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Questão da Voz: Do ponto de vista filosófico no pensamento de Édouard

Glissant

(...) não há lugar para passividade na Relação. Sempre que um indivíduo ou uma
comunidade se esforçam por nele definir o seu lugar, mesmo que este lhes seja
disputado, contribuem para mudar a mentalidade geral, para desalojar às regras já
estafadas dos antigos classicismos, permitindo novas <observações> do caos-
mundo.

Questão da Voz: Do ponto de vista político-filosófico no pensamento de


Achille Mbembe

O filósofo camaronês Achille Mbembe1 diz que a raça só existe <por aquilo que
nós vemos>. Para além < do que não vemos>, não existe raça. Com efeito, o poder
racial exprime-se no fato de aquele que escolhemos não ver nem ouvir não
pode existir ou falar por si só. Em última instância, é preciso fazê-lo calar-se.
Em todos estes casos, a sua palavra é indecifrável ou, no mínimo, desarticulada. É
preciso fazê-lo calar-se. Em todos esses casos, a sua palavra é indecifrável ou, no
mínimo, desarticulada. É preciso que outra pessoa fale em seu nome e no seu
lugar, para que o que ele pretende dizer faça sentido completamente sentido na
nossa língua. Como muito bem mostrou Fanon e, antes dele, W.E.B. Dubois, aquele
a quem foi retirada a faculdade de falar por si só é constrangido a pensar-se
sempre como um <intruso>, pelo menos a surgir na esfera social apenas como um
<problema>. (p. 193-194)

A questão da voz Do ponto de vista da educação no pensamento de bell


hooks

(...) pouco se discute, se é que se discute o modo com que as atitudes e os valores
das classes materialmente privilegiadas são impostos a todos por meio de
estratégias tendenciosas. Essas parcialidades, refletidas na escolha dos assuntos e

1 ver ACHILLE MBEMBE (2017).


na maioria como as ideias são partilhadas, não precisam ser declaradas
abertamente. . (...) O silêncio imposto pelos valores burgueses é sancionado por
todos na sala de aula. (238- 239)

(...) No começo, não percebia que a classe era muito mais que a condição
econômica da pessoa, que determinava seus valores, seus pontos de vista e seus
interesses. Partia-se do princípio de que todo aluno pobre ou proveniente da classe
trabalhadora abandonaria de boa vontade todos os valores e hábitos associados à
sua origem. Os que tinham uma origem étnica/ racial diferente aprenderam que não
podiam dar voz a nenhum aspecto de sua cultura popular nos ambientes de elite.
Isso valia especialmente para o modo que não se coadunasse com as idéias e
maneirismo da classe privilegiada sempre colocava a pessoa no papel de intrusa.
(241).

(...) As pessoas da classe trabalhadora que estão na academia adquirem poder


quando reconhecem que são agentes, reconhecem sua capacidade de participar
ativamente do processo pedagógico. Esse processo não é simples nem fácil: é
preciso coragem para abraçar uma visão da integridade do ser que não reforce a
versão capitalista segundo a qual sempre temos de renunciar a uma coisa para
ganhar outra. (243)

(...) O antagonismo de classe pode ser usado construtivamente, não para reforçar a
noção de que os alunos e professores originários da classe trabalhadora são
“corpos estranhos” e “intrusos”, mas para subverter e desafiar a estrutura
existente.
Quando freqüentei meus primeiros cursos de Estudos da Mulher em Stanford, as
professoras brancas falavam das “mulheres” quando na verdade definiam como
norma a experiência das mulheres brancas materialmente privilegiadas. Para mim,
era questão de integridade pessoal e intelectual questionar esse pressuposto
tendencioso. Questionando-o, eu me negava a ser cúmplice do apagamento das
mulheres negras e/ou das de classe trabalhadora de todas as etnias.
Pessoalmente, isso significava que eu não conseguia simplesmente ficar sentada
ante a aula, curtindo as boas vibrações feministas- essa foi a perda. O ganho foi
que seu estava honrando a experiência das mulheres pobres e de classe
trabalhadora da minha família, daquela mesma comunidade que havia encorajado e
apoiado meu esforço para adquirir uma educação melhor. Embora minhas
intervenções não fossem acolhidas de boa vontade, elas criaram um contexto para
o pensamento crítico, para o intercâmbio dialético. (244)
Qualquer tentativa da parte de um aluno para criticar os preconceitos burgueses
que moldam o processo pedagógico, especialmente na medida em que têm
relação com as perspectivas epistemológicas (os pontos de vista a partir dos
quais a informação é partilhada), será vista na maioria dos casos, sem sombra de
dúvida, como negativa e perturbadora. Dada a suposta natureza radical ou liberal
das primeiras disciplinas acadêmicas feministas, foi chocante para mim descobrir
que também aqueles ambientes estavam freqüentemente fechados para maneiras
diferentes de pensar. (245).

