos e, eventualmente, que deverá nortear seu trabalho. O trabalho prescrito é tê-
pelos clientes que avaliam a utilidade da ação, ou seja, sua nue e frágil tendo em vista que cada sujeito é singular e as
eficiência e relevância organizacional, social e econômica. O intervenções também devem se constituir desta forma, ou
indivíduo sente-se útil e pertencente ao grupo e à organiza- seja, os profissionais e, conseqüentemente as equipes, de-
ção do trabalho quando reconhecido por esse julgamento. Já vem construir seu processo de trabalho simultaneamente
o julgamento estético remete à beleza e originalidade da so- ao desenvolvimento da prática para realizá-lo. Este fato
lução, sendo formulado pelos pares, que reconhecem no traz uma peculiaridade a este serviço e aos profissionais
sujeito as qualidades do seu saber-fazer e sua contribuição inseridos nele. Experimentar, viver o trabalhar é um desafio
para o coletivo do trabalho. A originalidade no desempenho constante e exige o desenvolvimento de estratégias que se
da ação leva o sujeito a não ser igual a outro par, torna-o constituem numa inteligência astuciosa, própria a esses
único e singular. O julgamento é feito sobre o"fazer"e não trabalhadores.
sobre o"ser"e o sujeito para se re-assegurar como enge-
nhoso e criativo, precisa passar pelo olhar e crítica do outro,
que irá julgá-lo e reconhecer ou não as suas ações. Metodologia
Isto evidencia que o trabalho, enquanto espaço de confronto
entre o indivíduo - com suas crenças, valores e concepções A ação em PDT foi desenvolvida em um distrito na cidade de
- e o social, é permeado pelas condições concretas para sua São Paulo que aglutina alguns equipamentos de saúde
realização, sua organização e pelas diferentes formas de mental, entre eles o CAPS, onde foi realizado este estudo.
concebê-lo. Inicialmente apresentamos o projeto de pesquisa, os objeti-
Há, nesse sentido, a partir das pesquisas realizadas neste vos e os princípios da abordagem para a equipe de forma
campo, evidências claras de que o trabalho não é neutro que as pessoas que se dispuseram a participar dos grupos,
com relação à saúde das pessoas, mais especificamente resguardando o critério de voluntariado, pudessem cons-
com relação à saúde mental. Trabalhar pode promover o truir em conjunto com os pesquisadores as discussões de-
equilíbrio psíquico, a identificação com aquilo que se faz, a senvolvidas durante as sessões de trabalho, de acordo com
realização de si, porque ele é um meio essencial para a bus- as propostas de ação neste campo (Heloani & Lancman,
ca do sentido. Em suma, o trabalho é um elemento central 2004).
na construção da saúde. Em situações onde não há margem O grupo, num total de doze pessoas, foi constituído pela
de manobra, onde o trabalhador não pode contribuir com equipe de trabalhadores do CAPS e contou com a participa-
sua experiência e saber-fazer, ou não consegue realizar seu ção de profissionais diversos (psiquiatras, psicólogos, tera-
trabalho de acordo com seus princípios e crenças, ele está peutas ocupacionais, enfermeiras, assistentes sociais e
impedido de transformar o sofrimento em ações significati- farmacêutico). O caráter heterogêneo do grupo ocorreu em
vas que o levem ao prazer de realizar algo útil e belo (Szne- acordo com a própria equipe do CAPS que se organizava
lwar, 2003). dessa forma, não privilegiava as especificidades profissio-
Assim, conhecer os aspectos que envolvem a organização nais na realização do seu trabalho nem criava uma estrutu-
32 O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S.

ra muito hierarquizada entre os constituintes da equipe. rio da pesquisa entregue ao Ministério da Saúde (Lanc-
Destaca-se aqui, que apesar das pesquisas em PDT procu- man, 2008).
rarem trabalhar com grupos homogêneos, o método deve Cabe explicitar que a PDT compreende que os pesquisado-
ser adaptado a cada situação de estudo encontrada e ser res também fazem parte de um coletivo de pesquisa. Dessa
desenvolvido em acordo com as demandas dos trabalhado- forma, é usual que, durante o processo, a equipe se divida e
res e características dos grupos de trabalho. um dos membros não participe diretamente das sessões.
O grupo se reuniu por aproximadamente dezoito horas, dis- Esse pesquisador acompanha a equipe que conduz as ses-
tribuídas em uma primeira etapa com sete sessões de dis- sões durante todo o processo através de supervisões que
cussão e de uma segunda etapa com duas sessões de vali- visam ajudar na compreensão das dinâmicas estabeleci-
dação organizadas de acordo com as possibilidades dos das, nos processos de constituição do espaço de palavra e
trabalhadores e do serviço. Entre as duas etapas ocorreu das falas propriamente ditas, na formulação de hipóteses e
um intervalo de um mês para que os pesquisadores pudes- de interpretações, assim como na construção de um dis-
sem redigir um relatório. Essa dinâmica foi acordada com curso comum, baseado também na interpretação das vivên-
os trabalhadores antes do inicio do processo. cias relatadas pelos integrantes da equipe. Esse recurso
As sessões não seguiram nenhum roteiro pré-definido e metodológico é importante para assegurar um trabalho in-
desde o primeiro encontro a única instrução dada aos tra- terpretativo mais rico, fruto de um debate com a coopera-
balhadores era que eles falassem sobre a vivência do tra- ção dos diferentes olhares, inclusive daquele que não este-
balho deles. Os pesquisadores interferiram pouco no anda- ve presente e que atua junto aos pesquisadores que
mento das sessões limitando-se à condução dos grupos e a estiveram diretamente envolvidos nas sessões no sentido
mediar para assegurar a palavra a todos. Ao término das de questioná-los e ajudá-los a entender o seu envolvimento
sessões procurava-se fazer um breve resumo do que foi e como estão desenvolvendo a dinâmica com os sujeitos que
discutido assinalando alguns pontos considerados relevan- participam do grupo.
tes. Essa mesma prática foi, por vezes, utilizada no inicio da Os resultados serão apresentados aqui de duas maneiras.
sessão seguinte para retomada das discussões. Primeiramente contextualizando o trabalho no CAPS estu-
Os pesquisadores procuraram manter uma escuta atenta dado, de acordo com o cenário encontrado durante a pesqui-
ao conteúdo das falas, ao que era consensual, às discus- sa. Em seguida, será apresentada uma analise clínica ilus-
sões contraditórias, àquilo que emergia de forma espontâ- trada com trechos do relatório final validado com os
nea ou não, ao que era dito ou omitido. As sessões foram trabalhadores, principalmente aqueles que estão relaciona-
gravadas e transcritas e todos os participantes assinaram o dos com as vivências da equipe com relação ao seu trabalho.
termo de consentimento livre e esclarecido previsto pela Optou-se por apresentar diversos trechos do relatório na
comissão de ética da Faculdade de Medicina da Universida- integra com o intuito de demonstrar parte do processo de-
de de São Paulo - USP. senvolvido na ação em PDT. Este tipo de formulação é ca-
Após a primeira etapa, os pesquisadores apresentaram um racterística da maneira como são conduzidas e apresenta-
relatório provisório para os trabalhadores que participa- das as ações em PDT pela equipe responsável pela pesquisa,
ram do grupo, como o intuito de discuti-lo, validá-lo e modi- onde procura-se contextualizar o trabalho dos sujeitos e
ficá-lo, segundo as suas críticas e contribuições. No pro- trazer para o espaço público as vivências deles em um for-
cesso de validação, por ser o momento em que os mato que reflita o discurso comum construído nas sessões.
pesquisadores apresentam suas interpretações e assina- O relatório final para a PDT é muito mais do que uma síntese
lam pontos considerados importantes durante o processo das discussões realizadas nos grupos. Ele tem como objeti-
de discussão, é comum haver grande mobilização dos tra- vo principal, a partir da escuta e observação clínica, siste-
balhadores que se identificam ou refutam as interpretações matizar, elaborar interpretações e devolver aos integrantes
apresentadas. Nessas sessões de validação não é buscado do grupo um documento que seja por eles validados e que
um consenso, mas sim a garantia que todos se sintam re- reflita o melhor possível aquilo que o grupo construiu con-
presentados naquilo que está escrito e que será divulgado. juntamente. Para tal, é importante buscar recuperar aquilo
Inclusive, partes do relatório foram retiradas e outras que se vivenciou, refletir sobre o dito, mas também sobre o
acrescentadas para que a validação fosse assegurada.. O não dito, para permitir nos momentos de validação, um pro-
relatório validado apresenta então opiniões distintas, às ve- cesso final de enriquecimento do conteúdo do documento
zes contraditórias, e também consensuais; vivências pes- que se tornará público. Espera-se que essa construção
soais e compartilhadas, que se constituiu em um discurso conjunta, onde de um lado é sistematizado o conteúdo das
comum representativo do trabalho daquele grupo. sessões, e de outro, os profissionais que conduziram as
Após essas sessões de validação incorporou-se as suges- sessões apresentam suas impressões e interpretações,
tões dos trabalhadores e foi redigido um relatório final, seja facilitador de processos de apropriação do sentido e da
entregue a todos os participantes e incorporado ao relató- emancipação dos trabalhadores.
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 33

Resultados Ser do CAPS

O contexto do trabalho no CAPS Os trabalhadores ao longo das sessões de reflexão usam


comumente a expressão"ser do CAPS"como sinônimo de
Os processos de produção dos serviços do CAPS, assim trabalhar no CAPS. Essa forma de apresentar sua pertinên-
como a maneira como é organizado o trabalho, fazem com cia reflete uma relação de trabalho que transcende um vin-
que, entre outros aspectos, o conteúdo das tarefas e o de- culo formal e demonstra um forte engajamento e compro-
senvolvimento das atividades estejam continuamente em misso. Mas denota também, uma sensação de pertinência
construção. Uma das características organizacionais mar- que supera relações de trabalho usuais e remete para os
cantes destes serviços é a adoção de um modelo hierárqui- trabalhadores responsabilidades e questionamentos que
co mais horizontal onde a cooperação nas equipes é funda- se confundem entre o que seriam as atribuições técnicas,
mental para a consecução dos processos de atenção. Há as responsabilidades e limites do trabalho deles e a partici-
ainda o desafio de criar e instaurar formas de conexão com pação no projeto político de construção do CAPS. Essa sen-
os outros serviços dos vários níveis de atenção que com- sação de pertinência vivenciadas pelos trabalhadores tam-
põem a rede de assistência à saúde. Como essas conexões bém os leva a um envolvimento particular com os usuários
são muito frágeis, a organização do trabalho tem sido cons- que vai para alem da clinica e/ou da reabilitação psicosso-
tituída muito mais por acordos internos da equipe. Assim, cial. Essa forma de envolvimento, como veremos a seguir,
cada serviço vai construindo e definindo seu processo de traz conseqüências nos processos de trabalho, para as re-
trabalho a partir da realidade em que está instalada e dos lações de sofrimento e prazer no trabalho e para a realiza-
recursos de que dispõe. ção de si e construção identitária. Mas afinal o que significa
A necessidade de criar novas formas de trabalhar, a defini- para esse coletivo"ser do CAPS”?
ção de novos processos de trabalho, a dificuldade de pres- Ser do CAPS foi, inicialmente, para a equipe, uma experiên-
crição de atividades em serviços onde as rotinas são mal cia de constituição de um novo serviço, a partir da hetero-
definidas, a falta de recursos necessários, fazem com que geneidade das formações, experiências, histórias e trajetó-
nem sempre os projetos terapêuticos que conseguem reali- rias profissionais de cada um. Foi aprender a lidar com uma
zar estejam de acordo com aquilo que é previsto na reforma diversidade de percursos e estar aberto para a construção
psiquiátrica e que norteia suas ações. Isso gera conflitos conjunta de um novo projeto de atendimento em saúde
entre o sentido e as crenças que esses trabalhadores têm mental. Em alguns casos, dependendo da trajetória ante-
em relação àquilo que consideram um atendimento de qua- rior, trabalhar neste local foi também ter a coragem para
lidade em acordo com os preceitos que defendem e aquilo enfrentar o choque, o receio e a estranheza impostos pelo
que podem efetivamente realizar. A construção de um mo- convívio tão próximo com a loucura. Foi ter consciência de
delo de atenção exige uma consistência interna entre os que essa forma de convivência impunha outro tipo de ade-
elementos que compõem o processo de trabalho – objetivo, são aos profissionais que viessem a trabalhar e aceitar os
finalidade, instrumentos e a ação dos trabalhadores. desafios de se inserir em um modelo de atendimento em
A mudança nos espaços físicos e de um modelo centrado na construção sem, por vezes, ter clareza de que serviço era
internação para outro, onde os usuários passam o dia e re- esse e que riscos trariam para aqueles que dele quisessem
tornam para suas casas no final da jornada com foco na re- participar.
abilitação psicossocial – práticas terapêuticas voltadas Nesse novo contexto de trabalho, ser do CAPS, significava
para a inserção dos usuários na comunidade - tal como pro- não somente tratar o quadro clínico dos usuários, mas tam-
posta no CAPS, geram a necessidade de definição de novos bém abordar questões relacionadas à sua cidadania contri-
processos de trabalho a serem construídos. São os con- buindo, assim, com sua re-inserção social. Isto
frontos e as contradições entre o processo de produção e significava"uma nova esperança”, uma nova forma de ativi-
criação do cotidiano das práticas assistenciais que vão pos- dade dentro da rede pública de atenção em saúde mental,"de
sibilitar o desenvolvimento de um novo modelo de atenção e resgate da dignidade do paciente”. Significava, também, fun-
de uma redefinição do processo de trabalho. dar um novo espaço, novas relações institucionais, novos
tipos de contratos terapêuticos, de atendimento e compre-
ensão clínica. Participar de um projeto dessa natureza im-
plicaria também na construção deles próprios, na revisão
de paradigmas relacionados a antigas formas de atenção
em saúde mental e um novo tipo de envolvimento com os
pacientes, mais próximo e sem os aparatos de proteção e
enquadre dos serviços psiquiátricos tradicionais.
O objetivo de promover a re-inserção dos usuários numa
34 O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S.

rede, nas relações comunitárias, na teia de relações sociais tos e deveres, portadores de doença mental, doentes? Os
que, em grande parte, já estavam deterioradas é parte do antigos códigos foram pouco a pouco colocadas em xeque,
trabalho do CAPs. É essa teia de sustentação do sujeito que repensados, alguns mantidos e outros simplesmente deixa-
precisava ser reconstituída e isso implica que os trabalha- das de lado por não darem conta da realidade dos usuários
dores se mobilizem para ir em direção à comunidade e se e dos atendimentos dentro dessa nova lógica de cuidado.
preocupem com a vida dos pacientes para além da institui- Logo constataram que"ser do CAPS"era vivenciar um dia-
ção. Não se trata, aparentemente, de uma simples questão -a-dia sem rotina, sem uma delimitação definida, onde as
de re-inserção, mas de considerar diversos aspectos rela- atividades podiam ser somente provisoriamente estrutura-
cionados à vida material, financeira, familiar e social dos das. Havia um esforço, por parte de alguns profissionais, de
usuários. criar uma rotina ou, ao menos, exceto compromissos pré-
Isso significa reconhecer que o usuário não é só um sujeito -agendados, tentar formatar um cotidiano de trabalho, cer-
com problemas de saúde mental, é também uma pessoa in- tos tipos de atendimento, certos modos de atenção ao usu-
serida num contexto social que traz consigo questões mais ário que atendessem às peculiaridades de cada um e da
amplas, tais como: moradia, emprego, comida suficiente ou variabilidade das situações que se apresentavam a todo
roupas, acesso ao sistema de saúde ou à educação. Isso momento. No entanto, a forma como o trabalho é organiza-
significa também reconhecer que essas problemáticas es- do e as características da clientela deixam os trabalhado-
tão dentro do escopo a ser abordado pelos trabalhadores do res perplexos, dada a fragmentação das atividades, impre-
CAPs. Tudo isso se mistura, se é que poderia estar separa- vistos e a descontinuidade de muitos projetos: eram
dos, da questão do sofrimento psíquico: são assuntos para interrompidos o tempo todo, situações emergenciais inter-
quem? Para os profissional do CAPs ou se trata de uma rompem atividades programadas, a falta de recursos mate-
questão para toda a sociedade? riais os obrigava a improvisarem e reorganizarem ativida-
Soma-se a isso o fato de que esbarram na discriminação da des planejadas com antecedência. Aqueles que conseguiam
qual a população de usuários é alvo, a começar pelo poder estabelecer uma determinada rotina enfatizavam a sua im-
público que a exclui:"a pessoa é portadora de problema de portância afirmando que se tratava de uma verdadeira ân-
saúde mental, ponto”. Essa discriminação ocorre mesmo cora, que servia como referência e os protegia psiquica-
dentro do sistema de saúde e quando é preciso fazer um mente.
encaminhamento para outros serviços, por exemplo, para Ser do CAPS era construir uma organização de trabalho
realizar exames clínicos relacionados a outras problemáti- onde a equipe precisava estar aberta para lidar com o inu-
cas que não as de saúde mental, encontram-se sérias difi- sitado e o imensurável. Mas, afinal, o que era inusitado?
culdades para conseguir atendimento. Para eles, depois de certo tempo de trabalho"nada é inusita-
Essa busca de condições para lidar com o usuário de uma do, tudo deixa de ser inusitado”. Isso exigia que fossem flexí-
maneira mais global significa construir novas formas de re- veis, mas que não perdessem a capacidade de se recompor,
lações. Vai-se buscar, então, trabalhar de formas variadas e, o que exigia novos modos de operar, novas decisões e muita
em outros cenários, espera-se construir um novo saber so- discussão. Precisavam saber trabalhar com a errância,
bre o fenômeno através de intervenções alternativas ao mo- criando, assim, estratégias pessoais e coletivas para dar
delo médico hospitalar. No entanto, construir essas práticas conta, organizar o que se desorganizava, dar suporte, es-
no dia-a-dia é uma tarefa permeada por incertezas, necessi- truturar.
dade de inventar novas formas de atuação, testá-las, de se As pessoas chegavam para trabalhar e já eram imediata-
deparar com dificuldades que, por vezes, transcendem ao mente absorvidas pelas demandas do trabalho, viviam
trabalho técnico e no limite, ao próprio CAPs. constantemente situações em que não conseguiam se orga-
Em diversos momentos, os profissionais deparam-se com a nizar, nem sempre se davam conta do que estava aconte-
necessidade de realizar práticas destoantes das que defen- cendo e, por vezes, não tinham tempo para refletir ou apro-
dem como, por exemplo, os agendamentos de consultas fundar discussões com a equipe e planejar suas ações. Isso
médicas isoladas com ênfase na medicação. A questão não os levava a se envolverem com situações emergenciais, a
é somente o tipo de atendimento realizado, mas as dificul- perderem o foco e a se questionarem quanto a própria es-
dades que encontram para criar os cenários e as formas de sência do CAPS.
aproximação com o usuário da maneira como gostariam. Devido a esses questionamentos, acrescido do tempo ele-
Por se tratar de um serviço público onde o ingresso é feito vado que os usuários permaneciam no CAPS, os trabalha-
por concurso para serviços de saúde não específicos, mui- dores apontavam críticas tais como: se não estariam afinal
tos foram trabalhar ali quase por acaso. Isso foi para eles construindo um"belo terricômio"(em alusão aos antigos ma-
uma oportunidade, um desafio, mas também, um espaço de nicômios)? Os profissionais se questionavam se os pacien-
choque e contraste com outras referências de atendimento tes embora ficassem mais internados no hospital, perma-
e de significação do paciente: sujeitos e cidadãos com direi- neciam agora internados no CAPS. Reconheciam, que
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 35

apesar dos seus esforços, muitos usuários acabavam sendo Ser do CAPs implicava fadiga e, por vezes, a sensação de
internados em hospitais, o que para alguns significa um fra- estar extenuado, dada a exigência contínua de atenção, de
casso do próprio sistema e do próprio trabalho. prontidão. Cada grito, cada batida de porta, cada atendi-
O tempo de permanência dos usuários e os limites do CAPS mento, cada atividade ou projeto desenvolvido requeria
remetia a equipe a outros questionamentos relacionados ao uma atenção constante. Era necessário prestar atenção e
conceito de alta, de desligamento do serviço e de re-inser- tentar dar sentido a cada ato, afinal, todos os momentos na
ção do usuário em seu meio social, o que no limite significa- instituição podiam e eram considerados terapêuticos:"é no
va para eles avaliar o êxito das estratégias terapêuticas acaso que surgem as coisas mais criativas, que elas aconte-
desenvolvidas. Isso causava um sentimento de estranha- cem”. Da mesma forma, crises, agressões, conflitos que
mento e de angústia quando atendiam os mesmos usuários exigiam a intervenção dos trabalhadores também podiam
durante anos e constatavam: eles continuam no serviço. ocorrer a qualquer momento e era necessário manter uma
Era necessário refletir toda a teia de sustentação, não só do vigilância contínua para dar conta do inesperado. Era preci-
sujeito que era atendido, mas de sua rede social, o que tor- so que diferentes competências estivessem disponíveis
nava a cura e/ou re-inserção da pessoa com transtorno para manter os enquadres terapêuticos e ajudar a evitar
mental um processo ainda mais complexo. Afinal, o que é problemas maiores devido a condutas inesperadas e, em
alta para esses usuários, ainda mais quando não encon- alguns casos, até mesmo agressivas por parte dos usuá-
tram outros recursos de cuidados e sustentação? rios. Todo esse esforço, esse estado de alerta, cansava e
Para alguns profissionais, o retorno de um determinado deixava os profissionais exauridos. Às vezes, eles eram
usuário era vivenciado como uma frustração e quando se obrigados a desprender uma energia maior do que a que
conseguia dar alta para algum deles isso era um momen- desejavam, o que, por vezes, os deixava irritados.
to de recompensa pelo esforço feito. Para outros, a volta Esse novo setting (no sentido psicanalítico) de trabalho, re-
de algum usuário era entendida como positiva, pois, ao forçado pela crença que os profissionais tinham de que era
buscar atendimento, ele demonstrava vínculo com o servi- necessário, como parte da relação terapêutica, do vinculo,
ço e com os profissionais que nele trabalhavam, era uma estabelecer uma relação de proximidade com os pacientes.
maneira de reconhecer que o CAPS e seus profissionais Significava, em alguns casos, deixar-se invadir,"aproximar e
poderiam ajudá-lo. entrar na estória e não segregar, imergir”. Mas, essa forma de
O conceito de alta foi recheado de questões e controvérsias, envolvimento traz a questão dos limites: onde e como dar o
pois, quando se avaliava as condições materiais, familiares corte? A carga era pesada e no fim do dia tinha-se a impres-
e sociais do usuário, compreendia-se por que era tão difícil são de que"foram atropelados por um caminhão”.
sair da instituição. Nesse momento, os profissionais pensa- Essa situação de trabalho os levava a terem que estar aten-
vam se, de alguma maneira, o CAPS não seria um espaço tos uns aos outros, socorrer colegas que pediam ajuda, que
mais leve, mais arejado na vida dessas pessoas, mais ade- buscavam apoio, pois,"ninguém dá conta sozinho”. Ser do
quado, uma forma de proteção. Certos usuários eram em- CAPS significava, então, criar uma equipe altamente solidá-
blemáticos nesse sentido, como um caso citado: além da ria e cooperativa para que a ajuda e o apoio fossem efetivos.
severidade do quadro, ela apresentava um agravante, se Criar uma teia de relações entre os trabalhadores que des-
ficasse em casa, ia ficar trancada, pois ela só tinha um ir- sem suporte para aqueles que, por alguma razão, em cer-
mão, cuja relação é difícil e a equipe não conseguiu traba- tos momentos, não estavam em condições para atender os
lhar essa questão. Para essa usuária, o CAPS não era ape- usuários. Isso produzia um clima de amizade, de afetivida-
nas um serviço de saúde mental: tratava-se de um local de de, de equipe, de apoio mútuo, mesmo que não fosse explí-
cuidados, de poder contar com pessoas que se ocupavam, cito ou previsto. Era visível, para os pesquisadores, como os
que davam visibilidade e sentido para a sua vida. profissionais eram acolhedores, solidários e continentes
Participar de um projeto dessa natureza,"ser do CAPS"era em relação às angústias e dificuldades que um ou outro
também preocupar-se com a existência dos usuários fora membro da equipe apresentava. Não censuravam e nem
do âmbito da instituição. De um lado, procurar melhorar a criticavam posturas que, em outro contexto, poderiam ser
vida do usuário, aumentar as possibilidades de trocas, fa- consideradas pouco técnicas e carentes da distância neces-
zendo-o circular nos espaços reservados para os ditos nor- sária para um bom cuidado. Dada a heterogeneidade de for-
mais; de outro, preparar a sociedade para recebê-lo nos mações e a diversidade de propostas e projetos e de situa-
vários locais públicos. De que adianta falar em re-inserção do ções que vivenciavam, a construção desse trabalho, exigia
usuário se não se coloca a presença da"loucura"no interior do cooperação, co-presença, colaboração, compreensão e
espaço público? A verdade é que a sociedade, de uma maneira flexibilidade.
geral, acha que o lugar do louco é no hospício. Logo, se ele anda Ser do CAPS exigia, então, um exercício complexo de esta-
no museu ou desenvolve atividades em outros espaços, ele é belecimento de limites entre o pessoal e o profissional: viver
visto com temor e receio. uma situação onde quase não havia enquadramento prote-
36 O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S.

tor e as fronteiras entre a vida profissional e pessoal eram nais? O contato que, para um, pode ser tranqüilo, para ou-
constantemente invadidas. Vários limites previstos em re- tro, pode gerar mal-estar.
lações usuais entre terapeutas e pacientes nem sempre Os trabalhadores reconheciam a importância do enquadra-
eram possíveis ou fáceis de exercitar em um contexto onde mento do contrato terapêutico como um limite essencial,
o contato entre profissionais e usuários era tão próximo e uma condição que se colocava para o usuário: atende-se a
prolongado. Conforme exemplificavam, no atendimento, os tal hora, por tanto tempo, em tais atividades. Esse contrato
terapeutas perguntavam para os usuários sobre sua histó- impunha limites que visavam manter a"acuidade de compre-
ria pessoal, familiar, as condições materiais, casa e espaço ender”, fundamental na atividade terapêutica. Então, quan-
geográfico onde viviam. Mas, os pacientes, por vezes, sub- do se buscava construir contratos, estava-se estabelecen-
vertiam e também perguntavam ao profissional sobre sua do condições para o exercício do trabalho clinico, para que
vida particular, sobre o seu fim de semana, sobre sua famí- a relação terapêutica fosse eficaz. No entanto, o contrato
lia, o que fez ou deixou de fazer. O dilema se instaurava: terapêutico envolvia acordos para situações por vezes mui-
responder ou não responder, até que ponto revelar, até que to complexas que exigiam que ele fosse flexibilizado. Pre-
ponto compartilhar? Ante a insistência, cortava-se o assun- senciar e entender situações complexas e saber agir com
to ou deixava-se invadir para não romper o vínculo, para tranqüilidade nas horas em que elas ocorriam era parte do
que pudesse haver um trabalho terapêutico. Afinal, existia cotidiano desses trabalhadores, mas isso exigia uma pre-
uma fronteira: proximidade não significa amizade. Mas, os sença de espírito que não tinha como ser prescrita, padro-
profissionais percebiam e se questionavam acerca da desi- nizada.
gualdade da relação, sabiam tudo da vida dos usuários, par- Outro incomodo relatado por um dos profissionais era rela-
ticipavam da vida deles e, ao mesmo tempo, acreditavam cionado à impotência técnica em relação às dificuldades de
que não deveriam se abrir tanto. Outro aspecto é que a equi- superação da doença mental. Tratava-se do momento em
pe reconhecia que compartilhar da sua vida privada e pes- que o profissional sentia que esgotava o seu conhecimento,
soal, para alguns, era natural, mas para outros, não era quando já havia pensado todas as possibilidades para aque-
vivenciado com a mesma tranqüilidade: o que é e o que deve le usuário e chegava um momento em que não conseguiam
ser consenso? mais ajudar ou sentiam que tinham esgotado o arsenal.
Os usuários testavam cada um dos profissionais, testavam Como continuar a trabalhar nessas horas?
a equipe como um todo, questionavam as possibilidades, os As peculiaridades próprias do CAPs influenciavam signifi-
limites de cada um. Às vezes, tinha-se a impressão de que cativamente na vivência de todos. O desenvolvimento do
era necessário conviver com uma espécie de"espelho”, pois projeto a que se propunham exigia que utilizassem de es-
o comportamento dos usuários colocava em xeque as bar- tratégias de cuidado intensivo e prolongado, o que requeria
reiras psicológicas, fazia aflorar as angústias e, ao mesmo uma imersão profunda tanto dos usuários como de toda a
tempo, permitia estar mais próximo e menos defensivo. Ha- equipe na continuidade da relação terapeuta-usuário de
via risco, medo, mas era incontornável, fazia parte da ex- maneira intensiva e prolongada. Isso afetava de maneira
pansão dos limites. significativa os trabalhadores, pois estar no CAPS significa-
No entanto, alguns limites deviam ser discutidos e pactua- va desenvolver um trabalho praticamente sem fim, dada a
dos. Relataram como exemplo, a necessidade de determi- natureza dos usuários e da sua permanência no serviço. O
nados acordos que a equipe deveria fazer: não poderia ha- fim, nesse caso, não estava relacionado a etapas concluí-
ver discordâncias quanto a determinadas regras e das, mas ao alcance de determinadas finalidades, que uma
procedimentos, todos deveriam atuar da mesma maneira, vez alcançadas abriam espaço para novas possibilidades e
não devia haver exceção. Se uns diziam não e outros diziam processos.
sim, os usuários iriam atuar nas brechas existentes entre Os trabalhadores acreditavam que a maneira de organizar o
os membros da equipe para driblar o"não”, para contornar trabalho devia ser tal que a instituição permitisse a integra-
a vivência frustrante que um limite exige. Orquestrar os li- ção dos usuários e não o isolamento, a exemplo do que
mites da equipe e os limites pessoais era um trabalho que acontecia nos hospitais psiquiátricos. Dessa forma, organi-
estava em constante estruturação. zaram o serviço de forma tal, que à exceção da farmácia,
Outro exemplo relatado se referia ao contato físico com os todos os demais espaços eram acessíveis aos pacientes
pacientes. Como lidar com limites entre hábitos da cultura todo o tempo. Essa forma de trabalhar acarretava na falta
e desejos mascarados, mas evidentes em rituais de cum- de espaços privativos para a equipe corroborando a falta de
primento social, como por exemplo um beijo? Como lidar limites entre os trabalhadores e os usuários Quase tudo
com esse tipo de comportamento quando se trata ocorria às vistas de todos, sem privacidade e não havia pra-
de"pacientes que não têm limites”? Afinal, não deixam de ser ticamente espaço para se proteger, refletir, se recompor,"dar
humanos e com desejos humanos! Como lidar quando o um tempo”. A forma como organizavam o trabalho contri-
contato provoca reações diferentes nos vários profissio- buía para que os limites entre relações profissionais e pes-
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 37

soais fosse muito difuso. Estabelecer fronteiras, espaço trabalhar, mas ficava a questão: até que ponto pode-se an-
onde pudessem discriminar o ato técnico do envolvimento corar um sistema de atendimento no esforço isolado das
necessário para este tipo de atendimento e, ao mesmo tem- equipes e não na construção de serviços e de uma rede efe-
po, proteger-se desta invasão para que ela não fosse exces- tiva? Seria importante que se aliasse também uma pers-
siva e danosa, era um desafio cotidiano para essa equipe. pectiva de melhora da organização de serviços, da consoli-
A própria peculiaridade da clínica das psicoses e a porosi- dação de um sistema de atendimento integrado que
dade que se produzia entre terapeutas e usuários criava fortalecesse as experiências e propiciasse um aprimora-
impasses e requeria que a equipe se auxiliasse para pre- mento das ações e das idéias.
servar o seu bem estar e permitir que o trabalho aconteces- Trazer para público a vivência do trabalho desta equipe per-
se. Todos estavam imersos neste espaço onde a fronteira mitiu conhecer seu modo de agir, seu saber-fazer, suas dú-
entre a sanidade e a loucura era tênue, em que os usuários vidas e como era importante, além do engajamento, se dei-
colocavam constantemente a equipe em xeque, em que a xar afetar pelo outro, isto é, trabalhar com compaixão. Com
constituição de uma rede de cooperação, praticamente sem a experiência acumulada e o sentido que encontraram nos
hierarquia, ajudava a transformar o sofrimento tanto em paradigmas que as originaram e que norteiam suas práti-
ações efetivas quanto em momentos de profunda satisfa- cas, construíram sentido no trabalho e estabeleceram pon-
ção. Isto requeria uma"recriação"constante das suas ações, tos de ancoragem que lhes permitiam encontrar a sinergia
o que criava uma sinergia a partir das diferentes competên- necessária para continuar trabalhando apesar das carên-
cias e do envolvimento de cada um, da experiência individu- cias, das dificuldades que um serviço dessa natureza impõe
al e coletiva. e da falta de uma rede de saúde mais constituída e que, de
Lá se buscava construir ações em situações de grande pe- fato, servisse de apoio.
núria, onde era necessário recriar constantemente as prá- A engenhosidade dos trabalhadores e a cooperação permi-
ticas de saúde; mas, sobretudo porque lá se constituía um tiam que o trabalho fosse realizado a contento, afinal, não
local de cuidados que buscava auxiliar os sujeitos a recons- havia um modo prescrito de trabalhar que desse conta dos
truírem a vida."O CAPS é um lugar de vida”, um lugar onde as eventos presentes neste tipo de cuidado. O exercício dessa
pessoas continuavam a trabalhar, apesar de todo o sofri- engenhosidade, a busca de soluções, pequenos sucessos
mento engendrado pelo trabalho vivido. cotidianos, a crença de que estavam produzindo um traba-
Ser do CAPS"era se importar”. O risco que se corria era que, lho de qualidade e o reconhecimento que encontravam, so-
na fratura a respeito da vida humana, as coisas que importa- bretudo junto às pessoas que eram atendidas e seus fami-
vam eram jogadas na lata do lixo, era preciso trabalhar onde a liares, seriam fundamentais para a construção da sua
vida se constituía, no momento em que a vida se constituía, própria saúde mental, pois são fontes da construção de
nessa vida em paralelo. Vivia-se absolutamente dentro do sentido, fonte de prazer para trabalhar. A maneira como a
âmago da vida humana, essa questão que era"como é que a equipe era organizada e as relações de cooperação hori-
gente vive numa sociedade que o povo, os seres humanos que zontal e vertical que se constituíram neste CAPS, propicia-
estão vivendo, não importa para nada”? Senão não estaria fa- ram também condições para o processo de realização de si
zendo nada que interessava, porque não seria um assunto da e da construção de um coletivo profissional (Dejours, 2009).
vida, seria um assunto da burocracia, seria um assunto do A integração da equipe, a cooperação e a solidariedade
mercado, que não interessava. É por isso que ela continuava, é eram pontos fundamentais que ajudavam os trabalhadores
por isso que fazia parceria com a equipe, era se importar, agir a se protegerem dos sentimentos de impotência, das coisas
com compaixão. que não davam certo, da inoperância do sistema que dificul-
tava um trabalho já tão árduo. A cooperação decorria de um
processo de confiança e reconhecimento dos pares que os
Discussão auxiliava a não entrarem em colapso, no sentido psíquico,
diante da falta de reconhecimento vertical. No caso do jul-
A equipe que participou deste processo era composta por gamento de beleza, que é feito entre pares, isso ocorria
profissionais que acreditavam em certas idéias relativas ao pela constituição de uma equipe que era capaz de enxergar
cuidado em saúde mental e que participaram ativamente da e de dar retorno sobre o trabalho bem feito do outro. Já no
construção do projeto político que originou a reforma psi- caso do julgamento de utilidade, este ocorria pelo reconhe-
quiátrica e os CAPS’s. Essas idéias modulavam as suas cimento da chefia imediata, que também fazia parte da
ações e eram constantemente confrontadas por uma reali- equipe (Dejours, 2003; Hubault & du Tertre, 2008). Aliado a
dade recheada de carências, insucessos, avanços e retro- esses aspectos, um profundo sentimento de gratidão (Moli-
cessos decorrentes da implantação de um projeto político nier, 2006, pp. 146-147) por parte dos pacientes e familiares,
dessa natureza. O forte componente de posicionamento po- reforçava esta possibilidade de encontrar sentido e prazer
lítico era importante para que as pessoas continuassem a no trabalho. Com relação ao reconhecimento de pares mais
38 O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S.

distantes, de integrantes de outras equipes e de outros dos aspectos organizacionais e de conteúdo das tarefas de
CAPS, os contatos eram pouco freqüentes, resumindo-se a cada profissional além dos aspectos psíquicos decorren-
alguns encontros organizados anualmente, dos quais, so- tes do trabalhar com pessoas que têm transtornos men-
mente parte da equipe participava reafirmando a sensação tais de maior ou menor gravidade, é indissociável do im-
de isolamento. Como conceitua Dejours, o reconhecimento, pacto disso tudo nas relações de sofrimento/prazer no
em especial do reconhecimento de beleza e o de utilidade trabalho da equipe. Isto resulta do fato de que a vivência
são elementos chaves para a construção identitária e saúde desses trabalhadores seja determinada pelos cenários
mental no trabalho (Dejours, 2004). definidos por todas estas variáveis e pela história singular
No que diz respeito às possibilidades de avaliação por ou- de cada trabalhador.
tras instâncias do sistema de saúde, a distância era signifi- Na organização do trabalho do CAPS há uma racionalidade
cativa, fato que dificultava um processo de avaliação base- clínica implícita que dá sentido à atividade, fruto de idéias e
ado no real do trabalho. Isto tem semelhança com outras de concepções que constituem uma maneira de ver as prá-
situações de trabalho em saúde pública, onde é muito difícil ticas em saúde mental e que dão sentido para os trabalha-
definir quais são os limites do cuidado (Sznelwar, Uchida & dores. Não significa que sejam situações onde não haja con-
Mascia, 2008). flitos e contradições, mas que há algo que serve como
Além disso, em se tratando de uma relação de serviço que argamassa, como fator de ligação para as pessoas da equi-
se constrói ao longo do tempo, o processo de avaliação é pe, como substrato para fomentar o tipo de atendimento
ainda mais complexo, pois há uma série de aspectos intan- proposto e, pelo menos em parte, praticado. As práticas
gíveis e imateriais característicos deste tipo de trabalho clínicas que os trabalhadores desenvolvem de acordo com o
que são dificilmente reconhecidos, ficando na invisibilidade modelo conceitual com o qual estão identificados norteiam
(du Tertre, 1999, 2002; Hubault & Bourgeois, 2001). a organização do trabalho e o conteúdo das tarefas e dão
Não se pode perder de vista que o"cuidar"destes profissio- sentido às ações desenvolvidas.
nais é desestabilizador, portanto, é importante que tenham Mesmo com todas as falhas e a falta de infra-estrutura,
acesso à supervisão e a apoio terapêutico quando necessá- apesar do sofrimento devido à lentidão na implantação das
rio, como estratégia de fortalecimento das equipes e conse- melhorias e à sensação de que poderiam fazer mais pelos
qüentemente de cada trabalhador em particular. Molinier usuários, há uma visão de futuro possível. Há uma sensa-
(2000, 2009) discute a questão do cuidar (care) colocando ção de que são uma espécie de vanguarda de um novo tipo
em evidência a importância da compaixão e das questões de de atendimento, mesmo que isto engendre dificuldades e,
gênero e demonstrando o caráter desconhecido dessa ati- muitas vezes, exija um comprometimento quase militante
vidade. dos integrantes da equipe.
Pelo fato de não existirem formalmente dispositivos de
apoio, seria importante que houvesse uma estrutura de
sustentação, aliada à construção de outros"espaços públi- Conclusão
cos de troca e de deliberação”, como a realização de mais
simpósios e seminários para que houvesse mais comparti- Acredita-se que, com esta ação em PDT foi possível ajudar
lhamento de experiências com outras equipes que atuam na compreensão das implicações para a saúde dos profis-
em outros CAPS, e com outras equipes de serviços de refe- sionais de trabalhar no CAPS e do novo modelo de cuidado
rência da região com as quais, devem constituir a rede de em saúde mental de modo a facilitar ações que ajudem a
atendimento. contribuir na implantação desse tipo de serviço e no seu
Viver um processo de mudança de paradigma, de criação de aprimoramento. Espera-se, ainda, contribuir para ações de
novas práticas assistenciais e de um modelo de atenção melhoria e de consolidação deste tipo de prática terapêuti-
significa ser ator e testemunha de algo mais profundo de ca, para que seja possível, com o engajamento dos traba-
desestruturação e de reconstrução. Este processo é longo lhadores, evitar que as vivências no trabalho se transfor-
e, muitas vezes, requer mais de uma geração de trabalha- mem em sofrimento patogênico, reduzindo o risco do
dores. Há ainda o risco sempre presente de retrocessos e, aparecimento de problemas de saúde entre os trabalhado-
sobretudo, de uma não implantação plena do modelo pro- res e de impedimentos para a realização do trabalho a con-
posto. Foi o que ocorreu com a equipe estudada, sentiam-se tento. Acreditamos que a invisibilidade desses aspectos
únicos, isolados e aguardavam a constituição do resto da pode prejudicar a própria implantação de um sistema de
rede com a qual pudessem somar e dividir esforços. Como saúde baseado em práticas de atendimento mais globais e
não é possível aguardar, diante das necessidades de atendi- que considerem os pacientes como cidadãos e sujeitos.
mento da comunidade, desenvolveram um sistema de cui- Ao se propiciar condições para o melhor conhecimento do
dado provisório e parcial em relação ao previsto. real do trabalho dessas equipes, é possível evidenciar e sen-
A precariedade existente nos serviços de saúde mental, sibilizar as pessoas responsáveis pelos níveis de decisão
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 39

sobre as políticas de saúde pública no Brasil, para que invis- resultados mensuráveis, definem metas que não corres-
tam na consolidação de uma rede de saúde mental que leve pondem à realidade. Um sistema de saúde contaminado por
em conta o trabalhar e a subjetividade dos trabalhadores. este tipo de ideologia de gestão é praticamente incompatí-
Acredita-se que a possibilidade de o trabalhador contribuir vel com a existência de espaços de trabalho como o CAPS
com seu conhecimento e com sua inteligência na constru- estudado que, apesar de todas as carências e dificuldades
ção de um trabalho melhor é a forma de superação e trans- poderia ser considerado como um exemplo a ser seguido.
formação do sofrimento engendrado pelo real do seu traba-
lho em prazer, garantindo condições para que aquilo que faz
continue a fazer sentido e que seja uma perspectiva de rea- Referências bibliográficas
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Resumo A proposta central deste artigo é a de
(coord.), Evaluation du travail, travail d’évaluation, Actes du séminaire
apresentar o resultado de uma ação em
Paris1 4-6 juin 2007 (pp.95-114). Toulouse: Editions Octarès,
psicodinâmica do trabalho (PDT), desenvolvida
Lancman S, Pereira LMF, Uchida S, Sznelwar LI, et all. (2007).
com uma equipe de trabalhadores de um Centro
Transformação do modelo de atenção pública em saúde mental e
seus efeitos no processo de trabalho e na saúde mental dos
de Atenção Psicossocial (CAPS), localizado na
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O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 41

FR EN

Travailler dans des services de santé Working at mental health services: between
mentale: entre la souffrance et la suffering and cooperation
coopération
Abstract The main purpose of this paper is to
Résumé Le but de cet article est de présenter le present the result of an action in Psychodynamic
résultat d'une action en psychodynamique du of Work, developed within a team of workers of a
travail (PDT), développée avec une équipe de Psychosocial Center of Attention (CAPS - Centro
travailleurs d'un Centre d’Attention Psychosociale de Atenção Psicossocial), located in São Paulo,
(CAPS), situé à São Paulo, Brésil. Il s'agit d'un Brazil. It is a specialized facility in mental health
service spécialisé dans les soins de santé mentale attention which prioritizes people with severe and
visant principalement les personnes ayant des persistent mental disorders. We tried to
troubles mentaux graves et persistants. En comprehend the workers experience, their
développant une action en PDT, le but a été de relationship between psychic suffering and
comprendre les expériences des travailleurs, la pleasure at work, as well as the strategies to gain
relation entre souffrance et plaisir dans le travail, results, identifying critical factors at work and
ainsi que les stratégies élaborées pour atteindre ways to overcome these difficulties, through a
les résultats, en identifiant les facteurs critiques et Psychodynamic of Work approach. The creation of
les moyens de les surmonter. La création a collective space of discussion that enabled the
d'espaces de discussion collective pour identifier identification and gave visibility to work strategies
et donner de la visibilité au travail et aux stratégies created by the collective and individual intelligence
mises en place grâce à l'intelligence individuelle et of subjects in their concrete experience is
collective des sujets à partir de leur expérience fundamental to this approach. We consider that the
réelle est un point clé de cette approche. La inclusion of workers experience to the
valorisation de l'expérience des travailleurs dans improvement of Brazilian mental health public
la mise en œuvre des politiques publiques policy implantation allows an improvement of the
concernant la santé mentale au Brésil permettrait institutions.
une amélioration du rôle des institutions.
Keywords public system of health, mental health
Mots-clé système public de santé, santé mentale and work, cooperation and team work,
et travail, coopération et équipes de travail, action Psychodynamic of Work approach.
en psychodynamique du travail.

