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Organização
MEC/MARI/UNESCO
A Temática Indígena na Escola:
Novos subsídios para professores de 1º e 2º graus.
1? Edição: 1995.
Ministério da Educação e do Desporto
Mari - Grupo de Educação Indígena/USP
UNESCO
Organização
Aracy Lopes da Silva
Luís Donizete Benzi Grupioni
Capa:
Ettore Bottini
(A partir de foto do acervo de Lux B. Vidal)
ISBN 85-900110-1-1
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MITO, RAZÃO, HISTÓRIA E SOCIEDADE:
INTER-RELAÇÕES NOS UNIVERSOS
SÓCIO-CULTURAIS INDÍGENAS
1. Um exemplo claro desta postura é a Série Morena, da editora Melhoramentos. A autora, Ciça Fittipal-
di, trabalha com assessoria dos próprios índios ou de pesquisadores especializados e a partir de sólida pes-
quisa, cria versões literárias fiéis às suas fontes indígenas, tornando acessíveis às crianças não só os próprios
textos míticos como informações etnográficas precisas sobre o modo de vida de cada um dos povos trata-
dos na coleção (isto se faz em linguagem visual, através de vinhetas em branco e preto). Trabalhando co-
mo artista plástica que é, além disso, dá plena vazão á sua própria capacidade criadora e estímulo à imaginação
criativa de seus leitores ao preencher as páginas pares de cada livro com desenhos de muitas cores e con-
cepções mais livres, inspirados nas imagens propostas pelo texto mítico.
Mito, razão, história e sociedade
pouco são novas se olharmos para o nosso presente, nos últimos anos do sé-
culo XX d. C: estão difundidas por toda parte; dominam o senso comum.
E naquele período que, na Grécia Antiga, instala-se a oposição conceituai
entre mythos e logos, como duas formas diversas de organização e expressão
do pensamento e das idéias, dois modos distintos e excludentes de conhecer
e de situar-se no mundo. Com o surgimento da história, da filosofia e da ciên-
cia, como formas escritas de produção do conhecimento e do saber, sujeitas
a regras lógicas, à crítica e à exigência de rigor na construção da argumenta-
ção, caracterizou-se o domínio do logos em oposição ao do mythos. O que
antes se confundia, como sinônimos, agora era compreendido como campos
antagônicos e irreconciliáveis, definidos por uma desigualdade crucial: o mi-
to, dizia-se então, não é da ordem da lógica e é, enquanto forma de conheci-
mento e produção de saber, inferior e anterior ao domínio da racionalidade plena.
Ao logos, ficava assim associada a busca da verdade, o rigor, a racionali-
dade lógica; ao mythos restava a fabulação, a imaginação descontrolada, sem
compromisso com a verdade ou capacidade para pensar sobre questões com-
plexas ou abstratas. Por operar por meio da oralidade, assentava-se não no
rigor, na crítica e na argumentação sistemática mas construia-se na relação
fugaz, direta e carismática do narrador com seu público. Palavras ditas voam
com o vento; a platéia, insatisfeita, interfere na construção do texto; o narra-
dor, capaz de sedução e liberado para o uso de sua sensibilidade, altera o teor,
a ênfase, o colorido e, até mesmo, os próprios fatos e o desfecho de sua nar-
rativa, ao sabor do momento e das conveniências, influenciando e sendo in-
fluenciado, imune a exames críticos rigorosos a posteriori.
O resultado desta dissociação histórica entre as categorias mythos e lo-
gos, ensina-nos Vernant, está na base de idéias dominantes, centrais na cultu-
ra ocidental, ainda hoje presentes no senso comum (mas não só nele, bem o
sabemos! Basta lembrar alguns livros didáticos, ou declarações "autoriza-
das" de certos políticos, jornalistas, oficiais militares ou seus assessores nos
eventos mais recentes envolvendo grupos ou pessoas índias).
Tais idéias (aqui muito condensadas), são recuperadas e difundidas a par-
tir de meados do século XIX: firma-se a visão positivista da ciência, afetando
a Sociologia nascente e, algumas décadas mais tarde, a própria Antropologia.
