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04/06/2019 Pós-escrito para Poemas tirados de notícias de jornal, de Ramon Mello

Críticas, Resenhas e Matérias


Pós-escrito para Poemas tirados de notícias de
jornal, de Ramon Mello

Críticas e Resenhas Poemas Tirados de Notícias de Jornal

Pós-escrito para Poemas tirados de notícias de jornal, de Ramon Mello

“pense no tempo/ em nosso tempo/ tempo/ tempo/ tempo/ tempo” insiste o poeta na abertura do

livro (Poema atravessado pelo manifesto sampler). Os versos resumem o primeiro princípio da

poética de Ramon Mello. Ele propõe a adesão do poema ao que se passa no mundo, quer que o

poeta invada o corpo do mundo e aceite seu caos. Pouco adiante, em outro registro, a ideia é

retomada: “a poesia se esfrega nas coisas / percebe”

A partir desta conclamação, toda uma série de corolários se organiza. A própria ideia de basear os

poemas em notícias de jornal é um deles. Uma aproximação do poeta e do jornalista é a rmada,

pois “ambos devem preservar / usar muito bem a língua” (Códigos de ética). A própria formação do

poeta/jornalista Ramon Mello guarda relação com isso. Uma tomada de posição anti-lírica

atravessa o conjunto dos poemas. A originalidade - algo muito pessoal - cede lugar à autenticidade,

isto é, ao compromisso com os fatos. Esta é reivindicada desde a epígrafe de Jim Jarmusch, citando

Godard: “Não é de onde você tira as coisas que conta, mas onde você as põe.” Uma espécie de

desromantização, já explorada pelas vanguardas do início do século XX, também está p resente. Ela

é acompanhada da exigência da liquidação do ego do poeta, da valorização da criação coletiva e da

referência à deglutição da Antropofagia oswaldiana: “propriedade coletiva/ eu sou vocês/ sou eu”.

Este primeiro princípio – “realista”- não apresenta nenhuma ingenuidade. Ramon não acredita que

a verdade das coisas possa ser documentada, que o dito do jornalista seja mais real. Ele sabe

muito bem que também “as notícias são vidas inventadas” (Em o ) e que os “fatos são narrados

como se fossem novelas” (Jornalismo policial).

A poesia de Ramon Mello é só aparentemente despretensiosa. Ela contém inclusive um jogo

cifrado de rica intertextualidade, que revela a leitura cuidadosa da nossa melhor tradição. Uma

passagem do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, é reproduzida como uma das

epígrafes. A lição oswaldiana é, em muitos aspectos, acolhida. Aparece no endosso das teses do
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manifesto de 1928, na adoção do estilo "telegrá co" de vários poemas, no recurso ao poema-piada

e na própria estrutura formal de muitas passagens. Já o clássico Poema tirado de uma notícia de

jornal, de Manuel Bandeira, inspira o título e o espírito do volume. Drummond também é uma

importante referência. Não o Drummond maduro, mais meditativo, tão prestigiado hoje em dia,

mas o modernista de Alguma poesia. Essa mão nervosa que tudo escreve, mencionada no poema

de abertura, é a mesma presente em Poema do jornal, do livro de 1930. O contato com a poesia

brasileira dos anos vinte e trinta foi muito mais decisivo para a elaboração deste livro do que o

declarado amor do poeta pela música popular (Folha crítica), a qual geralmente é lírica e raramente

é documental.

Em Bandeira, em Drummond, em Oswald de Andrade encontram-se os elementos constitutivos do

segundo princípio da poética de Ramon Mello. Já apontei que o primeiro princípio da poesia do

“jovem autor” (Folha Crítica) é o compromisso com a dicção documental, que justi ca a

proximidade com a notícia de jornal. Já o segundo princípio prende-se e não se prende ao

primeiro. Certamente, a dimensão poética alcançada nestes versos não é prescrita por qualquer

princípio documental. Ao mesmo tempo, ela não o contradiz. As vozes do poeta e do jornalista são

muito diversas, mas não se chocam entre si. Nos seus melhores momentos, este livro não

transcende o documental, mas o explora e aprofunda. Salvo em pouquíssimos casos, Ramon não

perde o foco da notícia, mas, ao contrário, concentra nela a atenção.

O resultado desta operação, movida quase sempre pela ironia, é que estas cenas da vida cotidiana,

vistas pelo poeta, nos surpreendem. Aspectos insuspeitos são revelados. Um detalhe destacado

em um verso mobiliza de forma nova o olhar. Um traço desconcertante sublinhado poeticamente

em alguma cena banal provoca a reação do leitor: de crítica, de repúdio, de pena ou de simpatia.

O segundo princípio da poética de Ramon Mello tem a ver com o fato de que toda boa poesia tem

o poder de criar novos sentidos da realidade. Esta noção é referida em passagens como: “toda

palavra / é / começo”, do poema de abertura, que destaca a dimensão inaugural da experiência

poética. Comparece de outro modo em Inexistência, com a importante a rmação de que “em toda

palavra / o risco”, que reconhece a imprevisibilidade de todo gesto de iniciar. Ou, ainda, está

presente em Comprovação, ao declarar que o “belo debaixo das palavras” não depende de nada

que exista além delas, ou seja, de algum deus.

A razão de os Poemas tirados de notícias de jornal serem tão bem sucedidos consiste em que

neles se sustentam, sem nunca se anularem um ao outro, dois princípios ou duas éticas: a

documental e a poética. Há entre eles, ao mesmo tempo, a nidade e crispação. Nisto reside a força

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da poesia de Ramon Mello.

Eduardo Jardim

Eduardo Jardim é escritor e professor do Departamento de Filoso a e do Departamento de Letras da

PUC-Rio.

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