Como referenciar este artigo? Manuscrito recebido em: Janeiro/2010


Aceite após peritagem: Junho/2011
Uchida, S., Sznelwar, L.I.l., Barros, J.O., & Lancman, S. (2011).
O trabalhar em serviçosz de saúde mental: entre o sofrimento
e a cooperação. Laboreal, 7, (1), 28-41.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV65822353389453854:2
42 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 42-55

PESQUISA EMPÍRICA
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho

Marina Petrilli Segnini1 & Selma Lancman2

1. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Resumen Este artículo se inserta en el ámbito de
Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia los estudios que articulan trabajo y salud mental.
e Terapia Ocupacional Su objetivo fue analizar la relación del bailarín y la
R. Cincinato Braga, 184, apto 51, organización de trabajo en danza a la luz del
CEP 01333-010 São Paulo, SP constructo teórico de la psicodinámica del trabajo
Brasil (PDT). Este análisis se enfoca en las maneras a
marsegnini@gmail.com través de las que los trabajadores de la danza
movilizan sus subjetividades al buscar realizar sus
2. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
actividades laborales cotidianas en el Ballet de la
Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia
Ciudad de São Paulo, compañía pública de danza
e Terapia Ocupacional
vinculada al Teatro Municipal de São Paulo
R. Cincinato Braga, 184, apto 51,
(Brasil). A partir de un estudio cualitativo,
CEP 01333-010 São Paulo, SP.
realizado a través de entrevistas y observación del
Brasil
proceso de trabajo, se buscó comprender las
lancman@usp.br
estrategias movilizadas subjetivamente por los
bailarines al enfrentar el sufrimiento vivido en el
trabajo. Se puede concluir que entre las
estrategias encontradas por este grupo de
trabajadores, está la búsqueda de una escisión
entre el cuerpo biológico ejercitado de forma
técnica y utilizado como instrumento de trabajo y
el cuerpo erógeno, escenario de las vivencias
subjetivas.

Palabras clave salud mental, trabajo, danza,


sufrimiento.
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman 43

I. Introdução temporâneo – articulando-as com as mudanças na esfe-


ra da produção.
O trabalho artístico remonta aos primeiros registros da Os artistas da dança (coreógrafos e bailarinos), objeto do es-
história da cultura; no entanto, até o presente momento tudo proposto neste artigo, representam o menor grupo de
histórico é pouco analisado na perspectiva das relações trabalhadores no interior do conjunto do grupo de Profissio-
que os artistas vivenciam no processo da construção do nais de Espetáculos e das Artes, no Brasil, equivalendo a
trabalho e das exigências que esse traz. Os artistas são 3,3% dos trabalhadores (Segnini, 2010). Conforme a Classifi-
freqüentemente representados de forma pré-conceituo- cação Brasileira de Ocupações (CBO), tal grupo de artistas se
sa e plena de estereótipos:"egocêntricos, caricaturais, subdivide em: assistente de coreografia, bailarino (exceto
nervosos, indisciplinados, instáveis, debochados, extra- dança popular), coreógrafo (bailarino coreógrafo, coreógrafo
vagantes, obcecados por suas obras e extremamente di- bailarino), dramaturgo de dança, ensaiador de dança e pro-
fíceis na convivência"(Wittkower, 1991). Outra dimensão fessor de dança (maître de ballet). As condições gerais do
equivocada refere-se ao trabalho de criação como sendo exercício deste grupo profissional são:"Trabalham nas áreas
um processo individual e solitário, indiferente à opinião de criação, pesquisa e ensino. Suas atividades são sempre
do público e ao sucesso (Menger, 2005). A criação da obra realizadas em equipe e podem se desenvolver tanto em com-
artística, nestas representações, é associada a um es- panhias estáveis de bailado, em que predominam os vínculos
pasmo de loucura, genialidade e melancolia individual formais de trabalho, estabilidade no emprego e possibilidade
(Prigent, 2005). de construir uma carreira, como em cooperativas ou como
No entanto, as expressões artísticas implicam em trabalho autônomos, realizando produções independentes. Esta últi-
e sendo assim, são atividades reconhecidas, transmitidas, ma é a situação da grande maioria dos profissionais, os
apreendidas e organizadas. E como toda a atividade, obede- quais, em geral, se auto-financiam, costumeiramente, exer-
ce a regras, insere-se numa divisão do trabalho, em organi- cendo atividades como professores, terapeutas etc. conco-
zações, profissões, relações de emprego e carreiras profis- mitantemente à dança"(CBO, 2002).
sionais (Becker, 2006 cit in Segnini, 2009). Nesse sentido, a A formação profissional exigida não precisa ser necessa-
arte é compreendida pertencendo ao mundo do trabalho e, riamente formal. O artista da dança está sempre em busca
assim sendo, pode ser objeto de estudo científico para os do aperfeiçoamento de suas técnicas e essas são múltiplas.
campos teóricos que analisam o trabalho. As razões que levam um artista escolher a uma determina-
No Brasil, o trabalho artístico tem sido discutido no âm- da técnica são inúmeras e variam conforme a necessidade
bito das ciências sociais. Destacam-se, dentre outros, de um determinado momento: procurar uma técnica cuja
alguns pesquisadores e grupos que, nos últimos anos, estética tenha a ver com o ideal de corpo do personagem,
estudam e refletem sobre esse campo. Segnini (2007, com o ideal definido pelo coreógrafo ou outra necessidade
2008, 2009, 2010), socióloga do trabalho, coordena uma artística. Este aprendizado contínuo não é apenas encon-
equipe que analisa o mercado e as condições de trabalho trado no interior das instituições formais de ensino, ocorre,
artístico. Tais pesquisas se configuram em estudos com- sobretudo, na esfera informal. É oriundo da experiência,
parativos, quantitativo e qualitativo entre o Brasil e a das múltiplas vivências no qual o tempo é fundamental
França no que tange as condições do trabalho artístico (Strazzacappa, 2006).
(música e dança) nestes dois países, por meio do referen- A organização do trabalho em dança exige constante reorga-
cial teórico da sociologia do trabalho. Os resultados des- nização dos processos de produção; impõe flexibilidade ele-
sas pesquisas informam que o trabalho artístico é predo- vada ao trabalhador artista. Há necessidade da existência de
minantemente precário e submete os artistas a uma um"exército artístico de reserva altamente qualificado”, pré-
instabilidade permanente frente às possibilidades de tra- -condição para a manutenção desta forma de organização do
balho e de remuneração. Já no campo mais específico da espetáculo ao vivo, uma vez que é necessário recrutar de
dança, destacamos duas pesquisadoras. A primeira é maneira rápida, por meio de redes de conhecimento, audi-
Strazzacappa (2001, 2006), bailarina e educadora que ar- ções (identificação dos melhores artistas para cada espetá-
ticula nos seus estudos dança e educação. As pesquisas culo) e de acordo com diferentes possibilidades de remune-
desenvolvidas por essa autora analisam e criticam as ração – cachês – (Menger, 2005 cit in Segnini, 2008).
maneiras pelas quais está embasada a formação em O processo de construção de um espetáculo exige dupla di-
dança. Em segundo lugar, Gadelha (2006) em sua disser- mensão dos bailarinos: trabalho individual e coletivo. No
tação de mestrado analisa o trabalho da dança sociologi- trabalho individual é observado o desenvolvimento da técni-
camente ao longo da história, por meio do referencial ca; o conhecimento do próprio corpo, pesquisa sobre movi-
teórico de Norbert Elias, Michel Foucault, Félix Guattari mento, obtenção de repertório de movimento por meio da
e Gilles Deleuze. Essa autora analisou as transforma- investigação individual e manutenção dos requisitos em
ções das expressões da dança – do balé clássico ao con- termos biológicos. Os bailarinos e bailarinas estão em
44 Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

constante movimento, uma vez que o instrumento de traba- Aproximar o bailarino do esportista profissional, particu-
lho é o corpo, é preciso mantê-lo sempre pronto para o tra- larmente em termos de performance física, é oportuno
balho (Segnini, 2006). É exigido desses profissionais ativi- porque, para ambos, esta em jogo a relação com o corpo
dades físicas diárias realizadas individualmente como: e a breviedade na carreira. Como para o esportista, o cor-
musculação, alongamento, e outras técnicas de desenvolvi- po do bailarino é adaptado muito jovem em função das
mento corporal. Assim como é de extrema necessidade o performances realizadas. O bailarino deve realizar um
trabalho realizado coletivamente sob as orientações do co- treinamento coletivo, organizado pelo coreografo com o
reógrafo, com o objetivo de se aprender o movimento de objetivo de adaptá-lo fisicamente a um determinado ges-
determinada coreografia (ensaios). A dança se aprende e to, como um treinador faz com seus atletas. Como entre
apreende-se pelo trabalho do corpo. os esportistas, o engajamento físico é sinônimo de risco
O bailarino, artista cênico, encontra em seu próprio corpo o físico (Rannou & Roharik, 2006, p.130, tradução livre).
objeto para fabricar a sua arte, o seu trabalho. Talvez possa
parecer redundante informar que a dança é uma atividade A carreira do bailarino pode ser resumida em quatro grandes
cujo seu instrumento principal é o corpo do artista, contudo etapas: a primeira, encantamento com a atividade; muito co-
é relevante informar que o artista da dança é desprovido de mumente, engajam-se precocemente na profissão por meio
outro meio para produzir o seu trabalho. E tal instrumento de um ciclo de formação informal especializada, escolas de
– seu corpo- que o acompanha onde quer que ele esteja; em dança, por exemplo. O segundo momento é decisivo na car-
cena ou fora dela. Observa-se, sobretudo nos bailarinos do reira do bailarino, no qual o profissional buscará se colocar
balé clássico, cuja técnica é muito comumente aprendida no mercado e se estabilizar enquanto artista da dança. Nesta
desde criança, o quanto seus gestos e movimentos, mesmo trajetória, o terceiro período é caracterizado pela maturida-
fora do palco ou dos ensaios, é marcado pelas técnicas da de e reconhecimento profissional. No entanto, o quarto mo-
dança clássica. mento tende a ser marcado por complicações profissionais
relacionadas, sobretudo com o corpo. Anunciando assim a
O artista cênico possui um único corpo com o qual está saída do palco (Rannou & Roharik, 2006).
tanto em cena como na vida cotidiana. Todas as técni- A relação entre o amadurecimento profissional e a necessi-
cas adquiridas para melhorar seu trabalho de perfor- dade de um corpo jovem expressa um potencial conflito
mer (…) permanecem com ele, pouco importa onde ele permanente na profissão. A angústia face a instabilidade do
se encontra. (…) O corpo, com sua cultura, com sua instrumento de trabalho está presente o tempo todo. O bai-
técnica, seus símbolos, constitui uma unidade. Uma larino é sempre sujeito a um acidente de trabalho que dani-
vez a técnica adquirida ela lhe pertence (Strazzaca- fica seu maior e mais precioso instrumento de trabalho. Da
ppa, 2006, p.44). mesma forma, o envelhecimento é fato inerente à vida. A
curta carreira do bailarino o coloca num estado de urgência
Os problemas de saúde física para os bailarinos expressam profissional e numa relação com o tempo presente frequen-
a relevância do corpo enquanto instrumento de trabalho. temente exacerbadas (Rannou & Roharik, 2006).
Assim, fraturas de ossos, fadiga muscular, problemas de O amadurecimento profissional é um prelúdio do fim da ati-
articulações e região lombar são queixas freqüentes (Ran- vidade. Desta forma, é observada uma relação ambígua:
nou & Roharik, 2006). É por esta razão, que evidencia-se a quanto mais o profissional amadurece e se torna mais
curta duração deste trabalho; o corpo submetido a um ex- cônscio de suas habilidades e fragilidades, também se de-
cesso de atividade física tem um limite. É necessário, tam- para com a proximidade de ter que se retirar da cena em
bém um cuidado alimentar para que este corpo seja magro, razão de um corpo que se fragiliza biologicamente e é me-
leve e adaptável a qualquer movimento solicitado. nos valorizado no mundo da dança. A preocupação com o
Alguns autores associam o trabalho do bailarino com o tra- futuro profissional é freqüente entre os bailarinos. Ativida-
balho dos esportistas profissionais, no que concerne a ele- des como docência, criação coreográfica, gestão e produ-
vada carga horária de exercícios corporais diários, somada ção artística são algumas possibilidades encontradas no
a uma pressão por desempenho, no sentido de qualidade e mercado de trabalho, para estes profissionais a posteriori,
precisão do movimento. Desta forma, tanto para os espor- mas que já se caracterizam como novas profissões, reque-
tistas profissionais como para os profissionais da dança, a rem outras habilidades e qualificações.
carreira é comumente curta, praticada por jovens, uma vez
que tal ritmo de trabalho é mais facilmente tolerado por um (…) a curta carreira dos bailarinos é constituída de uma
corpo jovem. Em 2004, 80% dos profissionais da dança se- dupla tensão permanente: consolidar sua posição den-
gundo o Ministério do Trabalho e Emprego, estavam na fai- tro de sua rede profissional e seu universo vocacional e,
xa etária até trinta e nove anos de idade (Segnini, 2008). a preparação de seu futuro após a dança (Rannou & Ro-
harik, 2006, p.17, tradução livre).
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman 45

Ao analisar as características acima mencionadas sobre o dores do ponto de vista psíquico para realizarem suas ativi-
trabalho do bailarino as autoras indagaram sobre os pro- dades laborais, apesar de todas as dificuldades que
cessos psíquicos engendrados por estes trabalhadores ao enfrentam no trabalho? A partir deste questionamento é
realizarem suas atividades. O diálogo entre a organização elaborada a complexa categoria normalidade sofrente que
do trabalho em dança e a subjetividade do trabalhador bai- informa as estratégias defensivas, construídas individual
larino é um campo que pode ser aprofundado. Com o intuito ou coletivamente, contra o sofrimento patogênico vivencia-
de expandir as reflexões nessa área, realizou-se um estudo do no trabalho. Tal categoria pode ser considerada um divi-
cujo objetivo foi analisar as maneiras pelas quais os traba- sor de águas entre a PDT e a psicopatologia do trabalho. A
lhadores da dança mobilizam suas subjetividades ao buscar psicopatologia do trabalho é uma disciplina elaborada nos
realizar suas atividades laborais cotidianas. Enfim, preten- anos 1950-1960, na França, por autores como L. Le Guillant,
de-se com este artigo analisar a relação entre o trabalha- C. Veil, P. Sivadon, A. Fernandez-Zoila, J. Bégoin (Billiard,
dor bailarino e a organização do trabalho em dança à luz do 2001). Tal teoria pressupunha que a doença mental no tra-
constructo teórico da psicodinâmica do trabalho (PDT). No balho é causada pelos constrangimentos impostos pela or-
Brasil, existe outra pesquisa realizada com este objetivo; ganização do trabalho ou por problemas psíquicos pré-
Santos (2008) articulou, em sua dissertação de mestrado, a -existentes das pessoas. A psicodinâmica do trabalho deixa
relação psicodinâmica entre o sujeito bailarino e a organi- de focalizar o sofrimento no trabalho como produto de uma
zação do trabalho em uma companhia de dança contempo- relação de causa e efeito das relações de poder vivenciadas
rânea, em Goiás. Tal autora concluiu que a forma aparente- na esfera da exploração do trabalho sobre a subjetividade
mente naturalizada, banalizada como os bailarinos do trabalhador, e passa a analisar o sofrimento e as defesas
vivenciam a dor é uma estratégia coletiva de defesa face à contra os aspectos nocivos á saúde mental da organização
necessidade destes trabalhadores enfrentarem e supera- do trabalho. A normalidade sofrente, por sua vez, expressa a
rem a dor física para poderem trabalhar, uma vez que o tra- racionalidade subjetiva das condutas e das ações dos traba-
balho da dança implica num constante e intenso trabalho do lhadores. A psicodinâmica do trabalho é germinada nesta
corpo. No entanto, no estudo proposto neste artigo anali- relação com o trabalhar, entendida como uma relação in-
sou-se outra dimensão da dor que será melhor explicada no dissociável entre o sujeito que trabalha e o ato de trabalhar
item que se refere aos resultados. com todas as relações inerentes a esse confronto e não so-
mente entre a patologia e a normalidade (Dejours, 2004a).
Partindo da concepção de sujeito, tal como compreendido
II. Referencial teórico pela psicanálise, a PDT compreende que o trabalhador não
é passivo frente aos constrangimentos organizacionais,
A psicodinâmica do trabalho (PDT) propõe que as relações sendo capaz de se proteger dos efeitos deletérios da orga-
no trabalho são fundamentais para a construção da subjeti- nização do trabalho sobre a saúde mental por meio de es-
vidade do sujeito adulto, não somente nos espaços de traba- tratégias defensivas. Segundo a psicanálise, a defesa e os
lho, mas do sujeito como um todo. Tal teoria ao articular mecanismos de defesa se constituem em processos in-
saúde mental e trabalho na contemporaneidade elaborou conscientes que tem por função evitar o desequilíbrio psí-
categorias analíticas que demonstraram ser uma das mais quico, auxiliando o ego na elaboração dos conflitos psíqui-
significativas para analisar as relações estabelecidas entre cos. Desta forma, o ego mantém certo controle face às
o sujeito trabalhador bailarino e a organização do trabalho representações e afetos insuportáveis e inaceitáveis para
em dança, objetivo deste artigo. ele (forças pulsionais). Neste sentido, a defesa e os meca-
A PDT nasce de uma prática de ação no campo e de um diá- nismos de defesa são fundamentais para a manutenção da
logo entre a psicopatologia do trabalho, a ergonomia, a psi- saúde psíquica do sujeito, no entanto o uso excessivo de tais
canálise, a sociologia, a fenomenologia, a antropologia e a processos pode comprometer o equilíbrio psíquico, uma vez
filosofia. Ela tem como pedra mestra o livro publicado em que originam sintomas. Mecanismos de defesa e defesa,
1980, na França, intitulado Travail, usure mentale, de autoria para a psicanálise, são conceitos complexos que ora parti-
do Christophe Dejours. Nesse livro, ainda que a psicodinâ- cipam de processos da construção do aparelho psíquico,
mica do trabalho não seja assim nomeada, o autor esboça ora são processos que auxiliam na manutenção da saúde
as premissas norteadoras da teoria. O autor propõe a clíni- psíquica, além do que estão na base da construção dos sin-
ca do trabalho, cujo objetivo é compreender o conflito entre tomas (Laplanche e Pontalis, 2001; Schmid-Kistkis, 2002).
a organização do trabalho e o funcionamento psíquico do Desta forma, Dejours ao analisar a maneira pela qual o tra-
trabalhador. A PDT questiona como as pessoas, apesar de balhador se defende psiquicamente das dificuldades im-
submetidas a diversos constrangimentos relacionados às postas pela realidade da organização do trabalho, define tal
condições e à organização do trabalho conseguem traba- processo como construção de estratégias de defesa e não
lhar sem adoecer psiquicamente. Como fazem os trabalha- como mecanismos de defesa, uma vez que este último tem
46 Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

outras implicações e sentidos na teoria psicanalítica, con- mais se equilibrar contra as forças desestruturantes oriun-
forme explicitado. das do sofrimento vivenciado no trabalho. Depressão, es-
É importante salientar que para a PDT as estratégias de de- tresse, drogadição, burn-out, karoshi (morte súbita no local
fesa, não são analisadas como aspectos positivos que man- de trabalho), suicídio no local de trabalho (Dejours & Bégue,
tém o trabalhador produtivo apesar de todas as dificuldades 2010) são patologias que tem sido relacionadas com o sofri-
encontradas no trabalho, mas como um processo que de- mento psíquico excessivo vivenciado no trabalho. Conforme,
sencadeia no estado de normalidade sofrente, que não é, resume pesquisadores da área da PDT, no Brasil:
em hipótese alguma, ausência de sofrimento. Ela expressa,
aparentemente, a idéia de equilíbrio saudável entre as pes- (…) A patologia surge quando se rompe o equilíbrio e o
soas. Afinal, ela permite que os trabalhadores pertencen- sofrimento não é mais contornável. Em outros termos,
tes a uma determinada organização, mesmo que submeti- quando um certo trabalhador utilizou todos os seus re-
dos a sofrimentos patogênicos, realizem suas atividades, cursos intelectuais e psico-afetivos para dar conta da
sem causar prejuízo ao processo de trabalho. No entanto, atividade e demandas impostas pela organização e per-
tal normalidade é mantida à custa de muito sofrimento. A cebe que nada pode fazer para se adaptar e/ou transfor-
normalidade sofrente não deve ser confundida com estado mar o trabalho (Lancman & Uchida, 2003).
saudável (Lancman & Uchida, 2003).
As estratégias de defesa e a normalidade sofrente possuem
ainda outra função que, todavia, pode ser explorada pelas or- III. Método
ganizações do trabalho; elas atenuam o sofrimento, sem
proporcionar a cura. Elas bloqueiam a reflexão do trabalha- Esta pesquisa se insere no âmbito da pesquisa qualitativa e
dor sobre o seu sofrimento."Assim, as estratégias defensivas se configura num estudo de caso – o do Balé da Cidade de
desempenham o papel de freio à reapropriação, à emancipa- São Paulo (BCSP). Tal companhia de dança foi criada em
ção e à mudança."(Dejours, 2004a, p.54). Desta forma,"o que 1968 como um dos corpos estáveis do Theatro Municipal de
é explorado pela organização do trabalho não é o sofrimento, São Paulo, vinculado à Prefeitura da Cidade de São Paulo.
em si mesmo, mas principalmente os mecanismos de defesa Em 1974, o BCSP se transformou em uma companhia de
utilizados contra este sofrimento"(Dejours,1987, p.119). dança contemporânea. Essa mudança, não apenas repre-
O sofrimento, contudo, para a PDT, não é somente fonte de sentou a realização de um trabalho artístico diferenciado
desorganização psíquica, ele é entendido, também, como em relação ao balé clássico, mas implicou, também, em no-
inerente ao trabalho, uma vez que frente aos desafios de vas formas de relações no trabalho. A partir de então, os
realizar algo novo, o sujeito entra em um conflito,um estado bailarinos não são mais diferenciados hierarquicamente,
de angústia, se ele conseguirá realizar ou não tal atividade. tal como se organizavam as companhias de balé clássico e
E ao se lançar na resolução deste conflito, o sujeito cria o todos eles passam a receber o mesmo salário. Apesar de
novo. A criação e a realização de si mesmo no trabalho es- uma aparente estabilidade, os contratos são temporários,
tão intimamente relacionadas e propiciam o prazer no tra- renovados periodicamente, na maioria dos casos de seis em
balho. Desta forma, para a PDT, o sofrimento no trabalho se seis meses. Esse grupo de trabalhadores, na medida em
desdobra em duas possibilidades: sofrimento criador, que não são contratados formalmente segundo a legislação
quando o indivíduo tem meios para se desenvolver e sofri- trabalhista brasileira (CLT - Consolidação das Leis do Tra-
mento patogênico quando o mesmo não oferece saídas e balho), não tem direitos sociais assegurados, tais como fé-
alternativas de superação. rias, licença maternidade/paternidade, afastamento remu-
A normalidade sofrente é formada pelas estratégias defen- nerado por doença, aposentadoria entre outros benefícios
sivas contra o sofrimento patogênico vivenciado no traba- assegurados pelas leis trabalhistas brasileiras.
lho, decorrente de um equilíbrio instável, precário entre No entanto, a situação acima descrita significa, no instável
esse sofrimento e as defesas contra ele. Nesse processo mundo do trabalho em dança, estabilidade financeira e pro-
psíquico a elaboração inconsciente das estratégias de defe- fissional para os bailarinos. Essa situação faz com que per-
sa é fundamental para que o sujeito possa viver sem ter que tencer ao grupo dos bailarinos profissionais do BCSP, seja,
se afrontar com o sofrimento desestruturante. Quando o no meio artístico, altamente almejado, tanto pelo seu reco-
sofrimento patogênico não gera uma ruptura do equilíbrio nhecimento social, quanto pela competência artística atri-
psíquico, trazendo à tona uma descompensação psicopato- buída a seus bailarinos. Além do que o BCSP representa um
lógica, é porque contra ele o sujeito empregou poderosas espaço de trabalho cujas condições de trabalho são consi-
defesas que o permitiram controlá-lo (Dejours, 1999). deradas diferenciadas positivamente pelos artistas, na me-
A patologia é trazida à tona quando as estruturas defensivas dida em que lhes é possibilitado acesso a um trabalho per-
que permitiam a manutenção da normalidade sofrente não manente. As autoras escolhem realizar esta pesquisa no
mais a sustentam. Ou seja, o aparelho psíquico não consegue BCSP, uma vez que, conforme descrito acima, esse se cons-
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman 47

ENTREVISTAS OCUPAÇÃO NO BCSP BALÉ CANELA FINA SEXO IDADE FORMAÇÃO INICIOU NA DANÇA TEMPO NO BCSP

Bailarina I Bailarina Elenco 1 Mulher 34 anos Balé Clássico 9 anos de idade 15 anos

Bailarina II Bailarina Elenco 2 Mulher 37 anos Balé Clássico 9 anos de idade 8 anos

Afastada
Bailarina III Bailarina Mulher 29 anos Balé Clássico 14 anos de idade 2 anos
(cirurgia no joelho)

Bailarina e membro
Bailarina IV Direção do BCSP Mulher 48 anos Balé Clássico 13 anos de idade 30 anos
da direção do BCSP

Bailarino I Bailarino Elenco 2 Homem 31 anos Balé Clássico 13 anos de idade 7 anos

Bailarino II Bailarino Elenco 2 Homem 32 anos Balé Clássico 15 anos de idade 8 anos

Coreógrafo
Coreógrafo Coreógrafo Homem 33 anos Dança 13 anos de idade 3 meses
convidado

Dramaturga
Dramaturga Dramaturga Mulher 32 anos Teatro 15 anos de idade 3 meses
convidada

Fisioterapeuta Fisioterapeuta Fisioterapeuta Mulher 45 anos Fisioterapia 8 anos

Quadro I – Dados gerais dos entrevistados.

titui em um espaço de trabalho no campo da dança que per- Categorizar implica isolar elementos para, em seguida,
mite que um coletivo de bailarinos sobreviva de dança, sen- agrupá-los. As categorias devem ser: (a) exaustivas,
do, portanto, caracterizado como um grupo de profissionais isto é, devem permitir a inclusão de praticamente todos
da dança. os elementos, embora nem sempre isso seja possível;
(b) mutuamente exclusivas, ou seja, cada elemento só
As técnicas escolhidas foram entrevistas individuais e ob- poderá ser incluído em uma única categoria; (c) objeti-
servação do processo de trabalho. As entrevistas realizadas vas, isto é, definidas de maneira precisa, a fim de evitar
foram abertas, duraram em média noventa minutos, foram dúvidas na distribuição dos elementos; (d) pertinentes,
registradas em gravador digital e transcritas pelas autoras. ou seja, adequadas ao objetivo da pesquisa (Vergara,
Quatro bailarinas, dois bailarinos, coreógrafo, a dramaturga 2006, p.18).
e uma fisioterapeuta da companhia analisada participaram
voluntariamente. O objetivo de realizar as entrevistas com o O método proposto por Bardin prevê que as categorias ana-
coreógrafo, a dramaturga e com a fisioterapeuta foi buscar líticas devem emergir do próprio discurso dos entrevista-
obter maior compreensão do campo pesquisado. As análises dos. O material coletado permitia diversos focos de análise.
contidas neste artigo são fundamentalmente oriundas das Nessa pesquisa, opta-se por privilegiar e destacar somente
falas dos bailarinos e bailarinas do BCSP e da observação do algumas das categorias relacionadas ao sofrimento psíqui-
processo de trabalho. co dos bailarinos correlacionando-as com a categoria es-
tratégia de defesa elaborada pela PDT e descrita na intro-
As entrevistas foram analisadas segundo o método de aná- dução deste artigo. O quadro abaixo explicita os temas que
lise de conteúdo proposto por Bardin (1977). Escolhemos a nortearam a categorização das entrevistas analisadas. A
análise de conteúdo por ser um método de pesquisa reco- partir da análise destes temas elegeram-se alguns que de-
nhecido pelo meio científico e uma maneira de analisar com monstraram ser mais relevantes. Realizou-se uma articu-
acuidade a fala dos trabalhadores que participaram desta lação entre tais temas e a psicodinâmica do trabalho.
pesquisa. O objetivo da análise de conteúdo é dividir as falas
dos entrevistados em categorias e temas, de tal forma que
no final dessa minuciosa categorização das falas possam
ser realizadas generalizações e reflexões teóricas sobre o
observado.
48 Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

TEMAS DE ANÁLISE SUBTEMAS


IV. Resultados

A busca pela perfeição


Para que a discussão dos resultados da pesquisa descrita
neste artigo possa ser melhor compreendida é necessário
A constante submissão ao julgamento do outro ressaltar algumas características observadas da organiza-
ção do trabalho no BCSP. Desta forma, o item IV está dividi-
A constante pressão pelo alto desempenho
do em dois tópicos: IV.I – A organização do trabalho do
O sofrimento A frustração de não ser escolhido para o elenco BCSP, que por sua vez está dividido em três sub-tópicos: a.
no trabalho principal a cada novo espetáculo
o processo de trabalho, b. relações no trabalho e c. pressão
A competitividade
pela perfeição. Já o tópico IV.II – O bailarino e as estratégias
O erro no trabalho
de defesa mobilizadas ao trabalhar, refere-se a análise dos
dados à luz da PDT, esse tópico foi subdividido em três:
O convívio com a dor (física) a.“eu ligo o profissional”, b.“bailarino tem ego"e, por último
o c. valorização da dor.
Quadro II – Temas seleccionados para analisar as entrevistas.

A observação do processo de trabalho foi realizada durante IV.I A Organização do trabalho do Bcsp
três meses. Neste período foi possível acompanhar o pro-
cesso de elaboração de um espetáculo de dança na compa-
nhia estudada, do seu início até a estréia do espetáculo. As A. O Processo de trabalho
observações foram realizadas semanalmente e sempre ti-
veram a duração de um dia completo de jornada de traba- A agenda de espetáculos do BCSP é definida pela direção da
lho, ou seja, de oito horas. Essas observações foram regis- Companhia em conjunto com a direção do Theatro Munici-
tradas em cadernos de campo e em fotos digitais. Utilizou-se pal de São Paulo. A definição das coreografias é realizada
a observação do processo de trabalho com o intuito de pela direção do BCSP, podendo ser selecionada coreografia
aprofundar o conhecimento das relações sociais estabele- do repertório da Companhia ou mesmo uma nova coreogra-
cidas nos processos de elaboração do trabalho em dança fia, criada especialmente para o BCSP, por um coreógrafo
que ainda é pouco analisado, no Brasil. A observação do convidado. Este foi o caso do processo de trabalho observa-
processo de trabalho permitiu identificar valores do grupo e do nesta pesquisa.
aspectos do relacionamento entre os membros do coletivo Uma vez definida a coreografia, o processo de trabalho para
que passam despercebidos na fala dos trabalhadores (Ver- a construção de um espetáculo, no BCSP, pode ser resumi-
gara, 2006). do em três etapas. Primeiro, a escolha do elenco. Em se-
gundo lugar, os ensaios, momento em que a coreografia é
escolha e a combinação dos dois métodos (observação transmitida aos bailarinos e, ás vezes, reelaborada de acor-
do processo de trabalho e análise de conteúdo das en- do com as características físicas e/ou técnicas dos bailari-
trevistas) ocorreu com intuito de oferecer a maior nos. A montagem da obra coreográfica ocorre por meio
quantidade de informações sobre o grupo estudado, desses ensaios, os quais representam um longo período de
sendo um método complementar ao outro no que tange trabalho na preparação de um espetáculo. A terceira etapa
os dados encontrados. consiste na apresentação do espetáculo em si, na concreti-
zação da obra artística propriamente dita.
No BCSP, a cada nova montagem de espetáculo um coreó-
grafo ou coreógrafa é convidado, desta forma a cada nova
construção coreográfica, os bailarinos do BCSP são con-
frontados com uma nova forma de trabalhar. Outra caracte-
rística da organização do trabalho analisada é que a cada
novo espetáculo o elenco é dividido em dois; elenco 1 e elen-
co 2. O elenco 1 é constituído pelo grupo de bailarinos e
bailarinas considerados, pelo coreógrafo e pela direção do
BCSP, mais apto para realizar a coreografia. Já o elenco 2 é
representado pelos substitutos do elenco 1. Cada bailarino
do elenco 1 tem o seu representante no elenco 2. Esta divi-
são do grupo é, comumente, geradora de angústia, frustra-
ção e competitividade. Ser do elenco 2 é considerado pelos
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman 49

bailarinos um demérito. O bailarino do elenco 2 terá que de sujeitar - se à vontade do outro, em disciplina, no sentido
estar tão preparado quanto o bailarino do elenco 1, porém, de submissão a um regulamento e em busca pela perfeição
pode ser que não venha a participar da apresentação. do movimento que, por sua vez, está intrinsecamente rela-
O coreógrafo e o assistente de coreografia são os responsá- cionada à busca por um determinado corpo para o trabalho.
veis pelo padrão e o controle do movimento, pela qualidade
da obra coreográfica, estão atentos à técnica de cada baila-
rino, se preocupam com a coesão do grupo na execução da C. Pressão pela perfeição
dança, assim como adequam os tempos da dança com rela-
ção à música. O trabalho da dança é detalhista, minucioso e Esta constante procura pela perfeição e exatidão do movi-
exigente. É um trabalho realizado sob o constante olhar crí- mento é almejada pela organização do trabalho, e também
tico do coreógrafo, dos assistentes de coreografia e, tam- pelo próprio bailarino. É observada uma íntima relação en-
bém, da direção. tre a auto-exigência do bailarino e a exigência da organiza-
Durante os ensaios, os bailarinos frequentemente são in- ção, sendo difícil uma diferenciação entre elas.
terrompidos, para que tenham seus movimentos corrigi-
dos. O reconhecimento positivo do trabalho realizado é co- (…) Eu me cobro muito. (…) A gente tem um cotidiano
mumente expresso pelo coreógrafo e seus assistentes no muito duro, muito exigente. (…) Então, a saúde mental e
final dos ensaios, porém, esse reconhecimento é comu- física vai para o chinelo (bailarina I, BCSP, 30/05/08).
mente acompanhado por uma lista de críticas e aponta- O grau de exigência do bailarino é (…) gigante (bailarina
mentos que indicam correções e modificações. É observado IV, BCSP, 21/05/08).
que as correções são propostas para o grupo e para cada
bailarino individualmente, as quais, entretanto, deverão ser Observa-se uma organização na qual a disciplina é almeja-
sempre realizadas coletivamente. As críticas individuais da e valorizada; a pontualidade, a perfeição do movimento e
são informadas coletivamente, com o intuito de possibilitar a exigência por corpos esteticamente e fisicamente perfei-
a todos um processo de aprendizagem de como realizar a tos são cobrados diariamente destes profissionais. Existe
obra coreográfica. Os bailarinos do elenco 2 participam uma constante exigência por uma qualidade e precisão do
desse processo, porém ficam como uma espécie de sombra movimento, assim como a manutenção do corpo enquanto
do elenco 1, ou seja o coreógrafo e os assistentes de coreo- instrumento de trabalho. Nota-se uma permanente busca
grafia não o corrigem durante os ensaios do elenco 1. Have- pela perfeição.
rá, no entanto, um momento no qual somente o elenco 2 Os bailarinos são profissionais que estão constantemente
ensaiará e assim receberá a atenção do coreógrafo. trabalhando sob o olhar do outro. Inicialmente, ainda nos
ensaios, estão sob o olhar da direção artística, do coreógra-
fo e do colega. Durante o espetáculo somam-se os olhares
B. Relações no trabalho do público e da crítica especializada.