Quando os acadêmicos de classe trabalhadora ou de origem trabalhadora


partilham suas perspectivas, subvertem a tendência de enfocar somente os
pensamentos, as atitudes e experiências dos materialmente privilegiados. A
pedagogia crítica e a pedagogia feminista são dois paradigmas de ensino
alternativos que realmente deram ênfase à questão de encontrar a própria
voz. Esse enfoque se revelou fundamental exatamente por ser tão evidente que os
privilégios de raça, sexo e classe dão mais poder a alguns alunos que os outros
que a outros, concedendo mais “autoridade” a algumas vozes que a outras. (246)

“(...) Um novo colega, um branco, com quem eu conversava pela primeira vez, fez
uma invectiva ao simplesmente ouvir falar do meu seminário sobre Toni Morrison.
Destacou que Cantares de Salomão era uma versão piorada de Por quem os sinos
dobram, de Hemingway. Apaixonadamente hostil a Morrison e estudioso de
Heingaway, ele parecia estar manifestando a preocupação, tantas vezes repetida
de que as escritoras e pensadoras negras são imitações baratas de “grandes”
homens brancos. Como não queria, naquele momento, entrar nos assuntos
Desaprender o Colonialismo, Despojar-se do Racismo e Primeira Aula sobre
Sexismo, optei pela estratégia que havia aprendido num livro de autoajuda que
nega a existência do patriarcado institucionalizado, Mulheres que amam demais:
simplesmente disse “Ah”. Mais tarde, lhe garanti que leria Por quem os sinos
dobram de novo para ver se fazia a mesma relação. Ambos os incidentes,
aparentemente banais, revelam como é profundo o medo de que qualquer
descentralização das civilizações ocidentais , do cânone do homem branco, seja na
realidade um ato de genocídio cultural. Certas pessoas acham que todos os que
apóiam a diversidade cultural querem substituir uma ditadura do conhecimento
por outra, trocar um bloco de pensamento por outro. Talvez seja essa a
percepção mais errônea da diversidade cultural. Embora haja entre nós um
pessoal excessivamente zeloso que pretende substituir um conjunto de absolutos
por outro, mudando simplesmente o conteúdo essa perspectiva não representa
com precisão as visões progressistas de como o compromisso com a diversidade
cultural pode transformar construtivamente a academia. (página 49 -50)

“ Apesar de o multiculturalismo estar atualmente em foco em nossa sociedade,


especialmente na educação, não há nem de longe, discussões práticas suficiente
acerca de como o contexto da sala de aula pode ser transformado de modo a fazer
do aprendizado uma experiência de inclusão . Para que o esforço de respeitar e
honrar a realidade social e a experiência de grupos não brancos possa se
refletir num processo pedagógico, nós como professores em todos os níveis , do
ensino fundamental à universidade, temos de reconhecer que nosso estilo de
ensino tem de mudar. Vamos encarar a realidade: a maioria de nós freqüentamos
escolas onde o estilo de ensino refletia a noção de uma única norma de
pensamento e experiência, a qual éramos encorajados a crer que fosse universal.
Isso vale tanto para os professores não branco quanto para os brancos. A maioria
de nos aprendemos a ensinar imitando esse modelo. Como conseqüência , muitos
professores se perturbam com as implicações políticas de uma educação
multicultural, pois tem medo de perder o controle da turma caso não haja um modo
único de abordar um tema, mas sim modos múltiplos e referências múltiplas. (51)