Ao mesmo tempo, as preocupações com as origens e a evolução da cultura,
da sociedade e do pensamento ocidental, típicas da época, se desenvolvem
numa argumentação que incorpora as diferenças apresentadas por povos não-
-ocidentais. Afirmava-se a existência de uma única história evolutiva. De po-
sitivo, estava aí embutida a idéia de que todos os povos, apesar de suas
diferenças nos modos de pensar, agir, viver, fazem parte de uma única huma-
nidade: não mais homens em "estado de Natureza"; todo homem, toda a hu-
manidade se define enquanto portadora e produtora de linguagem e de cultura.
Até aí, muito bem. Hoje também pensamos assim. O problema é que, na-
quela época, as diferenças são entendidas como desigualdades: reduzindo os
Mito, razão, história e sociedade 323
Em Busca de Alternativas
Uma das maneiras pelas quais especialistas costumam conceber os mitos
inclui sua definição como narrativas orais, que contêm as verdades conside-
radas fundamentais por um povo (ou grupo social) e que formam um conjunto
de histórias dedicada a contar peripécias de heróis que viveram o início dos
tempos (o tempo mítico ou das origens), quando tudo foi criado e o mundo,
A Temática Indígena na Escola
2. A mesma problemática foi retomada, em outros termos, em uma obra crítica de grande importância
para a antropologia contemporânea. Trata-se de Cultura e Razão Prática, de Marshall Sahlins, que analisa
as sucessivas teorias predominantes na disciplina da perspectiva do modo como constróem a explicação:
se através da "razão prática" ou se da "razão simbólica".
A Temática Indígena na Escola
Mito e Sociedade
Os mitos são, por tudo o que vimos, um lugar para a reflexão. Através
de signos concretos, e de histórias e personagens maravilhosos, os mitos fa-
lam de complexos problemas filosóficos com que os grupos humanos, por sua
própria condição no mundo, devem se defrontar. Aparentemente ingênuos ou
inconseqüentes (para olhos e ouvidos que não os sabem decifrar), os mitos
são coisa séria. Como se constróem com imagens familiares, signos com os
quais se entra em contato no dia-a-dia, os mitos têm muitas camadas de signi-
ficação e, no contexto em que tem vigência, são repetidamente apresentados
ao longo da vida dos indivíduos que, a medida que amadurecem social e inte-
lectualmente, vão descobrindo novos e insuspeitos significados nas mesmas
histórias de sempre, por debaixo das camadas já conhecidas e já compreendi-
das. É assim que as sociedades indígenas conseguem apresentar conhecimen-
tos, reflexões e verdades essenciais em uma linguagem que é acessível já às
crianças que, deste modo, muito cedo, entram em contato com questões cuja
complexidade irão aos poucos descobrindo e compreendendo.
A Temática Indígena na Escola
É por todas estas razões que os mitos são, em sua plenitude, de muito difícil
compreensão. As verdades que dizem e as concepções que contêm, embora refiram-
se a questões pertinentes a toda a humanidade, são articuladas e expressas com
valores e significados próprios a cada sociedade e a cada cultura. Para chegar até
elas é, portanto, essencial um conhecimento bastante denso dos contextos sócio-
culturais que servem de referências à reflexão contida em cada mito.
Mito e Sociedade
1. Tabjuo: termo de parentesco que, aqui, indica o filho da irmã. O mesmo termo designa também
o filho do filho e o filho da filha de quem fala. É um termo que compreende, numa só categoria, o
que para nós são os netos e sobrinhos. I-tabjuo: aqui, meu sobrinho.
2. Wayangá: xamã, pajé. Tem o poder de ver e entrar em contato com o sobrenatural e de viajar
através dos vários domínios cósmicos, de onde traz para a vida social conhecimentos, ornamentos
e itens culturais (ritos, cantos, nomes, etc). Este mito refere-se às práticas sociais da outorga e
transmissão dos nomes Xikrin. O avô e o tio materno são os nominadores, por excelência, dos
meninos.
3. Carne, ou bolos de carne e mandioca, assados em forno de pedras. Berarubu é também, em todo
o interior paraense e amazonense, o nome dado a esse tipo de forno e aos alimentos que nele se
cozinham.
4. As casas Kayapó-Xikrin dispõem-se em círculo ao redor de um pátio central (a praça), que é o
espaço público e cerimonial da aldeia, palco de reuniões políticas e de importantes rituais.
5. Outra versão do mito especifica que quando o Wayangá chegou no fundo do rio, os peixes esta-
vam dançando em um ritual de nominação no qual estavam outorgando o nome Bekwe à piabanha,
à bicuda e ao cará. Quando voltou, saiu cantando na praça da aldeia e foi deixando o nome Bekwe
em várias casas sucessivas, como ainda acontece hoje. Depois ele foi pintar-se e começou o ritual
da nominação.