Observou-se que apesar de não existir uma hierarquia for-


mal entre os bailarinos há uma relação de submissão ao IV.II. O bailarino e as estratégias de defesa
coreógrafo e à direção artística da companhia. O bailarino é mobilizadas ao trabalhar
responsável pelo movimento e buscará, no seu próprio cor-
po, uma maneira de alcançar o que lhe está sendo solicita- Esse grupo de profissionais analisados informam, nas en-
do. É o corpo deste bailarino que sofrerá lesões ou ficará trevistas, que iniciam suas atividades no mundo da dança,
dolorido, não somente pelo excesso de trabalho com o cor- ainda crianças ou adolescentes. Tal atividade é, primeira-
po – sete horas diárias -, mas também pela pressão sofrida mente, vivenciada como um lazer. É a satisfação que o mo-
para atingir uma execução virtuosa. Como informa a baila- vimento proporciona que impulsiona estes sujeitos a opta-
rina I, entrevistada nesta pesquisa: rem pela dança como profissão, assim como a idéia
glamourosa que a profissão representa na sociedade. O
(…) a gente tem muito pouca inteligência para se mexer autoconhecimento, a superação de si mesmo, a identifica-
dentro de uma companhia, porque a gente vai ao mas- ção com a arte alcançada pelo sujeito ao dançar é fonte de
sacre na força (bailarina I, BCSP, 30/05/08). prazer para o bailarino. Prazer que está relacionado a sa-
tisfação no trabalho; a identificação com o que está sendo
A demanda do coreógrafo é vivenciada como lei, são raros produzido, o sentimento de reconhecimento pelos colegas,
os momentos de contestações, ou mesmo, simples suges- pela hierarquia e pelo público. Neste sentido, o trabalhador
tões dos bailarinos sobre o movimento que executam. É um bailarino é um artista; apaixonado pelo seu mêtier. No en-
processo de trabalho que implica em obediência, no sentido tanto, também foi possível observar que a dança para dei-
50 Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

xar de ser lazer e ser um ofício exige dos bailarinos um rina II, BCSP, 01/07/08).
aprendizado para o trabalho. É preciso aprender determi- (…) Eu me atenho ao lado profissional. (…) estão preci-
nadas técnicas, métodos, linguagens e estilos de movimen- sando desse serviço meu, e eu vou dar somente esse
to. É preciso um controle estético do corpo enquanto instru- serviço. É óbvio que eu sei que posso dar mais, inclusi-
mento de trabalho. É preciso aprender a se submeter as ve a direção sabe que eu posso dar mais (bailarino I,
regras da organização do trabalho. É preciso seguir deter- BCSP, 13/06/08).
minada coreografia. É preciso saber lidar com a competiti-
vidade velada, mas constante. É preciso enfrentar os erros, As falas acima expressam como esses bailarinos fazem
as falhas, o envelhecimento. Enfim, existe um processo que para lidar com sofrimentos cotidianos no trabalho. Ao ouvir
pode ser gerador de sofrimento no enfrentamento do sujei- dos bailarinos a expressão"Ligar o profissional”, as autoras
to bailarino com a organização do trabalho. passaram a escutar uma tentativa desses trabalhadores de
Ao analisar as falas dos bailarinos houve a preocupação de minimizarem o sofrimento no trabalho colocando-se da
focar aquilo que expressasse o coletivo dos entrevistados. maneira mais econômica possível na ação; somente como
Foi possível observar duas expressões utilizadas, com fre- profissional.
qüência, por este grupo para informar como fazem para li-
dar com o sofrimento no trabalho: "eu ligo o profissional" e "o
bailarino tem ego”. Ao ouvir repetidas vezes essas expres- B.“O bailarino tem ego”
sões nos perguntamos qual o seu sentido. Enfim, o que os
bailarinos estavam tentando nos comunicar ao utilizar es- O bailarino tem como instrumento, principal, de trabalho o
tas expressões? corpo. Observa-se uma constante procura desse trabalha-
Outra comunicação endereçada as pesquisadoras que sus- dor por um corpo estética e tecnicamente perfeito, pois as-
citaram analise é o fato que os bailarinos as procuravam, sim este lhe permite um movimento virtuoso. No entanto, o
espontaneamente, durante o processo de observação para seu instrumento de trabalho – corpo - é, naturalmente, ins-
mostrar e contar sobre as partes doloridas de seus corpos. tável. O corpo pode falhar, apesar das inúmeras tentativas
Não houve um dia se quer das visitas ao BCSP que um bai- dos bailarinos e da própria organização do trabalho em
larino não viesse as informar sobre o quão dolorido estava. controlá-lo. Assim, algumas ameaças se colocam de forma
Desta forma, foi inevitável perguntar sobre o sentido deste permanente, tais como a lesão inesperada, o não conseguir
comportamento e o que este grupo de profissionais estava realizar a coreografia - seja por um limite biológico ou cro-
tentando expressar. nológico (o envelhecimento) - e até mesmo por questões
não objetivas, pois o corpo é, também, subjetividade; os
sentimentos e emoções o afetam e não existem dissociadas
A."Eu ligo o profissional” dele. O trabalho da dança tem uma dimensão imprevisível,
incontrolável. Esses trabalhadores travam uma luta cons-
Ao analisar as entrevistas, observou-se que as tante à procura da perfeição almejada, com um instrumen-
expressões"eu ligo o profissional”,"eu me atenho ao profis- to de trabalho naturalmente limitado e frágil.
sional”, eram recorrentes na fala dos entrevistados. Os O bailarino realiza seu trabalho submetido à constante vigi-
bailarinos utilizavam tal expressão para explicar como fa- lância, observação do outro. Durante os ensaios está sob o
ziam para lidar com as frustrações vivenciadas no cotidiano olhar crítico do coreógrafo, da direção e dos colegas. É fre-
do trabalho. Frustrações oriundas de variadas situações: ao quentemente interrompido para reelaborar os movimentos
não serem escolhidos para o primeiro elenco, quando são a serem corrigidos. No momento do espetáculo, somam-se
substituídos no decorrer do processo de construção da co- os olhares do público e da crítica especializada. A exposição
reografia, ou ainda, quando devem interpretar um projeto permanente à crítica é inerente ao trabalho do bailarino,
coreográfico com o qual não se identificam. desde o início do processo até a última etapa, o espetáculo.
A permanente submissão ao julgamento do outro, a cons-
(…) o principal é você manter a cabeça, (…) você lembrar tante exposição física, somados a permanente incerteza
que o mais importante é o lado profissional (…) e se frente aos limites do instrumento de trabalho – o corpo –
manter tranqüilo, e ainda dentro do processo, mesmo possibilita afirmar que esses trabalhadores se encontram
tendo sido excluído (bailarino II, BCSP, 29/06/08). numa permanente instabilidade. A cada nova coreografia e
Você liga o profissional. (…) na quinta feira passada, a cada novo espetáculo o bailarino é confrontado com a sua
quando acabou o ensaio eu brochei total. Eu estava su- capacidade de realizar o trabalho.
per a fim de fazer, super me dedicando e dei uma bro- As entrevistas informam que o profissional bailarino para li-
chada. Falei:"bom, vou ser profissional ao máximo”. dar com o receio da fragilidade, da incerteza constrói uma
Você se agarra à técnica (…) e faz o seu trabalho (baila- tentativa de expressar uma imagem ideal de si-mesmo. É
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman 51

possível observar esta estratégia pela freqüência que os bai- Observa-se neste trecho uma angustia não somente em re-
larinos utilizam a expressão"bailarino tem ego"para relata- lação a sua identidade profissional, mas também em rela-
rem histórias sobre vivências no trabalho que se relaciona- ção a sua sobrevivência. Foi possível analisar, nesta pesqui-
vam com competitividade, o sentimento de ser preterido, sa, que o sofrimento vivenciado pela bailarina I, só é possível
pelo coreógrafo ou direção e com o sentimento de impotência ser verbalizado porque ela está se aproximando do fim da
em relação aos limites do corpo e ao fato de não serem so- carreira, já os mais jovens não verbalizam tal sofrimento,
mente corpo – maquina, mas de serem pessoas e assim, li- mesmo porque cultuas a imagem onipotente de si-mesmo
mitadas, frágeis e submetidas à inexorabilidade da vida. (“ter ego”) é fundamental para a manutenção desses traba-
lhadores na carreira.
No BCSP não tem uma hierarquia dos bailarinos, mas
você tem ego. (…) Você esta despontando, de repente,
vem colega que quer te ver trincado, e ai você fala C. A valorização da dor
hammmmmmmmm (bailarina I, BCSP, 30/05/08).
Nos bailarinos o ego atrapalha. A gente nunca se entre- Este coreógrafo fala que teve duas operações de joelho
ga (…) a uma montagem. Você já recebeu prêmio, já e depois dançou como se nada tivesse acontecido, ele
trabalhou em várias companhias. Então, quem é o core- tem 33 anos hoje! Eu vou fazer 32 e ainda estou dançan-
ógrafo para lhe falar alguma coisa? Então, para você se do. Ele teve essa oportunidade de parar, mas a gente
entregar mesmo, você tem que deixar tudo isso para ainda dança (bailarino II, BCSP, 29/06/08.)
trás e isso é muito difícil (bailarino I, BCSP, 13/06/08).
São poucos os colegas que ajudam. (…) pós-operados A dor física é uma constante na vivência cotidiana desses
aqui tem vários eu me vejo chorando na fisioterapia, dói profissionais; o corpo – instrumento de trabalho – é subme-
pra caramba! Mas, quando eu comento:"Nossa como tido a um intenso ritmo de trabalho diário. Esta condição é
dói pra dobrar o joelho depois da cirurgia. Doeu o seu?”. reconhecida pela organização do trabalho no BCSP, que
Eu ouço:"O meu não!”. (…) Pra ele não falar deve ter possibilita aos seus bailarinos um suporte médico e fisiote-
uma questão aí. (…) o companheirismo (…) nem sempre rápico de proteção e prevenção à saúde física. Trabalhar
se tem. (…) o bailarino tem muito ego (bailarina IV, com o corpo dolorido é inerente ao ofício. Os bailarinos tra-
BCSP, 10/03/09). balham com dor, essa é a condição natural desses profis-
sionais. A forma aparentemente natural, banal com que os
As falas acima também suscitam reflexões sobre a impossi- bailarinos vivenciam a dor do corpo causada pelo trabalho
bilidade de se manter no trabalho por duas dimensões ine- foi analisada por Santos e Macêdo, conforme explicitada na
rentes às suas regras, relativas ao corpo. Trata-se do viven- introdução deste artigo, como uma estratégia de defesa,
ciar as temidas lesões físicas e o processo inevitável de face à necessidade desses trabalhadores enfrentarem e
envelhecimento, que ocorre muito precocemente na vida do superarem a dor física para poder trabalhar (Santos, 2008).
bailarino. Acima dos trinta e cinco anos de idade, o bailarino, Nesta pesquisa, no entanto, foi possível reconhecer, tam-
para essa companhia de dança, é compreendido em proces- bém, outra dimensão da dor: a sua valorização. Durante a
so de envelhecimento e aos quarenta anos, provavelmente, observação do processo de construção do espetáculo os
deverá se ausentar do palco por uma demanda física (lesão, bailarinos procuravam espontaneamente as pesquisadoras
fratura ou por não desenvolver o movimento com a mesma para informar que estavam doloridos, que haviam sofrido
agilidade necessária). O limite do corpo, seja pelo envelheci- lesões durante os ensaios e que mesmo assim não paravam
mento ou pelas dores e lesões, é vivenciado pelos bailarinos de trabalhar. Analisou-se que esses bailarinos estavam
de maneira imposta. A dor física, as lesões, o envelhecer são tentando informar que reconheciam a dor e a expunham en-
vivenciadas com angústia por esse grupo. Foi possível obser- quanto resultado previsto e necessário para a avaliação po-
var que os bailarinos mais velhos, que estão se aproximando sitiva de seu trabalho, de sua dedicação às suas atividades.
da saída, estão sofrendo com a ameaça do término, como O bailarino dolorido representaria, assim, um trabalhador
bem resume uma das bailarinas entrevistadas: comprometido, dedicado, envolvido com o seu trabalho. Ao
valorizar as suas lesões e dores o bailarino torna visível
(…) Desde os nove anos, eu me sinto bailarina. (…) Eu aquilo que é invisível: o seu esforço, o seu labor.
converso muito (…) na terapia, é como se fosse a minha No entanto, é necessário ressaltar que essa valorização da
carteira de identidade. (…) Eu não posso jogar isto fora da dor vai até o momento em que ela não extrapola as possibli-
noite para o dia e mudar, fazer outra coisa… Eu, mãe de dades do bailarino em exercer a sua atividade. A lesão física
família com um filho (…) tenho um salário bom. Eu não que afasta esse trabalhador das suas atividades cotidianas
tenho outra formação, como é que eu vou conseguir esse é vivenciada com muita angústia e sofrimento, sobretudo
salário fazendo outra coisa? (bailarina I, BCSP, 30/05/08). uma vez que a luta pela percepção ideal de si mesmo, do
52 Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

corpo-maquina é vencida, e assim o profissional se percebe pelo trabalho final, se reconhecidos os seus esforços, propi-
frágil, impotente e sem a sua identidade profissional. ciam condições específicas de criação, de identificação com o
trabalho e da realização de si mesmo. Os bailarinos são tra-
balhadores artistas que escolhem a dança como carreira
V. Conclusão pelo prazer de realizar o movimento e a obra artística. Em
contrapartida, a dança como trabalho demanda também um
O corpo é o principal instrumento por meio do qual o indiví- processo de submissão à disciplina, à exigência da busca
duo age no mundo. Os seres humanos aprenderam, antes pela perfeição, às relações competitivas e às relações hie-
mesmo de construírem seus utensílios, a se apropriarem rárquicas construídas pela organização do trabalho. A dan-
da natureza por meio das técnicas do corpo. O antropólogo ça, como trabalho organizado no interior de uma instituição,
francês Marcel Mauss ressalta que todas as ações huma- exige desses profissionais submissão a regras, a constrangi-
nas, desde as mais simples como a posição deitada até as mentos, a situações que desencadeiam conflito.
mais sofisticadas como a natação, constituem técnicas Desta forma a categoria analítica estratégias de defesa ela-
oriundas de um processo de aprendizado (Mauss, 2003). borada pela psicodinâmica do trabalha auxilia analisar o
sofrimento psíquico dos bailarinos e, sobretudo, como es-
O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do ses enfrentam a tal sofrimento. A estratégia de defesa ob-
homem, ou mais exatamente, sem falar de instrumen- servada pode ser considerada a tentativa de cindir o sujeito
to: o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mes- bailarino em dois: corpo técnico – instrumento de trabalho
mo tempo meio técnico, do homem, é seu corpo. (…) do corpo erógeno – subjetividade. A cisão, a ruptura psíqui-
Antes das técnicas de instrumentos, há o conjunto das ca, o desejo de não ter que entrar em contato com o limite,
técnicas do corpo (Mauss, 2003, p.407). com a impossibilidade, com a fragilidade inerente ao traba-
lho realizado. "Ligar o profissional”,"ter ego”, valorizar a
Cada sociedade, cada cultura têm maneiras singulares de dor são tentativas de não sucumbir frente ao sofrimento vi-
caminhar, comer, deitar, sentar, de se reproduzir, de mani- venciado e se manter trabalhando. Tal estratégia, estaria,
festar suas emoções conforme suas regras e costumes. O conforme a PDT propõe, a serviço da manutenção desses
que é denominado"natural"é a aquisição, por meio da edu- bailarinos numa organização na qual o ritmo de trabalho é
cação de técnicas codificadas do uso do corpo, segundo intenso, a pressão pela perfeição é constante, a disciplina é
uma determinada sociedade e cultura. As técnicas corpo- uma ordem, a obediência é uma premissa, a competitivida-
rais são oriundas de um aprendizado constante do homem, de é permanente e a ameaça de exclusão paira sob esses
permeadas pelos aspectos sociais e culturais nos quais bailarinos cotidianamente. Além disso, soma-se a estas
esse homem está inserido (Strazzacappa, 2006). condições, o fato que o único instrumento de trabalho des-
O trabalho da dança se utiliza do primeiro instrumento hu- ses profissionais é o seu próprio corpo. Corpo este que le-
mano - o corpo. Nele se inscrevem três aspectos com os siona e envelhece. Cada bailarino é cobrado individualmen-
quais os bailarinos labutam cotidianamente: o corpo biológi- te pela manutenção do seu instrumento de trabalho; este
co, técnico e erógeno; este último é palco da subjetividade, tem que estar magro, flexível, forte e apto para qualquer
do sofrimento e do prazer. Para a PDT a subjetividade não demanda da organização.
existe sem o corpo, uma vez que ela começa pelo corpo; As estratégias de defesa engendradas por um coletivo de
qualquer sentimento e afeto é vivenciado no corpo e pelo trabalhadores são construções psíquicas inconscientes,
corpo, a atividade de pensar e de elaborar tem como seu que permitem aos trabalhadores se submeterem a regras e
combustível as experiências vivenciadas pelo corpo. Porém, constrangimentos da organização do trabalho. Os efeitos
o corpo referido não é somente o corpo biológico, mas o cor- deletérios da organização do trabalho serão vivenciados
po habitado, vivenciado; o corpo fenomenológico. Dessa ma- por todos os membros de um determinado coletivo de tra-
neira, diferencia-se o corpo biológico do corpo erógeno e balho, e a elaboração das estratégias de defesa contra esse
considera-se, este último, representante da subjetivida- sofrimento é empreendida por todos os envolvidos, mas de
de;"(…) é exatamente este corpo resultante da experiência maneira inconsciente, no sentido de que não se percebe a
mais íntima de si e da relação com o outro que é convocado sua construção e tão pouco se tem claro contra o que ela se
no trabalhar"(Dejours, 2004b, p.29). No caso dos bailarinos, manifesta. O sofrimento é, assim, vivenciado como sendo
que tem o corpo biológico como principal instrumento de algo individual e um conflito próprio de cada trabalhador
trabalho, essa relação torna-se indissociável. (Dejours, 1987, 2004a). Enfim, são raros os coletivos de tra-
O prazer em realizar o movimento e assim descobrir em si balho cujos membros se percebem portadores de uma
mesmo a relação entre o sujeito e o seu corpo são caracte- mesma estratégia de defesa face ao mesmo sofrimento.
rísticas dos profissionais da dança. O processo de trabalho Desta forma, pode-se concluir que as estratégias de defe-
do corpo, assim como o sentimento de co-responsabilidade sa, paradoxalmente, também bloqueiam a reflexão e a pos-
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman 53

sibilidade de articulação coletiva contra os malefícios do Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia.
trabalho. No grupo de trabalhadores analisados, esta pers- Schmid-Kitskis, E. (2002). Défense (mécanismes de -). In: Alain
pectiva proposta pela PDT, foi possível de ser verificada. A de Mijolla. (dir). Dictionnaire international de la psychanalise.
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54 Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

PT/ES FR

Sufrimiento psíquico del bailarín: una mirada La souffrance psychique du danseur: un


de la psicodinámica del trabajo regard de la psychodynamique du travail

Resumo Este artigo se insere no âmbito dos Résumé Cet article s’insère dans le domaine des
estudos que articulam trabalho e saúde mental. O études qui articulent travail et santé mentale.
objetivo deste artigo foi analisar a relação entre o L’objectif a été d’analyser la relation entre le
trabalhador bailarino e a organização do trabalho travailleur danseur et l’organisation du travail en
em dança à luz do constructo teórico da danse à la lumière des concepts de la
psicodinâmica do trabalho (PDT). O foco desta psychodynamique du travail (PDT). Au centre de
análise foram as maneiras pelas quais os cette analyse se trouvent les manières dont les
trabalhadores da dança mobilizam suas travailleurs de la danse mobilisent leurs
subjetividades ao buscar realizar suas atividades subjectivités lorsqu’ils tentent de réaliser leurs
laborais cotidianas, no Balé da Cidade de São activités de travail quotidiennes, dans le Balé da
Paulo, companhia de dança pública vinculada ao Cidade de São Paulo, compagnie de danse publique
Theatro Municipal de São Paulo (Brasil). A partir liée au Theatro Municipal de São Paulo (Brésil). À
de um estudo qualitativo realizado através de partir d’une étude qualitative développée sur la
entrevistas e observação do processo de trabalho, base d’entretiens et de l’observation du processus
procurou-se compreender as estratégias de travail, nous avons cherché à comprendre les
mobilizadas subjetivamente pelos bailarinos ao stratégies mises en place par les danseurs
enfrentar o sofrimento vivenciado no trabalho. lorsqu’ils se confrontent à la souffrance vécue au
Pode-se concluir que entre as estratégias travail. On peut conclure qu’au sein des stratégies
encontradas por este grupo de trabalhadores está de ce groupe de travailleurs, se trouve la
a busca de uma cisão entre o corpo biológico, recherche d’une scission entre le corps biologique,
exercitado de forma técnica e utilizado como, exercé sur un mode technique et utilisé comme
instrumento de trabalho, e o corpo erógeno palco instrument de travail, et le corps érogène, lieu des
das vivencias subjetivas. expériences subjectives.

Palavras-chave saúde mental, trabalho, dança, Mots-clé santé mentale, travail, danse,
sofrimento. souffrance.
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman 55

EN

A dancer’s psychological suffering: from a


psychodynamics of work point of view

Abstract The present article is part of a series of


studies that articulate work and mental health.
The aim is to analyze the relationships between the
dance workers and the organization of dance as a
work in light of the psychodynamic of work theory.
This analysis focuses on the way dance workers
mobilize their subjectivity while performing their
daily work activities in Balé da Cidade de São
Paulo (São Paulo City Ballet), a public dance
company linked to the Theatro Municipal de São
Paulo in Brazil (São Paulo City Theatre). We aimed
at understanding the strategies that are
subjectively mobilized by the dancers when facing
suffering due to work based on a qualitative study
conducted through interviews and personal
observation of the work process. We concluded
that one of the strategies adopted by this group of
workers is the quest for a split between the
biological body, which is exercised on a technical
way and used as a work tool, and the erogenous
body, that houses the subjective experiences.

Keywords mental health, work, dance, suffering.

Como referenciar este artigo? Manuscrito recebido em: Janeiro/2011


Aceite após peritagem: Junho/2011
Segnini, M. P. & Lancman, S (2011). Sofrimento psíquico do
bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho.
Laboreal, 7, (1), 42-55.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV65822353389457854;2
56 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 56-67

ESTUDO DE CASO
Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí
mismo» del director de empresa

Marisa Wolf-Ridgway

1. CNAM Resumo Pode a psicodinâmica do trabalho


Centre de Recherche sur le Travail et le Développement (CRTD) apresentar-se como uma referência teórica
Equipe Psychodynamique du Travail et de l’Action pertinente para analisar o trabalho do dirigente de
41, rue Gay-Lussac empresa, assim como as incidências desse
75005 Paris mesmo trabalho sobre a sua subjectividade?
marisa.ridgway@orange.fr O objectivo deste artigo é propor uma reflexão
sobre esta questão assim como uma discussão
crítica que retoma os resultados de uma
Traducido del francés por Patricio Nusshold y Marie David
investigação centrada na análise clínica da
“apresentação de si” do dirigente, que
considerámos como um dos aspectos do trabalho
WOLF-RIDGWAY, M. (2010). Los aportes de la clínica del trabajo al
de direcção. Após uma introdução que aborda as
análisis de la «presentación de sí mismo» en el director de empresa [1].
implicações de uma investigação exploratória
Tesis doctoral en Psicología, Conservatoire National des Arts et
realizada com 15 dirigentes empresariais em
Métiers, París
França, uma apresentação da intervenção
realizada e um resumo dos principais resultados
desta mesma investigação, a discussão refere os
elementos teóricos e as rupturas metodológicas
que deveremos adoptar para prosseguir a
investigação na área das direcções de empresas,
até hoje postas frequentemente de parte pelas
ciências do trabalho.

Palabras clave psicodinâmica do trabalho,


direcção de empresas, apresentação de si.
Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de empresa • Marisa Wolf-Ridgway 57

Introducción: Los aspectos en juego en una o sea: un compromiso del cuerpo, la capacidad de movilizar
investigación sobre los directores de empresa la inteligencia para reaccionar, sentir e interpretar situacio-
nes. Herederos de trabajos hechos por la ergonomía de len-
gua francesa, sus investigaciones confirman que siempre
Los directores de empresa, “olvidados” por las existe una distancia entre la tarea prescripta y la actividad
ciencias del trabajo real. Trabajar consiste entonces en llenar esta distancia
para lograr hacer lo que hay que hacer, a pesar de los obs-
Los directores de empresa fascinan a los observadores de la táculos de lo real del trabajo constituidos por lo que escapa
vida de las empresas por el poder que tienen y por el impacto a la habilidad y a los conocimientos adquiridos (Dejours &
de sus actos de gestión sobre el tejido económico y social. Molinier, 1994). Para el sujeto, persona humana dotada de
Inicialmente, las investigaciones sobre estos directores y/o una afectividad y de una identidad formada a lo largo de
su actividad eran numerosos. Algunas provienen del campo toda su vida, trabajar supone necesariamente encontrarse
del comportamiento organizacional (Kets de Vries, 1990, confrontado a este real del trabajo. Trabajar es por lo tanto,
1995, 2002) y de la sociología clínica (o psicosociología de las ante nada una experiencia afectiva penosa, experimentada
organizaciones) (Barus-Michel, 1991; Aubert, 1994; Enriquez, ante el fracaso: un sufrimiento (Dejours, 1998, 2000).
1997, 2007). Otras provienen del campo de la gestión. Las pri- Este sufrimiento en el trabajo se presenta como la etapa
meras centran su atención sobre las problemáticas de la psi- inevitable y común a todos aquellos que trabajan. Sin em-
cología individual, las relaciones interpersonales o las rela- bargo, su destino no está inmovilizado. Puede, en efecto,
ciones entre el individuo y la organización excluyendo el ser el punto de partida de la autorrealización. Así, encon-
trabajo de sus análisis. Las segundas describen y categori- trando ajustes astutos para suplir las fallas en la prescrip-
zan los roles y las misiones del director (Fayol, 1916; Mintz- ción, el sujeto puede descubrir nuevas habilidades y hacer
berg, 1984), precisan sus actividades cotidianas (Barabel, surgir nuevas sensibilidades que no existían o que le eran
1999; Delpeuch & Lauvergeon, 1988), caracterizan las condi- desconocidas hasta ese momento. Por esta experiencia del
ciones para el ejercicio del liderazgo (Bennis & Nanus, 2003; trabajo, se revela a sí mismo, toma vida en sí mismo, aquello
Kotter, 1982) o bien se apoyan sobre los resultados de inves- que es propio del placer (Dejours, 1993).
tigaciones en psicología cognitiva para explicar el proceso de También, bajo ciertas condiciones llamadas de “resonancia
decisión estratégica (Lauriol, 1998). Excluyen, de hecho, la simbólica”, el trabajo puede ofrecer al sujeto la ocasión de
cuestión de la subjetividad en el trabajo. retomar y sobrepasar toda una serie de cuestiones hereda-
Contrastando con este corpus de investigación voluminoso, das de su historia singular y que permanecían latentes. En-
las ciencias del trabajo – y la psicodinámica del trabajo, en viste entonces la situación de trabajo con el poder de com-
particular – se mantuvieron alejadas del terreno de las di- promiso inducido por la reactualización de su curiosidad, de
recciones de empresa. Así, incluso cuando los directores de su deseo de saber y de comprender, vectores del placer en el
empresa constituyen el primer nivel del dispositivo de «ba- trabajo (Dejours, 1993, 1987). Por último, aun si el trabajo
nalización del mal» expuesto y descripto en La banalización comprende en mayor o menor medida momentos de soledad,
de la injusticia social (Dejours, 1998), ninguna investigación la psicodinámica del trabajo no lo resume a la actividad de
da cuenta de los procesos psíquicos puestos en práctica por uno solo ni a la yuxtaposición de actividades singulares. So-
estos sujetos en su encuentro con el trabajo. bresalta su dimensión colectiva: el sujeto trabaja siempre
Por consiguiente, si nos importa comprender ciertas con- para o con otros a quienes él llama a su vez a cooperar, lo que
ductas sorprendentes, las descripciones disponibles hoy en hace – entre otras cosas – esperando un reconocimiento.
día solo proveen explicaciones psicopatológicas a sus debi- Este reconocimiento toma la forma de un juicio realizado por
lidades, interpretan sus errores en términos de sesgos otros. Se apoya sobre la utilidad del trabajo realizado, sobre
cognitivos o remiten sus comportamientos excéntricos a su su conformidad y su originalidad. Este reconocimiento parti-
“irracionalidad”. ¿Debemos darnos por satisfechos con es- cipa de la construcción de la identidad y de la preservación de
tas explicaciones? ¿O bien es posible decir – como fue posi- la integridad física (Dejours, 1996). Es el reconocimiento que
ble mostrarlo en otras poblaciones – que el director traba- da un sentido al primer sufrimiento en el trabajo y que permi-
ja, que su trabajo lo afecta y lo transforma? te también su transformación en placer.
Por último, las investigaciones en psicodinámica del trabajo
han mostrado que ante la ausencia de condiciones que po-
La referencia a las teorías y conceptos de la sibiliten la transformación del sufrimiento en el trabajo en
psicodinámica del trabajo placer y ante la no posibilidad de reconocimiento, el sujeto
no permanece pasivo. Éste desarrolla, con los demás o
La psicodinámica del trabajo define el trabajo por lo que im- solo, comportamientos intencionales pero no concientes y a
plica, desde el punto de vista humano, el hecho de trabajar, menudo paradojales. Estas estrategias de defensa colecti-
58 Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de empresa • Marisa Wolf-Ridgway

vas o individuales, que tienden a organizarse en torno a la consagrado al encuentro y a la escucha de aquello que los
negación de lo real, permiten al sujeto preservarse (De- directores de empresa, voluntarios y dispuestos a hablar de
jours, 2000). Cuando fracasan, no queda más que la expre- su trabajo, podían contar. A diferencia de numerosos traba-
sión del sufrimiento patógeno bajo la forma de una descom- jos que hablan sobre los directores en una acepción amplia
pensación psíquica o somática. extendida a cuadros, cuadros dirigentes, responsables de
Este conjunto de teorías y de conceptos fue desarrollado a departamentos funcionales o de filiales, esta investigación
partir de investigaciones realizadas sobre todo tipo de ter- ha querido circunscribirse solo a los presidentes – directo-
renos excepto el de los directores de empresa. Los princi- res generales y presidentes de directorio.
pales detractores de la disciplina no han dejado entonces de Darles la palabra fue una manera de confrontar su expe-
anunciar un a priori ideológico mientras que otros subrayan riencia a las descripciones brindadas por la literatura de
su falta de interés por las poblaciones de cuadros, en gene- gestión y de formalizar la distancia entre el trabajo pres-
ral, y lo explican por su impotencia para «dar cuenta de los cripto y el trabajo real del director.
procesos psíquicos puestos en práctica por los trabajadores al
tomar un trabajo menos enmarcado directamente o apremian-
te, más inmaterial (…)» (Aubert, 1993). ¿Se podrá, a pesar de 1. La calificación de la actividad del director como
todo, comprender el comportamiento del director de em- un trabajo
presa a la luz de las referencias de las tesis de la psicodiná-
mica del trabajo?
1.1 Una primera hipótesis: el director trabaja

La confrontación de los resultados de Inmaterial, esencialmente intelectual e inaccesible a la ob-


investigaciones en gestión y la clínica del trabajo servación, la actividad del director de empresa raramente
es descripta como un trabajo. Debido a su impacto sobre los
Apoyarse en la psicodinámica del trabajo e inspirarse en su demás, pareciera responder mejor a la definición de una
metodología de investigación para acceder al trabajo vivido acción que a la de un trabajo en el sentido que Hannah
por el director de empresa no es evidente. Conviene, en un Arendt (1961/1983) da a estos términos. Desfasado del tra-
primer momento, asegurarse que el director trabaja (en el bajo y de la producción habitualmente investigada por las
sentido que la psicodinámica del trabajo da a este término). ciencias del trabajo, a menudo es presentada como una ac-
Hay que construir también una idea acerca de en qué con- tividad de gestión. Ahora bien, la gestión se define como el
siste el trabajo. Solo una vez realizado esto podemos pen- dominio de los gastos, los mercados, la planificación a fu-
sar en responder a las preguntas propias a toda investigaci- turo, los hombres. Fundada sobre una ilusión de control, se
ón realizada en este tipo de disciplina: ¿Cuál es el trabajo ayuda de instrumentos de medición que se alejan de aquello
prescripto de los directores de empresa y cómo apropiarse que refiere al trabajo concreto de los operarios (Vézina &
de él? ¿Cómo se manifiesta lo real del trabajo constituido de Saint-Arnaud, 1996; de Gaulejac, 2005). La gestión se opone
obstáculos a su habilidad? ¿Cómo se define entonces la dis- a toda noción de resistencia de lo real a lo prescripto. En
tancia entre el trabajo prescripto y el trabajo real y a qué esto choca con la definición de trabajo introducida por la
compromisos y ajustes el director recurre para lograr ha- psicodinámica del trabajo (Dejours, 2000). Por otro lado, las
cer lo que se espera de él? En fin, ¿qué pone en juego de sí investigaciones en gestión privilegian el término de «rol»
mismo y cómo su subjetividad es puesta a prueba por la ex- por sobre el de «trabajo» y las ciencias del trabajo han
periencia del trabajo? abandonado los círculos de directores. Este abandono del
Nuestra investigación ha intentado responder a este con- trabajo interpela y pide explicación. Hemos elegido dejar de
junto de preguntas. Estuvo construida en dos momentos. lado estas observaciones desconcertantes y llevar adelante
Un primer momento estuvo consagrado a la lectura crítica un repaso profundo de la literatura bajo el prisma de lectu-
de las obras y artículos de gestión que describen la activi- ra de la psicodinámica del trabajo. Hemos podido entonces
dad del director. Ante la falta de resultados publicados en despejar ciertos elementos que nos permitirían señalar que
ergonomía, esta literatura nos brindó información valiosa el director trabaja.
sobre la naturaleza de esta actividad. Debido a su carácter Por ejemplo, el cuerpo parece comprometido, incluso hasta
prescriptivo, nos permitió construir una serie de hipótesis en los textos de management estratégico donde menos lo
sobre aquello en que podría consistir el trabajo prescripto esperamos y que ponen en relevancia al director como un
del director: aquello a lo que lo prepara su formación, actor o un artista señalando los aspectos prácticos de la in-
aquello que las publicaciones en management y las revistas tuición del manager (Westley & Mintzberg, 1989). Por otro
de distribución masiva dan como expectativas de los de- lado, a pesar de que el sufrimiento nunca se declara como
más, sus objetivos y roles. Un segundo momento estuvo tal, sí se deja adivinar en ciertas descripciones de la angus-
Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de empresa • Marisa Wolf-Ridgway 59

tia o del sentimiento de vulnerabilidad (Zaleznik, 1966; de vestigaciones en gestión de las impresiones se alejan mu-
Gueuser & Fiol, 2004; Torres, 2009). Y, ante la ausencia ma- cho de los campos de investigación mencionados más arri-
nifiesta de prescripciones reconocidas y documentadas, son ba y la dramaturgia de los directores no sirve a los mismos
los textos de management en sí que se revelan como fuentes fines que la de los operarios observados. Por estas razones
de prescripciones bajo la forma de recomendaciones. Este y porque la actualización de esta promoción de sí mismo se
trabajo prescripto se resume en la obligación de dominio: apoya preferentemente sobre los conceptos de la sociología
dominio de la situación actual, de los eventos por venir, de interaccionista introducidos por Goffman en La presentación
las informaciones, de los discursos, de los hombres y de sí de la persona en la vida cotidiana (Goffman, 1973) hemos pre-
mismo. Lo real se presenta por la falta o por el exceso de ferido designar esta parte específica del trabajo prescripto
información, por el imprevisto o por lo real del trabajo de del director con el término de «presentación de sí mismo».
otros que no siempre pueden poner en práctica las decisio- Debido al desarrollo particular que los textos de gestión da-
nes tomadas. Entre la prescripción de dominio y el dominio ban a esta «presentación de sí mismo» y para dar cuenta de
imposible, la distancia parece irreductible. Hemos por lo los numerosos obstáculos para el análisis del trabajo del
tanto planteado la hipótesis de que el ocultamiento del tra- director identificados en las investigaciones anteriores (Co-
bajo del director en los textos podría explicarse por la mis- hen, 1999), hemos elegido centrar nuestra investigación en
ma originalidad de la pareja trabajo prescripto/ trabajo real torno a esta faceta más accesible de su trabajo. ¿Qué es la
del director. Teniendo que tener un dominio sobre todo, se «presentación de sí mismo»? ¿Podemos comprenderla en
vería imposibilitado de reconocer que él pone en práctica su referencia a los conceptos propuestos por la psicodinámica
inteligencia para hacer frente a lo que resiste a su dominio. del trabajo? ¿Qué pueden enseñarnos su escucha y análisis
Al eludir el término de trabajo, se señalaría entonces que se sobre el trabajo del director y sobre su relación subjetiva
trata de un trabajo que no puede decirse, que no puede mos- con el trabajo?
trarse pero que pero que no deja de existir.

2. Un método de acceso a la «presentación de sí


1.2. Una segunda hipótesis: la «presentación de mismo» del director
sí mismo» es parte del trabajo del director
En esta etapa de la investigación, pensábamos poder apoyar-
Los resultados de investigaciones y las observaciones rea- nos en la metodología de investigación en psicodinámica del
lizadas por investigadores en gestión relatan que las tareas trabajo: probada por más de veinte años de trabajo de campo,
esenciales del director de empresa son la toma de decisión ha sido precisamente construida para acceder a la dimensi-
estratégica (Mintzberg, 1984; Barabel, 1996; Anastasso- ón subjetiva del encuentro entre el sujeto y su situación de
poulos & Larçon, 1977), la visión y la comunicación (Barabel trabajo. Sin embargo, nos resultó difícil aplicar sus reglas
& Meier, 2004). Y, si en la comunicación no se resume su rigurosas en el contexto de nuestra investigación. En efecto,
trabajo en sí mismo, al menos ocupa un espacio preponde- se caracterizaba por la ausencia de una demanda, un colec-
rante en la literatura descriptiva. Afinando la lectura, he- tivo inexistente y el aislamiento del investigador. Hemos en-
mos descubierto que esta “comunicación” escondía un as- tonces construido una intervención ad hoc que debía salvar
pecto de auto promoción. Además de presentar a su estas diferentes limitantes por una serie de ajustes.
empresa, las relaciones pasadas, sus objetivos y el modo Para dar cuenta de la ausencia de colectivo, la intervención
en que está organizada para llevarlo a cabo, el director se se apoyaba sobre la conducción de entrevistas individuales.
ocupa (o debe ocuparse) de dar una imagen valorizada de sí Y, para paliar la ausencia de demanda, hemos elegido apro-
mismo. Esta promoción de sí se encuentra ampliamente vechar toda oportunidad en que se establecía un contacto:
documentada en el campo de las investigaciones en gestión participación de conferencias o visita a asociaciones que
de las impresiones (impression management) (Gardner, reagrupan directores de empresa, animaciones de forma-
1992; Giacalone & Rosenfeld, 1989). Se presenta como una ciones, referencias a amigos comunes o incluso interven-
de las herramientas de las que el director dispone para que ciones de consultoría en el seno de la dirección de la em-
los demás se comprometan con la acción en el sentido que presa. A partir de este modo de reclutamiento particular,
él desea. Por sus efectos en los demás, esta promoción de los 15 directores que hemos conocido (12 varones y 3 muje-
sí mismo pertenece al registro de la “acción específica”, in- res, de entre 35 y 68 años y todos diplomados de la educaci-
troducida por Dejours en sus trabajos de psicosomática ón superior [2]), eran presidente - director general o presi-
(Dejours, 2002). Por sus efectos de puesta en escena, con- dente del directorio de empresas de tamaño mediano [3].
voca una dimensión de dramaturgia, cercana de aquella Excepto dos de entre ellos que eran asalariados, estos di-
desplegada por los operarios durante una visita a la fábrica rectores eran propietarios de la empresa que dirigían, sea
(Dodier, 1995). No obstante, las preocupaciones de las in- porque ellos la crearon, o porque la heredaron. Estas em-
60 Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de empresa • Marisa Wolf-Ridgway

presas operaban en sectores de actividad variados [4], con intersubjetiva establecida entre director e investigador, es-
preocupaciones objetivas relativamente diferentes. tos comentarios no se someten a resultados de valor pre-
Al momento de tomar contacto por teléfono o por correo dictivos, no son generalizables ni replicables per se. Su va-
electrónico, se presentaban los objetivos de la investigación lor se debe a su capacidad para dar cuenta de una
de modo tal que el director sintiese que le concierne al pun- experiencia vivida y de lo que el investigador pudo compren-
to de aceptar consagrarle tiempo. Posteriormente, el inves- der. Su informe detallado, combinado de interpretaciones
tigador prestaba particular atención a su propia «presenta- avanzadas, presenta un modo accesible a la eventual crítica
ción de sí mismo» y adoptaba un comportamiento protector. de otros clínicos. (Dejours, 1995).
Ponía también en práctica un principio de intercambio quid Sabiendo que los directores tienen la costumbre de dar una
pro quo, de «toma y daca» por el cual aceptaba brindar algo imagen deformada y valorizante de su actividad hasta en
de sí mismo para obtener, a cambio, que el sujeto se arries- sus respuestas a cuestionarios preformateados (Cohen,
gue a hablarle siendo que no había solicitado hacerlo. Jugó 1999), parecería ilusorio esperar acceder a otra cosa más
sobre la connivencia y la complicidad para tranquilizar al que a una palabra estratégica, alterada, deformada. Ante la
sujeto y mantener, de su parte, una forma de consentimien- falta de acceso a la palabra auténtica de un sujeto deman-
to para participar de la investigación. Por último, para alen- dante y a la subjetividad del director en el trabajo, el método
tar la continuidad de las entrevistas, se le proponía siempre desplegado aquí nos permitía al menos acceder a aquello
un segundo encuentro de devolución y de validación de las que siempre es accesible, o sea, a la «presentación de sí
interpretaciones. mismo » del director de empresa. En efecto, habíamos des-
Además de los miembros de una familia de directores cerca cubierto en los textos de gestión que la «presentación de sí
de quienes intervinimos durante varios años, hemos encon- mismo » no representaba más que una parte del trabajo del
trado estos directores y directoras una, dos o cuatro veces. director. Pero aquí, más que lamentarlo, hemos elegido
Una entrevista duraba, normalmente, una hora y medio a analizar esta «presentación de sí mismo» por su capacidad
dos horas. Sin embargo, algunas entrevistas excedieron las tanto para describir el trabajo como para ocultarlo.
tres horas. Dos directores nos pidieron de hecho largas en-
trevistas y volver a vernos varias veces. Hemos entonces
formulado la hipótesis de que su curiosidad inicial, sosteni- 3. Un análisis psicodinámico de la «presentación de
da por las dificultades vividas en el trabajo, se había visto sí mismo» del director
reforzada por la confianza en la escucha del investigador.
Había entonces podido expresarse una forma de demanda
que, hasta ese momento no había encontrado el canal para 3.1. Trabajo prescripto, real del trabajo y trabajo real
formularse. Esta hipótesis ha sido confirmada.
Debido a la distancia del edificio de su empresa, hemos en-
contrado un director en los salones de un hotel y otros dos 3.1.1. El trabajo prescripto del director
en su domicilio. Otro, finalmente, quiso invitarnos a restau-
rantes prestigiosos que él presentaba siempre como «can- En los primeros momentos de las primeras entrevistas, el
tinas». Todas las demás entrevistas se desarrollaron en los trabajo vivido se nos mantenía efectivamente inaccesible. En
locales de la empresa. Hemos tenido en cuenta esta hete- efecto, las directoras y los directores que hemos entrevista-
rogeneidad de lugares en tanto nunca eran neutros desde el do se limitaban a darnos lo que ellos llamaban «respuestas
punto de vista de la «presentación de sí mismo» de nuestro de diccionario». Se disculpaban de ser sobre todo «caricatura-
interlocutor. les» y reconocían el plagio de discursos ya escuchados. Es
Apoyado sobre el método clínico, la referencia al caso sin- así que después de haber mostrado una real dificultad para
gular, interesante por su valor didáctico, ha sido puesto de poner su trabajo en palabras («es tener que hacer todo»; «es
relieve por sobre toda consideración de representatividad hacer muchas cosas diferentes»), confirmaban lo que la lectu-
estadística. El material de investigación estuvo constituido ra de la bibliografía de management nos había enseñado. De-
por un informe con los comentarios de los directores entre- cían que se esperaba de ellos una visión y que debían hacerla
vistados, atravesados por nuestras propias reflexiones y comprensible y atractiva. Debían también mostrar su com-
reacciones al momento de la escucha y por lo tanto, filtra- petencia para resolver problemas ante los cuales los demás
das por la subjetividad del investigador [5]. En esto, se respe- fracasaban, asegurar el crecimiento de su empresa y de sus
taron de cerca las recomendaciones en metodología de la productos o servicios «ocupando el rol del hombre sándwich»
investigación en psicodinámica del trabajo relativas a la y por último, ser aquel que los demás esperaban en este
construcción y la presentación de los datos recabados. puesto: «ser Dios» o «ser bueno en todo».
Resúmenes de experiencia singular y dependientes de la
especificidad del encuadre del encuentro y de la relación
Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de empresa • Marisa Wolf-Ridgway 61

3.1.2. Lo «real» del trabajo del director la imposibilidad de satisfacer el objetivo irreal de dominio
total, lo reemplaza con una representación de dominio.
Tras esta primer etapa de descripción del trabajo esperado, Ante el evidente desconocimiento del futuro y la aparición
una vez que el director daba su acuerdo para continuar sus de dudas y de problemas de conciencia, ofrece una versión
comentarios, dejaba atrás la primer forma de «presentaci- oficial de sus certezas.
ón de sí mismo», la de los discursos dichos mil veces, pre-
construidos por un sujeto que sabemos que está acostum-
brado a este tipo de ejercicio (Cohen, 1999). La palabra era 3.2. Las revelaciones de la «presentación de sí
entonces menos convencional, menos controlada, por mo- mismo»
mentos confusa y por otros violenta o vulgar. El director re-
velaba entonces otros aspectos de su trabajo. Ante la pres- Durante las entrevistas, esta «presentación de sí mismo»
cripción de ver el futuro, de transmitir su visión a los demás, se realizó a través de la combinación de una valorización de
de generarles confianza, de decidir, de saber y de resolver su carácter único y ejemplar, de una reconstrucción de su
problemas sin solución, es el control de lo imposible, la fu- recorrido bajo la forma de una saga y de la denigración del
turología absurda, la ausencia de parámetros «en la oscuri- otro (predecesores, competidores o cónyuges). La presen-
dad o en el vacío, sin la guía de nadie» y la soledad aquello que tación no hablaba mucho sobre varios aspectos de su traba-
ellos presentaron como los principales obstáculos para el jo como la organización, la negociación comercial o la su-
cumplimiento de su tarea. Ante la prescripción de ser irre- pervisión. En cambio, sí ponía el acento sobre su capacidad
prochables, es el sujeto en sí mismo, su relación con el de estratega y se mostraba indiferente ante el dinero. Por
tiempo, los límites de su cuerpo, los cuestionamientos éti- último, celebraba sobre todo su gestión generosa de recur-
cos o de «conciencia», su falta de pasión o incluso su falta sos humanos, insistiendo, por ejemplo, sobre su «voluntad
de confianza en sí mismo en público que parecerían consti- íntima de querer dar, de querer hacer el bien», subrayando el
tuir un freno. «placer intenso de hacer crecer» a sus colaboradores o in-
cluso evocando su «obra humana».