(...) Tivemos de lembrar a todos, várias vezes, que nenhuma educação é


politicamente neutra. Mostrando que o professor branco do departamento de
literatura inglesa que só fala das obras escritas por “grandes homens brancos” está
tomando uma decisão política, tivemos de enfrentar e vencer a vontade
avassaladora de muitos presentes de negar a política do racismo, do sexismo, do
heterosexismo etc. que determina o que ensinamos e como ensinamos.
Constatamos várias vezes que quase todos, especialmente a velha guarda, se
perturbavam mais com o reconhecimento franco de o quanto nossas preferências
políticas moldam nossa pedagogia do que com sua aceitação passiva de modos de
ensinar e aprender que refletem parcialidades, particularmente o ponto de vista da
supremacia branca.

Com demasiada frequência, à vontade de incluir os considerados “marginais” não


correspondia a disposição de atribuir a seus trabalhos o mesmo respeito e
consideração dados aos trabalhos de outras pessoas. Nos Estudos da Mulher, por
exemplo, às professoras tratam das mulheres de cor somente no finalzinho do
semestre ou juntam numa única parte do curso tudo o que se refere à raça e às
diferenças. Essa modificação pró-forma do currículo não é uma transformação
multicultural, mas sabemos que é a mudança que os professores mais tendem a
fazer. Vou dar outro exemplo. Quando uma professora de inglês, branca, inclui uma
obra de Toni Morrison no roteiro do curso, mas fala sobre ela sem fazer nenhuma
referência à raça ou à etnia, o que isso significa? Já ouvi várias mulheres brancas
‘se gabarem” de ter mostrado aos alunos que os escritores negros são tão “bons”
quanto os do cânones convencionais ( ou, quem sabe, por todos os cânones). É, ao
contrário, mais um tipo de modificação pró-forma. (p.55)

(...) Muitos educadores nos estados Unido têm dificuldade para imaginar como
ficará a sala de aula quando se confrontarem com os dados demográficos que
indicam que “ser branco” pode deixar de ser a etnia normal em todos os níveis
educacionais. Logo, os educadores estão mal preparados quando confrontam
concretamente a diversidade. É por isso que muitos se aferram obstinadamente
aos velhos padrões. Trabalhando para criar estratégias de ensino que abrissem
espaço para o aprendizado multicultural, constatei a necessidade de reconhecer
aquilo que em outros textos de pedagogia chamei de diferentes “códigos culturais”.
(...) Muitas vezes , os professores e os alunos no contexto multicultural têm de
aprender a aceitar diferentes maneiras de conhecer, novas epistemológicas. (59)

(..) Ensinando uma disciplina tradicional do ponto de vista da pedagogia crítica,


muitas vezes encontro alunos que fazem a seguinte queixa: ‘ Achei que este curso
era de inglês. Por que estamos falando tanto de feminismo?”( 60)

O s alunos também me ensinaram que é preciso praticar a compaixão nesses


novos contextos de aprendizado. Não me esqueço do dia em que um aluno entrou
na aula e me disse. “ Nós fazemos seu curso. Aprendemos a olhar o mundo de um
ponto de vista crítico, que leva em conta a raça, o sexo e a classe social. E não
conseguimos mais curtir a vida. Olhando para o resto da turma, vi alunos de todas
às raças, etnias e preferências sexuais balançando a cabeça em sinal de
assentimento. E vi pela primeira vez que pode haver, e geralmente há, uma certa
dor envolvida no abandono das velhas formas de pensar e saber e no aprendizado
de outras formas. Respeito essa dor. E agora quando ensino, trato de reconhecê-la,
ou seja, ensino a mudança de paradigmas e falo sobre o desconforto que ela pode
causar. (p 61)

Apesar do foco na diversidade, do nosso desejo de inclusão, muitos professores


ainda ensinam em salas de aula onde a maioria dos alunos é de brancos. O espiríto
da inclusão pró-forma muitas vezes prevalece nesse contexto. É por isso que é tão
importante que o senhor “ser branco” seja estudado, compreendido, discutido para
todos aprenderem que a afirmação do multiculturalismo e uma perspectiva
imparcial e inclusiva podem e devem estar presentes mesmo na ausência de
pessoas de cor.