Mito, razão, história e sociedade
Mito e Cosmologia
"Cosmologias são teorias do mundo. Da ordem do mundo, do movimen-
to no mundo, no espaço e no tempo, no qual a humanidade é apenas um dos
muitos personagens em cena. Definem o lugar que ela ocupa no cenário total
e expressam concepções que revelam a interdependência permanente e a re-
ciprocidade constante nas trocas de energias e forças vitais, de conhecimen-
tos, habilidades e capacidades que dão aos personagens a fonte de sua
renovação, perpetuação e criatividade. Na vivência cotidiana, nas aldeias in-
dígenas, essas concepções orientam, dão sentido, permitem interpretar acon-
tecimentos e ponderar decisões" (Lopes da Silva, 1994).
Pensando nas relações que posso perceber entre os mitos, a cosmologia e
a cultura de um grupo social, escrevi, em outro trabalho (Lopes da Silva,
A Temática Indígena na Escola
1994), um trecho que sintetiza o que ainda penso a respeito. Por isso, apesar de um
tanto longo, transcrevo-o aqui:
"Em universos sócio-culturais específicos, como aqueles constituídos por cada
sociedade indígena no Brasil, os mitos se articulam à vida social, aos rituais, à
história, à filosofia própria do grupo, com categorias de pensamento localmente
elaboradas que resultam em maneiras peculiares de conceber a pessoa humana, o
tempo, o espaço, o cosmo. Neste plano, definem-se os atributos da identidade
pessoal e do grupo, distintiva e exclusiva, construída pelo contraste com aquilo que
é definido como o 'outro': a natureza, os mortos, os inimigos, os espíritos... Central
é a definição do que seja a humanidade e de seu lugar na ordem cósmica, por
contraposição a outros domínios,
Mito e Cosmologia
O Mito e a História
O mito, como a cultura, é vivo. Já que simultaneamente produto e instru-
mento de conhecimento e reflexão sobre o mundo, a sociedade e a história,
A Temática Indígena na Escola
Mito e História
Esta cobra d'água [sucuri], Dia Pino, nosso avô, morava embaixo d'água
no córrego do outro lado do Loiro, em um lugar chamado Dia Wekuwi, a Casa
da Capivara. Todo dia, quando o sol estava alto, ele nadava rio abaixo do Loiro
até para cima de São Luís. Lá, ele ia até uma passagem: era um tipo de
corredor para ele; para nós, era um córrego. Ele chegava na beira do rio e lá
ele se transformava.
Nós somos os netos das Sucuris, somos os filhos da cobra Arapaço. Ele
era o nosso avô. Unurato é o nosso irmão mais velho e o mais querido. Ele
vai voltar para nós; nós o estamos esperando. (...)
Unurato entrou na água e lá ele cresceu muito, ficou muito grande. Logo
ele não cabia mais na água, então ele desceu rio abaixo, para águas mais pro-
fundas. Primeiro, ele foi ao rio Negro, depois para o Amazonas. No Amazonas,
ele encontrou peixes ainda maiores do que ele. Então, ele foi para Manaus. Ele
chegou em Manaus à noite. Quando ele ia chegando na terra, ele se trans-
formou, assumiu sua forma humana e passou a noite bebendo e dançando. De
madrugada, ele voltou para a água e virou cobra de novo. (...)
Unurato foi para Brasília e lá ele trabalhou na construção de prédios gran-
des. Ele ficou conhecendo todo tipo de coisa: casas, móveis, táxis: coisas que
nós não temos aqui. Ele andou no meio de muita gente.
No ano passado, as águas [do rio] subiram muito. Era o Unurato voltan-
do. Ele nadou rio acima. Ele era um submarino enorme, mas como ele é uma
cobra sobrenatural, ele passou pelas corredeiras. (...) O navio tem luz elétri-
ca. Com as máquinas [trazidas no submarino], os espíritos-cobra (wai masa)
estão construindo uma cidade muito grande embaixo da água. (...) Todos os
tipos de wai masa [seres sub-aquáticos sobrenaturais] estão trabalhando nesse
navio. Nós agora somo poucos, mas ele vai devolver a nossa prosperidade e
aumentar a nossa gente. "
Bibliografia
Xikrin
Foto Bruna Franchetto
Kuikuro