3.1.3. El trabajo real del director


3.2.1. El placer en el trabajo
La prescripción de un control imposible y la prescripción de
«ser» que choca con el obstáculo de su propia resistencia, Ciertos directores ponían también el acento en su «pasión»
obligan al director de empresa a imaginar ajustes para lo- por el producto y el lazo afectivo que los unía a la empresa
grar conseguir aquello por lo cual se encuentra en este que dirigen. Sin embargo, hemos notado que esta pasión,
puesto. Leer, salir y conocer otros directores, rodearse de esta «llama» que describe quien se ve como un «aventurero-
consejos sobre los contactos en las redes de asociaciones o -desarrollador» o incluso la tendencia del cuerpo a cuerpo
de sindicatos profesionales para generar ideas y percibir con el tecnicismo del producto no eran comunes a todos los
mejor su mercado son algunos de los ejemplos de arti- directores. Se destacaban sobre todo en los creadores de
mañas que estos directores enunciaron. El director debe empresa o en los directores – propietarios herederos que
también «luchar» y «atacar», ser capaz de desarrollar una habían desarrollado nuevas actividades cercanas a lo que
«coraza» lo suficientemente gruesa y resistente para sopor- les gusta hacer. En los demás, herederos sin proyecto o di-
tar los golpes y aceptar ir a veces al encuentro de sus valo- rectores empleados, la ausencia de «pasión» parecía pesa-
res. Por último, para imponer sus ideas, le es necesario da, como si la carga de su puesto ya no se encontraba com-
saber construir discursos tranquilizantes y escenificar un pensada por el placer de comprometerse.
personaje público que domina y se domina.
Esta referencia a la imagen pública viene aquí a corroborar
la hipótesis a la que se había llegado tras la lectura de los 3.2.2. El sufrimiento patógeno
textos de management: la «presentación de sí mismo» hace
parte del trabajo del director. Pero la «presentación de sí Casi siempre – particularmente cuando una única entrevis-
mismo» no solo es un trabajo prescripto. Se presenta tam- ta se prolongaba más de dos horas o cuando teníamos va-
bién como un hallazgo particularmente bien adaptado para rias entrevistas – una vez que su atención se relajaba y los
conjugar las prescripciones de heroísmo a pesar de lo sujetos desatendían el trabajo de «presentación de sí mis-
«real» de quienes somos. Comprometiéndonos en una acti- mo» ante el investigador, la prolijidad y la fachada de los
vidad de «presentación de sí mismo», el director maneja la primeros momentos se veían desordenados. Aparecían
impresión que produce sobre los demás y cubre la distancia suspiros, cólera, rencor y cansancio extremo. Al mismo
que separa las expectativas formuladas respecto a él. Ante tiempo, sus dudas, el sentimiento de su inutilidad, su amor
62 Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de empresa • Marisa Wolf-Ridgway

al poder y el gusto por los placeres ligados a sus atributos en la «presentación de sí mismo». Consiste en escenificar
(dinero, seducción), recurrir eventualmente a psicotrópi- el dominio a pesar de no tenerlo completamente, en propo-
cos, sus fantasías sexuales desenfrenadas, la desaparición ner la imagen de quien «hace todo bien» a pesar de no tener
o la degradación de sus relaciones familiares que habían las características esperadas.
estado hasta ese momento escondidas, eran abiertamente Este trabajo de investigación ha confirmado también la evo-
expuestas. Podían entonces dar detalles de sus desórdenes lución del sujeto en su encuentro con la situación de trabajo,
somáticos: ahogos experimentados por un director que se yendo del sufrimiento primero experimentado por el cuerpo
decía «carbonizado» bajo el efecto de «ráfagas de radiaciones en su confrontación con la imposibilidad de dominio hasta la
violentas» o taquicardia e insomnio de otro que se decía «pe- transformación de este sufrimiento en placer. De hecho, la
gado al techo». Revelaban también formas a priori depresi- evocación del deseo de continuar la aventura, de continuar
vas, apenas compensadas por ciertas adicciones manifies- a crear y el entusiasmo al hablar de su placer al hacerlo
tas pero mantenidas en discreción por su entorno parecerían dar cuenta de una forma posible de placer en el
profesional. trabajo, del registro de la «resonancia simbólica» y esto, a
pesar de que al ser una intervención reducida no nos ha
permitido comprender los resortes precisos en los que se
3.2.3. Una defensa contra el sufrimiento apoya. Ante la ausencia de curiosidad, sin pasión ni referen-
cia a un sentido al movimiento que los anima, no queda a
Estas revelaciones eran sin embargo de corta duración. menudo más que los placeres, lo más frecuentemente pre-
Muy rápido, de hecho, el director o la directora se recompo- sentados bajo la forma de goce en el placer. Y cuando los
nía y, en un sobresalto de control de sí mismo, ya nada se placeres en sí mismos se disipan o cuando estas posibilida-
transparentaba de lo que acababa de decirnos. El sujeto pa- des de transformación del sufrimiento escapan al director,
recía indiferente a su ambiente inmediato. Luego, ensegui- no queda entonces más que el recurso a ajustes defensivos
da se mostraba nuevamente de manera aun más marcada que, mientras los tengan, evitarán un sufrimiento patógeno.
que la anterior su infalibilidad, su altruismo y su utilidad A su vez, el análisis clínico de la «presentación de sí mismo»
social. del director de empresa a través del prisma de lectura brin-
Este recursos in extremis a una forma sobrevalorada, exa- dado por los conceptos de la psicodinámica del trabajo ha
cerbada de «presentación de sí mismo» exageradamente permitido revelar sus múltiples dimensiones. La «presenta-
positiva y valorizante se produjo a lo largo de varias entre- ción de sí mismo» es un elemento del trabajo prescripto del
vistas. Hemos elegido nombrarlas: «sobrevalorización de director. Le permite mantenerse en el poder adaptando la
la “presentación de sí mismo”» o «sobrevalorización dra- impresión producida en los demás y accionando sobre la ac-
matúrgica». Perceptible en el ida y vuelta sorprendente en- ción de los otros. También es un ajuste que participa del tra-
tre la presentación positiva, luego confesión de fragilidad y bajo real del director ofreciéndole una respuesta a la pres-
de sufrimiento perceptible, episodio cuasi amnésico y por cripción de dominio por la escenificación de este dominio y
último recomposición y sobrevalorización dramatúrgica, en la prescripción de «ser» por una presentación valorizante
razón de su carácter insólito, poco conciente pero intencio- de este «ser». La «presentación de sí mismo» le permite
nal porque protector, por lo que hemos postulado su natu- también obtener un modo de reconocimiento de parte de un
raleza defensiva. público extendido (accionarios, banqueros, prensa, etc.), re-
conocimiento que ellos no pueden esperar de otro modo de-
bido, principalmente, a la ausencia de pares, de compañe-
4. El aporte del psicodinámica del trabajo al ros o de línea jerárquica. Por último, esta «presentación de
análisis de la «presentación de sí mismo » del sí mismo» escapa a veces al control y da lugar a comporta-
director mientos que, por extraños que sean, se revelan particular-
mente adaptados para preservar al director de eventuales
sobresaltos de dudas y desasosiego. El modo sobrevalorado
4.1. Conceptos pertinentes para acceder a la puede entonces ser interpretado como una estrategia indi-
relación subjetiva con trabajo del director vidual de defensa que el director despliega frente al sufri-
miento en el trabajo, de manera muy inesperada, y que ha
La referencia a las teorías de la psicodinámica del trabajo sido claramente perceptible en las entrevistas.
nos ha permitido pensar el trabajo del director como aquello Elemento del trabajo prescripto, ajuste inteligente que hace
que se agrega a la prescripción de poder, de dominio y de parte del trabajo real del director, vía de acceso al recono-
control de la organización, del ambiente y de sí mismo para cimiento y en su forma sobrevalorada, estrategia de defen-
encontrar un ajuste con lo real que se enfrenta en todos es- sa contra el sufrimiento en el trabajo: la psicodinámica del
tos puntos. Una de las facetas de este trabajo se evidencia trabajo nos ofrece aquí una grilla de lectura inédita y perti-
Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de empresa • Marisa Wolf-Ridgway 63

nente para analizar la «presentación de sí mismo» del di- lud a través de la exposición de una «presentación de sí
rector de empresa. Así, invalida la intención de quienes de- mismo» a veces mentirosa, ese director que puede tanto
nuncian la incapacidad de esta disciplina para brindar un redimirse de la inmoralidad manifiesta de sus acciones in-
cuadro teórico adecuado para abordar los grupos de cua- dicando argumentos paralógicos, constituye la pieza maes-
dros y directores. tra de un «primer nivel» del dispositivo de «banalización del
mal» (Dejours, 1998) hasta ahora no analizado suficiente-
mente. El hecho de que el director de empresa se encuentre
4.2 Ajustes teóricos indispensables aislado, no justifica que se retrase demasiado en entender-
lo. Por otro lado, en tanto su trabajo era negado (por inves-
Para apoyarse sobre la psicodinámica del trabajo con el fin tigadores y por sí mismo también), su sufrimiento en el tra-
de investigar el terreno de los directores de empresa se ne- bajo no podía ser tomado en cuenta. Los resultados de esta
cesitan, sin embargo, algunos ajustes. Conviene ante nada investigación muestran, por el contrario, que los directores
revalorizar la actividad del director como un trabajo a pe- de empresa pueden, ellos también, beneficiarse de las in-
sar de las descripciones habituales contrarias. Hay que tervenciones en el campo de la psicodinámica.
agrandar principalmente la noción de trabajo prescripto
para incluir las expectativas provenientes de fuentes varia-
das, incluso los substitutos de prescripciones que proveen 4.3 Rupturas metodológicas a discutir
ciertos manuales de gestión. Hay que incluir también las
exigencias añadidas en el registro del «ser» y no solo del No obstante, repatriar esta población específica al campo
«hacer». Hay incluso que reconocer la existencia de un real de las ciencias del trabajo obliga también a reflexionar so-
del trabajo del director y esto, a pesar de los fuertes inten- bre la metodología apropiada para una práctica de la psico-
tos de ocultarlo. Efectivamente, la «presentación de sí mis- logía del trabajo que sea habitada por la psicodinámica del
mo» hace parte del trabajo del director pero esconde tam- trabajo y despegado de las formas de coaching comúnmente
bién todo otro aspecto. Por último, para dar cuenta de la propuestas.
dimensión colectiva del trabajo del director, la noción de Una investigación posterior debería permitir definir mejor
colectivo debería incluir esta forma de cooperación hori- los límites. Por el momento, parece necesario rever las
zontal que parece existir por fuera de los lugares de trabajo rupturas operadas en la investigación que hemos desar-
tradicionales, entre directores de empresas diferentes, en rollado para retener los aspectos indispensables y eliminar
las diferentes asociaciones. los aspectos errados y más peligrosos. Esta intervención
Esta elección teórica necesita también diferenciarse de la brindaba ante nada acceso a la «presentación de sí mismo»
tendencia a describir a los directores como una entidad ge- del sujeto arriesgando a veces a incluso provocarla. Expo-
nérica, un grupo indiviso y homogéneo, calificable como «lí- nía una palabra no auténtica, estratégica y convenida según
deres del trabajo del mal» (Dejours, 1998), de elite, de clase lo acordado y no sería, por lo tanto, útil como ejemplo. La
dirigente o de «hiperburgesía» (De Gaulejac, 2005) y permi- complicidad manifestada o la táctica llamada del «toma y
tirse la posibilidad de tomar en cuenta al director en su sin- daca» se mostraron fecundas y la apertura a la continuidad
gularidad, como un sujeto dotado de afectos y de pasiones, de las entrevistas individuales es ciertamente una de las
atravesado por conflictos concientes e inconcientes, que principales pistas a explorar en el futuro. Idealmente, estas
vive, que prueba, que siente. entrevistas podrían constituir una etapa previa a que entre-
Teniendo en cuenta la cuestión de la subjetividad, es posible vistas colectivas puedan organizarse en el seno de agrupa-
introducir una ruptura con las interpretaciones en psicolo- ciones de directores y con carácter voluntario.
gía cognitiva habitualmente adoptadas por las investigacio- Otros aspectos de la intervención merecen, por el contra-
nes en gestión. Tomando la cuestión del trabajo y la natura- rio, ser repensados, particularmente: la falta de demanda.
leza de los procesos involucrados en el encuentro entre el De hecho, esto generó malos entendidos, nos expuso al
director y su trabajo, es posible evitar el reduccionismo psi- riesgo de instrumentalización y de seducción y nos obligó a
cológico de interpretaciones psicopatológicas de sus com- sostener las estrategias defensivas de los sujetos para evi-
portamientos. En un mundo que se sabe dominado por las tar, a todo precio, la explosión de un sufrimiento que podría
cuestiones de la racionalidad instrumental, es posible en- haber dejado al investigador desprovisto y expuesto.
tonces introducir la dimensión de la racionalidad subjetiva
en relación a la preservación de sí mismo en la explicación
de las conductas en el trabajo.
Ese director de empresa que trabaja, que experimenta el
sufrimiento que les es consubstancial sin poder siempre
transformarlo en placer, ese director que mantiene su sa-
64 Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de empresa • Marisa Wolf-Ridgway

Conclusión: para una reflexión sobre la Notas


racionalidad de la intervención psicodinámica en
los directores [1] En francés: «Les apports de la clinique du travail à l’analyse de la
«présentation de soi» chez le dirigeant d’entreprise».
El objetivo de una intervención de psicodinámica del trabajo [2] 5 diplomados del 3er ciclo universitario, 1 egresado de la “Éco-
realizada a pedido de los directores de empresa podría ser le normale supérieure”, 2 HEC (Altas Escuelas de Comercio), 7
llevarlos a comprender mejor el origen de sus desvíos de diplomados de escuelas de ingenieros.
conducta para que, comenzando eventualmente a percibir [3] 3 empresas contaban entre 50 y 100 colaboradores y un
las cosas de otra manera, puedan darse los medios de ac- volumen de facturación anual inferior a los 15 M€ ; 9 empresas
cionar diferentemente en consecuencia. No sería entonces contaban entre 300 y 400 colaboradores y un volumen de
la naturaleza de los directores que buscaríamos «curar» facturación anual de 50 à 120 M€.
sino la organización del trabajo que propondríamos volver a [4] Turismo, construcción y obras públicas, consultoría, mobilia-
visitar junto a los directores que supuestamente serían los rios, química-plásticos, editorial, agro-alimentario, salud,
diseñadores. editorial, energía.
Falta que, hasta hoy, las tesis de la psicodinámica del traba- [5] Siguiendo las tesis desarrolladas en psicodinámica del
jo no han convencido a los directores. No habiendo encon- trabajo, el sufrimiento y el placer en el trabajo son datos
trado ningún capítulo que les concierne o viéndose descrip- subjetivos que, de hecho, no pueden ser objetivados, medidos,
tos de manera peyorativa, han podido evitar esta disciplina verificados. Su descripción y su marcación no pueden realizarse
y desarrollar hacia ella la posición cínica que les es a menu- más que a través de la subjetividad del investigador, destinatario
do reprochada y que les permite despegarse de sus des- del discurso del sujeto «la subjetividad del investigador está por
cripciones vergonzantes. Falta que la demanda proveniente lo tanto directamente comprometida en la técnica de la investiga-
de las empresas y sus directores responda ante nada a los ción.» (Dejours, 2000).
aspectos de eficacia del lado de la racionalidad instrumen-
tal, aspecto ajeno a la psicodinámica del trabajo y que pue-
de incluso entrar en conflicto con sus intenciones. Falta Referências bibliográficas
también que, de parte de los directores de empresa, una
demanda de ayuda en términos de elucidación del sufri- Anastassopoulos, J.P, & Larçon, J.P. (1977). Profession Patron.
miento en el trabajo pondría en riesgo la negación de su Paris: Flammarion.
trabajo de «presentación de sí mismo» y pondría en riesgo Arendt, H. (1961/1983). Condition de l’homme moderne. 2ème éd. fr.
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quedaría entonces la oportunidad de proponer al director Française de Gestion, 111, 159-170.
demandante un recurso para pensar su situación de traba- Barabel, M. (1999). Activités quotidiennes, caractéristiques et
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relación con los demás, para reconocer el poder de oculta- doctorat: Gestion: Paris: Université de Paris IX.
miento de sus ajustes defensivos y los riesgos que se en- Barabel, M., & Meier, O. (2004). Profils de PDG en grands
cuentran asociados y por último, para reconocer y desvelar communicateurs. L’Expansion-Management Review, 112, 72-77.
en él los resortes subjetivos de las condiciones de posibili- Barus-Michel, J. (1991) Pouvoir: mythe et réalité. Paris: Klincksieck.
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hay, la intervención de un psicólogo habilitado por las tesis charge. 2nd ed. New-York, N.Y: Harper Business Essentials.
de la psicodinámica del trabajo puede también ayudar al di- Cohen, S. (1999). L’art d’interviewer les directors. Paris: Presses
rector a reanudar un lazo auténtico consigo mismo, a evitar Universitaires de France.
la reproducción de errores pasados y a asegurar elecciones De Gaulejac, V. (2005). La société malade de la gestion: Idéologie
profesionales más coherentes, debido efectivamente a «sa- gestionnaire, pouvoir managérial et harcèlement social. Paris:
lirse del sistema» o a ajustar una astucia singular para vol- Seuil.
ver a darle sentido a su acción. De Gueuser, F., Fiol, M. (2004). Faire face à des situations
complexes: La blessure narcissique des managers. In B.
Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de empresa • Marisa Wolf-Ridgway 65

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66 Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de empresa • Marisa Wolf-Ridgway

PT/ES FR

Psicodinâmica do trabalho e análise do Psychodynamique du travail et analyse du


trabalho de “apresentação de si” do dirigente travail de «présentation de soi» du dirigeant
de empresa d’entreprise

Resumen A ¿La psicodinámica del trabajo se Résumé La psychodynamique du travail se


presenta como una referencia teórica pertinente présente-t-elle comme une référence théorique
para analizar el trabajo del director de empresa y pertinente pour analyser le travail du dirigeant
los incidentes de este trabajo sobre su d’entreprise et les incidences de ce travail sur sa
subjetividad? subjectivité?
El objetivo es aquí proponer una reflexión sobre L’objectif est ici de proposer une réflexion sur cette
esta cuestión así como una discusión crítica de la question ainsi qu’une discussion critique de la
disciplina retomando los resultados de una discipline en reprenant les résultats d’une
investigación centrada en el análisis clínico de la recherche centrée sur l’analyse clinique de la
“presentación de sí mismo” del director, tomado «présentation de soi» du dirigeant, retenue comme
como uno de los aspectos del trabajo de dirección. l’un des aspects du travail de direction. Après une
Tras una introducción sobre los aspectos en juego introduction portant sur les enjeux d’une
en una investigación exploratoria realizada con 15 recherche exploratoire menée auprès de 15
directores de empresa en Francia, una dirigeants d’entreprise en France, une
presentación de la intervención realizada y un présentation de la démarche retenue et un résumé
resumen de los principales resultados de esta des principaux résultats de cette recherche, la
investigación, la discusión actualizará los discussion mettra à jour les aménagements
ordenamientos teóricos y las rupturas théoriques et les ruptures méthodologiques qu’il
metodológicas que convendría elegir para conviendrait d’opérer pour investiguer le terrain
investigar el terreno de los directores de empresa, des directions d’entreprise, jusqu’à présent
hasta ahora frecuentemente abandonado por las fréquemment délaissé par les sciences du travail.
ciencias del trabajo.
Mots-clé psychodynamique du travail, direction
Palavras-chave psicodinámica del trabajo, d’entreprise, présentation de soi.
dirección de empresa, presentación de sí mismo.
Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de empresa • Marisa Wolf-Ridgway 67

EN

Psychodynamics of work and the top


manager’s analysis of self-presentation

Abstract Is the psychodynamics of work a relevant


theoretical reference for analyzing the work of the
top manager and the effects of this work on their
subjectivity? The aim of the present study is to
reflect about this question as well as a about the
results of a research focused on a clinical analysis
of the top manager's "self-presentation",
considered one of the main aspects of the top
manager's work. After an introduction that
presents the implications of a research carried out
on 15 top managers in France, the approach
adopted and a summary of the key results, the
discussion will bring to light the theoretical and
methodological changes necessary to investigate
the field of top management, a field that until now
has been frequently under cultivated by the field of
work sciences.

Keywords psychodynamics of work, top


management, self-presentation.

Como referenciar este artigo? Manuscrito recebido em: Dezembro/2010


Aceite após peritagem: Março/2011
Wolf-Ridgway, M. (2011). Psicodinámica del trabajo y análisis
del trabajo de «presentación de sí mismo» del director de
empresa.
Laboreal, 7, (1), 56-67.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV6582235338949845522
68 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 68-75

DISCURSO SOBRE O VIVIDO NO TRABALHO


Relato de uma experiência de terreno de intervenção em Psicodinâmica
do Trabalho (PDT)

Valérie Ganem

Université Paris XIII - IUT de Saint-Denis Introdução


Place du 8 mai 1945
93206 Saint-Denis Aquando do 6º Colóquio de Psicodinâmica e de Psicopatolo-
Paris, France gia do Trabalho que se realizou pela primeira vez fora das
valerie.ganem1@orange.fr fronteiras francesas, em São Paulo, entre 21 e 23 de Abril
de 2010, as questões dos métodos e das técnicas foram lon-
gamente debatidas e várias divergências surgiram em fun-
ção das origens geográficas ou profissionais daqueles que
Tradução do francês efectuada por Raúl Caeiro praticam estas disciplinas. Foi colocada a questão do pedi-
do: podemos considerar que existe verdadeiramente um
pedido proveniente do terreno quando um inquérito é reali-
zado a pedido do Governo ou de um Sindicato? Como avaliar
o pedido nestas condições? Como garantir o anonimato aos
participantes? Como proceder quando quem formula o pe-
dido deseja entrevistas individuais? Qual é o estatuto da ac-
ção em Psicodinâmica do Trabalho (PDT)? Que resultados
Resumo Nuestro propósito es identificar, a partir esperar de um inquérito? Porque é necessário evitar reali-
de un estudio de campo, los principios zar acompanhamentos, apesar de os actores do terreno
metodológicos que fueron fundamentales en el frequentemente os pedirem?
marco del desarrollo de una intervención basada Hoje, parece-me oportuno recordar a minha experiência de
en la Psicodinámica del Trabajo, con el objetivo de mais de vinte anos na qualidade de interveniente nos meios
evitar el riesgo de instrumentalización que de trabalho em Gadalupe [1]. Tratar-se-á de relembrar essa
amenaza a los seguidores de esta disciplina. experiência e de analisar as lições que dela pude tirar. Su-
Igualmente, las dificultades inherentes a este tipo blinharei num primeiro momento os princípios que me pa-
de intervención son analizadas, así como las recem actualmente fundamentais no quadro de uma inter-
venção em Psicodinâmica do Trabalho, as excepções
preguntas que permanecen sin responder y que se
possíveis a esses princípios e as suas consequências. De-
vinculan al principio de prevención y al estatuto de
pois, apresentarei as numerosas dificuldades que se apre-
estas investigaciones.
sentam no quadro deste tipo de intervenção e os resultados
que da mesma podem ser esperados.
Palabras clave psicodinámica del trabajo,
metodología, investigación, estudio de campo.
I Histórico profissional

I.1 Uma experiência inicial de formadora

Quando iniciei o meu percurso profissional em Guadalupe,


eu era formadora. Rapidamente as teorias e os métodos da
Psicodinâmica do Trabalho (PDT) me pareceram pertinen-
Relato de uma experiência de terreno de intervenção em Psicodinâmica do Trabalho (PDT) • Valérie Ganem 69

tes para intervir nos meios de trabalho daquela ilha, na qual «Esta metodologia foi testada e, no essencial, não é útil
as relações sociais são particularmente duras. Eu intervi- submetê-la a modificações importantes».
nha, na altura, segundo um quadro metodológico do tipo Globalmente, o método de inquérito em PDT pode resumir-
formação-acção inspirado por contributos da PDT. -se da seguinte forma: a intervenção começa por um pré-
Começava as minhas acções por exposições teóricas sobre -inquérito que consiste em encontrar uma formulação ade-
temas como as condições favoráveis à mobilização da inte- quada do pedido, visitar os locais de trabalho e obter todos
ligência no trabalho, a cooperação, a resistência à mudança os documentos úteis respeitantes à organização em ques-
ou ainda a avaliação do trabalho. Esses contributos teóricos tão, bem como aos conflitos que marcaram a sua história.
eram seguidos de debates de tipo clínico sobre as dificulda- O inquérito passa sempre pela constituição de pequenos
des sentidas pelo grupo envolvido no seu trabalho. Após grupos. Tal constituição obedece às categorias subjectivas
essa primeira etapa, tratava-se de definir os indicadores definidas pelos intervenientes: o pedido e o seu conteúdo
qualitativos que se supunha permitirem medir e/ou obser- definem o grupo estudado. Os grupos são consituídos por
var se o trabalho foi realizado de acordo com as regras co- voluntários, os quais se identificam a partir de uma reunião
muns aos diferentes membros do grupo. Para terminar, de informação na qual os intervenientes apresentam a in-
propunha aos participantes que realizassem simulações tervenção a todo o pessoal. Os grupos assim constituídos
filmadas das situações mais difíceis que tinham evocado. participam em sessões colectivas de reflexão de meio dia
Isto, a fim de melhor se dar conta da operacionalidade dos de duração. Cada grupo reúne-se à razão de 2 a 4 sessões
indicadores retidos. Realizava estas acções sozinha. com um intervalo de 15 dias entre cada sessão. O material
Após vários anos de experiência, enquanto prosseguia os recolhido será depois reportado aos empregados numa
meus estudos de Psicologia do Trabalho, pude aperceber- sessão de um dia de duração consagrada à devolução oral.
-me de que esta abordagem não era satisfatória. Aquilo que A leitura do relatório «palavra por palavra» será objecto de
mais interesse tinha, afinal, no quadro deste dispositivo que discussões até ser validado pelos participantes e pelos in-
tinha como objectivo compreender as dificuldades do traba- tervenientes. Os participantes são os primeiros destinatá-
lho, eram os debates de tipo clínico. As exposições teóricas rios desse relatório. Por fim, o relatório servirá de quadro
arriscavam-se a influenciar o grupo na sua análise da situ- de referência às discussões ulteriores visando a transfor-
ação, os indicadores não permitiam senão uma análise mui- mação da organização do trabalho (Molinier, 2001).
to sumária do trabalho e as situações filmadas revelaram- Dentre os princípios metodológicos da PDT, provou-se que
-se mais lúdicas do que úteis para compreender a situação, alguns eram mais determinantes e incontornáveis do que
devido ao facto de os cenários evocados estarem muito dis- outros e tentaremos demonstrar em quê, à medida que os
tantes da realidade que se apresenta sempre de forma enunciamos, abaixo.
inesperada. O facto de conduzir essas acções sozinha tam-
bém provou ser muito pesado e difícil. a) O trabalho do pedido: Trata-se de não nos conten-
tarmos com o primeiro pedido que nos é formulado,
quer este provenha da Direcção ou dos Sindicatos. É
I.2 Uma experiência mais de acordo com a PDT necessário submetê-lo aos diferentes actores im-
plicados que são as instâncias representativas do
Após cuidadosa reflexão, decidi rever esta abordagem e re- pessoal, os médicos do trabalho, as assistentes so-
alizar os inquéritos de PDT como mandam as regras. A mi- ciais do pessoal e os próprios trabalhadores. Domi-
nha experiência mostrou-me que os princípios enunciados nique Dessors, com a qual tive a oportunidade de
por esta disciplina se revelam muitas vezes incontornáveis tanto partilhar, dizia: «Não devemos fazer aquilo
para lidar com questões tão delicadas quanto a subjectivi- que nos pedem». O pedido deve consistir, por exem-
dade, o sofrimento ou o prazer no trabalho. plo, num pedido de compreensão da situação de tra-
Se nos referimos à definição de um método, encontramos balho, da maneira como os trabalhadores se colo-
num dicionário comum (Larousse 2009): «conjunto de pro- cam à prova dessa realidade, do destino do seu
cedimentos, de meios para alcançar um resultado». O mé- sofrimento e da sua relação subjectiva com o traba-
todo de intervenção serve de guia ao praticante. Em Psico- lho. O pedido deve visar uma investigação colectiva.
dinâmica do Trabalho é de acordo comum que todo o corpo
teórico é colocado em questão a cada intervenção. Quer di- b) O voluntariado: Este aspecto faz parte do trabalho
zer que aquilo que acontece durante o inquérito, e que é do pedido. Se não existem voluntários entre os tra-
sempre inesperado, pode colocar em causa a teoria e, por- balhadores implicados na situação de trabalho so-
tanto, o método. Assim, o terreno poderia, a cada inquérito, bre a qual deve debruçar-se o inquérito, o mesmo
conduzir a um questionamento deste último. Ora, na adenda não pode ter lugar. À excepção da informação legíti-
1993 da obra «Travail: usure mentale», Dejours constata : ma sobre a intervenção por meio de inquérito e o
70 Relato de uma experiência de terreno de intervenção em Psicodinâmica do Trabalho (PDT) • Valérie Ganem

pedido que a sustenta, qualquer acção que vise inci- lho. Além disso, analisar a situação por diversos in-
tar os trabalhadores, de uma maneira ou de outra, a tervenientes permite igualmente evitar interpreta-
voluntariarem-se, deve ser proibida. Isto, mesmo ções demasiado pessoais, frequentes quando
que o inquérito tenha uma razão de ser do ponto de lidamos com questões tão subjectivas. Os conflitos
vista científico ou do ponto de vista da Direcção ou de interpretação que nascem dos debates no grupo
ainda dos Sindicatos ou de quaisquer outros actores de intervenientes são frequentemente reveladores
não directamente implicados. Apenas as pessoas dos conflitos existentes no grupo de inquérito e,
que tomaram a iniciativa de se inscreverem são portanto, úteis para a compreensão da situação. O
considerados como voluntários. outro interveniente deve, no entanto, estar sensibi-
Esta é uma condição sine qua non da palavra autên- lizado para a PDT. É por isso que intervenho princi-
tica e da escuta arriscada que devem poder existir palmente com médicos do trabalho ou antigos estu-
nesses espaços de discussão. É igualmente indis- dantes. Muitos intervenientes tiveram de intervir
pensável se desejamos que os membros do grupo sozinhos para se adaptarem ao terreno. No entanto,
se possam exprimir quanto a matérias tão íntimas todos o lamentaram e todos sublinharam a que pon-
quanto a relação subjectiva com o trabalho ou o so- to este princípio era útil e necessário tanto para a
frimento no trabalho. Já aconteceu, por exemplo, os qualidade do trabalho de análise, quanto para a éti-
quadros ou os colegas pretenderem inscrever pes- ca do praticante.
soas ausentes das reuniões de informação mas isso
constitui, para mim, uma infracção inaceitável a e) Não misturar níveis hierárquicos: O facto de coexis-
este princípio. tirem dentro de um mesmo grupo de inquérito pes-
soas de níveis hierárquicos diferentes constitui um
c) Tamanho do grupo: 15 pessoas no máximo. Para problema para a qualidade da palavra e da escuta.
além desse número, as condições necessárias à de- Cada pessoa de um dado nível hierárquico sentir-
liberação já não estão reunidas, tanto do lado da -se-á desconfortável ao exprimir de maneira autên-
escuta quanto da palavra, e a gestão dos debates tica as suas dificuldades face a alguém que é seu
torna-se muito difícil. Este princípio, contrariamen- subalterno ou que é seu superior. Se há entre os
te ao precedente, pode ser infringido. Já trabalhei voluntários pessoas de níveis hierárquicos diferen-
com um grupo de um pouco mais de 20 pessoas. tes, será preciso constituir mais grupos. Este é sem
Mas isso é totalmente desaconselhado quando é dúvida o princípio que mais debate suscita entre os
possível proceder de modo diferente e em particu- praticantes. Por vezes é necessário, por exemplo,
lar para os praticantes menos experientes. A possi- constituir um grupo de inquérito a partir de uma
bilidade de tirar à sorte quem participará no grupo equipa de trabalhadores composta por membros
de inquérito e uma restituição aos outros parece- cujos estatutos são muito heterogéneos – penso,
-me, nesse caso, uma boa alternativa. por exemplo, numa equipa de cuidadores de um es-
tabelecimento de saúde. Nesse caso, coexistem
d) Dois intervenientes no mínimo: Este princípio foi médicos, psicólogos, enfermeiros, auxiliares de ac-
promulgado desde o início e revela-se bastante de- ção médica, pessoal auxiliar de cuidados de saúde…
terminante no terreno. Permite não tomar sobre si que de forma alguma se posicionam ao mesmo nível
todo o sofrimento e os conflitos evocados pelo grupo hierárquico dentro da instituição. Pode, portanto,
e ajuda a enfrentar as relações de poder e às vonta- ser necessário reunir estes actores apesar de tudo,
des de instrumentaliazação das quais somos quase e não o fazer poderá mesmo condicionar a compre-
inevitavelmente objecto no contexto deste tipo de ensão da situação de trabalho. No entanto, continuo
inquérito. Este risco existe de todas as partes. Do a pensar que o enquadramento superior, por exem-
lado das Direcções, que podem pretender desta for- plo, ou a chefia do serviço, não deveria figurar em
ma mostrar aos parceiros sociais que se preocu- tal grupo se pretendemos que todos possam expri-
pam com as questões de saúde no trabalho, não mir-se livremente, o que é uma condição sine qua
tendo qualquer intenção de questionar a sua organi- non ao bom andamento do inquérito.
zação do trabalho. Do lado dos Sindicatos, que po-
dem pretender desse modo mostrar aos trabalha- f) Os participantes representam-se a si próprios: Este
dores que são sensíveis aos seus problemas, ponto parece-me muito importante para os repre-
desejando utilizar o inquérito para se fazerem valer sentantes do pessoal, nomeadamente, que, quando
no momento das eleições, sem estarem preparados eleitos, podem sentir-se capazes de falar pelos
para lutarem pela melhoria das situações de traba- seus colegas. Ora, a relação subjectiva com o traba-
Relato de uma experiência de terreno de intervenção em Psicodinâmica do Trabalho (PDT) • Valérie Ganem 71

lho é sempre singular, o sofrimento, em particular, esperar deste tipo de intervenção são, ao fim e ao cabo, ain-
é sempre invisível e é por isso absolutamente im- da bastante modestos.
possível de ser expresso por procuração. Assim, os
representantes do pessoal são sempre benvindos,
desde que sejam voluntários, mas devem compre- II Dificuldades e resultados esperados do inquérito
ender desde o início que estão ali para falar unica- de PDT
mente em seu nome.
Da mesma forma, parece-me difícil de entender que
os trabalhadores, membros de um « comité de pilo- II.1 As dificuldades práticas de cumprimento destes
tage » [2], possam ir inquirir junto dos seus colegas princípios metodológicos
para mais bem compreender a sua relação subjec-
tiva com o trabalho. Uma infracção a este princípio A minha experiência de terreno mostrou-me que é sempre
parece-me decididamente problemática do ponto difícil encontrar um terreno comum em relação ao pedido.
de vista da qualidade do material clínico desse Este pode revestir-se de formas muito diferentes consoan-
modo recolhido. Não me parece que as precauções te os diferentes interlocutores (Direcção, representantes
éticas a ter no contexto da recolha desse tipo de ma- do pessoal, Médico do Trabalho, Assistente Social, traba-
terial estejam reunidas nesse caso e isso poderá lhadores…).
ser perigoso para os trabalhadores que exprimi- Notei também que a Direcção, os Sindicatos, e até os traba-
riam assim o seu sofrimento a um colega fora do lhadores, podem pressionar-nos para renunciarmos à nos-
quadro metodológico adequado ao inquérito. sa abordagem colectiva, no sentido de realizarmos entrevis-
tas individuais, menos problemáticas, mais susceptíveis,
g) O relatório é validado pelo grupo, pois este é o seu segundo eles, de permitir a cada um exprimir-se livremen-
primeiro destinatário: O relatório redigido a propó- te… Convencê-los de que uma abordagem colectiva é impe-
sito destas investigações é sistematicamente vali- rativa neste domínio da relação subjectiva com o trabalho
dado pelos participantes, e estes deverão ser siste- pode revelar-se muito difícil. Similarmente, quem faz o pe-
maticamente os seus primeiros destinatários e dido e os voluntários podem incitar-nos a realizarmos ob-
decisores quanto à sua difusão. Este procedimento servações em situação de trabalho. Após reflexão, conside-
constitui a validação dos resultados do inquérito e ro que tais observações devem ter lugar antes das reuniões,
parece, por isso, ser igualmente incontornável. elas constituem aquilo que Dejours considera o pré-inquéri-
to e permitem sentir o ambiente de trabalho, bem como ace-
h) Durante a investigação, o pedido final é submetido à der a uma certa subjectividade quando os trabalhadores
reflexão do grupo; nenhum questionário pré-estabe- vierem a evocar a sua experiência vivida. No que concerne
lecido é submetido ao grupo. O objectivo é instaurar às entrevistas individuais, admito ter por vezes acedido a tal
as condições de uma partilha autêntica através da pedido, se o mesmo era insistente e emanava dos voluntá-
presença de pelo menos dois intervenientes, exterio- rios. Por vezes, as relações dentro do grupo estão de tal for-
res ao contexto, especializados em Psicologia do Tra- ma degradadas que esta etapa, que pode também ser consi-
balho. Os intervenientes agem sobre dois eixos: derada como constitutiva do pré-inquérito, pode revelar-se
útil. Ela permite a cada um «desabafar», embora o essencial
Eixo 1 Animar os debates entre os participantes, seja sobretudo não redigir nenhum relatório relativo a esta
estimular a sua reflexão por meio de um étapa e não ficar por aí, mas considerar estas entrevistas
questionamento de tipo clínico que não se como uma fase preliminar da investigação colectiva.
contenta com aquilo que é enunciado mas Uma vez decidida a intervenção, no momento do primeiro
leva o(s) interlocutor(es) a reflectir sobre encontro com o grupo, o princípio é reler o pedido formali-
o sentido da sua conduta e/ou das suas zado e aguardar os comentários dos participantes. Nessa
análises. altura, frequentemente se instala um silêncio muito pesado
que é preciso suportar. O erro aqui seria propor uma pri-
Eixo 2 Alimentar a reflexão dos participantes meira interpretação que poderia influenciar, ou seja, detur-
através dos elementos técnicos e teóricos par, a análise realizada pelo grupo. A experiência mostrou-
da Psicodinâmica do Trabalho. -me que isto não é fácil e pude constatar várias vezes que,
designadamente, os Médicos do Trabalho, eram tentados a
Mas estes princípios são a prescrição, a sua aplicação gera falar para não continuarem a suportar o silêncio.
sempre um certo número de dificuldades concretas que se- Nas sessões seguintes, vimos, no referido colóquio, que as
rão abordadas agora. Assim, os resultados que podemos práticas diferiam em função dos intervenientes. Alguns fa-
72 Relato de uma experiência de terreno de intervenção em Psicodinâmica do Trabalho (PDT) • Valérie Ganem

zem relatórios intermédios, outros uma síntese oral da difícil, demorado e fastidioso quanto mais nós tínhamos de
sessão anterior… Quando debatíamos este assunto com Do- lidar com interlocutores de posições elevadas na hierar-
minique Dessors, ela dizia sempre que não devíamos fazer quia. Num Banco, por exemplo, tivemos de passar 4 meios
esse tipo de recordatório, fosse de que forma fosse. Para dias unicamente a validar o relatório do grupo Quadros.
ela, era necessário voltar a enfrentar o silêncio, perguntan- Penso que é um trabalho muito arriscado para os trabalha-
do, por exemplo, ao grupo em que ponto tínhamos ficado na dores com essas funções, dos quais esperamos muitas ve-
última vez. Ela considerava que era sempre interessante zes um discurso em perfeita adequação com o discurso da
notar o tema pelo qual o grupo decidiria começar, esse era Direcção.
para ela um elemento essencial da análise. Quando realizo este tipo de intervenção, desejo que a Direc-
Duma forma geral, neste tipo de intervenção, o tempo é in- ção e a Gerência estejam cientes da realidade do trabalho e
certo. Pode acontecer um inquérito desenrolar-se muito do seu impacto na saúde dos trabalhadores que têm sob
tempo após (por vezes mais de um ano) a primeira formula- sua responsabilidade. Isto, com o intuito de que ponham em
ção do pedido. Muito frequentemente, também, os planea- marcha uma estratégia que coloque realmente o factor hu-
mentos dos encontros são alterados… Em retrospectiva, mano no centro da organização, e que este não seja apenas
parece-me que este aspecto é inerente a esta abordagem, é um slogan nos planos de comunicação das empresas. No
preciso saber seguir o ritmo das organizações nas quais in- terreno, isto revela-se quase impossível. Mesmo quando as
tervimos e levar em conta esse dado na análise que faze- Direcções acolhem positivamente os relatórios dos inquéri-
mos, sem pretender lutar contra o mesmo. tos, em última instância, é doloroso constatar como é raro
Sem dúvida o mais difícil deste trabalho, e que eu própria obervar mudanças reais na organização do trabalho.
ainda luto para conseguir fazer, é não se contentar com a
devolução da queixa, mas levar também os trabalhadores a
compreenderem: II.2 Os resultados a esperar

> O impacto psicológico da situação de trabalho sobre Quando intervimos em PDT é preciso portanto ser modesto
eles (o sofrimento, as defesas…), em relação aos resultados a esperar. Atendendo à minha
> A sua responsabilidade na situação – Porque não experiência, o que de melhor podemos esperar, no meu en-
fizeram eles tudo o que podiam para melhorarem a tender, é:
organização do trabalho, por exemplo?
> O sentido que tem a sua conduta bem como a dos a) Uma melhor compreensão da situação de trabalho
outros. e do seu impacto na saúde e nas condutas dos tra-
balhadores, por parte dos diferentes actores da
Parece-me igualmente difícil não se fazer a devolução aos empresa, por meio das linhas que constituem o(s)
trabalhadores daquilo que seria desejável considerar para relatório(s);
melhorar a situação. Eu venho da área da formação e da
consultoria, na qual as recomendações constituem o es- b) Uma estruturação e uma profissionalização em ter-
sencial do trabalho, pelo que permanecer numa abordagem mos da saúde no trabalho das instâncias represen-
compreensiva é problemático para mim. Pude constatar tativas do Pessoal e do Gabinete de Higiene, Segu-
que também o era muitas vezes para o grupo e para quem rança e das Condições do Trabalho, em particular;
formula o pedido. Para ter em conta os imperativos da
abordagem compreensiva ao mesmo tempo que estas ex- c) Uma restauração da capacidade de diálogo do gru-
pectativas dos nossos interlocutores, escolhi aproveitar a po. Quando sabemos do carácter fundamental da
intervenção para recolher as pistas de acção consideradas existência de um espaço de discussão no seio de um
pelo grupo a partir da nova compreensão da situação à qual grupo para a saúde no trabalho, este aspecto não é
o mesmo acedeu através do inquérito. Estas pistas são for- negligenciável;
muladas pelo grupo e não são portanto, em nada, as reco-
mendações próprias de uma abordagem por um perito. d) A modificação da organização do trabalho no senti-
A redacção do relatório constitui igualmente uma real difi- do de uma melhor relação saúde-trabalho (abertu-
culdade neste trabalho. É sempre árduo e arriscado passar ra de espaços de discussão, melhor consideração
do momento do debate oral para o da escrita. E preciso ad- do trabalho nas avaliações, modificação das regras
mitir que não podemos escrever à primeira um documento e das suas aplicações…) Mas este resultado é raro e
que será integralmente validado. O tempo passado a reto- pressupõe uma luta muito dura dos grupos e/ou das
mar a escrita que propomos ao grupo faz parte integrante instâncias representativas do Pessoal implicados.
da abordagem. Pude notar que este trabalho era tanto mais
Relato de uma experiência de terreno de intervenção em Psicodinâmica do Trabalho (PDT) • Valérie Ganem 73

Conclusão Implementar um inquérito de PDT que respeite as regras do


ofício revela-se portanto um trabalho muito difícil. É por
Após todos estes anos de intervenção e todos os debates isso que os praticantes devem manter-se vigilantes em re-
aos quais pude assistir, quer seja no Laboratório do CNAM lação aos princípios aqui inventariados, sobretudo tratan-
[3] dirigido por Christophe Dejours [4] ou por ocasião dos do-se de estudantes. Caso contrário, o risco é de aos pou-
diversos Colóquios Internacionais de Psicodinâmica e de cos a prática da PDT se ir degradando. Estes princípios
Psicopatologia do Trabalho, parece-me que várias questões foram desenvolvidos a partir de trinta anos de experiência a
permanecem sem resposta: lidar com conceitos subtis tais como o sofrimento e o prazer
no trabalho. Se perdemos de vista estes princípios arrisca-
> Um inquérito de PDT pode constituir uma forma de mo-nos a perder a capacidade de «agarrar» estas questões
prevenção? Em França, a Prevenção dos Riscos Psi- no terreno.
cossociais «está na moda» e poderíamos ter a ten- Quem mais nos incita a afastarmo-nos destes princípios
tação de «ocupar o lugar» para que outros interve- são as Direcções das organizações, com o objectivo de mais
nientes menos despertos para a questão da saúde bem nos instrumentalizarem. É, portanto, imperativo que
mental no trabalho o não ocupassem. Num debate não nos afastemos dos mesmos, tanto por uma preocupa-
sobre este tema no Laboratório, esta questão foi le- ção de eficácia quanto por uma preocupação ética.
vantada. O que parece ser mais problemático para
integrar uma tal abordagem é a questão da previsi-
bilidade. Nós sabemos que não existe previsibilida- Notas
de em Psicologia… Não podemos, por isso, preten-
der que a nossa acção possa constituir uma [1] Nota do Tradutor: Guadapule é uma região ultramarina
qualquer prevenção… Depois de muita discussão, francesa nas Caraíbas, constituída por dois arquipélagos: a “ilha
naquele dia, Dominique Dessors concluíu repetindo de Guadalupe”, na realidade composta por duas ilhas, Basse-
o seu famoso «O que conta é não fazermos aquilo -Terre e Grande-Terre e ilhas próximas, e um grupo situado mais
que nos pedem». Com efeito, se o pedido que nos é a Norte, constituído por São Bartolomeu, pela metade norte de
formulado visa a prevenção, porque não trabalhar São Martinho e ilhotas próximas. A capital é Basse-Terre.
esse pedido para intervir de acordo com os nossos [2] Em psicodinâmica do trabalho, o termo de "comité de pilotage"
princípios? Se nós não podemos garantir que este designa um grupo de algumas pessoas (normalmente inclui os
será um programa de prevenção, é uma aposta se- investigadores que intervêem, um representante da medicina do
gura de que não será tão-pouco outro tipo de inter- trabalho ou dos sindicatos, eventualmente alguém do departa-
venção… A Segurança Social de Guadalupe lançou mento de recursos humanos da empresa…) constituido aquando
um concurso com o intuito de estabelecer protoco- da intervenção e que têm por objectivo conduzir o conjunto do
los com entidades que pudessem vir a tornar-se os processo (nomeadamente as questões logisticas como a escolha
interlocutores privilegiados das empresas locais de horários para as reuniões, o local etc…).
em termos de intervenção ao nível dos riscos psi- [3] N. do Tradutor: Conservatoire National des Arts et Métiers,
cossociais. Respondi a esse concurso propondo estabelecimento de Ensino Superior tutelado pelo Governo
uma abordagem que retomava exactamente a abor- francês, fundado em 1794, cujos objectivos são disponibilizar
dagem de inquérito da Psicodinâmica do Trabalho, educação e conduzir investigação para a promoção da ciência e da
mas sem a designar assim, e a minha proposta foi indústria.
seleccionada. [4] N. do Tradutor: A autora refere-se ao Laboratório de Psicolo-
gia do Trabalho e da Acção, dirigido por Christophe Dejours, no
> Um inquérito de PDT é uma intervenção ou uma in- CNAM.
vestigação? Mais uma vez, fazendo fé nas minhas
discussões com Dominique Dessors, sou tentada a
pensar que é sobretudo uma intervenção que deve Referências bibliográficas
responder a um pedido do terreno. Se é uma inves-
tigação comandada por patrocinadores públicos ou Dejours, C. (2000). Travail, usure mentale. Paris: Fayard.
privados, como evitar que o grupo de voluntários Dessors, D. (2009). De l’ergonomie à la PDT. Paris : Eres.
seja instrumentalizado pelos investigadores e pelos Molinier, P. (2001). Souffrance et théorie de l’action». Travailler.
seus patrocinadores para as suas necessidades, tão Revue internationale de psychopathologie et de psychodynamique
afastadas das dos voluntários? du travail, n°7.
Molinier, P. (2006). Les enjeux psychiques du travail. Paris: Petite
bibliothèque Payot.
74 Relato de uma experiência de terreno de intervenção em Psicodinâmica do Trabalho (PDT) • Valérie Ganem

PT/ES FR

Informe de un estudio de campo sobre una Retour sur une expérience de terrain de
intervención basada en la Psicodinámica del l’intervention en psychodynamique du travail
Trabajo (PDT) (PDT)

Resumo Trata-se aqui de identificar, a partir de Résumé Il s’agit ici d’identifier, à partir d’une
uma experiência de terreno, os princípios expérience de terrain, les principes
metodológicos que parecem fundamentais no méthodologiques qui apparaissent fondamentaux
quadro de uma intervenção em Psicodinâmica do dans le cadre d’une intervention en
Trabalho a fim de evitar os riscos de psychodynamique du travail afin d’éviter les
instrumentalização que ameaçam todos os risques d’instrumentalisation qui guettent tout
praticantes desta disciplina. Depois, as praticien de cette discipline. Ensuite les difficultés
dificuldades inerentes a este tipo de intervenção inhérentes à ce type d’intervention seront
serão igualmente analisadas, tal como as également analysées, ainsi que les questions qui
questões que permanecem sem resposta e que restent en suspens concernant le principe de
concernem ao princípio de prevenção e ao estatuto prévention et le statut de ces enquêtes.
destes inquéritos.
Mots-clé psychodynamique du travail,
Palavras-chave psicodinâmica do trabalho, méthodologie, enquête, terrain.
metodologia, inquérito, terreno.
Relato de uma experiência de terreno de intervenção em Psicodinâmica do Trabalho (PDT) • Valérie Ganem 75

EN

A field experience in the domain of


psychodynamics of work

Abstract We aim to identify the methodological


principles that seem to be crucial in a
psychodynamics of work scenario, through a field
experience, in order to avoid the risk of
materialization that threatens all that adopt this
subject. Next, we analyse the difficulties inherent
to this type of intervention, such as the questions
that remain unanswered associated to the
prevention principle and to the status of these
surveys.