A questão da voz : Do ponto de vista da filosofia e educação no pensamento


de Sueli Carneiro - Epistemicídio

A filósofa Sueli Carneiro localiza o epistemicídio como um elemento constitutivo do


dispositivo de racialidade e biopoder.

- a autora dialoga com o pensamento de Boaventura Sousa Santos (1997),


para quem o epistemicídio se constituiu num dos instrumentos mais eficazes
e duradouros da dominação étnica/racial, pela negação que empreende da
legitimidade das formas de conhecimento, do conhecimento produzido
pelos grupos dominados e, conseqüentemente, de seus membros
enquanto sujeitos de conhecimento.

- o epistemicídio diz respeito ao processo de destituição da racionalidade, da


cultura e civilização do Outro.

- o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento


dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência
cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela
produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de
deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de
rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo
comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação
correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as
formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los
também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-
lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo”
ou legitimado.
- o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a seqüestra,
mutila a capacidade de aprender etc.

- a negação da plena humanidade do Outro, a sua apropriação em categorias


que lhe são estranhas, a demonstração de sua incapacidade inata para o
desenvolvimento e aperfeiçoamento humano, a sua destituição da
capacidade de produzir cultura e civilização prestam-se a afirmar uma razão
racializada, que hegemoniza e naturaliza a superioridade européia.
- o Não-ser assim construído afirma o Ser. Ou seja, o Ser constrói o Não-ser,
subtraindo-lhe aquele conjunto de características definidoras do Ser pleno:
auto-controle, cultura, desenvolvimento, progresso e civilização. No contexto
da relação de dominação e reificação do outro, instalada pelo processo
colonial, o estatuto do Outro é o de “coisa que fala”.
- a destruição e/ou desqualificação da cultura do dominado, o epistemicídio
retira a legitimidade epistemológica da cultura do dominador, justificando a
hegemonização cultural da modernidade ocidental.

Questão da Voz : Do ponto de vista político no pensamento de Muniz Sodré 2

Muniz Sodré situa a concepção de minoria inscrita na questão da voz. Diz o autor
que,

Aquilo que chamamos de “ culturas negras” no Brasil é um posicionamento de


minoria. Não minoria quantitativa, certo, uma vez que os segmentos de pele escura
são majoritários na população brasileira. Minoria deve ser aqui entendida
qualitativamente como palavra-chave para designar uma carência de voz
afirmativa de segmentos das classes economicamente subalternas no que diz
respeito a família, escola e governo. No vasto espaço da carência existencial, a
família pode não amparar, a escola pode não ensinar, o governo pode não
governar, mas a minoria pode falar e tornar visível todo um espectro de
desamparos. No interior da democracia representativa, minoria é a
possibilidade de uma voz qualitativa.

2 É professor emérito da Escola de Comunicação da UFRJ,


- em nossa tradição de pensamento, menoridade implica impossibilidade de
falar. Menor é aquele que não tem acesso à fala plena, como o infans. A
noção contemporânea de minoria refere-se à possibilidade de terem voz ativa
ou intervirem nas instâncias decisórias do poder aqueles setores ou frações
de classe comprometidas com às diversas modalidades de luta pela
questão social: os negros, os homossexuais, às mulheres, os povos
indígenas, os ambientalistas.

- minoria, portanto, não apenas como sujeito coletivo, mas como o lugar
operador de um fluxo de transformação que visa a novas identificações com
relação ao mundo do trabalho e das representações urbanas por meio do
trabalho cultural, esse tipo de trabalho que, muito mais do que o de natureza
econômica, revela o que somos como povo nacional.

- “voz”. É um significado subsumido, por exemplo, no modo como os


alemães entendem maioridade e menoridade. Em Kant, maioridade é
Mündigkeit, que implica literalmente a possibilidade de falar. Münd
significa boca. Menoridade é Unmündigkeit, ou seja, a impossibilidade de
falar . Menor é aquele que não tem acesso à fala plena, como o infans.

- o que move uma minoria é o impulso de transformação. É isso que


Deleuze e Guattari inscrevem no conceito de “devir minoritário”, isto é,
minoria não como um sujeito coletivo absolutamente idêntico a si mesmo
e numericamente definido, mas como um fluxo de mudança que atravessa
um grupo, na direção de uma subjetividade não capitalista. Este é na
verdade um “lugar” de transformação e passagem, assim como o autor
de uma obra é um “lugar” móvel de linguagem .

Questão da Voz : Do ponto de vista da filosofia da linguagem no pensamento


de Mikhail Bakhtin - Polifonia

- o modelo monológico não admite a existência da consciência responsiva e


isônoma do outro; para ele não existe o “eu” isônomo do outro, o “tu”. O outro
nunca é outra consciência, é mero objeto da consciência de um “eu” que tudo
enforma e comanda.
- o monólogo é algo concluído e surdo à resposta do outro, não reconhece
nele força decisória. Descarta o outro como entidade viva, falante e
veiculadora das múltiplas facetas da realidade social e, assim
procedendo, coisifica em certa medida toda a realidade e cria um modelo
monólogico de um universo mudo, inerte.
- o modelo monológico pretende ser a última palavra. Fecha em seu modelo o
mundo representado e os homens representados. O monologismo nega a
isonomia entre às consciências, não vê nessa relação um meio de chegar à
verdade, concebe-a de modo abstrato como algo acabado, fechado,
sistêmico.
- no modelo polifônico, têm-se às múltiplas vozes da existência.

Questão da Voz : Do ponto de vista da teoria da Enunciação (Teoria


Linguística) no pensamento de Émile Benveniste - Posição de sujeito e
pessoalidade

- é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito,


porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do
ser, o conceito de <ego>.
- a “subjetividade” de que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se
propor como “sujeito”. Defini-se não pelo sentimento que cada um
experimenta de ser ele mesmo (esse sentimento na medida em que podemos
considerá-lo, não é mais que um reflexo) mas como uma unidade psíquica
que transcende a totalidade das experiências que reúne, e que assegura a
permanência da consciência. Ora, essa “subjetividade”, quer a apresentemos
em fenomenologia ou em psicologia , como quisermos , não é mais que a
emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem. É “ego”
que diz ego. Encontramos aí o fundamento da “subjetividade” que se
determina pelo status linguístico da “pessoa”.
- a consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste. Eu
não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha
alocução um tu.
- é a condição de diálogo que é constitutiva da pessoa, pois implica em
reciprocidade- que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se
designa por eu.
- a linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito,
remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso. Por isso eu propõe outra
pessoa, aquele que, sendo exterior a” mim”, torna-se meu eco- ao qual eu
digo tu e que me diz tu.
- a polaridade das pessoas é na linguagem a condição fundamental, cujo
processo de comunicação, de que partimos, é apenas uma consequência
totalmente pragmática. Polaridade, aliás, muito singular em si mesma, e que
apresenta um tipo de oposição do qual não se encontra o equivalente em
lugar nenhum,fora da linguagem. Essa polaridade não significa igualdade
nem simetria: ego tem sempre uma posição de transcendência quanto a tu,
apesar disso, nenhum dos dois termos se concebe sem o outro; são
complementares, mas segundo uma oposição “interior/ exterior” e ao mesmo
tempo são reversíveis.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Investigar... encontrar... refletir...buscar alternativas para ajudar na melhor formação do
professor de língua estrangeira foi o que moveu este estudo. Como docente num curso de
formação de professores, inquietações são constantes a esse respeito.
Sabemos que a formação do professor vai além da aprendizagem durante o período de
tempo do curso de licenciatura, uma vez que não podemos pensar que o aluno está pronto,
soube o que deveria saber para desempenhar a profissão. Na verdade, neste tempo, os
professores estão legalmente e institucionalmente habilitados para lecionar. Mas, sempre
há a falta em relação ao conhecimento, há a necessidade de aperfeiçoamento, do estudo e
da pesquisa constante, e isso não é apenas delegado pela ordem social. Muitos discursos
confirmam que a sociedade “exige”, está “desse jeito” e, por isso é que o professor (e não
só ele) precisa estar sempre se atualizando, continuando a sua formação. No entanto, é
necessário reconhecer que o ser humano é incompleto, é um ser sempre ávido de desejos.
Então, as vontades do próprio indivíduo e do meio onde se encontra determinam a natureza
da formação.
Partindo disso é que surge a questão que vai nortear este trabalho: em que os estudos da
enunciação feitos por Benveniste poderiam contribuir para a formação do profissional de
Letras, principalmente, na área do ensino de línguas (estrangeiras)? Trabalhando com
discurso e enunciação, essa inquietude é constante. Sendo assim, pretendo explicitar
conceitos e concepções dos estudos da enunciação de Benveniste que venham a contribuir
positivamente para o professor de línguas em formação e refletir sobre a implicância disso
na prática docente desses futuros professores. Acredito que os estudos da enunciação de
Benveniste contribuíram e contribuem significativamente não só para a lingüística moderna,
mas também para a formação do professor de línguas com conceitos fundamentais como o
de subjetividade (que antes fora marginalizado) e com a revisão da noção de
língua/linguagem e sentido. Desse modo, conhecer essas noções que deram uma
reviravolta nos estudos lingüísticos, mudando o modo de pensar dos lingüistas, é importante
para o professor de línguas, uma vez que podem ajudá-lo a definir uma concepção de
língua/linguagem, de sujeito, de sentido e de ensino e aprendizagem para a sua prática
pedagógica.