Keywords psychodynamics of work, methodology,


survey, field.

Como referenciar este artigo? Manuscrito recebido em: Outubro/2010


Aceite após peritagem: Março/2011
Ganem, V. (2011). Relato de uma experiência de terreno de
intervenção em Psicodinâmica do Trabalho (PDT).
Laboreal, 7, (1), 68-75.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV6582235338949985532
76 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 76-80

IMPORTA-SE DE REPETIR?…
«Trabalhar» não é «derrogar» [1]

Christophe Dejours

Conservatoire National des Arts et Métiers Salvo se fizermos remontar a origem da psicopatologia do
41, Rue Gay-Lussac trabalho a Tissot – De la santé des gens de lettres, 1768 – é
75005 Paris geralmente consensual considerar que a investigação so-
christophe-dejours@cnam.fr bre as relações entre trabalho e saúde mental têm sensi-
velmente 50 anos de idade. É pouco se compararmos com a
psiquiatria ou com a patologia profissional (Ramazzini, De
Artigo original: Dejours, Ch. (1998) «Travailler» n’est pas morbis artificum diatribs, 1700). É muito se compararmos
«déroger». Travailler, 1, 5-12. com a engenharia genética ou com a neuroquímica (Guille-
min, Prémio Nobel da Biologia e Medicina pela descoberta
das endorfinas, 1977). Cada um desses campos disciplina-
A tradução deste artigo para português foi realizada por Andreia res alimenta numerosas revistas pelo mundo fora. Porque
Ferreira e João Viana Jorge. não acontece o mesmo com a psicopatologia do trabalho? O
campo da saúde mental no trabalho é todavia vasto, as suas
incidências na saúde pública são evidentes, a sua importân-
cia teórica mede-se pelo lugar que o trabalho ocupa na vida
normal de cada um, e na condição humana em geral…!
É que o nascimento e desenvolvimento das revistas não de-
pendem da importância económica, social ou política de um
campo, mas da actividade científica que se desenrola no
seu seio e dos desafios, ou até paixões, que aquela última
suscita. É forçoso reconhecer que, no campo da saúde men-
tal no trabalho, as actividades científicas eram reduzidas e
que não suscitavam grande paixão.
O Colóquio Internacional de Psicodinâmica e de Psicopato-
logia do Trabalho que teve lugar em Paris, no Conservatoire
National des Arts et Métiers, em Janeiro de 1997, propor-
cionou uma visão diferente desse panorama: a visão de uma
numerosa participação de profissionais, entre os quais uma
maioria de médicos do trabalho, mas também grande nú-
mero de ergónomos, de assistentes sociais, de psicólogos,
de psiquiatras, de psicanalistas; a de uma presença intelec-
tual assegurada por investigadores e universitários ope-
rando nas disciplinas já citadas, às quais se devem acres-
centar a sociologia, a antropologia, a economia e a
epidemiologia; enfim, a de uma contribuição internacional
com as comunicações de colegas provenientes de numero-
sos países da Europa, África e América.
Foi para poder estruturar o campo da psicodinâmica e da
psicopatologia do trabalho e para poder acolher e difundir
os relatos de experiências práticas assim como de investi-
«Trabalhar» não é «derrogar» • Christophe Dejours 77

gações científicas, para constituir, enfim, um espaço de dis- deres do trabalho – ordenamento do mundo e objectivação
cussão que a revista Travailler foi fundada pelos membros da inteligência – são tradicionalmente reconhecidos pelas
do comité científico do colóquio de 1997. Trabalhar: porquê ciências humanas. Quanto à revista Travailler esforçar-se-á
este título? Primeiro que tudo para ganhar algum distancia- por dar um lugar de eleição a um outro poder do trabalho
mento face aos debates sobre o trabalho e sua definição. que a tradição não considera senão com circunspecção: o
Trabalho, actividade, emprego, profissão, qualificação…, to- poder de fazer advir o sujeito.
dos estes termos têm conotações disciplinares e conceptu- Trabalhar, não é somente produzir ou fabricar, não é apenas
ais específicas que suscitam controvérsias sobre o sentido transformar o Mundo, é também transformar-se a si pró-
apropriado a dar ao termo trabalho. Controvérsias de um prio, produzir-se a si mesmo. Noutros termos, é através do
grande interesse que mostram contudo que nenhuma defi- trabalho que o sujeito se forma ou se transforma revelan-
nição da noção de trabalho conseguiria chegar, actualmen- do-se a si próprio de tal forma que depois do trabalho ele já
te, a um consenso. Para certos autores cujas opiniões bene- não é completamente o mesmo do que antes de o ter em-
ficiaram nestes últimos anos de uma admiração entusiástica preendido. Assim, trabalhar participa num processo de
por parte do público, o trabalho está mesmo em vias de ex- subjectivização ao qual o clínico, preocupado com a saúde
tinção! Para outros, o trabalho é uma construção social re- mental, dedica mais atenção ainda do que ao processo de
cente que data do início ou de meados do século XIX. Para objectivação. Porquê? Porque decorre da própria substân-
outros ainda o trabalho não teria aparecido senão com o cia da subjectividade produzida pelo trabalho. A montante
protestantismo e a Reforma… deixemos então esses deba- do trabalho existe, com efeito, o sofrimento. E é precisa-
tes e debrucemo-nos sobre uma realidade indiscutível: tra- mente esse sofrimento que o «trabalhar» tem poder para
balhar. Quer se trate de uma actividade assalariada ou gra- transformar em sentimento de prazer.
ciosa, doméstica ou profissional, de operador ou de quadro, Como é que o trabalhar pode transformar o sofrimento?
no público ou no privado, na indústria ou nos serviços, na Não engendra o trabalho bem maior sofrimento do que o
agricultura ou no comércio…trabalhar é mobilizar o seu que é capaz de esconjurar? A própria psicopatologia do tra-
corpo, a sua inteligência, a sua pessoa para uma produção balho situar-se-ia nos antípodas da medicina do trabalho, a
que detenha valor de uso. primeira oferecendo-se como ciência da felicidade enquan-
O deslocamento conceptual da noção de «trabalho» para a to a segunda seria a ciência do infortúnio. Numa versão tão
de «trabalhar», é importante. Devemo-lo a Simone Bate- caricatural dessa oposição, ninguém conseguiria encon-
man-Novaes que a tinha sugerido no fim do simpósio «saté- trar-se. Existe, todavia, efectivamente, uma inflexão dife-
lite» do Colóquio Internacional de Janeiro de 1997. Traba- rente entre as duas disciplinas clínicas: a medicina do tra-
lhar será primeiro entendido como um verbo incoactivo, balho como toda a medicina, preocupa-se em descrever as
mas poderá eventualmente beneficiar de uma substantiva- lesões ou as doenças para poder de seguida tratá-las ou
ção, como se diz de: o deitar, o comer, o beber ou o agir. O preveni-las. A psicodinâmica do trabalho preocupa-se tam-
«Trabalhar» designa uma realidade liberta das polémicas, bém com a patologia mas interessa-se, por acréscimo, pela
por vezes bizantinas, sobre a realidade do trabalho. Nesta normalidade e, além disso, pela saúde (mesmo que esta úl-
revista, o termo trabalho remeterá portanto, antes de qual- tima seja concebida como um ideal inatingível). Não se trata
quer outra coisa, para o «trabalhar» cuja experiência cor- somente de proteger os homens e as mulheres da devasta-
rente é desde sempre consubstancial com o humano. ção originada pelo trabalho, mas de fazer em vez disso com
que «trabalhar» seja restituído ao seu poder constitutivo da
saúde.
Os poderes do trabalho

Se trabalhar se reveste de uma tal importância antropoló- O trabalho e o seu sujeito


gica é, seguramente, porque é primeiro que tudo uma acti-
vidade de produção que transforma o mundo e pode assim Retenhamos de algumas destas considerações que o traba-
torná-lo mais habitável. O trabalho contém essa promessa, lho é ambíguo do ponto de vista da vida: pode provocar o
mesmo que esta última, por demais o sabemos, se possa pior – a doença e a morte – mas pode também gerar o me-
transformar em ameaça. Não há dúvidas de que o futuro da lhor – saúde e acréscimo de vida. Esta ambivalência, o tra-
Terra, como habitat do homem, depende da maneira como balho obtêm-na da sua relação com a subjectividade e com
este trabalha. Mas o trabalho é também uma actividade de o sujeito. Já vimos anteriormente os três poderes do traba-
produção onde se concretizam e se objectivam a inteligên- lhar: transformação do mundo, objectivação da inteligên-
cia e o engenho humanos. Sem produção, sem fabrico, nou- cia, produção da subjectividade. Mas o «trabalhar», de onde
tros termos, sem trabalho, a inteligência e a criatividade retira ele o seu poder incoactivo? Ou, para o dizer de outra
humanas não seriam mais do que hipóteses. Estes dois po- forma, o que é que põe o «trabalhar» em movimento? Para
78 «Trabalhar» não é «derrogar» • Christophe Dejours

esta questão não há senão uma resposta possível: o sujeito. var o desafio para se engrandecer e se realizar como sujei-
É o próprio sujeito que inicia o trabalhar que ele mesmo usa to. Trabalhar não é derrogar as obrigações que se têm face
para se aperfeiçoar e se engrandecer a si próprio. à sua própria dignidade. É mesmo completamente o contrá-
Antes de qualquer trabalho há portanto um sujeito, ainda rio. A posteriori, quando da contemplação dos resultados do
que em estado inacabado, que o mesmo é dizer, à espera de trabalho realizado, anuncia-se a ultrapassagem do sofri-
uma evolução, porventura de um advento. Se, partindo des- mento e a sua transformação em sentimento de satisfação,
se duplo processo de objectivação e subjectivização que ca- de plenitude e até de euforia. O prazer no trabalho está con-
racteriza o trabalho, tomarmos emprestado um caminho substancialmente ligado ao sucesso do processo de subjec-
que retroceda, encontramos, a montante do trabalhar, um tivização, de reforço da identidade, ou ainda à auto-realiza-
sujeito. Mas então é inevitável colocar a questão da origem ção, que o trabalhar proporcionou.
desse sujeito que força a trabalhar. A resposta deve ser
procurada, mais uma vez, do lado do sofrimento a que se fez
anteriormente breve menção, na condição de não reter se- Trabalho e dominação
não as conotações convencionais da noção em virtude das
quais o sofrimento estaria inteiramente do lado da paixão, Então se a teoria em psicodinâmica do trabalho está em po-
do ressentido, do suportado e do infortúnio. Isto faz-nos sição de argumentar o potencial mutante do «trabalhar»
avançar no sentido de um paradoxo onde se situa verdadei- sobre o sofrimento, para o fazer engendrar um reforço de
ramente a dificuldade teórica principal. Não é necessária identidade e de subjectividade, porque é que a clínica pro-
grande ilustração para tomar consciência de que o trabalho duzida pela psicopatologia e pela psicodinâmica se dá a co-
possa gerar o pior e o melhor. Que sofrer, em contrapartida, nhecer, antes de tudo, pela descrição dos destinos funestos
possa ter incidências favoráveis é mais dificilmente aceitá- do sofrimento, pela dos mecanismos de defesa, da aliena-
vel. Todavia, contrariamente ao que sugere o senso comum, ção e da patologia mental?
o sofrimento não é simplesmente o resultado final de um Porque, se «trabalhar» consiste primordialmente – isto é,
encadeamento infeliz de que não restaria senão deplorar as com uma anterioridade ontológica e genealógica – numa
aborrecidas e lamentáveis consequências. O sofrimento é relação do sujeito consigo mesmo na procura de situações
também, para o clínico do trabalho, um ponto de partida, para se testar a si próprio e se realizar, o trabalho não é
uma origem: a origem de todo o movimento em direcção ao acessível, concretamente, senão numa relação social em
mundo, de toda a experiência do mundo. Sofrer é ontologi- que se exerce a dominação. A redução do emprego e a sua
camente a ligação primordial do sujeito ao mundo. E, ao su- flexibilização são desse ponto de vista suficientemente es-
jeito nada mais resta senão esse sofrimento experienciado, pectaculares para que seja inútil comentá-las. Mas, mais
reconhecido, apropriado. Só então pode começar lenta- trivialmente, sabe-se que o potencial mutante do trabalho
mente a mutação no seu contrário. Se o prazer é um dos sobre o sofrimento, sobre o aumento da subjectividade, so-
destinos possíveis do sofrimento, é preciso reconhecer à bre o prazer e sobre a saúde, pode ser neutralizado. Até
partida que o sofrimento o antecede. Não há de facto ne- mesmo convertido no seu contrário e não engendrar senão
nhum sujeito que não seja o resultado do sofrimento, ape- mais sofrimento sem qualquer possibilidade de fazer a sua
nas a partir do sofrimento, na estrita medida todavia em análise[2]. Como, por exemplo, no trabalho repetitivo sob
que esse sofrimento seja efectivamente experienciado no constrangimentos de tempo. Perfila-se assim um novo de-
meu corpo e pelo meu corpo. Porque não há afectividade sem safio : o da subversão da dominação, pelo trabalho. Desafio
carne. E o sofrimento é afectivo na medida em que me é que não é aberrante nem delirante como o sugere a eman-
revelado pelo meu corpo. Assim, corpo e sofrimento engen- cipação das mulheres em relação à dominação dos homens
dram o sujeito. precisamente através do trabalho. Mas nós sabemos que a
Pouco importa a origem do sofrimento, seja ele causado por solução desta negociação, que constitui a organização do
um sentimento endógeno de incompletude ou provenha de trabalho real, é incerta e que pode revestir formas muito
um poder deletério vindo do exterior. É suficiente que esse contrastadas. De facto é possível vergar e inclinar-se pe-
sofrimento seja carnalmente experienciado para que apele rante a dominação, cuja organização do trabalho constitui
de algum modo a ser ultrapassado. O sofrimento, mesmo um desafio, ou então usar esperteza e resistir. Que a nossa
sendo doloroso é ao mesmo tempo protensão dirigido para liberdade, a nossa responsabilidade e a nossa vontade es-
o mundo, em busca de novas ocasiões para pôr o sujeito à tejam comprometidas no destino da relação com o trabalho
prova: à prova do mundo e à prova de si mesmo, para se é incontestável. Mas para poder assumir o que isto implica
ultrapassar, para se realizar. Como? Pelo trabalho precisa- no registo da acção, devemos desenvolver os instrumentos
mente! O sofrimento como protensão dirigido para o mundo conceptuais e uma aparelhagem teórica que permita anali-
é fundamentalmente protensão do sujeito para «traba- sar o que faz com que uma organização do trabalho seja
lhar»: trabalhar esse sofrimento para o transformar, rele- favorável ao advento do sujeito ou pelo contrário aquilo que
«Trabalhar» não é «derrogar» • Christophe Dejours 79

a torna fundamentalmente deletéria e des-subjectivante ou tos, isto é na sedimentação do trabalho dos outros, de todos
ainda alienante. Já evocamos a não neutralidade do traba- os outros, de todos os membros da comunidade a que per-
lho face à auto-realização: ou contribui para o engrandeci- tence. Esta é a vocação da revista: centralizar e difundir co-
mento do sujeito ou contribui para a sua destruição; ou é um nhecimentos, colocar em debate as problemáticas.
potente meio para construir e defender a saúde; ou se Agir racionalmente supõe, a posteriori e não apenas na deli-
transforme numa arma temível em proveito da desintegra- beração antecedente, submeter a acção à prova dos concei-
ção da subjectividade e da sua morte. Esta é, no fim de con- tos. Característico de uma acção racional é ser orientada
tas, a dimensão trágica do trabalho que nesta revista deve para objectivos possíveis. Uma acção é irracional no seu
ter um lugar de elaboração, análise e discussão. objectivo se designa os inatingíveis porque eles não resul-
tam da vontade nem da decisão, porque o estado das coisas
não pode ser outro senão aquele que é, porque o objectivo
Trabalho e acção visado está fora do alcance de toda a vontade humana. Por
exemplo bater-se por um compromisso de qualidade entre
Do que precede, ter-se-á compreendido que a psicodinâmi- trabalho e saúde é um objectivo acessível e racional. Em
ca e a psicopatologia do trabalho são fundamentalmente contrapartida propor-se, como fim a atingir, a supressão do
atravessadas pelas questões relativas à acção: acção cujo sofrimento humano, é formular um objectivo impossível de
objectivo primordial é o planeamento das situações de tra- atingir e envolver-se numa acção irracional. Determinar se
balho, de maneira que sejam aí agrupadas as condições um objectivo é quimérico ou realista não é evidente. É por
propícias ao acréscimo da subjectividade e da vida. Não se isso que agir não consiste apenas em tomar decisões. Agir
trata de todo de uma quimera irrisória. Numerosas são as supõe despender tempo para reflectir e para estudar. Os
situações de trabalho graças às quais os homens e as mu- grupos de trabalho, os seminários de que se dotaram suces-
lheres se aguentam melhor que quando são privados do sivamente os psiquiatras, os psicanalistas, e mais recente-
trabalho. É que nestes casos, os conflitos de racionalidade, mente colectivos de médicos do trabalho e médicos genera-
indubitáveis e inevitáveis foram ultrapassados pelo com- listas, constituem uma das formas mais poderosas de
promisso de qualidade entre a racionalidade do sofrimento enriquecimento da acção no campo da saúde no trabalho.
e do seu advir e as racionalidades moral prática e estraté- Travailler deveria ser um instrumento ao serviço da delibe-
gica. Convém ainda precisar que estes compromissos não ração.
são o resultado de conjunturas particularmente favoráveis Travailler quer-se uma revista amplamente aberta aos de-
ou aleatórias, mas, de facto, de intenções, de vontades e de bates, mas fortemente argumentada do ponto de vista teó-
decisões deliberadas. Impossível atingir compromissos rico. É por isso que ela se dotou de uma comissão de leitura
bem sucedidos sem libertar espaços de elaboração e de de- em quem recairá a responsabilidade não só de aceitar ou
liberação; sem consagrar tempo para reflectir; tempo para recusar os artigos submetidos para publicação, mas tam-
pensar as condições e a organização do trabalho. Os bons bém a de fixar as orientações editoriais. Não para fabricar
compromissos existem, mas é preciso inventá-los, defen- um «produto» que constituiria uma montra de uma dita ex-
dê-los, fazê-los evoluir. O desafio da acção, é aqui o espaço celência, mas para oferecer à comunidade um meio suple-
que queremos defender para a subjectividade e para a vida mentar de trabalhar e de se engrandecer. O leque de artigos
no mundo do trabalho e, para além disso, nas instituições e esperados é portanto alargado porque poderão ser publica-
na organização da cidade. das na revista contribuições emanadas de todas os ramos
das ciências humanas assim como das ciências da enge-
nharia ou das ciências biomédicas, na medida em que, tra-
Acção, praxis e teoria tando do trabalho ou da acção, elas não atribuam ao sofri-
mento e ao sujeito apenas um estatuto de acessório
Por mais que esta nova revista reflicta as preocupações decorativo, antes lhes atribuam um espaço significativo
formuladas por um grande número dos seus potenciais lei- sustentado por referências explicitamente situadas.
tores, relativamente à acção no campo da saúde no traba- Um convite, de todo o modo, a ler, a escrever, a trabalhar e
lho, ela não tem por vocação dar ou propor modos de utili- a fazer trabalhar, um convite endereçado a cada uma da-
zação. A acção não consiste na aplicação de procedimentos quelas e a cada um daqueles que se reconhecem no projec-
ou na execução de instruções. Ela passa por decisões sa- to de desenvolver uma clínica do trabalho e de acção no
pientes. E a sapiência, aqui entendida como sapiência práti- centro da qual terá sido deliberadamente decidido colocar a
ca, supõe não somente agir com autenticidade mas agir questão do sujeito.
convenientemente. Uma acção é tanto mais conveniente
quanto mais rigorosamente pensada ela é. Para isto é pre- Julho de 1998
ciso poder apoiar-se em conhecimentos, teorias e concei-
80 «Trabalhar» não é «derrogar» • Christophe Dejours

Notas ES

«Trabajar» no es «derogar»
[1] Derrogar: perder os privilégios da nobreza por exercício de
uma profissão incompatível com ela, ver (Diccionnaire Robert de la
langue française) N.T.-. Em português o significado de derrogar
não é (pelo menos actualmente) este; todavia o autor usa, no FR

texto, o termo com o sentido que ele tem em português: o de «Travailler» n’est pas «déroger»
anular ou revogar.
[2] NT – Em Francês o autor utilizou a palavra “perlaboration” que
é um neologismo inventado para traduzir o termo: Durcharbei-
tung (Travail "à travers"). EN

«Working» is not «derogating»

Como referenciar este artigo?

Dejours, Ch. (2011). «Trabalhar» não é «derrogar».


Laboreal, 7, (1), 76-80.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV6582235338949::5542
VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 81-104 81

REVISÃO TEMÁTICA
Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania
e da coesão social

Maria da Conceição Pereira Ramos

Faculdade de Economia - Universidade do Porto Resumen A través de un planteamiento


Rua Dr. Roberto Frias, 4200-464, Porto multidisciplinar, proponemos caracterizar la
cramos@fep.up.pt economía social y solidaria, tercer sector,
organizaciones sin ánimo de lucro, mostrando su
importancia en las sociedades contemporáneas y
su visibilidad creciente en las ciencias sociales.
Presentamos diferentes conceptualizaciones y
planteamientos teóricos de la economía solidaria;
especificidades de esta economía plural en el
desarrollo local y su potencial de empleo;
responsabilidad social y ética en la financiación
solidaria, en la promoción de la ciudadanía y
equidad y en la construcción de un paradigma
económico alternativo; papel de la ciudadanía
empresarial en la inclusión social y desarrollo de
iniciativas que promueven el empreendedorismo
social, el microcrédito y el voluntariado. Concluimos
que la sedimentación de una economía alternativa
no es tan solo de importancia económica, pero
también ética y política. La acentuada crisis en el
mercado de trabajo, las fuertes desigualdades y los
riesgos de exclusión social exigen de los diferentes
actores de la sociedad, públicos y privados, nuevas
formas articuladas de intervención social y
comunitaria. Las potencialidades de la economía
solidaria son múltiples: valorizar la promoción del
empleo y del empreendedorismo, el desarrollo
social y territorial, el refuerzo de la cohesión social
y de la ciudadanía, la lucha contra el desempleo y la
pobreza. Esta economía presenta desafíos y
oportunidades de innovación en sus relaciones con
el Estado y la sociedad civil, y de reinvención del
mismo Estado-Providencia.

Palabras clave economía social, tercer sector,


responsabilidad social y ética, microcrédito,
economía alternativa y plural.
82 Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos

1. Políticas sociais e promoção da economia social duziram, de forma rápida, medidas significativas. Em 1986,
e solidária a adesão à Comunidade Económica Europeia teve impactos
na protecção social, no emprego e na formação (Ramos,
O modelo actual de desenvolvimento económico, assente na 1998; Pereirinha & Nunes, 2006), surgindo políticas comu-
competitividade, coloca novos desafios à construção de nitárias para erradicar a pobreza e garantir a protecção aos
uma sociedade inclusiva e à reestruturação dos próprios grupos sociais mais vulneráveis e desfavorecidos (o rendi-
modelos de protecção e de direitos sociais. A partir da se- mento mínimo garantido, actualmente intitulado rendimen-
gunda metade da década de setenta, do século XX, assisti- to social de inserção, foi aplicado a partir de 1/7/1997). Fo-
mos na Europa, ao aumento da instabilidade do emprego e ram tomadas medidas reformadoras do sistema de
à extensão do desemprego de longa duração. O crescente segurança social, melhor adequadas à evolução económi-
número de situações de não cobertura social evidencia a ca, demográfica, social e familiar e iniciativas legislativas
necessidade de alargar a acção do Estado aos indivíduos de protecção social no desemprego e de incentivo à promo-
que se encontram fora do mercado de trabalho ou que são ção e criação de emprego.
vítimas do trabalho precário. O agravamento das desigual- O modelo de Estado-Providência foi, em Portugal, comple-
dades sociais, associado à emergência de novas formas de mentado pelo modelo de sociedade-providência, onde a di-
pobreza, não encontrando solução nos quadros de inter- nâmica das redes e relações familiares e sociais se substi-
venção anteriormente constituídos, é uma ameaça para a tuíram a um Estado insuficiente nos domínios das políticas
coesão social e põe à prova o Estado social e os seus meios sociais, levando Santos e Ferreira (2001) a caracterizar o
de acção. As políticas sociais visam responder a fenómenos “quase Estado-Providência” português. Desenvolveram-
de pobreza e de exclusão social, o que nos remete para a -se, por compensação, formas correlativas de sociedade-
protecção social (Ferrera, Hemerijck & Rhodes 2000). Esta -providência, a partir de redes informais, de grupos sociais
tenta promover, por um lado, mecanismos que visem es- e das suas instituições, núcleos de parentesco e de vizi-
sencialmente a previdência e, por outro, acções de carácter nhança ou formas complementares de organização parale-
social ou assistencial, que respondem a situações de ca- la ao Estado, como as mutualidades, as instituições ligadas
rência e necessidade. A segurança social enfrenta uma cri- à Igreja, as parcerias e o associativismo local.
se, persistente, e é decrescente o número de contribuintes, A política social em Portugal é suportada pela Segurança
face ao aumento de beneficiários. Não obstante o facto dos Social e também por espaços de solidariedade, assimilados
regimes de segurança social se apresentarem hoje de for- pela sociedade-providência – Instituições Particulares de
ma mais completa, há situações humanas e sociais concre- Solidariedade Social (IPSS) – Terceiro Sector ou Economia
tas que não se enquadram nos mecanismos da sua organi- Social (Barros & Santos, 1997; Variz, 1999). Apesar de cons-
zação e funcionamento. É neste contexto que a acção social tituir uma obrigação do Estado (Art. 63.º da CRP), o exercí-
visa colmatar lacunas dos regimes e potenciar a sua eficá- cio da acção social é efectuado essencialmente pelo sector
cia e humanização. Os serviços de acção social prestados privado e a Igreja Católica, em especial pelas IPSS, embora
por instituições públicas e privadas, previnem ou auxiliam num sistema de contratualização, maioritariamente finan-
situações de exclusão, disfunção ou doença, apoio à família ciado por transferências do Orçamento do Estado. As IPSS
e resposta a novos problemas sociais. desempenham um papel fundamental no apoio à comunida-
A coberto das razões associadas ao financiamento e à sus- de e à família, encontrando importante suporte financeiro
tentabilidade da segurança social, tem-se assistido, na Eu- nos acordos de cooperação com a Segurança Social. Um
ropa, a uma forte pressão para a desregulamentação dos objectivo do programa da Comissão do Livro Branco da Se-
sistemas sociais e diminuição da intervenção do Estado na gurança Social (1998) foi o de promover o terceiro sector ou
protecção social com o objectivo de redução da despesa pú- economia social e criar condições para novas parcerias en-
blica, no quadro do Pacto de Estabilidade e Crescimento tre o Estado e a sociedade civil, consentâneas com o mode-
(PEC), diminuindo as prestações do regime contributivo e lo social europeu e seu aprofundamento.
privatizando algumas das suas componentes. A precariza- A acção da segurança social, neste domínio, não prejudica o
ção de alguns grupos da população, devido à instabilidade princípio da responsabilidade dos indivíduos, das famílias e
do emprego e à redução dos níveis de protecção dos siste- das comunidades locais na prevenção e protecção das situ-
mas sociais, provoca a necessidade da acção social (Ramos, ações referidas. A par da acção directamente desenvolvida
2003). As políticas de protecção social, apesar de todas as por instituições de segurança social, importa mencionar a
pressões contraditórias, são um instrumento importante que resulta de acordos de cooperação celebrados com enti-
de salvaguarda dos direitos de cidadania e de coesão social dades públicas ou privadas. A acção social exercida por ins-
(Esping-Andersen, 2002). tituições particulares de solidariedade social (IPSS), autar-
O Estado-Providência foi uma criação tardia, em Portugal. quias locais e empresas, está sujeita a enquadramento
Só a partir de 1974, com o processo democrático, se intro- legal que se aplica igualmente a estabelecimentos com fins
Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos 83

lucrativos. O direito português privilegia o exercício da ac- lé, 2003; Demoustier et al., 2006). Portugal integra o grupo
ção social desenvolvido no âmbito das IPSS, entidades pri- de países europeus com “maior aceitação do conceito de
vadas da iniciativa da comunidade para a persecução de economia social” (CIRIEC, 2000), a par da França, Itália, Es-
tarefas de interesse geral e o seu papel está consagrado panha, Bélgica, Irlanda e Suécia.
pela Lei de Bases da Segurança Social. O Artigo n.º 64 da A discussão acerca do terceiro sector, ou da economia so-
Constituição da República Portuguesa, refere o direito à cial, na definição e implementação de politicas sociais pre-
criação e desenvolvimento das IPSS, regulamentadas por tende reflectir sobre o seu papel na reforma e no avanço de
lei e sujeitas à fiscalização do Estado. A legislação evoluiu lógicas solidárias de participação colectiva, que reabilitem
na necessidade crescente de enquadrar o papel destas Ins- a função do Estado na provisão de bem-estar social e na
tituições, associações mutualistas e outras, na cooperação articulação enriquecida entre actores públicos e privados
e complementaridade na protecção social. Desde a aprova- (Santos, et al., 1998; Archambault, 1999; Evers, 2000).
ção do Estatuto das IPSS (Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Como afirma Estevão (1997), existem duas tradições de
Fevereiro), as competências das mesmas têm sofrido alte- abordagem do terceiro sector ou economia social: a dos
rações, referindo o Artigo n.º 2 deste DL as formas que elas académicos de tradição anglo-saxónica, orientada para a
podem assumir: Associações de Solidariedade Social, As- investigação das organizações não-lucrativas (ONL), isto é,
sociações de Voluntários da Acção Social, Associações de organizações de natureza jurídica privada, baseadas na so-
Socorros Mútuos (ou Associações Mutualistas), Fundações lidariedade e nas actividades voluntárias não remuneradas
de Solidariedade Social e Irmandades da Misericórdia (ou (voluntary sector), que não distribuem lucros aos seus mem-
Santas Casas da Misericórdia). As IPSS podem ainda agru- bros; a tradição francófona, que considera a economia so-
par-se em Uniões, Federações e Confederações e têm o es- cial como uma via autónoma, nem pública nem privada, de
tatuto de entidades de utilidade pública. intervenção no mercado, de acordo com valores e princípios
que configuram um modelo de organização específico (Lal-
lement & Laville, 2000). Se a literatura sobre o non profit
2. Economia solidária, economia social, terceiro sector esclarece certos componentes da economia social
sector, organizações sem fins lucrativos (principalmente associações e fundações), ela ignora as co-
operativas e uma parte das mutualidades, em nome da “im-
posição de não-distribuição dos lucros”, a toda a organiza-
2.1. Conceitos, natureza e fronteiras ção non profit (Nyssens, 2000). A noção de economia social,
em contrapartida, é mais ampla, como refere Defourny
A utilização do conceito de economia solidária generalizou- (2009), pois não exclui a busca de lucro, se a sua alocação e
-se nos últimos 25 anos do século XX em vários continentes, modos de gestão da empresa forem não capitalistas.
sobretudo a partir de França e de alguns países da América No “Dicionário Internacional da Outra Economia” (Cattani et
do Sul, especialmente o Brasil, face à necessidade de supe- al., 2009), Laville e Gaiger referem as acepções variadas do
ração da dualidade público/privado e procurando dar res- conceito de economia solidária agregando-as à ideia “de
postas à crise do Estado-Providência e à dissolução cres- solidariedade, em contraste com o individualismo utilitaris-
cente das formas de solidariedade familiares e comunitárias. ta que caracteriza o comportamento económico predomi-
Se nos países francófonos se fala de economia solidária, nante nas sociedades de mercado” (2009, p. 162). O anti-
nos países anglo-saxónicos é a expressão terceiro sector -utilitarismo define-se “por oposição à economia e à ciência
que é geralmente utilizada para designar uma situação hí- económica dominantes e à cristalização e condensação de
brida entre mercantil e não mercantil, monetário e não mo- práticas, visão do mundo e filosofia utilitaristas” (Caillé,
netário. "Economia solidária”, "Economia social", "Terceiro 2009, p. 16). A concepção anti-utilitarista da dádiva [1] é parte
sector", "Sector não lucrativo", "Economia comunitária", integrante da economia solidária, instituindo o lugar da
“Economia civil”, “Economia de comunhão”… são expres- economia de outra forma e “subordinado principalmente a
sões que designam organizações situadas entre o Estado, o exigências de gratuidade, dádiva e democratização” (Caillé,
mercado e a comunidade, o social e o económico, nos seus 2009, p. 107). A economia solidária posiciona o princípio da
objectivos e modelos organizacionais, procurando organi- solidariedade, no centro da actividade económica, e é utili-
zar o trabalho de outras formas que não as impostas pela zada para qualificar o conjunto de actividades que contri-
exclusiva racionalidade capitalista. É enorme a abrangên- buem para a democratização da economia a partir do envol-
cia do conceito de economia social e solidária, permanecen- vimento dos cidadãos (Laville, 1999; Carvalho & Dzimira,
do pouco clara a sua definição conceptual e teórica e va- 2000; Fourel, 2001; França & Laville, 2004).
riando o seu grau de desenvolvimento e de reconhecimento, O sector não lucrativo, referido como terceiro sector, eco-
de país para país, devido a factores económicos, históricos, nomia social ou sector voluntário, é constituído por diferen-
políticos, sociais e culturais (Azam, 2003; Bidet, 2003; Cail- tes instituições organizadas, sob a forma de associação,
84 Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos

fundação, misericórdia, cooperativa, mutualidade, clube, incluindo seguros e financiamentos, e em que a distri-
etc., prosseguindo variados objectivos. buição pelos sócios de eventuais lucros ou excedentes
realizados, assim como a tomada de decisões, não estão
As características comuns deste tipo de organização, directamente ligadas ao capital ou às cotizações dos
numa perspectiva económica, reside na regra de não seus associados, correspondendo um voto a cada um de-
distribuição dos lucros gerados na actividade e no de- les. A economia social também inclui empresas privadas
senvolvimento de uma actividade que prossegue o organizadas formalmente, com autonomia de decisão e
bem-estar social, caracterizando-se, portanto, pela liberdade de filiação, que prestam serviços de “não mer-
oferta de bens e serviços quase-públicos ou quase- cado” a agregados familiares e cujos eventuais exceden-
-privados (Barros, 1997, p. 14). tes realizados não podem ser apropriados pelos agentes
económicos que as criam, controlam ou financiam (CI-
A designação de "terceiro sector" prende-se com o facto de RIEC, 2007, p. 9).
apelar a dois tipos de recursos: é criado por iniciativa priva-
da, mas recebe financiamento e orientações do Estado, Também em Portugal o conceito de economia social não é
existindo neste sector as organizações que funcionam como muito claro, incluindo, quer organizações com nítida inter-
empresas (apesar do objectivo não ser o lucro, como nas venção no mercado, como as cooperativas e as mutualida-
cooperativas) e as que funcionam como instituições de ad- des, quer organizações com fins assistencialistas, como as
ministração privada, financiadas por donativos, quotas, vo- misericórdias (Barros & Santos, 1998, 1999; Mouro, 2001). A
luntariado e apoios estatais (o caso das IPSS). Constituição da República Portuguesa, relativamente aos
A noção de Economia Social engloba duas realidades distintas, sectores de propriedade dos meios de produção (Art.º 82.º),
separa os dois sub-sectores – do cooperativismo e da eco-
(…) ligadas entre si por valores de autonomia e solida- nomia social. A revisão constitucional de 1997 acrescentou
riedade social (cidadania): por um lado, a Economia So- uma alínea ao n.º 4 deste Artigo: “também integram o sec-
cial, enquanto actividade de suporte social (apoio às tor cooperativo e social os meios de produção possuídos e
franjas desfavorecidas da população ou em processos geridos por pessoas colectivas sem carácter lucrativo, que
de exclusão), por outro, a Economia Social como um tenham como principal objectivo a solidariedade social, de-
modelo de actividade económica alternativo ao capita- signadamente as entidades de natureza mutualista”. Portu-
lista, no qual a actividade económica e organizacional gal faz parte da “variante mediterrânica” do modelo euro-
respeite os direitos do Homem enquanto ser integral e peu de economia social, onde coexistem importantes
actue de forma a impossibilitar a geração de exclusão organizações caritativas ligadas à Igreja, com organizações
(Nunes, Reto & Carneiro, 2001, p. 33). laicas associadas a uma rede cooperativa forte (Archam-
bauld, 2001, 2008).
Estes autores caracterizam as organizações da economia Em França, este sector é bem sedimentado, datando a ex-
social partindo dos seguintes critérios (idem, p. 56): prosse- pressão "economia social" do século XIX, e tendo entrado
cução de fins não-lucrativos ou impossibilidade de apro- no direito francês no início dos anos 80, do século XX, para
priação dos excedentes pelos associados; prática de uma designar o conjunto constituído pelas cooperativas, mutua-
gestão democrática e participação dos trabalhadores; ên- lidades e associações cujas actividades de produção as as-
fase na qualidade dos produtos e serviços, em detrimento similam a esses organismos (Vienney, 1994). O lucro não
da margem de lucro; existência de processos formais e sis- era o objectivo dessas organizações criadas para respon-
temáticos de controlo da qualidade; investimento na forma- der às necessidades não satisfeitas ou mal satisfeitas pelas
ção dos trabalhadores, ao nível das suas competências téc- empresas ou pelo Estado, nomeadamente, nos domínios da
nicas e organizacionais; aplicação dos excedentes na acção protecção social, dos serviços sanitários e sociais, de segu-
social e seu objectivo primordial de bem-estar ou equilíbrio ros, bancários e financeiros. Existem entidades da econo-
social; autonomia financeira face ao Estado ou outras enti- mia social que são específicas de determinados países. É o
dades, ou viabilidade económica e, finalmente, a sua natu- caso das misericórdias (criadas no século XV) e das IPSS,
reza jurídica, privada, pública e social. em Portugal. Algumas das instituições classificadas na
O Manual da Comissão Europeia, define da seguinte forma a economia social não se reconhecem como tal, exemplo das
economia social: cooperativas na Alemanha, Reino Unido, Letónia e, em par-
te, Portugal (CIRIEC, 2007, p. 21).
Conjunto de empresas privadas organizadas formal- Segundo a Aliança Cooperativa Internacional (ACI), uma co-
mente, com autonomia de decisão e liberdade de filia- operativa
ção, criadas para servir as necessidades dos seus asso-
ciados através do mercado, fornecendo bens e serviços,
Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos 85