2. A TEORIA DA ENUNCIAÇÃO DE BENVENISTE E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA OS


ESTUDOS LINGÜÍSTICOS

Os estudos sobre a enunciação, em geral, principalmente, a teoria enunciativa proposta por


Benveniste, trazem para o cenário das preocupações lingüísticas, sem desconsiderar as
proposições estruturalistas anteriores, o sujeito, personagem tido como secundário pela
lingüística saussuriana. Com a noção de subjetividade, outras também emergiram — as
noções de sentido e contexto (referente) — que juntas possibilitaram uma nova forma de
pensar a língua/linguagem.
2.1. A noção de língua/linguagem
A perspectiva de entendimento de língua de Benveniste se diferencia da de Saussure, uma
vez que a vê como essencialmente social, concebida no consenso coletivo. Para o teórico
da enunciação (1989, p. 63), “(...) somente a língua torna possível a sociedade. A língua
constitui o que mantém juntos os homens, o fundamento de todas as relações que por seu
turno fundamentam a sociedade.” O fundador da lingüística moderna pensava na língua
como um código fechado em si mesmo, estruturado por signos. A forma como Benveniste
pensa a língua advém do seu entendimento de signo. Considerando sua forma de
significação, propõe dois planos de sentido: o semiótico e o semântico. No primeiro, que
confere com o pensamento de Saussure, está o signo significando no sistema e, no
segundo, há a expressão do sentido resultante da relação do signo com o contexto, ou seja,
o modo de significar do enunciado (discurso). Para o autor, essa forma de significar é a
língua como trabalho social. Assim, Benveniste vê a língua no seio da sociedade e da
cultura porque, para ele, o social é da natureza do homem e da língua.
O entendimento de língua, mostrado por Benveniste, também vai refletir na concepção de
linguagem que defende. Esta não é entendida como aquela que serve de instrumento de
comunicação ao homem.