(…) é uma associação autónoma de pessoas unidas vo- de. A economia social é concebida como uma forma possível
luntariamente para prosseguirem as suas necessida- de organização económica e uma definição sumária aponta
des e aspirações comuns, quer económicas, quer so- para as actividades económicas que dizem respeito “à so-
ciais, quer culturais, através de uma empresa comum ciedade de pessoas que busquem democracia económica
democraticamente controlada. (…). A lógica cooperati- associada à utilidade social” (Defourny, 2009, p. 156).
va contraria a lógica lucrativista das empresas capita- A noção de solidariedade constitui uma referência para o
listas, dominante nas sociedades actuais (cit. in Namo- estabelecimento de uma regulação democrática, sobre a
rado, 2009, p. 96). qual Marcel Mauss reflectiu nas conclusões do seu “Ensaio
sobre a dádiva” (1923-24), esboçando os fundamentos de
Nas organizações cooperativas, estão conjugados coo- uma abordagem plural da economia [2]. Neste contexto, a
peradores oriundos de diversos grupos sociais, como “economia de comunhão” apresenta-se como um projecto
por exemplo as cooperativas de empresários, no caso que adopta a categoria de “comunhão” e de reciprocidade
da comercialização. “No século X X, com poucas excep- na concretização da vida económica e social (Bruni, 2000,
ções, o cooperativismo de produção e consumo inte- 2010; Leite, 2007).
grou-se paulatinamente à economia de mercado e con- A economia solidária é uma oportunidade para um tipo de
verteu-se em uma modalidade de empresa participativa, sociedade com vocação social, uma nova alavanca potencial
sem a antiga unidade entre capital e trabalho” (Laville & da política de emprego, um modo de organização económi-
Gaiger, 2009, p. 164). ca alternativo (Lipietz, 2001; Jeantet, 2008; Laville, 2009).
Se a economia solidária supõe da parte dos seus membros Nas suas diferentes vertentes, surge como uma forma de
uma posição contra os valores dominantes da competição resistência ao modelo económico dominante e a sua expan-
individual e da primazia do capital sobre o trabalho (Singer, são nas sociedades modernas conduz a considerar um ter-
2002, 2006), nem sempre apresenta capacidade de mudan- ceiro sector da economia, a par do sector mercantil e do
ça de fundo do modo de produção capitalista e existindo o sector público, dotado de características específicas. A
perigo da sua mistificação e utopia. Assim, o conceito de economia solidária não pode ser ignorada na busca de um
economia solidária reveste-se na actualidade, “muito mais modelo económico e de uma acção pública renovada, obe-
de um ‘constructo ideal’ que não esclarece as relações de dece a uma lógica distinta da capitalista e não deve alhear-
produção e de organização do trabalho” (Sousa, 2008, p. -se dos movimentos e dinâmicas sociais alternativos (Gues-
59), exigindo uma reflexão mais aprofundada sobre a natu- lin, 1998; Innovations, 2002; Ferreira, 2005). Neste sentido
reza desta economia, e igualmente sobre a sua metodolo- Bartoli (2003) acentua a natureza plural da actividade eco-
gia, conceitos e indicadores (Bouchard, 2004). nómica, em contraposição à racionalidade do mercado e da
acumulação privada. Na sua obra, “Economia Multidimen-
sional” (Bartoli, 1991, p.179), assinala que “ignorar a inte-
2.2. A natureza social e plural da economia – novo racção da ética e da economia é condenar-se a não ter se-
paradigma alternativo ao capitalismo? não uma concepção truncada da racionalidade”. No mesmo
sentido, vai o pensamento de Hirschman (1984) e de Sen
A que desafios responde a economia solidária? Pode ajudar (1987, 2004), ao insistirem na necessidade de introduzir as
à procura de novos compromissos entre a troca mercantil, considerações políticas, sociais, morais e éticas, na econo-
as restrições públicas e a dádiva, num universo de compe- mia, face à incapacidade da análise económica tradicional
tição e de exclusões? Constitui um ajustamento ou alterna- em pensar a diversidade dos comportamentos humanos. A
tiva à sociedade de mercado? Como explicar a existência economia plural “parte do pressuposto de que as relações
das organizações sem fins lucrativos e, sobretudo, a pere- entre os produtores e entre estes e a natureza são regidas
nidade de organizações que não têm a rentabilização do ca- por princípios económicos plurais e assumem formas insti-
pital investido como objectivo? tucionais igualmente diversas” (Laville, 2009, p. 145).
Favreau e Lévesque (1986, cit. in Paixão, 1998) apontam duas As contribuições de Laville (1994, 2003), Evers (2000), Evers
perspectivas teóricas divergentes da economia social. A pri- e Laville (2004) apoiam-se nos trabalhos e concepções eu-
meira, baseada nos princípios neo-liberais, entende este ropeias do terceiro sector. A sua hipótese é que não há van-
sector como um paliativo para a inevitabilidade de exclusão tagens em opor Estado, mercado e organizações sem fins
social provocada pelo funcionamento da economia. A econo- lucrativos, tendo o terceiro sector não apenas uma função
mia social é vista como não competitiva, visando assegurar de ajuste social dentro do sistema, mas ocupando um espa-
uma alternativa de integração para os excluídos do trabalho ço intermediário de intervenção “interligando esses dife-
assalariado. A segunda centra-se na redefinição das rela- rentes espaços, combinando diversos recursos e racionali-
ções entre economia e sociedade, procurando revalorizar o dades sociais, ele caracteriza-se pela diversidade dos
poder dos cidadãos e democratizar a economia e a socieda- modos de hibridação, implantados pelas associações que o
86 Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos

constituem” (Evers, 2000, p. 567, tradução livre). É mais • A “abordagem institucional”, associada à Escola Institu-
pertinente examinar as dinâmicas sócio-históricas que as- cional Americana, considera a tensão entre eficiência
sociam Estado, mercado, família e terceiro sector, numa económica e coesão social uma constante da sociedade
perspectiva de pluralismo da protecção social, de “econo- ocidental. As ONL contrabalançam a influência das
mia plural” ou de "economia solidária" (OCDE, 1996; Rous- grandes corporações no processo de decisão governa-
tang et al, 1996). mental, assumindo o papel de canais de informação que
Não tendo o lucro como objectivo, a missão das organiza- permitem aos grupos sociais menos protegidos infor-
ções da economia solidária ou do terceiro sector é consubs- mar o governo das suas preferências, permitindo-lhe
tanciada na sua finalidade social, sendo a obtenção de re- actuar para compensar efeitos perversos do mercado e
cursos financeiros um meio e não um fim. Várias teorias contrabalançar o efeito da procura de lucro sobre os va-
tentaram responder à questão da função económica das lores sociais.
organizações sem fins lucrativos [3] (Anheier, 1996; Barros,
1997, pp. 16-17): Os valores e as atitudes morais e éticas dos cidadãos são
parte integrante da cidadania, da economia e do desenvolvi-
• Para a “teoria dos bens públicos”, as organizações não mento (Hirschman, 1984; Sen, 1987, 2004). A economia so-
lucrativas (ONL) satisfazem procuras especificas de cial e solidária pode reconciliar a economia e a moral, a
bens públicos ou quase públicos, que o sector público justiça e o lucro (Azam, 2003), na mesma linha de orienta-
não satisfaz. ção de outros autores: “Talvez mais que dantes, precisamos
de uma economia na qual o desenvolvimento social não seja
• A “teoria da confiança” considera que, não tendo as ONL uma preocupação subsidiária, relegada a mecanismos
como objectivo o lucro, são mais fiáveis em contexto de compensatórios, uma economia cuja lógica intrínseca im-
informação assimétrica, no fornecimento de certos plique e estimule a cooperação e a reciprocidade, em bene-
bens e serviços, cuja qualidade é de difícil certificação, fício da equidade e da justiça social” (Laville & Gaiger, 2009,
dados os custos de supervisão. A opção pelas ONL deve- p. 168). Uma economia com responsabilidades sociais ao
-se ao facto dos consumidores preferirem minimizar o serviço do bem-estar de todos, pois como sublinha Latou-
risco de abuso da posição dominante do produtor no che (2003), o apelo ao altruísmo e à solidariedade é mistifi-
mercado de informação assimétrica. cador enquanto não for regulado o problema da justiça. Di-
ferentes autores apostam na ideia de que a globalização da
• Segundo a “teoria dos stakeholders”, a procura não é economia social fará contrapeso à globalização da econo-
suficiente para explicar a existência de ONL, mas sim a mia de mercado (Lautier, 2003; Boulianne et al., 2003; Fa-
organização do mercado; o elemento determinante das vreau, 2003; Demoustier, 2004). O termo "economia solidá-
ONL seria os “stakeholders” (participam no conselho, ria" abrange elementos como sustentabilidade, meio
aderentes e financiadores que controlam as ONL, atra- ambiente, diversidade cultural, desenvolvimento local,
vés dos dirigentes) que estabelecem um triângulo entre competitividade, governabilidade, eficiência e uma outra
“stakeholder” (dador), produtor (ONL) e utente. As ONL, mundialização. Mas fica a interrogação de Latouche (2007):
intermediárias entre os escassos dadores e os numero- que tipo de ética e economia mundiais podem levar a uma
sos utentes, assegurariam a ligação entre eles. sociedade mais justa?
As organizações não lucrativas constituem uma vasta área
• A “teoria da heterogeneidade” considera os empreende- de pesquisa, que passa pela introdução dos comportamen-
dores religiosos, portadores de valores ideológicos, e os tos altruístas por parte dos agentes económicos no contexto
activistas étnicos como determinantes das ONL. Este da teoria económica, pela discussão da eficiência na afecta-
tipo de empresário maximiza o lucro não financeiro (ma- ção do bem público e da sustentabilidade da política social
ximização da fé, da influência política e da afirmação ét- no longo prazo. O campo da Economia Social e Solidária ou
nica), através da ONL, cuja existência sinaliza o mercado do Terceiro Sector deve ser entendido na dinâmica das rela-
dos objectivos altruístas, não mercantis do empresário. ções entre economia pública e privada. Ao invés de reduzir o
conceito de economia à ideia de mercado ou de Estado, pa-
• Para a “teoria neo-institucionalista”, o sistema legal rece mais adequado defini-la em termos de economia plu-
condiciona a existência da ONL, a descentralização polí- ral, admitindo uma pluralidade de paradigmas e de princí-
tica incentiva a resolução da falência de mercado atra- pios de comportamento económico. Deste modo, torna-se
vés da ONL e a desigualdade sócio-económica potencia possível reconhecer, avaliar e compreender, de modo mais
o aparecimento das ONL. adequado, o que se produz fora do circuito do Estado e do
mercado, muitas vezes de maneira não monetária e, por
isso mesmo, em geral insuficientemente avaliado.
Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos 87

3. Dinâmicas da actividade na economia solidária bros da UE, apesar de esforços como o das Nações Unidas
(2003). Em Portugal, saliente-se igualmente a capacidade
empregadora desta economia (Canaveira de Campos, 2006
3.1. O potencial de criação de emprego cit. in Ramos, 2007). As IPSS empregariam mais de 71 mil
pessoas, existindo trabalho voluntário nestas instituições.
A economia solidária, em todas as suas modalidades, tem As cooperativas ocupavam mais de 51 mil trabalhadores,
despertado interesse crescente na construção de uma Eu- sendo em maior número as cooperativas agrícolas, de habi-
ropa de maior coesão social e solidariedade. Destaque-se o tação e construção e as de serviços. As misericórdias em-
trabalho desenvolvido pelo Centro Internacional de Pesqui- pregariam mais de 17 mil trabalhadores e as mutualidades
sa e Informação sobre Economia Pública, Social e Coopera- 4 mil. As fundações apresentam objectivos significativos
tiva (CIRIEC) e a criação de um departamento que enquadra nas áreas da solidariedade social, educação e ciência. Ape-
este sector (Unidade de “Economia Social” na DGXXII - Po- sar da economia social ser responsável por 4,2% da popula-
lítica Empresarial, Comércio, Turismo e Economia Social, ção activa em Portugal, este valor está abaixo da média dos
1989). A União Europeia reconhece as potencialidades da países desenvolvidos (7,4%) (Franco, 2005, a partir dos re-
economia social para a diminuição do desemprego, a cria- sultados do “Comparative nonprofit sector Project” da Uni-
ção de emprego e o desenvolvimento local, criando a acção- versidade Johns Hopkins, nos EUA – vejam-se os trabalhos
-piloto “terceiro sistema e emprego” (Cimeira do Luxem- de Salamon et al., 1999, 2004).
burgo, 1997). Assinale-se ainda a criação do Intergrupo As organizações de apoio ajudam a reestruturar e consoli-
Economia Social no Parlamento Europeu (1990) e a Resolu- dar sectores da economia social e, segundo Gazier, Outin &
ção deste sobre economia social (2009,b), “pedra angular do Audier (1999) e Spear (cit. in CIRIEC, 2000), são muito dife-
modelo social europeu”. Foram publicados relatórios e pa- rentes no que concerne às formas de estruturação e de
receres do Comité Económico e Social Europeu, sobre o gestão. Podem assumir diversas tipologias (públicas, semi-
contributo da economia social para a prossecução de objec- -públicas ou outra, local, regional, sectorial ou nacional),
tivos de política pública. Também em Portugal foi criado em áreas de actividade (apoios técnico, económico e social para
2010 um Conselho Nacional para a Economia Social (CNES). a sustentabilidade) e graus de especialização. As estrutu-
A União Europeia (UE) estima ser possível criar postos de ras de apoio são cruciais para incentivar o empreendedo-
trabalho, com base em necessidades locais não satisfeitas, rismo, a inovação e a manutenção de boas práticas, relati-
em sectores como os serviços de proximidade, recupera- vamente às estratégias de emprego na economia social.
ção e reciclagem de materiais, reordenamento da fauna, A União das IPSS representa uma estrutura de apoio ao
reabilitação e protecção dos meios naturais, ecoturismo e crescimento do sector e assume um papel de representa-
recuperação do património urbano. Segundo um estudo so- ção política e de negociação. As actividades das IPSS são
bre o terceiro sector e o emprego, realizado para a Comis- importantes no domínio da família, velhice, doença, invali-
são Europeia, a economia social (cooperativas, mutualida- dez, desenvolvendo áreas de acção social e da saúde, que o
des e associações) empregava quase 9 milhões de pessoas Estado tem vindo a abandonar, conferindo-lhe este cerca de
a tempo inteiro na União [4], isto é, 9% do emprego civil assa- 70% dos seus encargos financeiros com a acção social (Sil-
lariado, para além de incorporar um volume significativo de vestre, 1997, cit. in Nunes et al, 2001). A grande maioria dos
trabalho voluntário (CIRIEC, 2000, p. 25). O relatório “A eco- postos de trabalho nas áreas da acção social é ocupada por
nomia social na União Europeia” (CIRIEC, 2007) assinalava, mulheres, sendo importante a contribuição voluntária in-
em 2005, na UE25, mais de 240 mil cooperativas em dife- formal feminina. Assinale-se a condicionante mão-de-obra
rentes actividades: agricultura, intermediação financeira, qualificada, sendo o ensino básico o nível de habilitação
sector retalhista e alojamento, indústria, construção e ser- predominante, e o facto de muitos dos empregos no terceiro
viços. Estas cooperativas davam trabalho directo a 3,7 mi- sector serem de baixa qualidade, precários e informais. O
lhões de pessoas e correspondiam a mais de 143 milhões ganho médio do terceiro sector de acção social é, em média,
de filiados. Mais de 120 milhões de pessoas eram assistidas inferior ao observado para o conjunto da economia, e cons-
por mutualidades ao nível da saúde e da segurança social, tata-se esta realidade no sector associativo, onde a diferen-
tendo as mútuas seguradoras uma quota de mercado de ça salarial com o sector privado é visível (Pérotin, 2001).
23,7%. Se ao sector cooperativo se juntar outras iniciativas Demoustier (cit. in CIRIEC, 2000) e 2001 refere a instabilida-
da economia social (associações, fundações e organizações de do emprego na economia social e solidária, devido ao
afins), os valores ascendem a 11 milhões de pessoas em- facto de, por um lado, ser difícil profissionalizar os traba-
pregues, o que equivale a 7% da população activa da União lhadores (nomeadamente, os voluntários) e, por outro, exis-
Europeia. tir instabilidade de programas e financiamentos.
Existem insuficiências de informação estatística sobre eco- Para além de absorver o desemprego originado pela inca-
nomia social e solidária, nomeadamente nos Estados mem- pacidade do Estado e do sector lucrativo em criar emprego,
88 Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos

há outro contributo importante da economia solidária que é operação social e da entreajuda. Um segundo elemento
o de reinventar a própria noção de trabalho, através da re- explicativo associa-se às transformações socioeconómicas
valorização do trabalho socialmente útil que não ocorre es- que afectaram as estruturas de emprego dos países desen-
tritamente no contexto da relação salarial, como é o caso do volvidos, podendo distinguir-se dois grandes tipos de activi-
significativo trabalho voluntário (Ferrand-Bechmann, 2000; dades. O primeiro associa indústrias e serviços estandardi-
RFAS, 2002; Anheier, 2003). Trabalham na UE25, mais de 5 zados, isto é, serviços logísticos (transporte, grande
milhões de voluntários a tempo inteiro (CIRIEC, 2007, p. 7). distribuição,…) e serviços administrativos (bancos, segu-
Muitas das organizações da economia social e solidária em ros, administrações,…), com pouca capacidade para criar
Portugal têm uma forte componente de trabalhadores em novos empregos e recrutar pessoal mais qualificado. A si-
regime de voluntariado, o que é bem visível nas associações tuação difere com os serviços imateriais e relacionais, onde
(de bombeiros voluntários, de desenvolvimento local, des- é fundamental a relação de serviço, porque a actividade é
portivas,…), IPSS e fundações, mas também nos partidos, baseada na interacção directa entre fornecedor e benefici-
sindicatos, cooperativas, cáritas, mutualidades, misericór- ário (Roustang, 1987, cit. in Ramos, 2003). Já que os efeitos
dias e todas as organizações sem fins lucrativos que cum- qualidade e variedade compensam o efeito de substituição
prem serviços de apoio e regulação socioeconómica e rea- entre trabalho e capital, compreende-se porque, apesar
lizam tarefas com vista à promoção da qualidade de vida, das dificuldades económicas, estes serviços (educação,
cultura e recreio [5]. saúde, acção social, serviços domésticos,…), foram, nos úl-
timos anos, mais do que os precedentes serviços, reais fon-
tes de emprego. Outro factor de desenvolvimento do tercei-
3.2. Os serviços de proximidade e de solidariedade ro sector e dos serviços de solidariedade tem a ver com
razões sócio-demográficas (envelhecimento da população,
Os serviços de proximidade na Europa têm contribuído para diversificação dos perfis familiares e aumento das famílias
o desenvolvimento da economia solidária (Laville et al., monoparentais,…), com impacto directo na procura de ser-
1992). Estes serviços cruzam necessidades tradicionais viços, nomeadamente serviços ao domicílio (apoio a idosos,
(serviços de apoio pessoal e social) e outras: serviços ao limpeza, preparação de refeições,…).
domicílio; serviços de natureza doméstica prestados no ex- Laville (1994) sintetiza na Fig. 1, as vias de desenvolvimento
terior; pequenas reparações domésticas; segurança e vigi- dos serviços de proximidade em três modelos diferencia-
lância; transportes individuais ou colectivos; ordenamento
de espaços públicos urbanos; produtos e serviços culturais
ligados a identidades locais, formas alternativas de turis-
mo; protecção ambiental, formas de poupança de energia. Economia não monetária
Domínio da reciprocidade
Os serviços de proximidade são "as actividades que se inse-
rem no âmbito das funções tradicionalmente asseguradas
pela família, no espaço doméstico, e que, uma vez transfe-
ridas para a esfera pública, mantêm uma experiência de
proximidade relacional entre prestador e utente" (Feio,
Construção conjunta da oferta e da procura
2000, p.17). Certos autores identificam os serviços de proxi- no quadro de espaços públicos de proximidade
midade como "serviços de solidariedade" (Cette et al., 1993):
ajuda a pessoas idosas, a dependentes e a jovens em difi-
culdade; guarda de crianças; apoio escolar; ajuda à segu-
Estabelecimento de con-
Venda de serviços e
rança de bens e pessoas e à melhoria do habitat; transpor- venções por objectivos
contratualização com
tes locais; serviços ligados ao ambiente; serviços de lazer e com instituições públi-
empresas privadas
cas e para-públicas
cultura; comércio de proximidade.
Como explicar o desenvolvimento dos serviços de proximi-
Democratização por génese
dade e da economia solidária? O primeiro argumento é de reciprocitária e hibridação
ordem sociopolítica e encontramo-lo nas relações merca- entre economias
do-Estado. Se, nos anos 60 e 70 do século XX, existia siner-
gia entre estas duas instituições, a crise de 1973/74 veio Economia
Economia mercantil não mercantil
destabilizar o consenso sobre o qual se baseou o cresci- Domínio do MERCADO Domínio da
mento económico do pós-guerra. Surgem novas exigências REDISTRIBUIÇÃO
de maior qualidade de vida, modificação das formas de par-
ticipação no espaço público, estando a revitalização do ter-
Figura 1 – Ideal-Tipo” de serviço de proximidade, na perspectiva da economia solidária
ceiro sector ligada a esta evolução do agir colectivo, da co-
Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos 89

dos, sendo a economia contemporânea decomposta em tão de lixos, gestão da água, protecção e conservação de
três pólos: economia não monetária; economia não mer- áreas naturais, monitorização e controlo da poluição, pou-
cantil; economia mercantil. O terceiro sector, da economia pança de energia; densificação e aumento da competitividade
solidária, é uma forma híbrida entre os três pólos da econo- dos tecidos económicos locais e regionais: prestação de ser-
mia, rearticulando os princípios económicos de reciproci- viços de consultoria a PME, formação profissional, serviços
dade, troca e redistribuição. de design industrial, serviços de marketing, biotecnologias.
A dinâmica dos serviços à colectividade, dos serviços so-
O modelo americano caracteriza-se, fundamentalmente, ciais e dos serviços pessoais é uma realidade crescente das
pela regulação mercantil e tem forte representatividade economias mais desenvolvidas, constituindo um dos princi-
nos ramos dos serviços pessoais dos EUA, onde se verificou pais elementos do processo de terciarização e de criação de
importante crescimento do emprego. O modelo sueco pro- emprego nos países da OCDE. Os empregos associados aos
cura resolver algumas das ineficiências do Estado-Provi- serviços de proximidade necessitam de ser valorizados
dência, através da descentralização dos seus instrumentos: pela via do estatuto laboral e pelo acesso a formação ade-
centra-se no pólo da redistribuição, garantindo níveis apre- quada.
ciáveis de qualidade dos serviços prestados e dos empre-
gos, embora não possibilite elevada criação de emprego.
Finalmente, as experiências nos diferentes países em insti- 4. A economia solidária em prol do desenvolvimen-
tuições com fins não-lucrativos (o terceiro sector), configu- to local e da cidadania
ram um terceiro modelo de desenvolvimento, assente numa
perspectiva de solidariedade social, fundada no princípio da O processo de desenvolvimento proposto pelas instituições
reciprocidade, enquanto comportamento económico. da economia solidária passa pelo envolvimento da comuni-
Os serviços de proximidade aumentam como "subsector", dade ao nível do desenvolvimento local, um desenvolvimen-
respondendo a necessidades que o Estado não consegue to participativo colocando a ênfase na participação das pes-
colmatar, no âmbito da oferta pública de serviços sociais e soas como eixo central do processo de desenvolvimento. A
“muito para além da economia social e dos serviços sociais, economia solidária tem sido encarada como espaço privile-
na sua forma clássica, obrigam-nos a pensar a sua estrutu- giado para a integração social e, consequentemente, para o
ração aliada às questões da qualidade, da profissionaliza- desenvolvimento social/local/participativo, não só porque
ção, da capacidade de inovar e flexibilizar respostas" (Eva- promove uma variedade de actividades e serviços úteis à
risto, 1999, p. 84). As ofertas heterogéneas neste sector comunidade, nomeadamente os serviços de proximidade,
enquadram-se “em pequenas iniciativas empresariais ou mas também porque abrange uma parte importante da po-
na esfera da economia social; têm subjacente uma lógica pulação com maior dificuldade de inserção laboral e, simul-
localista, isto é, de proximidade, estando, por isso, associa- taneamente, os voluntários que procuram ocupar o seu
dos a iniciativas e à problemática do desenvolvimento local" tempo livre, de acordo com as suas aptidões [6]. No relatório
(idem, p. 83). do CIRIEC (2007), a economia social é apresentada como um
Desde 1995, a Comissão Europeia propõe a utilização das “pólo de utilidade social” multidimensional, proporcionan-
"novas jazidas de emprego" na promoção de iniciativas em- do coesão social, desenvolvimento local e regional, inova-
presariais e na criação de empregos no quadro do desen- ção e emprego, mas é também fonte de participação demo-
volvimento local. A identificação de jazidas de emprego ou crática e integração social (Noya & Clarence, 2007).
de nichos de mercado resulta da avaliação da existência de A proposta de “iniciativas locais de emprego” da OCDE, no
oportunidades tecnológicas e de necessidades de mercado final dos anos 80 do século XX, assumiu importante papel
não satisfeitas ou insuficientemente satisfeitas. No traba- na definição de políticas europeias de combate ao desem-
lho de Centeno e Abrantes (2000, p. 24), os serviços de pro- prego, pobreza e exclusão social. As iniciativas locais de
ximidade são identificados dentro de 5 áreas, como 24 jazi- desenvolvimento social e emprego passam pela dinamiza-
das de emprego: ção da economia solidária, em domínios como os serviços
- serviços da vida quotidiana: serviços domésticos, cuidado e de proximidade ou “serviços de solidariedade” e a recupe-
guarda de crianças, novas tecnologias da informação e co- ração do património urbano. Para a execução destas metas,
municação, assistência a jovens com dificuldades; serviços contribuíram um conjunto de instrumentos enquadrados no
de melhoramento do nível de vida: melhoria e manutenção mercado social de emprego (escolas-oficinas; programas e
das habitações, serviços de segurança, serviços de trans- actividades ocupacionais; empresas de inserção) e algumas
portes públicos locais, revitalização de áreas públicas ur- outras medidas, designadamente de formação e de apoio ao
banas, desporto, comércio local; serviços culturais e recrea- microcrédito (Ballet, 2007; Ramos, 2003, 2005).
tivos: turismo, sector audiovisual, património cultural, O mercado social de emprego (MSE) constituiu um instru-
desenvolvimento cultural local; serviços do ambiente: ges- mento promotor do emprego e de combate ao desemprego,
90 Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos

pobreza e exclusão social, de reforço da cidadania e poten- blemas sociais, constitui-se uma nova forma de conceber a
ciador de maior coesão social, respondendo a necessidades protecção social, no âmbito da acção social. O conceito de
sociais não satisfeitas pelo funcionamento normal do mer- "solução de partenariado" (Ruivo, 2000) combina esforços
cado, com os seguintes princípios: aprofundamento do es- entre entidades públicas e privadas, regionais ou locais, no
pírito de parceria; estímulo à dinamização sócio-local; pro- sentido de promover com maior eficácia um conjunto de di-
moção da capacidade de auto-sustentação económica; nâmicas de desenvolvimento. A relevância das autarquias
qualidade dos serviços prestados; relevância social das locais está nesta articulação de esforços, constituindo os
actividades desenvolvidas; reforço de competências pesso- municípios um bom instrumento de combate à exclusão so-
ais, sociais e profissionais dos desempregados abrangidos; cial, nomeadamente pelo facto de beneficiarem de uma
promoção da empregabilidade de pessoas com possibilida- maior proximidade dos problemas concretos. O território
des reduzidas, no sistema formal de emprego; criação adi- constitui um importante espaço de participação e de inova-
cional de postos de trabalho (Catarino, 1998; Jorge, 2000). O ção (Reis, 2007). A economia solidária procura uma pers-
MSE, potencial empresarial não tradicional, pectiva territorializada de acção e de promoção do desen-
volvimento local e sustentável, aproveitando os recursos
(…) não se reduz a um mercado de emprego social endógenos do espaço onde se insere e as sinergias com
(‘mercado protegido’), nem a um mercado de emprego outras actividades económicas, havendo uma simbiose en-
em serviços sociais. Trata-se de dinamismos, activida- tre os conceitos de desenvolvimento local e de economia
des e entidades privadas sem fins lucrativos, da econo- solidária (Demoustier, 2004), que mobiliza as dinâmicas
mia social. Trata-se também de microempresas e de socio-económicas ao Norte e ao Sul e extra-europeias (De-
pequenas empresas com fins lucrativos, criadas para a fourny et al., 1999; Revue Tiers Monde, 2007).
solução de problemas de emprego dos seus promoto-
res (Henriques, 1999, p. 6).
5. Economia solidária: desafios para a inclusão, a
A expansão do mercado social de emprego para a promoção coesão social e os laços sociais e comunitários
da empregabilidade beneficiou de novas formas organizati-
vas e de uma intervenção estatal integrando áreas socioeco- A economia solidária é apontada como uma resposta ao
nómicas tradicionais e formas locais específicas, constituin- agravamento da crise do trabalho e à crescente insatisfa-
do assim, desafios à reestruturação do Estado-Providência e ção com o desempenho do sistema público de segurança
à sua articulação territorial. social. Os limites do modelo de crescimento económico vi-
Já em 2000, num Seminário Europeu sobre "Desenvolvi- gente decorrem de vários factores, entre os quais: agrava-
mento Local, Cidadania e Economia Social", foi reconhecida mento do fosso entre países ricos e países periféricos, sem
a importância desta economia: na articulação da actividade acesso à satisfação das necessidades básicas; pobreza
económica com respostas a necessidades sociais e aspira- persistente e exclusão social crescente no interior dos paí-
ções colectivas de base local; no potencial de criação de ses ricos, onde as desigualdades têm aumentado e consti-
emprego e de desenvolvimento local (apoio social, lazer e tuem uma ameaça à coesão social (ILO, 2008); enfraqueci-
cultura, protecção ambiental, educação…); na eficácia para mento do poder das instituições políticas nacionais, face à
a sociedade inclusiva, permitindo a consolidação de compe- orientação das suas economias no sentido do bem-estar
tências nas esferas social, comunitária, profissional e em- dos cidadãos e da prossecução da solidariedade.
presarial; na necessidade de políticas activas de promoção Manuela Silva sintetiza desta forma o recurso à economia
do emprego e do desenvolvimento local; na integração das social:
intervenções do mercado social de emprego e no desenvol-
vimento sócio-local. É visível a ligação entre economia so- Recorrem à economia social os marginalizados e excluídos
cial e desenvolvimento comunitário, sendo este “assente das sociedades afluentes, como estratégia de sobrevivên-
numa perspectiva de valorização das comunidades locais e cia. Não encontrando lugar no mercado de trabalho,
das suas aspirações e capacidades” (Amaro, 2009, p. 108). criam a sua própria empresa individual, com a media-
Em Portugal, onde o Estado-Providência é pouco desenvol- ção do Estado, sob diferentes modalidades de ajuda
vido, o crescimento de uma sociedade-providência não se (subsidiação inicial, facilidades de formação profissio-
encerra nas Instituições Particulares de Solidariedade So- nal, assistência técnica na constituição e arranque,
cial, passando também pelo desenvolvimento de redes in- etc.). Recorre à economia social o sector público adminis-
formais de apoio social e de parcerias locais. Com a criação trativo, responsável pela política social, como meio de ali-
da rede social (Resolução do Conselho de Ministros nº viar a pressão dos custos sociais sobre o erário público,
197/1997 de 18 de Novembro), estrutura local que promove pressão essa que tem origem no agravamento da dis-
a articulação dos diversos parceiros na resposta aos pro- funcionalidade social, produzida pelo modelo económi-
Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos 91

co dominante. Recorre à economia social a sociedade ci- e de reconversão das pessoas com vista ao emprego no
vil, confrontada com a falta de resposta pública e mercantil sector formal, mas do desenvolvimento de um sector espe-
para os múltiplos e graves problemas sociais com que se cífico, orientado para os serviços e laços comunitários e
defrontam as sociedades modernas, multiplicando orga- guiado pela ética da utilidade social, capaz de contrariar as
nizações sem fins lucrativos, destinadas a operar nos forças do mercado".
vários domínios sociais (Silva, 2000, p. 30). São assim atribuídas à economia solidária capacidades de
promoção de coesão social, ao fomentar a participação so-
Às organizações da economia social, atribui-se uma tripla cial e a cultura democrática ao nível local e territorial (Bar-
função: thélemy, 2000), bem como de "distribuição e redistribuição
de rendimentos e riqueza de forma mais justa do que a em-
• Promover a coesão social, combatendo as diferentes for- presa capitalista tradicional" (Chaves & Monzón cit. in CI-
mas de exclusão social, estimulando a criação de em- RIEC, 2000, p. 140).
prego e melhorando as condições de empregabilidade; As oportunidades económicas são decisivas nas situações
de exclusão social, a qual implica privação, falta de recur-
• Promover a coesão económica, combatendo as diferentes sos ou ausência de cidadania, isto é, a participação na so-
formas de marginalidade económica e estimulando a ciedade, aos diferentes níveis (cultural, económico, político
criação de riqueza; e social) (Sen, 2003; Costa, 2008). A cidadania plena realiza-
-se pelo acesso às oportunidades e liberdades económicas
• Promover uma cultura de participação cívica, combatendo e políticas que o desenvolvimento oferece aos membros da
as consequências negativas do recuo dos programas sociedade, entre as quais: oportunidades de educação e de
sociais universais característicos do Estado Providência saúde; apoio à procura de emprego e ao desenvolvimento
(Welfare State) e de contextos macroeconómicos de de actividades por conta própria; aumento do empreende-
crescimento e de pleno emprego, e estimulando novas dorismo e da empregabilidade; acesso à formação e qualifi-
formas de governabilidade (governance) ao nível das co- cação profissional e aos níveis de rendimento e poder de
munidades locais (Ferrão, 2000, p. 22). compra elementares. Podemos assinalar dois tipos de ac-
ções em favor de populações desfavorecidas (Amaro, 2000,
Espera-se que a concretização destas funções desenca- pp. 37-38):
deie, ao nível das comunidades locais, diferentes impactos
positivos: novas iniciativas para maior capacidade empre- • Um quadro de protecção, face à competitividade envol-
sarial e criação de emprego; desenvolvimento e inovação vente, através de soluções de "economia social", como
em actividades diversificadas (ambiente, lazer…); consoli- se protagonizou em Portugal, no âmbito do mercado so-
dação de novas competências, alargando as fontes locais de cial de emprego, da "economia de inserção" e/ou de or-
aquisição de conhecimentos inovadores e melhorando as ganizações não lucrativas, de cariz social, nomeada-
condições de empregabilidade; prestação de serviços ade- mente as que integram o "terceiro sector",
quados às necessidades locais e meios acessíveis às comu- correspondente às formas tradicionais da economia so-
nidades, para maior equidade no acesso a serviços social- cial (IPSS, misericórdias, fundações, mutualidades, as-
mente úteis; novas possibilidades de participação cívica, sociações, etc.). A natureza social destas actividades
para uma maior autonomia face a instituições e formas de justifica a protecção ou discriminação positiva de que
regulação do Estado e do mercado (Neves, 2000, p. 42). beneficiam face à legislação, fiscalidade e regras da
A economia social e solidária desempenha um papel impor- concorrência no mercado, constituindo importantes ve-
tante na inserção de populações vulneráveis, pela via do ículos de inserção das populações, através da aquisição
emprego, da qualificação profissional e do apoio empresa- e exercício de competências profissionais.
rial (criação de postos de trabalho e apoio ao auto-empre-
go, contratação de serviços prestados por estas popula- • Um quadro "normalizado", em termos de mercado, mas
ções…), contribuindo para o desenvolvimento das suas em que os objectivos sociais são fundamentais, corres-
potencialidades e a sua participação plena na sociedade, pondendo à "economia social" assumidamente econó-
isto é, para a sua cidadania. As instituições e organizações mica, no âmbito de experiências antigas, como o coope-
da economia social promovem o desenvolvimento social, rativismo e o mutualismo, ou de iniciativas mais
corrigindo desequilíbrios gerados no mercado de trabalho, recentes, nomeadamente associadas à luta contra a
aumentando a empregabilidade de indivíduos com forma- exclusão social, desenvolvimento local ou criação de
ções "socialmente úteis" e de qualidade, face à imprevisibi- auto-emprego para desempregados. A diferença funda-
lidade das transformações laborais. Todavia, como afirma mental, em relação à "economia social protegida", é
Kóvacs (2002, p. 147), "não se trata da partilha do emprego que, nestas actividades, se pretendem compatibilizar
92 Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos

objectivos económicos e sociais, procurando viabilidade ções e limita a capacidade de planeamento a médio e longo
económica, sem protecção, dando origem a uma "eco- prazo [7].
nomia social autónoma". Nas organizações da economia social e solidária, aparece
como pertinente a promoção de acções de gestão e forma-
De acordo com Vivet e Thiry (2000, pp. 42-43), em Portugal, ção profissional: apoio à valorização de competências pro-
o sector associativo carece ainda de ligações entre os ra- fissionais locais e à inovação e eficiência nos processos de
mos da economia social, já que está tradicionalmente afas- trabalho; formação para activos que trabalham no sector,
tado da dimensão económica, coexistindo estruturas mais ou que possam vir a ser integrados profissionalmente; pro-
antigas com estruturas mais dinâmicas, que têm novas for- gramas de modernização e de profissionalização dos méto-
mas organizacionais, e é pouco frequente que as políticas dos de gestão, não existindo um modelo de gestão do ter-
públicas sejam transversais na economia social. No entan- ceiro sector, ou estando longe a sua aplicação de forma
to, esta foi reconhecida pelos Planos Nacionais de Emprego generalizada. O modelo de empreendedorismo e de gestão
e Inclusão, Programa de Desenvolvimento Cooperativo e da economia convencional não responde às necessidades
Planos de Acção Regionais e através do Programa governa- específicas da economia solidária, nomeadamente de for-
mental de Apoio ao Desenvolvimento da Economia Social mação organizacional e de gestão, centrando-se na lide-
(PADES). rança operacional e de topo, visando a viabilização e mo-
As organizações da economia social têm contribuído para o dernização das organizações. São poucas as instituições a
reforço da identidade local e é visível o seu forte potencial valorizar a formação contínua e quando esta existe, é exclu-
para colmatar desigualdades sociais e económicas e, simul- sivamente dirigida aos funcionários, o que assume particu-
taneamente, fomentar o desenvolvimento endógeno de base lar gravidade, dado que, como assinalam Nunes, Reto e
local e territorial, cada vez mais valorizado em consequência Carneiro (2001), há uma baixa escolaridade dos dirigentes
das fragilidades territoriais incutidas pela globalização. deste sector, tornando necessário que a formação contínua
os tenha também como alvo [8]. Em grande parte das insti-
O desenvolvimento local resulta, por um lado, da resis- tuições da economia social, os líderes são voluntários [9],
tência das economias locais e das identidades locais às obtendo como recompensa o reconhecimento público e so-
consequências (…) provocadas pela globalização domi- cial, a satisfação pessoal, o estatuto e o estabelecimento de
nante e que tende a destruir aquelas especificidades. uma rede de contactos. As práticas de gestão da maioria do
Mas, por outro lado, é também a resposta (local) aos sector não possuem sistemas de avaliação da qualidade e
problemas económicos, sociais, culturais, ambientais e satisfação dos utilizadores.
políticos dela resultantes (Amaro, 2009, p. 112). A reestruturação produtiva, decorrente das dinâmicas do
capital e da globalização, é portadora de transformações
A economia solidária tem demonstrado grande capacidade económicas, sociais e laborais (Ramos, 2008). Constata-se
para corrigir deficiências no domínio dos serviços de bem- a crescente associação entre terciarização e flexibilização,
-estar, tais como, serviços socioculturais, muitas vezes de- subcontratação e precarização do trabalho, no quadro das
nominados por serviços de proximidade. estratégias de organização laboral e de externalização de
serviços públicos para o sector privado. Entre as novas for-
mas de terciarização e diversificação da contratação, des-
6. Fragilidades e constrangimentos do emprego, taque-se as cooperativas, em todas as actividades e secto-
formação e gestão na economia solidária - necessi- res de produção, e as ONG/Entidades sem fins lucrativos.
dade de fomentar a inovação e o empreendedoris- Muitas actividades, sob o signo da economia solidária, fa-
mo social zem parte do processo de deslocalização da força de traba-
lho, antes localizada internamente nas indústrias centrais,
Apesar do seu potencial, existem constrangimentos finan- para unidades produtivas subcontratadas pelas empresas.
ceiros, legislativos, políticos, organizacionais e de qualifi- A experiência do Brasil nos anos 1990 (Druck & Franco,
cação dos recursos humanos no domínio da economia soli- 2008) mostra o uso e abuso das cooperativas, pelas empre-
dária: fragmentação do sector e das suas instituições; sas como intermediárias de mão-de-obra, que, a coberto de
divergências internas; questões de identidade e pertença; legislação específica, encontraram um meio legal para se
diluição nos sectores convencionais da economia (mercado desresponsabilizarem dos direitos básicos e encargos so-
e Estado); diversidade no reconhecimento das formas de ciais com os trabalhadores. Segundo as autoras, esta situ-
economia social por parte dos Estados; necessidade de en- ação
quadramento legal de novas iniciativas face à legislação
inadequada. A forte dependência do financiamento público (…) garante às grandes empresas contratantes se utili-
pode colocar em causa a própria autonomia das organiza- zarem de um contrato que as dispensa de todos os cus-
Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos 93

tos associados aos direitos garantidos pelo assalaria- ceiro sector, através do estabelecimento de parcerias na
mento formal. Ou seja, os trabalhadores são implementação de políticas sociais activas. Tais parcerias,
cooperativados e, nesta condição, não são assalaria- entre o Estado e a sociedade civil, envolvem actores de ser-
dos, o que lhes retira a protecção social do Estado já viços públicos (Administração Central e Autarquias) e orga-
que, teoricamente, eles estariam se ‘auto-gerindo’ (…). nizações não governamentais (IPSS, Associações locais e
Muitos trabalhadores perderam o status formal de em- de desenvolvimento local e outras) e assentam em comple-
pregados, passando a ‘sócios’ de cooperativas. Como mentaridades e articulações das respectivas competências
‘sócios’, não têm suas carteiras de trabalho registra- em matéria de inclusão social, intervenção territorial e par-
das, não lhes sendo assegurados básicos direitos (…) tilha de responsabilidades, na detecção dos problemas e
(Druck & Franco, 2008, p. 86). nas soluções encontradas.
Surgem conceitos como o de empreendedorismo social e de
As empresas procuram assim baixos salários, isenções fis- empresa social (Ballet, 1994; OCDE, 1999, 2009; Nyssens,
cais e flexibilidade contratual, colocando o “trabalhador- 2006), designando toda a actividade organizada a partir de
-cooperado” numa situação de controlo e dependência, e uma estratégia empresarial, não tendo como razão principal
resultando desta fragmentação das relações laborais e de a maximização do lucro, mas a satisfação de certos objecti-
produção, um enfraquecimento do poder de organização vos económicos e sociais, assim como a capacidade de, para
dos trabalhadores e a sua exposição a condições de traba- a produção de bens e serviços, encontrar soluções inovado-
lho e de vida mais precárias. ras para os problemas do desemprego e da exclusão. As em-
presas sociais adoptam objectivos explícitos de prestarem
Os estatutos e regimentos das cooperativas são ‘sugeri- serviço à comunidade e a sua dinâmica de gestão é participa-
dos’ pela empresa contratante, que define as normas e tiva, envolvendo diferentes etapas da actividade e distribui-
regras de admissão, demissão, disciplina, hierarquia, ção limitada dos lucros (Borzaga & Defourny, 2001). Desen-
remuneração e férias. (…) Pode-se considerar as coope- volvem-se assim iniciativas socioeconómicas que, não sendo
rativas como a forma de terceirização mais perversa da esfera privada nem da iniciativa pública, promovem um
que se difundiu durante a década, já que precariza o tra- conceito de empreendedorismo com finalidades sociais, que
balho de forma legal – coberta pela legislação – e ali- integra grupos vulneráveis e populações desfavorecidas em
menta uma ilusão para aqueles trabalhadores que acre- iniciativas, adoptando fórmulas empresariais e procurando
ditam ser a cooperativa uma alternativa de autogestão e resultados económicos positivos, mas sem fins lucrativos,
de um trabalho solidário, muito além de uma alternativa tendo como principal objectivo, a luta contra a exclusão só-
ao desemprego (Druck e Franco, 2008, p. 87). cio-laboral (Yunus, 2008; Gaiger, 2009) e cuja incidência eco-
nómica territorial de dimensão micro é importante (Portela,
Assim, muitas cooperativas fazem parte do núcleo produti- 2008; Hespanha, 2009). Torna-se, pois, necessário apoiar
vo das empresas e, de um modo geral, das relações de pro- iniciativas empresariais na economia solidária, colocando-
dução do padrão actual de acumulação. -se desafios à profissionalização dos agentes de mudança
As organizações da economia social estão longe de aplicar que são os empreendedores sociais e os microempresários.
quotidianamente os seus princípios fundadores de decisão
democrática, aprendizagem permanente, participação, sa-
tisfação dos clientes pela qualidade, envolvimento dos tra- 7. Cidadania empresarial, responsabilidade social e
balhadores e preocupação com a legitimidade da sua acção ética e economia de comunhão
na comunidade. Por outro lado, o facto do poder ser centra-
lizado no líder ou direcção, conduzindo à dependência dos Em contraponto à predominância da racionalidade econó-
colaboradores e a um entrave no seu crescimento pessoal, mica utilitarista, há uma incorporação de outros tipos de
pode contribuir para essas limitações. No que concerne aos agir no processo de gestão, vinculados a princípios éticos
objectivos das organizações do terceiro sector, há uma pre- multidimensionais de responsabilidade social. As experiên-
ocupação cada vez maior, relativamente aos valores demo- cias empresariais de “economia de comunhão” indiciam um
cráticos de igualdade, partilha e cidadania e, também, com direccionamento à superação do modelo de racionalidade
a melhor utilização dos recursos locais e com o desenvolvi- exclusivamente utilitarista.
mento económico, político e social integrado. Ao nível europeu (sobretudo na tradição francesa), são mais
Em toda a Europa, as acções em matéria de emprego e de usados os termos de "responsabilidade social" e "coesão
formação das colectividades territoriais aumentaram for- social", enquanto que a influência americana sugere, so-
temente, desde meados dos anos 70 do século XX (Greffe, bretudo, a expressão "cidadania empresarial". Esta ganha
1988). Um dos eixos de intervenção das políticas de empre- importância e desperta responsabilidades alargadas na co-
go passa pelo desenvolvimento da economia social e do ter- munidade empresarial, traduzindo a noção de que a liber-
94 Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos

dade de competir e obter lucros tem de ser acompanhada (…) segundo o qual as empresas decidem, numa base
da obrigação de ser socialmente responsável. A constata- voluntária, contribuir para uma sociedade mais justa e
ção de que o Estado não pode assumir sozinho a responsa- para um ambiente mais limpo. (…). Esta responsabili-
bilidade dos grandes problemas da sociedade, num contex- dade manifesta-se em relação aos trabalhadores e,
to de globalização e consequente aumento da concorrência, mais genericamente, em relação a todas as partes inte-
reforça o interesse pela responsabilidade social empresa- ressadas afectadas pela empresa e que, por seu turno,
rial a partir do final dos anos oitenta do século XX. podem influenciar os seus resultados (Comissão Euro-
O desenvolvimento das preocupações éticas nas empresas, peia, 2001, p. 4).
leva-as cada vez mais a justificar os seus meios de acção e
a finalidade das suas actividades e a assumir responsabili- Este conceito remete-nos para duas dimensões da respon-
dades em relação aos seus membros e à sociedade (Ballet sabilidade social empresarial (RSE). A dimensão interna diz
& Bry, 2001; Pesqueux & Biefnot, 2002; Ramos, 2005; Ca- respeito aos trabalhadores e, nomeadamente, ao investi-
pron & Quairel, 2010). Alguns sinais nesse sentido são visí- mento no capital humano, gestão dos recursos humanos,
veis em empresas mercantis, integrando códigos de condu- saúde e segurança no trabalho, gestão e adaptação à mu-
ta ética, finalidades de solidariedade social, equilíbrio dança (critérios de reestruturações), gestão do impacto
ecológico e ambiental, empresas solidárias para a aplica- ambiental e dos recursos naturais. A dimensão externa da
ção ética de fundos de pensões e outras aplicações e ban- RSE incide sobre comunidades locais, parceiros comer-
cos concedendo crédito às classes desfavorecidas. (Amou- ciais, fornecedores e consumidores, autoridades públicas e
roux, 2003; Carvalho et al., 2003; Notat, 2003; Chaveau & ONG, direitos humanos e preocupações ambientais.
Rose, 2003). Se a crise estrutural do Estado-Providência exige o envolvi-
As empresas preocupam-se com os impactos gerados no mento de todos no combate à pobreza e exclusão social, é
macroambiente em que se inserem, constituindo-se agen- necessário adoptar políticas económicas e sociais inclusi-
tes de desenvolvimento económico e social. “Ser ‘boa cida- vas e estimular comportamentos empresariais de respon-
dã’, para uma empresa, não é somente respeitar escrupu- sabilidade social. Defende-se que os processos de reestru-
losamente as leis e os regulamentos do país onde ela opera, turação e modernização empresariais não provoquem
é, ao mesmo tempo, contribuir com uma mais valia econó- rupturas susceptíveis de afectar a coesão social, com a op-
mica, constituir um elemento vivo do ambiente social” (Ra- timização dos recursos disponíveis e a implementação de
mos, 2003, p. 99). Como dissemos nesta obra, criando ri- boas práticas de solidariedade, instrumentos preventivos
queza e emprego, dispensando formação, desenvolvendo de novas exclusões. Na apreciação dos resultados, será de-
acções sociais, educativas e culturais, a empresa envolve- sejável introduzir outros parâmetros, para além do mero
-se na luta contra o desemprego e a exclusão, a solidarie- objectivo de maximização do lucro, muitas vezes obtido à
dade em relação aos mais desprotegidos, a inserção de jo- custa da precariedade do vínculo laboral e de níveis sala-
vens e desempregados de longa duração, a melhor riais e condições de trabalho pouco dignificantes para a
afectação do território, melhorando a qualidade de vida e o pessoa humana. Para Bartoli (1999), a economia é indisso-
bem-estar das colectividades locais. ciável da ética, tem como objectivo primeiro ser “obra de
A reflexão ética na empresa diz respeito à responsabilidade vida, servir a vida”. É importante analisar as relações entre
desta, em relação aos actores internos e externos e com os a ética, a economia e a responsabilidade. Bartoli (1991,
diferentes parceiros. Segundo a "teoria das partes partici- 1999, 2003) e Sen (1987, 2004) consideram a economia em-
pantes" (tradução livre), citada por Mercier (1999, pp. 60- pobrecida pelo distanciamento entre a economia (e a sua
61), uma empresa que assume as suas responsabilidades visão mecanicista e positivista) e a ética. Estas questões
sociais reconhece, por um lado, as necessidades e priorida- sublinham a indispensável redefinição do papel da econo-
des dos intervenientes da sociedade; por outro lado, avalia mia e das empresas na governação e consistência do tecido
as consequências das suas acções no plano social, a fim de social no território onde operam, não podendo continuar
melhorar o bem-estar da população em geral, ao mesmo omissas nas suas responsabilidades sociais e na aprecia-
tempo que protege os interesses da sua organização e dos ção dos resultados empresariais. A reflexão ética interro-
seus accionistas. A questão dos direitos humanos, das prá- ga-nos ao nível do trabalho, economia, sociologia, organi-
ticas de boa gestão em matéria de emprego, condições de zações, sobre a finalidade de uma empresa, a sua
higiene e segurança no trabalho, vigentes nas unidades descoberta como uma comunidade humana, ajudando à in-
produtivas, ganha terreno na imagem externa da empresa e trodução de novos métodos de gestão de recursos humanos
influencia o consumidor. e de organização do trabalho e à elaboração de novas rela-
No Livro Verde, a Comissão Europeia define responsabili- ções sociais (Ramos, 1996).
dade social empresarial como um conceito Diferentes autores apelam assim a uma nova visão da eco-
nomia e da empresa, na qual se integra devidamente a di-
Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos 95

mensão social da mesma, isto é, o papel que a empresa ambiental [10]. A divulgação de boas práticas de gestão em-
desempenha na economia e na sociedade, como um todo, e presarial, em áreas distintas como acção social, educação,
assuma a responsabilidade ético-política daí decorrente. cultura, desporto, ambiente, saúde, ciência, constitui um
Estando o ser humano muito para além dos estreitos limi- objectivo das organizações promotoras: facilitar a prática
tes do "homem económico" em que assenta, ainda, a teoria do voluntariado pelos trabalhadores e desenvolver progra-
económica, surgem projectos como o de economia de comu- mas que envolvam também os familiares; patrocinar pro-
nhão e de empresas movidas por motivações ideais. jectos de interesse social, cultural, ambiental; promover
formação junto de públicos vulneráveis; apoiar instituições
A empresa é, naturalmente, gerida de modo a promo- sem fins lucrativos; negociar parcerias com organizações
ver o incremento dos lucros, que os empresários deci- não governamentais, visando implementar projectos de ci-
dem, livremente, destinar, com igual cuidado: para dadania empresarial. Ser socialmente responsável é cada
crescimento da empresa – para ajudar pessoas com vez mais concebido como uma vantagem competitiva e faz
dificuldades económicas, começando por quem com- parte de uma gestão de excelência, onde existem valores de
partilha a “cultura do dar” – para a difusão dessa cultu- qualidade e inovação.
ra (…), segundo critério determinado anualmente pelos Em Portugal e na Europa têm surgido iniciativas em favor
órgãos de direcção da empresa (Molteni, 2000, p. 92). do investimento responsável e da aceitação voluntária de
princípios básicos de ética empresarial [11]. No nosso país o
Encontram-se entre as empresas associadas ao projecto Conselho Económico e Social aprovou um parecer neste do-
de economia de comunhão, preocupações de desenvolvi- mínio, em 2003, e esta preocupação aparece nas Estraté-
mento humano, com soluções organizativas favoráveis à gias Europeias para a Inclusão, assim como no número
assunção de responsabilidades por parte de cada um, en- crescente de empresas que entram em parcerias, no âmbi-
volvimento dos colaboradores no processo de decisão, to de programas de luta contra a exclusão social e de inicia-
atenção à segurança e qualidade do ambiente de trabalho, tivas de desenvolvimento local, contribuindo para uma eco-
oportunidades de formação permanente, promoção de um nomia mais inclusiva e solidária (OECD, 2003).
ambiente humano marcado por respeito, confiança, estima
recíproca e cooperação. A força dos empreendimentos soli-
dários, influindo tanto no momento da distribuição da rique- 8. Microfinança e Microcrédito, instrumentos
za, como no da produção, reside no facto de combinarem, de politicas sociais activas de luta contra o
tanto o espírito empresarial, na procura de resultados atra- desemprego, a pobreza e a exclusão
vés de planificação e optimização dos factores produtivos,
humanos e materiais, quanto o espírito solidário, a cultura Uma proposta integral de economia solidária deve articu-
de partilha, de tal forma que a cooperação produz vanta- lar-se com outros esforços de promoção de actividades
gens reais, comparativamente à acção individual. Lançando económicas solidárias, tais como finanças solidárias e co-
a comunhão como novo paradigma económico que propõe mércio justo. Este comércio é definido por Cortera e Ortiz
um novo agir de gratuidade e de encontro com o outro (Bru- (2009) como “o processo de intercâmbio de produção-dis-
ni, 2010), este movimento desafia as empresas para a “cul- tribuição-consumo, visando um desenvolvimento solidário
tura do dar” e a prática de “economia de comunhão”, conju- e sustentável” (p. 60). Os defensores do comércio justo de-
gando rendibilidade, solidariedade e equidade (Bruni & sejam maior igualdade, solidariedade, reformas e transpa-
Zamagni, 2010). rência nas relações comerciais internacionais, podendo um
Competitividade e responsabilidade social reforçam-se sistema económico mais justo constituir um instrumento de
mutuamente nas modernas estratégias empresariais, sen- redução da pobreza (Stiglitz & Charlton, 2007).
do múltiplas as vantagens das empresas que associam a As microfinanças verificam um crescimento rápido nos últi-
compatibilização entre a melhoria da performance econó- mos anos, confirmando a sua capacidade de responder a ne-
mica e da performance social (Porter & Kramer, 2006; Or- cessidades não satisfeitas. O Banco Mundial (Ledgerwood,
litzly, 2008): imagem e reputação melhoradas junto da co- 1999) define microfinanciamento como a "prestação de ser-
munidade; colaboradores mais satisfeitos e motivados para viços financeiros a clientes de baixo rendimento, incluindo os
enfrentar de forma mais competitiva novos desafios; me- do auto-emprego", acrescentando que, apesar de algumas
lhoria das competências de gestão; maior produtividade e instituições de microfinança forneçerem serviços de desen-
resultados; capacidade acrescida de resistência a crises volvimento empresarial, tais como formação profissional,
conjunturais. Algumas empresas disponibilizam funcioná- marketing e serviços sociais (alfabetização e cuidados de
rios para acções de interesse social, orientam estágios e saúde), estes não são incluídos na definição de microfinan-
apoiam actividades circum-escolares, organizam acções ciamento. O microcrédito diz respeito ao acto de conceder
de voluntariado, nas áreas da acção social e da protecção crédito, enquanto a microfinança se refere à provisão de ser-
96 Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos

viços financeiros, incluindo poupança e seguros, sendo, por- foram concedidos empréstimos a pessoas que puderam
tanto, um conceito mais abrangente e que engloba o micro- iniciar a sua própria actividade económica e criar postos de
crédito (Sengupta & Aubuchon, 2008). Na concepção do trabalho, sendo a taxa de retorno dos empréstimos elevada.
Grameen Bank (Banco dos pobres), que tem em Yunus (2010) Trata-se, essencialmente, de pequenos negócios de produ-
a sua principal referência, o microcrédito traduz uma reali- ção de bens ou prestação de serviços: limpezas, pequenos
dade complexa e pressupõe um mecanismo formal ou semi- comércios, costura, reparações domésticas, restauração,
-formal de prestação de serviço de crédito. vestuário, artesanato.
O microcrédito tem um papel importante no combate à po- A ANDC trabalha em parceria com diferentes pessoas e ins-
breza, exclusão social e desemprego, contribuindo para o tituições: voluntários que se quotizam para financiar a as-
desenvolvimento económico local e a melhoria da vida das sociação; instituições financeiras que concedem créditos
pessoas, com uma multiplicidade de iniciativas geradoras aos microempresários, seleccionados pela Associação; or-
de rendimentos (Johnson & Rogaly, 1997; Guérin & Vallat, ganismos públicos que implementam medidas de luta con-
1999). O sucesso das experiências de microfinança e de mi- tra o desemprego e a exclusão (IEFP); instituições locais
crocrédito, enquanto produto financeiro, deve-se a alguns próximas das populações; organizações estrangeiras con-
factores (Gibbons, 1999; ACEP, 2000): relações próximas géneres, nomeadamente no quadro da Rede Europeia de
entre o banco e os clientes; capacidade de acesso aos po- Microfinanças. Aparece como necessário articular o traba-
bres; imagem do banco transmitida pelos técnicos; partici- lho da ANDC com outras instituições de economia solidária,
pação significativa das mulheres; reforço das capacidades com as autarquias locais e com os serviços públicos de pro-
das comunidades e grupos locais; promoção do bem-estar moção do emprego e acção social, no sentido de desenvol-
através da criação de microempresas e da cooperação de ver relações de parceria e aprofundar o trabalho em rede,
entre-ajuda tradicionais. dinamizando o desenvolvimento local e a sensibilização dos
A ideia do Grameen Bank expandiu-se mundialmente (Khan- técnicos para identificarem potenciais microempresários e
dker et al., 1995; Attali & Arthus-Bertrand, 2007), tendo sido agentes de desenvolvimento no terreno.
o ano de 2005 consagrado ao microcrédito, por decisão das Há necessidade de promover os sistemas de microfinança,
Nações Unidas. O microcrédito foi encorajado na União Eu- incluindo o microcrédito, fomentadores de mudanças so-
ropeia e pelo Parlamento Europeu (2009,a), aprovando-se cio-económicas, e de questionamentos sobre as suas res-
em Julho de 2009, a criação de uma Estrutura de Microfi- ponsabilidades sociais (Revue Tiers-Monde, 2002, 2009).
nanças Europeia para o Emprego e a Inclusão Social. O mi- Quando se apela cada vez mais à ética e responsabilidade
crocrédito tem sido adaptado à realidade europeia e as social empresarial, a aplicação em fundos para financiar
perspectivas estão a melhorar no sentido de o tornar um microprojectos é um instrumento pertinente, para a inclu-
instrumento eficaz de políticas sociais (Jayo et al., 2010). A são social dos mais desfavorecidos. Os modelos de inter-
sua eficácia baseia-se em acreditar que os pobres e os so- venção do microcrédito podem ser implementados ao nível
cialmente excluídos, sem possibilidades de recorrerem às das micro e pequenas organizações do terceiro sector.
oportunidades de crédito na banca, podem desenvolver um Questiona-se o estatuto do microempresário e das organi-
pequeno negócio e criar o seu próprio posto de trabalho, zações de microfinança, entre as medidas reparadoras ac-
mediante a atribuição de um pequeno empréstimo, conce- tivas de integração social, atendendo às mutações em cur-
dido na base da confiança nas pessoas, nas suas capacida- so, aos dinamismos da globalização das economias, das
des e responsabilidades (Evers, Lahn & Jung, 2007; Nowak, culturas e das sociedades e aos rumos das políticas sociais.
2008). O microcrédito possibilita assim aos cidadãos desfa- Os “banqueiros solidários” constituem um grupo profissio-
vorecidos, a participação nos mecanismos económicos in- nal que se autonomiza progressivamente da profissão de
tegradores e a participação cidadã, afirmando o crédito banqueiro clássico, ocupando um espaço de cruzamento
como direito humano fundamental a relacionar com outros entre a finança, a banca e o trabalho social (Moulévrier,
direitos, devendo todos usufruir dos mesmos direitos for- 2010). Seria desejável que os organismos financeiros revis-
mais e efectivos (Sen, 2003). sem o seu paradigma de desenvolvimento e as suas práti-
Em Portugal, o microfinanciamento não constitui ainda um cas, de forma a integrar a economia solidária como uma
importante mecanismo de integração social das popula- componente incontornável do desenvolvimento sustentá-
ções excluídas, mas em conjunto com outras políticas acti- vel. A microfinança é pouco objecto de investigação ou de
vas de emprego, tem um potencial inovador para desenvol- estudo nas Universidades, quando a análise do seu disposi-
ver o empreendedorismo e o microempresariado em tivo e funcionamento necessita a tomada em conta de di-
populações com dificil integração sócio-profissional, refor- mensões económicas, sociais, políticas e culturais.
çando o seu rendimento familiar, empowerment e autoesti-
ma (Mendes, 2007). Desde 1998, ano da criação da Associa-
ção Nacional de Direito ao Crédito (ANDC), em Portugal,
Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos 97

9. Considerações finais ções Particulares de Solidariedade Social (IPSS), por exem-


plo, respondem a diferentes carências sociais, com particu-
Há dificuldades em estabelecer critérios definidores de lar relevo nas áreas da infância e juventude, invalidez,
economia social e solidária e insuficiente informação esta- reabilitação e terceira idade. O crescimento de uma socie-
tística sobre o chamado terceiro sector. Este não é mais um dade-providência não se encerra nas IPSS, passando tam-
fenómeno residual, mas continua mal contabilizado, insufi- bém pelo desenvolvimento de redes informais de apoio so-
cientemente teorizado, com ausência de metodologias e in- cial e de parcerias locais.
dicadores específicos para avaliar a sua verdadeira dimen- É de referir, na inclusão social, o papel das empresas, vin-
são. Apesar da sua importância, a economia solidária/ culadoras de valores e práticas sociais, as quais, assumin-
social não é uma realidade estabilizada e os seus contor- do uma gestão empresarial com responsabilidades sociais
nos, assim como o seu futuro, estão em aberto, questionan- e reconhecendo as necessidades dos intervenientes na so-
do-se o impacto da actual conjuntura internacional recessi- ciedade, avaliando as consequências das suas acções no
va no sector. plano social, melhoram o bem estar das populações e con-
A globalização e a natureza sistémica da crise condicionam tribuem para o desenvolvimento social, cultural e ambien-
as prioridades de acção do Estado-nação em domínios tra- tal da comunidade. A importância das várias formas de in-
dicionais da política social, como o emprego e a protecção vestimento socialmente responsável ultrapassa o
social, colocando-se o desafio de manter e, se possível, au- crescimento da economia e do emprego, incentivando o
mentar os níveis de protecção, dadas as restrições de finan- exercício da cidadania, acautelando a dimensão ética dos
ciamento. No contexto sociopolítico de crise do Estado-Pro- negócios, participando no desenvolvimento sustentável e
vidência, os Estados, incapazes de manter as políticas no reforço da coesão social. As crescentes preocupações
sociais em vigor, apelam à intervenção da sociedade civil e éticas na empresa contribuem para introduzir novos méto-
dos actores privados não lucrativos, num projecto de rein- dos de organização do trabalho e elaborar novas relações
venção do próprio Estado-Providência. A economia social e sociais. Lançando a comunhão como novo paradigma eco-
solidária procura inovar na implementação de politicas ac- nómico e propondo um novo agir de gratuidade e de encon-
tivas de emprego e na criação de novas parcerias entre o tro com o outro, o movimento de “economia de comunhão”
Estado e a sociedade civil. desafia as empresas para a “cultura do dar”, conjugando
A economia social coloca o princípio da solidariedade, da rendibilidade e solidariedade.
gratuidade e da dádiva no centro da actividade económica, Um projecto integral de economia solidária articula-se com
contrariamente ao individualismo económico, e a democra- outros movimentos de promoção de actividades económi-
tização da economia a partir do envolvimento dos cidadãos. cas solidárias, tais como finanças solidárias, empreende-
Não é possível negligenciar o papel da economia solidária dorismo social, empresa social e comércio justo. A microfi-
na regulação da sociedade, sendo apresentada como uma nança e o microcrédito, cresceram rápidamente nos últimos
solução para os défices de cidadania, por parte das instân- anos, confirmando a sua capacidade de responder a neces-
cias oficiais, nomeadamente do Estado-Providência. As or- sidades não satisfeitas, e constituindo um instrumento de
ganizações da economia social e solidária procuram outras politica social activa de luta contra o desemprego, a pobre-
formas de organização do trabalho, que não sejam as im- za e a exclusão. Este mecanismo de integração sócio-pro-
postas pela exclusiva racionalidade capitalista, conjugando fissional de populações desfavorecidas, em conjunto com
utilidade e solidariedade. Para além de absorverem o de- outras políticas activas de emprego, tem um potencial ino-
semprego, outro contributo importante é o de revaloriza- vador para desenvolver o empreendedorismo e o microem-
rem o trabalho socialmente útil, como é o caso do volunta- presariado. Aparece como pertinente promover os siste-
riado, e também o de fomentar a entreajuda social, a mas de microfinanca e de microcrédito, e apoiar iniciativas
mutualização e o mecenato. empresariais na economia solidária, assim como a profis-
Apoiar as instituições da economia solidária significa valo- sionalização dos agentes de mudança que são os empreen-
rizar um importante instrumento de inclusão e acção so- dedores sociais e microempresários. Os modelos de inter-
cial, um potencial de empregabilidade, de coesão, de cida- venção do microcrédito podem ser implementados ao nível
dania, de desenvolvimento local e comunitário, com fortes das micro e pequenas organizações do terceiro sector.
possibilidades de crescimento, especialmente nos serviços A economia social e solidária apresenta fragilidades ao ní-
de proximidade ou “serviços de solidariedade” e à comuni- vel dos recursos humanos, técnicos e financeiros e instabi-
dade. Há, assim, desafios à reestruturação do Estado-Pro- lidade dos programas e financiamentos. Há necessidade de
vidência e à sua articulação territorial, indissociáveis de investir na qualificação das organizações da economia soli-
novas formas de organização das competências estatais e dária, na qualidade dos bens que produzem e dos serviços
da sociedade civil, na mobilização colectiva para criação de que prestam, na melhoria da qualificação dos recursos hu-
emprego, combate à pobreza e exclusão social. As Institui- manos e garantia de empregabilidade: valorizar os empre-
98 Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos

gos pela via do estatuto laboral e pelo acesso a formação classificação internacional do Sector não Lucrativo, International
adequada; desenvolver acções de educação e formação dos Classification of Non-Profit Organizations (ICNPO), apresentada por
trabalhadores, incluindo a área do voluntariado; moderni- Salamon e Anheier (1992), corresponde a 7 grupos: cultura e
zar as estruturas de gestão das organizações; formar técni- recreio; instrução e investigação científica; saúde; serviços sociais;
cos ao nível do desenvolvimento organizacional e qualidade ambiente; promoção da comunidade local, tutela de inquilinos e
da gestão e da formação vocacionada para a abordagem desenvolvimento do património habitacional; promoção e tutela de
holística da cultura organizacional e profissional. As orga- direitos civis; intermediação filantrópica e promoção do voluntaria-
nizações da economia social nem sempre aplicam os seus do; actividade internacional; organizações empreendedoras,
princípios fundadores de aprendizagem, participação, sa- profissionais e sindicais (cit. in Barros, 1997, p. 15).
tisfação dos clientes, envolvimento dos trabalhadores e le- [4] As associações fornecem a grande maioria (71% dos empre-
gitimidade da sua acção na comunidade. gos), seguido das cooperativas (25,7%) e das mutualidades (3,1%).
A economia solidária procura sedimentar uma abordagem [5] Cerca de 70% das instituições acolheram voluntários em 2005.
alternativa e plural da economia, admitindo uma pluralida- Nas organizações de escuteiros e das cáritas essa percentagem
de de paradigmas e de princípios de comportamento econó- ascendeu aos 100% (Almeida, 2008). Neste inquérito ao voluntaria-
mico, e repensar uma nova articulação entre Estado, socie- do em Portugal, estima-se em 360 600 o número de voluntários a
dade civil e mercado, catalizando recursos para uma colaborar com as Instituições, dos quais: 105 200 voluntários dos
utilidade social que não ignore exigências de rentabilidade órgãos sociais, 119 400 outros voluntários regulares e 136 000
económica e competitividade, mas valorize a promoção do voluntários ocasionais. A proporção de voluntários face aos
emprego e do desenvolvimento sustentável. Uma econo- trabalhadores remunerados nas Instituições era a seguinte:
mia, como ciência moral, ética e política não pode ignorar a cooperativas – 10,7%; mutualidades – 17,9%; fundações – 25,9%;
busca de um modelo económico comprometido com a justi- associações em geral – 181,1%. Segundo Franco (2005), cerca de
ça social e uma acção pública renovada. O conceito de eco- 30% dos trabalhadores do sector não lucrativo em Portugal são
nomia solidária reveste-se de uma construção ideal nem voluntários.
sempre encontrando nos seus alicerces capacidade de mu- [6] Voluntário é o “indivíduo que de forma livre, desinteressada e
dança estrutural do modo de produção capitalista. Impõe- responsável se compromete, de acordo com as suas aptidões
-se uma análise critica interdisciplinar da economia solidá- próprias e no seu tempo livre, a realizar acções de voluntariado
ria, e havendo necessidade de fundamentar solidamente as no âmbito de uma organização promotora” (Art.º 3º, Lei nº 71/98
teorias, metodologias, conceitos e indicadores que permiti- de 3 de Novembro).
rão apreender a complexidade da realidade e indicar as [7] Em Portugal, 48% dos fundos das organizações não lucrativas
transformações sociais, económicas e politicas de que esta são receitas próprias, 40% provêm das transferências do Estado
economia é portadora, ousando suplantar pressupostos ar- e apenas 12% resultam de filantropia (Franco, 2005).
reigados do paradigma tradicional do trabalho e da econo- [8] No Inquérito ao Voluntariado do OEFP, cerca de 60% das institui-
mia. ções indicaram necessidades de formação específica para
voluntários dos órgãos sociais, dos regulares e do responsável
pela coordenação de voluntários (Almeida, 2008).
Notas [9] Como nota o Inquérito ao Voluntariado (Almeida, 2008), em
Portugal, as actividades empresariais, profissionais e sindicais
[1] Esta concepção inspirou o trabalho da Revue du MAUSS têm essencialmente voluntários nos órgãos sociais, predominan-
(movimento antiutilitarista nas ciências sociais), desde a sua do os do sexo masculino.
fundação, em 1981. Ver La Revue du MAUSS (1993, 1995) e Ramos [10] Em Portugal, foi criada a Confederação Portuguesa de
(1996) « O MAUSS: da crítica do utilitarismo à construção do Voluntariado e o Conselho Nacional para a Promoção do Volunta-
paradigma da ‘dádiva’», pp. 251-253. riado (CNPV). No entanto, não existe no país uma forte cultura de
[2] Diferentes economistas realizaram uma reflexão epistemoló- participação cívica e empresarial e o nível de voluntariado é
gica, sobre a sua ciência. Veja-se nomeadamente Bartoli (1977, considerado relativamente baixo (Mathou, 2010). O ano de 2011 foi
1991), Perroux (1987), Sen (1987, 2004), Marechal (2000), e, em designado como ano europeu do voluntariado.
Portugal, Reis (2007). Nos últimos anos, várias áreas disciplina- [11] O Grupo de Reflexão e Apoio à Cidadania Empresarial
res, debruçaram-se sobre a economia solidária, a “outra (GRACE), associação sem fins lucrativos, procura sensibilizar a
economia” (por exemplo, Laville & Cattani, 2006; Revista comunidade empresarial para a adopção de políticas de respon-
Katálysis, 2008; Revista Crítica de Ciências Sociais, 2009). sabilidade social e partilhar as melhores práticas nesta área. A
[3] As questões do altruísmo e do sector não lucrativo no mercado Rede Portuguesa de Empresas para a Coesão Social, integrada
de trabalho, na literatura e na teoria económica foram abordadas no movimento da Rede Europeia, visa impulsionar, coordenar e
por Stinberg (1990) e Rose-Ackerman (1996). Também Drucker divulgar boas práticas de responsabilidade social das empresas
(1997) se debruçou sobre as organizações sem fins lucrativos. A portuguesas e europeias. Assinale-se, ainda, o Projecto “Econo-
Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos 99

mia de Comunhão”, envolvendo empresários, iniciado em Itália mutualismo português: solidariedade e progresso social. Lisboa:
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Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos 103

PT/ES FR

Economía solidaria, plural y ética, en la Économie solidaire, plurielle et éthique dans


promoción del empleo, de la ciudadanía y de la promotion de l’emploi, de la citoyenneté et
la cohesión social de la cohésion sociale

Resumo Através de uma abordagem Résumé À travers une approche multidisciplinaire,


multidisciplinar, propomos caracterizar a nous proposons de caractériser l’économie
economia social e solidária, terceiro sector, sociale et solidaire, le tiers secteur, les
organizações sem fins lucrativos, mostrando a sua organisations sans but lucratif, en montrant son
importância nas sociedades contemporâneas e a importance dans les sociétés contemporaines et
sua visibilidade crescente nas ciências sociais. sa visibilité croissante dans les sciences sociales.
Apresentamos diferentes conceptualizações e Nous présentons différentes conceptions et
abordagens teóricas da economia solidária; approches théoriques de l’économie solidaire, les
especificidades desta economia plural no spécificités de cette économie plurielle dans le
desenvolvimento local e seu potencial de emprego; développement local et son potentiel d’emploi ainsi
responsabilidade social e ética no financiamento que sa responsabilité sociale et éthique dans le
solidário, na promoção da cidadania e equidade e financement solidaire, dans la promotion de la
na construção de um paradigma económico citoyenneté et de l’équité et dans la construction
alternativo; papel da cidadania empresarial na d’un paradigme économique alternatif. Nous
inclusão social e desenvolvimento de iniciativas abordons le rôle de la citoyenneté
que promovem o empreendedorismo social, o entrepreneuriale dans l’inclusion sociale et le
microcrédito e o voluntariado. Concluímos que a développement d’initiatives que promeuvent
sedimentação de uma economia alternativa não é l’entrepreneuriat social, le microcrédit et le
apenas de importância económica, mas também volontariat. Nous avons conclu que la
ética e política. A acentuada crise no mercado de consolidation d’une économie alternative n’a pas
trabalho, as fortes desigualdades e os riscos de seulement une importance économique, mais
exclusão social exigem dos diferentes actores da aussi éthique et politique. En effet, la crise
sociedade, públicos e privados, novas formas aggravée du marché du travail, les fortes
articuladas de intervenção social e comunitária. inégalités et les risques d’exclusion sociale exigent
As potencialidades da economia solidária são de la part des différents acteurs de la société,
múltiplas: valorizar a promoção do emprego e do publics et privés, de nouvelles formes articulées
empreendedorismo, o desenvolvimento social e d’intervention sociale et communautaire.
territorial, o reforço da coesão social e da L’économie solidaire peut apporter des réponses
cidadania, a luta contra o desemprego e a pobreza. par ses multiples potentialités qui sont : valoriser
Esta economia coloca assim desafios e la promotion de l’emploi et de l’entrepreneuriat,
oportunidades de inovação nas suas relações com favoriser le développement social et territorial,
o Estado e a sociedade civil, e na reinvenção do renforcer la cohésion sociale et la citoyenneté,
próprio Estado-Providência. lutter contre le chômage et la pauvreté. Cette
économie pose ainsi des défis et offre des
Palavras-chave economia social, terceiro sector, opportunités d’innovation dans les rapports avec
responsabilidade social e ética, microcrédito, l’Etat et la société civile et dans la réinvention de
economia alternativa e plural. l’Etat-providence

Mots-clé économie sociale, tiers secteur,


responsabilité sociale et éthique, microcrédit,
économie alternative et plurielle.
104 Economia solidária, plural e ética, na promoção do emprego, da cidadania e da coesão social • Maria da Conceição Pereira Ramos

EN

The role of solidarity, plural and ethical


economy in the promotion of employment,
citizenship and social cohesion

Abstract We aim to characterise the social and


solidarity economy, the tertiary sector and non-
profit organisations, showing their importance
within contemporary societies and how they are
becoming increasingly visible in social sciences,
through a multidisciplinary approach. In addition to
presenting different theoretical conceptualisations
and approaches to solidarity economics, we look
at: the specific nature of the plural economy in
local development and its potential for
employment; its social and ethical responsibility in
solidarity financing, in the promotion of citizenship
and equity and in the construction of an alternative
economic paradigm; the role of business
citizenship in social inclusion and the development
of initiatives that promote social entrepreneurship,
microcredit and volunteer work. We conclude that
it is important to consolidate an alternative
economy not only economically, but also ethically
and politically. The acute crisis in the job market,
the vast inequalities and the risks of social
exclusion mean that the various public and private
actors in society need to find new ways to tackle
social and community intervention. Solidarity
economy has several benefits: it emphasises the
promotion of employment, entrepreneurship and
social and territorial development while
strengthening social cohesion and citizenship and
boosting the fight against unemployment and
poverty. This type of economy poses both
challenges and opportunities for innovation in its
relations with the State and the civil society, as
well as for reinventing the Welfare State itself. Como referenciar este artigo?

Keywords social economy, tertiary sector, social Ramos, M. C. (2011). Economia solidária, plural e ética, na

and ethical responsibility, microcredit, alternative promoção do emprego, da cidadania e da coesão social..
Laboreal, 7, (1), 81-104.
and plural economy.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV658223533894:245552

Manuscrito recebido em: Outubro/2010


Aceite após peritagem: Dezembro/2010
VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 105-107 105

TEXTOS HISTÓRICOS
Introdução ao texto “Higiene pública: estatística de acidentes de trabalho”
de Armand Imbert & Antonin Mestre

Marcel Turbiaux

Groupe de Recherche et d’Etude sur l’Histoire du Travail et de Armand Imbert (1850-1922) foi nomeado, após a sua agre-
l’Orientation (GRESHTO) gação, professor de física médica da faculdade de medicina
Centre de Recherche sur le Travail et le Développement (CRTD) de Montpellier, o que lhe permitiu estar diariamente em
Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM) contacto sobretudo com acidentados do trabalho no hospi-
41, Rue Gay Lussac 75005 tal de Santo Elói daquela cidade.
Paris, France Antes de 1898 os acidentes de trabalho eram considerados,
mturbiau@club-internet.fr como os outros acidentes, como azares da vida. Assim, cair
de um telhado era visto como um risco profissional para o
trabalhador que o construía.
A tradução deste artigo para português foi realizada por Andreia Em caso de acidente de trabalho, o assalariado, para ser
Ferreira e João Viana Jorge. indemnizado, tinha que provar a responsabilidade do seu
empregador que disso se escusava frequentemente invo-
cando força maior ou o fortuito do caso.
A lei de 9 de Abril de 1898 permitia ao assalariado, vítima de
um acidente de trabalho, requerer a reparação sem ter de
provar a culpa do seu empregador, tendo este a possibilida-
de de fazer um seguro para a isso fazer face.
De uma família da burguesia, Armand Imbert descobriu,
devido à sua actividade profissional, o mundo dos operá-
rios, as suas dificuldades e sofrimentos. Assim, para ele, a
lei de 9 de Abril de 1898 era «uma das melhores da Repúbli-
ca», mas os operários não tardaram a queixar-se do rigor
das companhias de seguros que imaginavam ser por eles
exploradas, acusando-os de simular incapacidades e de
exagerar na duração da sua inaptidão, enquanto os patrões
se queixavam dos aumentos de encargos.
A fadiga e o esgotamento estavam então na ordem do dia.
No seu relatório de 1903 sobre a aplicação das leis do tra-
balho no seu sector, Antonin Mestre, inspector departa-
mental do trabalho em Montpellier tinha endereçado ao
inspector divisionário de Toulouse, Le Roy, um estudo sobre
os acidentes de trabalho, ocorridos em l`Hérault, relacio-
nados com as causas que os tinham provocado para con-
cluir que «havia razão para ter em conta um factor tanto
mais grave quanto dominante em todos os acidentes de tra-
balho, aumentando-os em número e agravando-lhes por
vezes a sequência; esse factor é a fadiga dos operários».
A conselho de Armand Imbert encarregado de apresentar
ao XI congresso internacional de higiene e demografia, em
Bruxelas, em Setembro de 1903, um relatório sobre «Em
106 Introdução ao texto “Higiene pública: estatística de acidentes de trabalho” de Armand Imbert & Antonin Mestre • Marcel Turbiaux

que medida se pode, a partir de medições fisiológicas, estu- cool às refeições, sem todavia contradizer as conclusões de
dar a fadiga, as suas modalidades e gradação nas diversas Armand Imbert e de Antonin Mestre.
profissões?», Antonin Mestre estabeleceu, para cada pro- A crítica mais aguda proveio de um engenheiro, Philibert
fissão, um levantamento dos acidentes segundo as horas a Delahaye, antigo aluno da escola politécnica, na Revue in-
que tinham ocorrido. dustrielle de 8 de Outubro (nº 41, p.408), que contestava as
Baseado neste levantamento, Armand Imbert publicou, em conclusões de Armand Imbert e Antonin Mestre, «pouco
Junho de 1904, um estudo sobre os efeitos desta lei e as conciliáveis com as condições do trabalho na indústria». Se
críticas de que foi objecto que lhe permitiram afirmar que ocorrem acidentes é porque o operário, segundo ele, «ao
«um grande número de acidentes resulta directamente do fim de duas ou três horas não presta ao seu trabalho a aten-
estado de fadiga física ou cerebral do operário no momento ção necessária e suficiente».
em que é vitimado e é fácil apresentar provas desta asser- Armand Imbert e Antonin Mestre responderam-lhe na
ção» (p.715), anunciando a publicação de estatísticas deta- mesma revista (nº 45, 5 de Novembro 1905, p.449-450) cen-
lhadas, que aliás resume neste artigo. É este estudo que surando-o por proceder «por simples afirmação sem juntar
está reproduzido na «Revue Scientifique» da qual Edouard provas objectivas», enquanto eles tinham abordado sem
Toulouse (1865-1947) é director da redacção, sob o título preconceito, sem querer «impor» nada a ninguém, com o
«Higiène Publique. Statistique d´accidents de travail». simples anseio de descobrir a verdade substituindo as dis-
Encontrou o estudo grande eco na imprensa que se limitou cussões apaixonadas dos interessados, os dados da ciência
geralmente a publicar um simples resumo mas são de assi- experimental.
nalar algumas reacções: J. Legendre, em Le phare de la Loi- Philibert Delahaye voltará à carga (Revue industrielle, 10 de
re de 30 de Setembro, preconiza a educação do operário Fevereiro, 1906, p.57-58) para retomar e criticar o valor das
enquanto Ernest Lesigne, no Radical, do 5 de Outubro, ad- estatísticas publicadas por Armand Imbert e Antonin Mes-
voga a jornada de oito horas. tre que se absteriam de lhe responder.
Por sua vez, impressionado pelas conclusões deste estudo, Todavia para Raphael Lépine, professor de clínica médica
o inspector divisionário do trabalho de Toulouse, Le Roy, so- na faculdade de medicina de Lyon, num célebre artigo em
licitou aos outros inspectores departamentais da sua cir- que saúda o trabalho de Armand Imbert e Antonin Mestre:
cunscrição que procedessem ao mesmo levantamento: «os «é difícil encontrar argumentos mais positivos a favor da
gráficos estabelecidos pelos Srs. Imbert e Mestre eram limitação das horas de trabalho» (p. 713), salientando as
perfeitamente sobreponíveis aos obtidos pelos outros de- conclusões dos dois autores. Sublinha ele que «o Sr. Imbert
partamentos» (Le Roy Estudo dos acidentes de trabalho, não se deteve em tão bela caminhada». Com efeito, como
Bulletin de l´inspection du travail et de l´higiène sociale, nº 3 e relembrará Jules Amar em Le moteur humain (Paris, H. Du-
4, 1906, p.219-230). Como confirmação o Sr. Le Roy estabe- nod e F. Pinot, 1914, p. 369) «o Professor Imbert foi o primei-
leceu os gráficos de 1903 e 1904 para cada agrupamento ro a mostrar todo o partido que era possível tirar do método
industrial e para o conjunto de todos os agrupamentos. O gráfico para registar os esforços musculares sobre os ins-
seu exame revelou «uma similitude que não deixa qualquer trumentos dos operários», método que utilizou nas suas
dúvida sobre o valor das conclusões do seu estudo. Todas pesquisas sobre o manobrar de cargas em carroças de
essas constatações levam fatalmente a considerar a fadiga tracção animal e em carrinhos de mão, os trabalhos com
como uma das causas principais dos acidentes» (p.221- lima e com alicates de corte e que fazem dele, não somente
222). um dos pioneiros mas um dos mais eminentes represen-
Fernand Mazel, médico numa fábrica de Nîmes, nos Archi- tantes do que se denominou a «ciência do trabalho» no iní-
ves générales de medecine, de Janeiro de 1905 (p.129-141) cio do século XX.
fez, também ele, construir a lista horária dos acidentes
ocorridos durante quatro anos com os operários desse es-
tabelecimento. Confirma assim os resultados de Armand
Imbert e Antonin Mestre: o prolongamento das horas de
trabalho aumenta o número de acidentes mas estima que a
fadiga não é o único elemento a considerar. É necessário,
afirma ele, acrescentar-lhe o consumo de álcool, a obscuri-
dade relativa devida à iluminação eléctrica, etc.
No entanto, o médico belga Léopold Dejace, num artigo do
Scalpel, reproduz na Revue de médecine légale de 1906
(pp.82-85, apoiado na sua experiência de vinte anos numa
fábrica da baciade Liège, põe, também ele, em causa, mas
mais incisivamente que Fernand Mazel, a influência do ál-
Introdução ao texto “Higiene pública: estatística de acidentes de trabalho” de Armand Imbert & Antonin Mestre • Marcel Turbiaux 107

ES

Introducción al texto “Higiene Pública:


estadística de accidentes de trabajo” de
Armand Imbert & Antonin Mestre

FR

Introduction au texte «Hygiène Publique.


Statistique d’accidents de travail» de
Armand Imbert & Antonin Mestre

EN

Introduction to the text “Public health: work


accidents’ statistics” by Armand Imbert &
Antonin Mestre

Como referenciar este artigo?

Turbiaux, M. (2011/1904). Introdução ao texto “Higiene pública:


estatística de acidentes de trabalho” de Armand Imbert &
Antonin Mestre.
Laboreal, 7, (1), 105-107.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV658223533894:355562
108 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 108-114

TEXTOS HISTÓRICOS
Higiene Pública: estatística de acidentes de trabalho

Armand Imbert1 & Antonim Mestre2

1. Professor na Faculdade de Medicina de Montpellier É uma verdade, a ser difundida para além dos meios cientí-
ficos, a de que os métodos e aparelhos de laboratório po-
2. Inspector do trabalho no Departamento de Hérault
dem ajudar a resolver alguns dos mais agudos problemas
existentes entre o capital e o trabalho. Por evidente que
esta verdade o seja para aqueles que se têm preocupado
A tradução deste artigo para português foi realizada por João com este género de utilização prática dos dados da ciência
Viana Jorge experimental, os próprios interessados, patrões e operá-
rios, nem dela suspeitam, e os esforços feitos para a divul-
gar constituem, cremos, uma obra essencialmente útil e
Artigo original: Imbert, A., & Mestre, A. (1904). Hygiène Publique : proveitosa para o interesse geral.
statistique d’accidents de travail. Revue Scientifique, n°13, Tome11 De entre as questões que envolve o actual problema social
(p. 385-390). e cuja solução imparcial pode assim ser procurada fora das
discussões apaixonadas dos interessados, figuram, em
particular, as da duração da jornada (de trabalho) e, mais
genericamente, as da organização do trabalho [1].
Se a produção do trabalho é necessária para assegurar e
conservar o bom funcionamento do motor animado que so-
mos, é impeditivo, sob pena de deterioração do organismo,
que o fornecimento de energia que temos de satisfazer ul-
trapasse determinados limites; é perigoso, além disso, ten-
do em vista o desenvolvimento completo desse organismo e
o seu rendimento futuro, fazer uma utilização excessiva-
mente precoce e intensiva; não é indiferente, por outro lado
que para um mesmo número de horas de trabalho efectivo,
que essas horas de ocupação profissional sejam consecuti-
vas ou entrecortadas por um ou vários períodos de repouso.
Os efeitos nocivos de práticas que seriam desde logo con-
denáveis podem ser investigados por métodos diversos, dos
quais alguns exigem pôr em prática técnicas de laboratório
enquanto outros consistem simplesmente na interpretação
de constatações feitas frequentemente com vista a outra
finalidade.
No conjunto destas últimas deve incluir-se o estudo das es-
tatísticas dos acidentes de trabalho declarados oficialmente
por aplicação da lei de 9 de Abril de 1898 [2]. Por consistir, na
aparência, num simples agrupamento de números, o método
não deixa de ser verdadeiramente científico, ou, mais rigoro-
samente, fisiológico, em termos do seu princípio de base.
Com efeito, o trabalho engendra a fadiga, e esta traduz-se,
em particular, por modificações que sobrevêm no modo de
Higiene Pública: estatística de acidentes de trabalho • Armand Imbert & Antonim Mestre 109

funcionamento do motor que trabalha, o músculo, e que con- 1º > O número de acidentes aumenta progressivamen-
sistem num abrandamento e numa diminuição da intensida- te de hora em hora durante a primeira metade da
de da contracção. Sem entrar no detalhe dos fenómenos, em jornada de trabalho;
rápida sucessão, que se manifestam num operário, a partir
do momento em que ele é advertido de que um acontecimen- 2º > Depois do repouso bastante longo do meio-dia, nas
to súbito surgiu até que efectue os movimentos de defesa ou primeiras horas da segunda metade da jornada de
de recuo destinados a subtraí-lo ao perigo que o ameaça, trabalho o número de acidentes é notoriamente
digamos apenas que um operário está tanto menos apto a menor que na última hora da manhã;
efectuar esses movimentos com a rapidez e a energia ne-
cessárias quanto mais notório o estado de fadiga que apre- 3º > No decurso da segunda metade da jornada de tra-
senta. Segue-se que o número de acidentes deve ser tanto balho os acidentes tornam-se de novo progressi-
maior quanto mais fatigados estão os operários e a distribui- vamente mais numerosos;
ção desses acidentes segundo a hora da jornada de trabalho
durante a qual se verificaram deve fornecer um meio para 4º > O número máximo de acidentes por hora, perto do
avaliar o grau de fadiga dos trabalhadores vitimados. fim da segunda metade da jornada de trabalho é
Tal método de observação é sem dúvida indirecto e estatísti- notoriamente mais elevado que o correspondente
cas desse tipo apresentam sempre algumas incertezas; em máximo da manhã.
contrapartida a distribuição dos acidentes pelas horas a que
aconteceram implica a vantagem de fornecer informações Não se poderia, ao que parece, desejar à priori uma mais
referentes ao conjunto de operários. As particularidades in- rigorosa confirmação das deduções extraídas da influência
dividuais, o nível de treinamento mais ou menos perfeito, a que a fadiga dos operários exerce sobre o aparecimento de
maior ou menor resistência, etc, desaparecem, e os resulta- acidentes; importa todavia garantir em primeiro lugar que
dos representam uma média da qual se deduzirão indicações os acidentes ocasionados pelo exercício de outras profis-
precisas sobre as modificações que podem ter de ser intro- sões conduzem aos mesmos resultados.
duzidas na organização do trabalho de cada profissão.
Tais estatísticas foram talvez organizadas no estrangeiro;
pelo menos encontramos-lhe alguns “traços” em diversos
trabalhos sem todavia conseguir encontrar as próprias es-
tatísticas. Pelo contrário não parece que se tenha ainda, em
França, distribuído os acidentes pela hora de trabalho e as
noções que decorrem deste modo de classificação não pa-
recem habituais entre os principais interessados, operá-
rios, patrões e companhias de seguros. Pode todavia ava-
liar-se, pelo que segue, o interesse que apresenta o estudo
dos dados numéricos que resultam da aplicação da lei de 9
de Abril de 1898 sobre os acidentes de trabalho.
Esta lei, entre outras prescrições, torna obrigatório, para
certas profissões, a declaração de qualquer acidente que
provoque uma incapacidade de trabalho de mais de quatro
dias, e essas declarações são centralizadas, em cada de-
partamento, nas mãos de um funcionário, o inspector de-
partamental do trabalho. São estes documentos oficiais que
utilizámos em primeiro lugar no departamento de Hérault
que conta 56458 operários de diversas profissões submeti-
das àquela lei, os quais foram, no seu conjunto, vítimas de
2065 acidentes declarados.
A curva, a traço contínuo, da fig.63 representa, distribuídos
segundo a hora a que aconteceram, os 660 acidentes relati-
vos às profissões qualificadas oficialmente como de Manu-
tenção e Transportes que englobam 16695 operários. De-
correm imediatamente do exame desta curva as seguintes
indicações gerais: Figura 63
110 Higiene Pública: estatística de acidentes de trabalho • Armand Imbert & Antonim Mestre

É o que mostram as curvas a tracejado e a ponteado da figu- durações variáveis com intervalos para repouso com dife-
ra 63 bem como as da figura 64 que representam a distri- rente distribuição, e por outro lado, a que cada grupo englo-
buição horária dos acidentes ocorridos nas seguintes pro- ba na realidade profissões diferentes para as quais as ho-
fissões: ras de trabalho e de repouso não são exactamente as
mesmas.
Figura 63 O inspector da divisão residente em Toulouse, o senhor Le-
roy entendeu comunicar-nos os resultados de estatísticas
Indústrias químicas (tracejado) análogas que espontaneamente se ofereceu para fazer im-
1453 operários, 326 acidentes plementar pelos inspectores departamentais sob as suas
Indústrias da madeira (ponteado) ordens (Aude, Ariège, Aveyron, Cantal, Haute-Garonne, Lo-
4528 operários, 189 acidentes zère, Pirénées Ocidentales, Tarn-et-Garonne). Sem repro-
duzir aqui as curvas que representam essas diversas esta-
tísticas, diremos somente que todas, sem excepção,
apresentam as características gerais que enunciamos aci-
ma.
Estas mesmas características devem então encontrar-se
nas curvas globais relativas ao conjunto de todos os aciden-
tes ocorridos nas diversas profissões. É o que mostra a fi-
gura 65 na qual a curva a traço contínuo representa, com
distribuição horária, os 2065 acidentes de que foram víti-
mas os 56458 operários do departamento de Hérault e em
que a curva a ponteado representa, numa outra escala, a
distribuição horária dos 5534 acidentes que ocorreram com
os 140467 operários dos nove departamentos da circunscri-
ção de Toulouse. A menos que sérias críticas possam ser
formuladas contra as estatísticas baseadas em documen-
tos oficiais, a distribuição dos acidentes pelo horário de tra-
balho a que se produzem mostra bem a influência crescen-
te da fadiga, do início ao fim de cada meia jornada de
trabalho com o máximo mais acentuado à tarde.
Ora as únicas críticas a formular parecem-nos ser as se-
guintes:

a) É de temer, e sabemos que algumas vezes assim foi,


que nem todos os acidentes sejam declarados, caso
em que os números acima citados e as curvas que
deles deduzimos não corresponderiam à realidade.
Mas pode considerar-se, a este respeito, que essas
omissões talvez bastante numerosas no início da
Figura 64 aplicação da lei de 1898, devem ser agora cada vez
mais raras. Ora as nossas estatísticas dizem res-
Terraplanagens e construções em pedra (traço contínuo) peito ao ano de 1903 e aliás, as omissões, se as há,
4686 operários, 280 acidentes não podem referir-se a uma hora especial e infir-
Trabalho em metais comuns (tracejado) mar assim os resultados gerais verificados. Estes,
8237 operários, 149 acidentes salvo outras objecções, podem portanto ser consi-
Comércio e banca (ponteado) derados como adquiridos com o grau aproximado
15567 operários, 237 acidentes de exactidão que se pode esperar atingir em apre-
ciações semelhantes.
Comparando estas curvas umas com as outras notam-se
algumas diferenças quanto às horas do máximo de aciden- b) A crítica que se segue, inicialmente parece mais
tes. Mas há motivo para acreditar que essas diferenças são grave.
devidas, por um lado, a que essas estatísticas se referem a Se a fadiga é uma causa de acidentes, o seu nível
um ano inteiro, verão e inverno, e portanto a jornadas de não o é menos, geralmente proporcional à gravida-
Higiene Pública: estatística de acidentes de trabalho • Armand Imbert & Antonim Mestre 111

de deste, porque essa gravidade, ela própria, de- de, são apesar de tudo devidos à fadiga, devem ser
pende de circunstâncias completamente fortuitas. mais numerosos nas últimas horas de cada meia
Ora a lei não exige senão a declaração de acidentes jornada e trabalho e a sua introdução nas estatísti-
que tenham implicado uma incapacidade de traba- cas acentuaria desde logo as características gerais
lho com a duração de pelo menos quatro dias. Em das curvas das figuras 63, 64 e 65.
consequência um bom número de acidentes que Pode portanto concluir-se que as nossas estatísti-
possam ser devidos à fadiga escapam à declaração cas dos acidentes referidos à hora de trabalho à
legal e não estão incluídos nas nossas estatísticas qual ocorrem mostram claramente a influência que
que assim se encontrariam falseadas. a fadiga profissional exerce, com o nosso modo de
Mas podem apresentar-se, a este respeito, as se- organização do trabalho, sobre a ocorrência de aci-
guintes considerações: dentes.
Aqueles dos acidentes ligeiros, não submetidos à Feita esta constatação que pode dela concluir-se?
declaração legal, que não são devidos à fadiga, de- Porque, sobretudo em assuntos deste tipo, o valor
vem, como os acidentes não declarados, e para es- de um facto é tanto maior quanto mais consequên-
tatísticas incidindo em números de alguma relevân- cias práticas dele se puderem retirar.
cia, distribuir-se de modo aproximadamente Ora dado que a fadiga é a consequência inevitável de
uniforme pelas diversas horas da jornada de traba- qualquer dispêndio de energia, que não se pode
lho, o que em nada altera a forma geral das curvas portanto suprimi-la sem suprimir ao mesmo tempo
das figuras precedentes nem as consequências que todo e qualquer trabalho, seria pelo menos neces-
deduzimos dessas formas. Por outro lado, se um sário impedir que atingisse o grau a partir do qual a
certo número de acidentes, não submetidos a de- sua influência no ocorrer dos acidentes é sobretudo
claração em consequência da sua pequena gravida- nefasta.

Figura 65
112 Higiene Pública: estatística de acidentes de trabalho • Armand Imbert & Antonim Mestre

Se nos reportamos ao que temos constatado durante as pri-


meiras horas da retoma do trabalho da parte da tarde pare-
ce que seria suficiente, para determinar uma notória dimi-
nuição do número de acidentes, intercalar a meio de cada
uma das duas partes da jornada de trabalho um período de
repouso, evidentemente menor que o do meio-dia, porque a
fadiga seria então menor, com uma duração a determinar
segundo as diversas considerações a ter em conta em se-
melhantes matérias. Ao editar tais prescrições mais não se
faria do que aplicar ao trabalho mecânico e a adultos as me-
didas que há longo tempo foram postas em prática com as
crianças no que diz respeito ao trabalho intelectual.
Estatísticas análogas àquelas de que demos a conhecer os
resultados mas nas quais os acidentes seriam agrupados
segundo o dia da semana mostrariam na mesma se o re-
pouso dominical é suficiente para fazer desaparecer todos
os traços da fadiga semanal ou se haveria justificação fisio-
lógica para aumentar a duração desse repouso. Ocupamo-
-nos a estabelecer estatísticas semelhantes para um certo
número de departamentos do sul e daremos, ulteriormen-
te, conhecimento das consequências. Podemos, pelo me-
nos, acrescentar desde já, que tendo encontrado no Bulletin
du Travail de Belgique os acidentes agrupados por dia da
semana, a comparação dos números não acusa nenhum au-
mento de segunda a sábado. Mas esta é uma questão que
nos propomos retomar. Figura 66

Os dados oficiais que resultam da aplicação da lei de 9 de A importância de uma tal noção é evidente. Se se pretende
Abril de 1898 permitem avançar ainda outras constatações de facto tentar reduzir o número de acidentes suprimindo
interessantes. outras causas que não a fadiga, conhece-se assim, para
Qualquer declaração de acidente comporta a indicação su- cada profissão, qual a via em que o esforço e a vigilância, a
mária das condições nas quais ocorreu o acidente e a seguir do inspector do trabalho em particular, devem mais especi-
da causa a que é devido. Torna-se então fácil agrupar esses ficamente incidir.
acidentes segundo as suas causas, o que conduz a resulta- É ainda possível, considerando a relação do número N de
dos que também podem ser representados graficamente operários de uma profissão e o número n dos que de entre
como fizemos nas figuras 66, 67 e 68 para as profissões ofi- eles foram vítimas de um acidente, avaliar o risco médio
cialmente qualificadas: Manutenção e Transportes, Indús- que o exercício dessa profissão acarreta. Eis, a título de in-
trias da Madeira, Terraplanagens e Construções em Pedra. dicação os resultados fornecidos, para o departamento de
Resulta, do exame destas figuras, que existe, para cada Hérault, pelo cálculo da relação que acabamos de definir.
profissão, uma espécie de acidente tipo, característico do
género de trabalho próprio dessa profissão, e por isso cau- PROFISSÕES RELAÇÃO N/N

sa da frequência máxima de acidentes. Manutenção e transportes 10,14

Indústrias químicas 4,15

Indústrias da madeira 23,95

Terraplanagens e construções em pedra 16,73

Comércio, banca 236,45

Trabalho em metais comuns 21,72


Higiene Pública: estatística de acidentes de trabalho • Armand Imbert & Antonim Mestre 113

Resulta destes números que, se as diversas profissões são


muito desigualmente perigosas como mostram os números
de uma tabela precedente, a importância do acidente tipo,
para cada uma delas, oscila somente entre, aproximada-
mente 1/5 e 1/3.
Terminando aqui o nosso estudo estatístico, não cremos ter
extraído, dos dados oficiais resultantes da aplicação da lei
de 9 de Abril de 1898, tudo o que esses dados poderiam for-
necer, como nos propomos comprovar posteriormente. Só
pretendemos mostrar, com alguns exemplos, quão impor-
tantes são as noções que se podem extrair dos documentos
oficiais relativos a acidentes de trabalho e qual o interesse
que apresenta, para os interessados, operários e Compa-
nhias de seguros, bem como para o legislador, a utilização
destas noções a fim de levar a bom termo um projecto que
está ainda longe de conduzir aos resultados que se podem
razoavelmente propor alcançar.

Figura 67 Notas

As profissões mais perigosas são portanto as incluídas na [1] A. IMBERT. Les accidents du travail et les Compagnies
rubrica Indústrias químicas; imediatamente a seguir vêm d´assurances, (Revue Scientifique 4 juin 1901.)
Manutenção e Transportes, etc. Há, sem dúvida, algumas re- [2] Trata-se de uma lei baseada no código de trabalho francês.
servas a incidir sobre a exactidão absoluta destes resulta-
dos, as Indústrias químicas, por exemplo, não empregariam
no departamento de Hérault mais do que 1458 operários,
número relativamente pouco elevado; os valores numéricos
da relação N/n da tabela precedente não estarão, todavia,
muito afastados da realidade e não se pode senão ser doloro-
samente impressionado pelas constatações de que em cerca
de cinco anos, nas Indústrias químicas, e em dez ou onze
anos na Manutenção e Transportes, todos os operários são
sucessivamente vítimas de acidentes, a menos que, confor-
me o adágio bis repetita … ainda que este adágio não tenha
sido formulado para os acidentes de trabalho, um certo nú-
mero de entre eles seja atingido várias vezes.
É ainda interessante fazer uma outra constatação, a que diz
respeito, em cada profissão, à importância relativa do aci-
dente tipo, importância que pode avaliar-se calculando a re-
lação n´x100/n representando n´ o número de acidentes tipo
e n o número total de acidentes devidos a qualquer causa.

O cálculo conduz aos seguintes resultados

PROFISSÕES N´X100/N

Manutenção e Transportes 39,7

Indústrias químicas 22,1

Indústrias da madeira 38

Terraplanagens e Construções em pedra 29,2

Comércio, banca 33,2


114 Higiene Pública: estatística de acidentes de trabalho • Armand Imbert & Antonim Mestre

ES

Higiene Pública: estadística de accidentes de


trabajo

FR

Hygiène Publique : statistique d’accidents de


travail

EN

Public health: work accidents’ statistics.

Como referenciar este artigo?

Imbert, A., & Mestre, A. (1904). Introdução ao texto Higiene


Pública: estatística de acidentes de trabalho.
Laboreal, 7, (1), 108-114.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=37t45n
SU5471124227839344461
VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 115-118 115

O DICIONÁRIO
Utopia

Renato Di Ruzza

Institut d’Ergologie de l’Université de Provence Na história das ideias, os utopistas ocupam um lugar parti-
29, Avenue Robert-Schuman cular: o seu problema não era o de teorizar sobre a socieda-
13621 Aix-en-Provence de na qual viviam até para melhor a compreender para me-
renato.diruzza@univ-provence.fr lhor a transformar, mas de mostrarem os seus defeitos, as
taras e as contradições contrapondo-lhe uma organização
económica e social imaginária na qual uns e outros estavam
abolidos. Imaginar uma «sociedade ideal» era para eles fa-
zer a demonstração que ela era possível, e era possível
aceder-lhe por menos que sejam respeitados os grandes
princípios como a Justiça, a Moral ou a Razão.
Mesmo se o nascimento oficial é datado da obra de Thomas
More (1487-1535) intitulada Utopia em 1516 (utopia: «lugar
que não existe», mas também «lugar de felicidade», é habi-
tual fazer remontar a tradição utópica a Platão (A Republi-
ca). Mas na realidade, a grande época do utopismo situa-se
no século XIX: os malefícios do capitalismo e da industriali-
zação conduzem a que numerosos pensadores a tentarem
imaginar um outro mundo possível, e de mostrar assim que
a sociedade capitalista não era de todo uma «ordem natu-
ral» como pretendiam fazer crer os seus defensores. E
como frequentemente, o capitalismo vencê-los-á: sob ata-
ques violentos da ideologia liberal e do pensamento mar-
xista, são apresentados no século XX como sonhadores do
impossível. Neste início do século XXI, a questão permane-
ce em aberto: os malefícios do capitalismo, que se prendem
particularmente com o trabalho, voltarão a dar um novo vi-
gor à tradição utópica, ou deveremos considerar que todo o
projecto de uma «sociedade ideal» é impensável?

Pensar o possível

Os primeiros setenta anos do século XIX assistem à conclu-


são da instalação do capitalismo. A burguesia triunfa: a in-
dustrialização da Grão Bretanha e da França prossegue, o
maquinismo desenvolve-se, as grandes fábricas aparecem,
agrupando centenas, por vezes milhares de operários cujas
condições de vida e de trabalho são deploráveis. Os dirigen-
tes das empresas exigem dos seus assalariados jornadas
de trabalho cada vez mais longas em contrapartida de salá-
116 Utopia • Renato Di Ruzza

rios cada vez mais reduzidos; eles substituem, sempre que lebre. New Lanark respirava limpeza, nas fábricas pin-
possível, os homens pelas mulheres e pelas crianças que tadas a branco ou a amarelo, não trabalhava nenhuma
produzem o mesmo trabalho por salários mais baixos. Os criança, sendo a escola obrigatória; toda a punição era
relatos das condições de trabalho nas fábricas começam a interdita e a disciplina livremente consentida; a assem-
comover uma certa franja da opinião pública, como no caso bleia-geral dos trabalhadores decidia as grandes op-
em 1829, uma revista britânica publica a história de Robert ções respeitando a gestão das fábricas, como a da popu-
Blincoe, uma das crianças empregada numa fábrica: rapa- lação determinava as regras da vida em comunidade.
zes e raparigas, com a idade de dez anos, são aí chicoteadas Além disso, New Lanark era próspera e rentável, e era
de dia e de noite não apenas devido à mais ligeira falta, mas este conjunto que conferia a sua celebridade. Owen es-
para estimular a sua «produtividade»; para se alimenta- tava convencido que a humanidade valia o que valia o
rem, devem disputar com os porcos um caldo repugnante seu meio, e este dava-lhe a «prova experimental». Não
numa manjedoura comum, os seus chefes batem-lhes com havia portanto nenhuma razão, pensava ele, de não
pontapés e socos, abusam sexualmente deles; estas crian- alargar esta experiência ao mundo inteiro.
ças estavam praticamente nuas no frio do inverno, os seus
dentes estavam limados e eles trabalhavam de catorze a • Proudhom era igualmente de origem modesta : operá-
dezasseis horas por dia! É desde logo compreensível que rio tipógrafo muito jovem, é autodidacta, e guardará
relatórios «oficiais» mais aprofundados, mais globais e toda a sua vida a obsessão de se ver desprezado para
mais rigorosos sejam produzidos: os relatórios Ashley e aqueles que fizeram estudos e que herdaram uma cul-
Villermé publicados por volta de 1840 dão da classe operá- tura que é impossível de adquirir sendo adulto. Defende
ria uma imagem tão deplorável que, por um lado, a Igreja se a abolição pura e simples da propriedade («a proprieda-
sente obrigada a intervir [1] e que, por outro lado, apareçam de é o roubo» clamará ele). Recusando na base toda a
e se desenvolvam as primeiras criticas do capitalismo. A autoridade (neste sentido, é frequentemente considera-
primeira metade do século é assim o palco de um confronto do com um dos fundadores do movimento anarquista),
entre duas ideologias: de um lado, um «liberalismo incondi- propõe uma solução «mutualista» na qual os indivíduos
cional», seguro de si e dominador, que alcança a sua pleni- iguais fazem contratos entre si; ele imagina um «banco
tude com Fréderc Bastiat (1801-1850); de outro lado um de trocas» que faria crédito gratuitamente e emitiria
«socialismo romântico», para o qual a utopia é a razão de uma nova moeda repousando sobre a garantia mútua de
acreditar num mundo melhor devendo substituir o capita- todos os participantes, e ele estabeleceu o projecto de
lismo, e que se encarna em personagens frequentemente uma «exposição permanente» onde cada trabalhador
fantasiosas e aventureiras [2] que têm como nome Robert viria entregar os produtos do seu trabalho contra cupões
Owen (1771-1858), o conde de Saint-Simon (1760-1823), utilizáveis para a compra de outros produtos, sendo a
Charles Fourier (1772-1837), Louis Blanc (1811-1882), Au- hora de trabalho o instrumento de medida.
guste Blanqui (1798-1854), Pierre-Joseph Proudhon (1809-
1866), ou ainda William Godwin (1756-1836).
Todos, mesmo se em graus diversos, pensaram simultane- Sonhar o impossível
amente outros possíveis e tentaram colocá-los em prática.
Todos são hostis ao sistema capitalista e ao seu fundamen- No início dos anos 1870, o sistema capitalista entra na sua
to essencial, a propriedade privada e desejam a sua substi- primeira grande crise. Esta durará até ao fim do século e
tuição por uma sociedade de propriedade colectiva. Dois será marcada pelas depressões de 1873, de 1879, de 1882-
exemplos permitem delimitar a natureza da utopia desses 84, de 1890; as crises bolsistas sucedem-se aos craques; à
personagens. vaga de livre mercado sucede um acentuar do proteccionis-
mo a partir de 1882; a pobreza contínua a desenvolver-se…
• Owen é certamente o mais romântico dentre eles. Nas- Este longo período de dificuldades põe em causa o optimis-
cido numa família pobre do País de Gales, torna-se mo incondicional dos liberais da primeira metade do século,
aprendiz de tecelão com a idade de 9 anos, e o seu des- e parece dar razão às análises marxistas.
tino parecia então completamente traçado: a vida dura e Por um lado, a burguesia deve renovar a sua ideologia eco-
cinzenta de um trabalhador galês. Mas o seu gosto pela nómica, dando um aspecto científico às teses que justificam
aventura, as suas ideias sobre a justiça social, e uma o seu poder e a sua prática: necessitam uma teoria cuja
imaginação transbordante, desviaram-no desse cami- aparente neutralidade é susceptível de tornar credível o ca-
nho. Depois de numerosas peregrinações, compra um pital e o lucro, e que demonstre a superioridade da livre
conjunto de fábricas na sórdida aldeia de New Lanark e concorrência sobre qualquer outra forma de organização
funda aí uma comunidade. Em 5 anos, a aldeia tornara- social. A Economia Política, pelas suas características de-
-se irreconhecível, e em 10 anos, era mundialmente cé- masiado críticos e tão pouco neutras, cede o seu lugar à
Utopia • Renato Di Ruzza 117

«Ciência económica», disciplina que utiliza os métodos ma- las, bem como todos aqueles que «pediam o impossível»
temáticos do cálculo marginal para analisar as acções dos para retomar uma «palavra de ordem» de 1968…
indivíduos face à raridade dos recursos de que dispõem (daí Vivemos hoje, neste início do século XXI, uma espécie de
o termo de marginalismo frequentemente utilizado para paradoxo. As capacidades transformadoras fornecidas pe-
designar esta teoria). A prova seria assim «cientificamen- las tecnologias da informação e da comunicação são consi-
te» produzida de que o capitalismo é a organização econó- deráveis, e todas as razões de querer mudar o trabalho e a
mica e social a mais eficaz e a mais justa, e que todos os que vida estão presentes: a nossa sociedade deveria ser porta-
propõem um outro tipo de sociedade não passam de sonha- dora de um desejo utópico exacerbado, como foi o caso no
dores que nada compreendem das leis da ciência. momento da revolução industrial, simultaneamente por es-
Por outro lado, a teoria de Karl Marx (1818-1883) afirma-se e pírito crítico e por vontade de imaginar um outro possível. E
propaga-se. Propõe não apenas uma análise crítica do capi- portanto, não vislumbramos nenhum impulso utópico, mas
talismo, mas uma «ciência da história»: o socialismo científi- pelo contrário uma crise do futuro, uma paralisia da nossa
co. E é em nome desta «ciência» que é convocada a classe imaginação do futuro, um esgotamento das vanguardas, um
operária a libertar-se do jugo da burguesia, e assim libertar enfraquecimento dos grandes discursos de emancipação…
toda a humanidade. O socialismo científico opor-se-á violen- O papel da utopia parece comprometido e parece apagar-se
tamente ao «socialismo utópico», o qual não teria nenhuma do nosso horizonte.
base científica e não forneceria nenhum meio à classe ope- Esta «crise do pensamento utópico» tem certamente várias
rária para conseguir instaurar uma sociedade melhor. A re- causas, da análise das quais deveria poder deduzir-se uma
volução russa de 1917 culminará esta fraseologia: o «mundo saída possível:
melhor», o socialismo, existe, não é mais de «parte nenhu-
ma», a sociedade sem classes devendo conduzir ao comunis- • O desmoronamento da força propulsiva dos «modelos»,
mo construiu-se realmente; o sonho realiza-se e deporta a quer sejam capitalistas, socialistas, autogestionários ou
utopia para os caixotes do lixo da história. outros, ninguém quer mais imaginá-los enquanto mo-
É assim em nome da ciência que a história se inverte: que- delos ideais, e ninguém aceita mais vivê-los enquanto
rendo pensar outros possíveis, a utopia será apresentada modelos de governabilidade; as experiências do século
no século XX como um sonho impossível, tal como o teste- XX, nomeadamente a experiência soviética (mas seria
munham os envios sinonímicos dados pelo dicionário Petit necessário acrescentar as experiências nazi e fascistas,
Robert ao artigo «utopia»: quimera, ilusão, miragem, so- as experiências de desenvolvimento nos países do Ter-
nho, devaneio. ceiro Mundo, etc.) mostraram todas que a felicidade da
humanidade não podia conceber-se no quadro de «so-
ciedades modelo» às quais os seres humanos devem
Novo século, novas utopias ? conformar-se e obedecer às suas normas;

Certamente podemos pensar que ao longo de todo o • Os efeitos das crises que acompanharam o desmorona-
«curto século XX» (E. Hobsbawm), tanto a sociedade da mento dos modelos (deterioração das condições de rea-
concorrência pura e perfeita como o comunismo funcio- lização do trabalho, crescimento da pobreza e das desi-
naram no imaginário social como utopias, isto é como gualdades, colocação em causa da protecção social,
quimeras, ilusões, miragens…, e não estaríamos com- etc.) conduziram inevitavelmente a não imaginar um fu-
pletamente enganados [3] . Mas é mais fácil de pensá-lo turo melhor, mas a mistificar o passado; alguns (talvez
agora, depois das crises que afectaram o mundo capita- não muito numerosos) lamentam o desaparecimento da
lista e o mundo soviético no último terço do século te- sociedade soviética e o papel que ela desempenhava no
nham mostrado o seu verdadeiro rosto. A partir do fim plano internacional, nomeadamente no apoio que pres-
da segunda guerra mundial, e até meados dos anos 1970, tava aos povos do Terceiro Mundo lutando contra o im-
«as utopias eram reais»: os «trinta gloriosos» não pare- perialismo; e muitos consideram que o crescimento in-
ciam dever terminar-se, e os «sucessos» da União Sovi- dustrial, o pleno emprego e a protecção social que os
ética serviam de modelo a um número crescente de paí- «trinta gloriosos» traziam aos países ocidentais são re-
ses tendo acedido à sua independência e para as classes ferências incontornáveis para o hoje e amanhã;
operárias das nações mais desenvolvidas. Nesta época,
eram considerados como «utopistas», e portanto como • Enfim, o insucesso das experiências social-democratas,
sonhadores marginais, esses que pensavam que era tanto nos países do Norte como nos do Sul, na sua von-
possível «trabalhar duas horas por dia» (Adret), aqueles tade anunciada de «mudar a vida» reduz ainda as pers-
que reivindicavam o «direito à preguiça» (Lafargue), es- pectivas transformadoras globais, e marginaliza as ten-
ses que criavam «comunidades» mais ou menos agríco- tativas de viver e trabalhar de outra forma.
118 Utopia • Renato Di Ruzza

Nestas condições, se a vontade utopista pretende sair da ES

crise que atravessa, é preciso que pense outros mundos Utopia


possíveis em vias novas. Algumas premissas podem even-
tualmente nidificar das teses sobre o decréscimo ou sobre
a ecologia. Mas o essencial encontra-se certamente noutro
lugar: na procura de uma sociedade democrática, na qual FR

todas as pessoas humanas seriam admitidas como iguais Utopie


em todas as dimensões da igualdade, da cidadania ao reco-
nhecimento dos seus saberes, renovando assim o esforço
que foi feito desde há três séculos pela filosofia das luzes.
EN

Utopia

Notas

[1] A «doutrina social da Igreja» no século XIX é ainda hoje um


domínio fortemente controverso. É inegável contudo que algumas
importantes figuras cristãs reagem perante as injustiças sociais.
Em França, é preciso citar Félicité de Lamennais (1783-1854) e
Henri Lacordaire (1802-1870). Todos serão no entanto desaprova-
dos pela Igreja.
[2] E frequentemente misticos : Saint-Simon dará origem a seitas
fortemente hierarquizadas e submetidas a ritos duvidosos,
Fourier tomava-se como Jesus e Newton simultaneamente…
[3] No filme francês «Tout le monde n’a pas eu la chance d’avoir
des parents communistes», a heroína consola uma amiga que
acaba de ser abandonar pelo seu amado dizendo-lhe: «tu verás,
com o comunismo, deixará de haver desgostos de amor.»!

Como referenciar este artigo?

Di Ruzza, R. (2011). Utopia.


Laboreal, 7, (1), 115-118.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV658223533894:555582
VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 119-121 119

O DICIONÁRIO
Visibilidade

Serge Volkoff

CREAPT, CEE Os debates sociais, políticos e mediáticos condicionam a vi-


29, promenade Michel-Simon sibilidade das questões que acabam por abordar. Frequen-
93166 Noisy-le-Grand Cedex temente submetem-se a três imperativos : são privilegia-
serge.volkoff@cee-recherche.fr dos os factos manifestos, imediatos, e simples. Porém, no
campo das condições de trabalho e da saúde no trabalho –
assim como em outras áreas, certamente -, o respeito des-
ses imperativos empobrece a compreensão dos problemas
e as pistas de acção. Focalizar-se nos aspectos manifestos
fecha o acesso a causas importantes de dificuldades e de
danos à saúde, que somente uma análise precisa, uma
abordagem « maiêutica » com os trabalhadores envolvidos,
permitiria elucidar (Teiger & Laville, 1991). Aproximar as
características simultâneas do trabalho e da saúde pode
conduzir a deixar de lado os efeitos diferidos das exposições
profissionais, que a epidemiologia elucida cada vez melhor
(Lasfargues, 2005). Enfim, optar sempre pelas constata-
ções simples, as afirmações categóricas, as conclusões de
valor universal, impede de considerar o carácter multifor-
me, multifactorial das relações entre saúde e trabalho, e de
respeitar essa complexidade (Volkoff, 2005).
Por isso, a visibilidade das condições de trabalho deve ser
continuamente estabelecida, ou restabelecida. Esta elabo-
ração encontra muitos obstáculos, cuja envergadura e for-
mas variam ao longo do tempo. A recolha de informações
sobre as patologias profissionais, sobretudo as mais graves
como os cancros, depende de dispositivos administrativos e
eles próprios resultam de compromissos sociais efémeros
(Thébaud-Mony, 2006). As organizações produtivas actuais
que recorrem à subcontratação ou justapõem várias em-
presas num mesmo estaleiro, são propensas a falta de co-
nhecimento dos efeitos do trabalho sobre a saúde (Thé-
baud-Mony, 2007). Acontece o mesmo com a precariedade
do emprego, quer seja de direito (contratos de duração de-
terminada, trabalho temporário) ou de facto : a compreen-
são das condições de trabalho e dos seus efeitos é dificulta-
da na ausência de colectivos estáveis. Alguns
constrangimentos de trabalho são « naturalizados » por-
que mobilizam qualidades supostamente inatas como a ro-
bustez ou a bravura física dos homens (Dejours, 2000), a
minúcia, a paciência ou a dedicação das mulheres (Messing,
120 Visibilidade • Serge Volkoff

2000). Um constrangimento pode assim ser percebido como zermos que o « stresse » constitua, nas suas utilizações
inerente ao exercício da profissão, ou até mesmo como uma comuns, uma denominação suficientemente vaga – e desta
componente da identidade profissional (Sorignet, 2006). De forma facilmente manipulável e apresentável – para englo-
maneira mais global, a emergência de uma preocupação bar as sensações cujo enunciado directo incomodaria mais
em matéria de saúde no trabalho é o objecto de uma cons- : medo, tédio, sobrecarga, fingimento, dependência, desva-
trução social, resultante de um questionamento às vezes lorização do seu próprio trabalho?
longo e que implica numerosos actores (Loriol, 2000). Quando os trabalhos científicos, os testemunhos dos inter-
Os efeitos de barreira, de camuflagem, reforçam as atitu- venientes, as controvérsias dos actores sociais fazem pro-
des de negação quanto às relações entre saúde e trabalho : gredir a visibilidade das condições de trabalho, as dificulda-
preconceitos relativos a diversas categorias de trabalhado- des podem deslocar-se para as causas das más condições
res (as mulheres, os operários, os mais velhos, os jovens…); de trabalho e, ainda mais, para a possibilidade de as melho-
interpretações que individualizam o que está em jogo, ou rar. As primeiras origens das penosidades e dos riscos de-
que até mesmo estigmatizam as pessoas ; incredulidade vem, para serem percepcionadas, fazer elas também ob-
quanto aos balanços estatísticos ou demonstrações cienti- jecto de um trabalho de objectivação – o que não é nada
ficas que estabelecem tais relações – e sobrevalorizam os fácil. Assim, a ideia de uma intensificação do trabalho, ante-
estudos que as colocam em dúvida; enfim, a crença num riormente questionada, é hoje largamente admitida (Aske-
progresso natural, que enviaria para o passado os efeitos nazy et al., 2006), assim como o seu impacto sobre as con-
nocivos principais. No caso das PME (Perturbações Múscu- dições de trabalho e a saúde dos trabalhadores (Volkoff,
lo-esqueléticas), por exemplo, o carácter epidémico da pa- 2008). Contudo, muitos dirigentes de empresas, mesmo
tologia não impediu que predominem durante muito tempo desejando melhorar as condições de trabalho por razões
as abordagens centradas na vida pessoal (com este argu- éticas ou económicas, aderem à ideia de que a intensidade
mento de que as dores apareciam mais durante o repouso do trabalho é a garantia de prosperidade (ou até mesmo de
do que durante o trabalho) e sobre as características dos sobrevivência) económica; eles fazem disto quase um sinó-
indivíduos : estas perturbações eram analisadas como ma- nimo de produtividade – sem que o sentido desta última pa-
nifestações neuróticas, sobretudo “femininas” (Messing, lavra seja na verdade sempre interrogado.
2000). De maneira geral, foi difundida a ideia de uma subs- Construir, reunir, difundir os conhecimentos sobre as con-
tituição massiva das exigências mentais pelas solicitações dições de trabalho e os seus determinantes mantém-se
físicas : o número de operários da indústria diminui, a me- uma exigência para que a sua visibilidade progrida. No en-
canização e a automatização se desenvolvem, “então” as tanto, esta progressão eventual irá depender muito do con-
exposições corporais durante a actividade de trabalho são texto social: a feminização da mão-de-obra, o seu envelhe-
consideradas como cada vez mais raras. Da mesma forma, cimento (mas também a rejeição de algumas tarefas pelos
assistiríamos a um aumento das qualificações, das respon- jovens), a melhoria das qualificações, poderiam aumentar
sabilidades, da autonomia no trabalho, que se acompanha- as exigências qualitativas na vida no trabalho. Inversamen-
riam “então” de um enriquecimento intelectual e de uma te, a manutenção de um desemprego alto, a individualiza-
extensão do poder de agir no trabalho. O espaço falta-nos ção das formas de mal-estar que resulta dos modos de or-
aqui para desmontar estas ideias pré-concebidas; vamos ganização actuais e de avaliação das performances,
contentar-nos de lembrar que os inquéritos estatísticos e comprometem o exame atento das situações vividas. A
os estudos de campo as contradizem largamente desde grande questão é então de relacionar estes desafios entre
muito tempo (Gollac & Volkoff, 2007). si. Dar uma visibilidade às condições de trabalho supõe que
Propícios às denegações, e à incúria que as acompanham, estas sejam trazidas para um debate de maior âmbito, não
os defeitos de visibilidade podem também, de maneira pa- somente restrito aos círculos de especialistas aos quais
radoxal, conduzir a polarizar temporariamente a atenção elas são frequentemente confiadas
em torno de tal ou tal preocupação, sem sempre se preocu-
par em melhor definir os termos ou em verificar a sua novi-
dade (Loriol, 2000). Seria interessante analisar por exemplo
porque o “stresse no trabalho” fez, estes últimos anos, a
manchete de numerosas revistas e jornais. Podemos nós
supor que o trabalho dos próprios jornalistas se intensifi-
cou, que as suas condições de trabalho são mais difíceis, o
que os colocou em situação de melhor compreender pro-
blemas que são próximos dos deles – problemas que aliás
atingem um número crescente de pessoas socialmente e
culturalmente próximas deles? Podemos também nos di-
Visibilidade • Serge Volkoff 121

Referências bibliográficas ES

Visibilidad
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Como referenciar este artigo?

Volkoff, S. (2011). Visibilidade.


Laboreal, 7, (1), 119-121.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=37t45n
SU5471124227839554481

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