Em seu estudo Da subjetividade na linguagem, Benveniste (1991, p.85) questiona e


critica essa noção de linguagem dizendo que “Falar de instrumento, é pôr em oposição o
homem e a natureza”, mostrando que não se pode mais conceber a linguagem e o indivíduo
dessa forma porque “não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos
nunca inventando-a”. Na verdade, essa concepção deixa o indivíduo à margem da
linguagem. O que propõe então é uma idéia de linguagem que dê ao indivíduo o status de
sujeito e assim deve ser porque “é um homem falando que encontramos no mundo, um
homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem”.
Dessa forma, a linguagem será o lugar onde o indivíduo se constitui como falante e como
sujeito. Essa noção está desenvolvida na teoria da enunciação postulada por Benveniste, a
qual direciona os estudos sobre a linguagem para uma nova situação.
2.2. A noção de subjetividade
Benveniste, em seus estudos sobre a enunciação, não pretendia fazer uma teoria do
sujeito, como já é sabido, mas sim se preocupava com a significação. Apesar disso, sua
maior contribuição para a lingüística moderna é a questão da subjetividade. Ela veio à
tona porque é inevitável sua presença quando se estuda a linguagem e o sentido. Sendo
assim, o sujeito é o cerne da sua teoria da enunciação.
Segundo Benveniste (1991, p.288), a subjetividade é entendida como “a capacidade do
locutor para se propor como “sujeito”. Essa proposição como sujeito tem como condição
a linguagem. “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito;
porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o
conceito de ego”. Assim sendo, essa propriedade da subjetividade é determinada pela
pessoa e o seu status lingüístico. Além disso, para o referido autor, a subjetividade é
percebida materialmente num enunciado através de algumas formas (dêixis, verbo) que a
língua empresta ao indivíduo que quer enunciar; e quando o faz transforma-se em sujeito.
Classifica essas marcas lingüísticas, que têm o poder de expressar a subjetividade, os
pronomes e o verbo, integrando essas duas classes de palavras na categoria de pessoa,
proposta em 1946.
Nesse texto de 1946, Benveniste, ao instaurar a categoria de pessoa, define as pessoas do
discurso. Considera eu/tu como as autênticas pessoas em oposição a ele – a não-pessoa.
As pessoas eu/tu se caracterizam como categorias de discurso que só ganham plenitude
quando assumidas por um falante, na instância discursiva. Essa tomada é sempre única,
móvel e reversível, representando a (inter)subjetividade na linguagem. A terceira pessoa (a
não-pessoa, ele), ao contrário, é um signo pleno, uma categoria da língua, que tem
referência objetiva e seu valor independe da enunciação, declarando, portanto, a
objetividade. A oposição entre os participantes do diálogo e os não participantes resulta em
duas correlações: personalidade e subjetividade. A correlação de personalidade opõe
a pessoalidade, presente em eu/tu, e a não pessoalidade, presente em ele; já a correlação
de subjetividade descreve a oposição existente entre o eu (pessoa subjetiva) e o não-eu
(pessoa não-subjetiva). Tais correlações se estendem aos pronomes no plural que, nessa
teoria, significam mais que pluralização. Então, Benveniste inova ao dizer que os pronomes
pessoais no plural não expressam somente plural. É o caso de nós e vós. Somente “eles” —
por não ter marca de pessoa — indica verdadeiro plural. Ainda, define o nós como inclusivo
(união de um eu, pessoa subjetiva, a um tu/vós, pessoa não subjetiva) e como exclusivo
(eu, pessoa + ele(s), não pessoa). Não podem significar plural porque não demonstram a
repetição da mesma pessoa. No caso do nós, não há soma de diferentes pessoas e não há
repetição de “eus”; no caso do vós, no sentido coletivo ou de cortesia, não há soma de
vários “tus”. Então, o fato a que chama atenção Benveniste é que os pronomes não devem
ser mais considerados, e o são habitualmente, como uma “classe unitária” quando se refere
à forma e à função, diferenciando o aspecto formal dos pronomes, pertencente à parte
sintática da língua, do funcional, considerado característico da instância do discurso, ou
seja, da enunciação. Quer dizer, os pronomes se configuram numa classe da língua que
opera no formal, sintático, e no funcional, pragmático. Sendo assim, os pronomes devem
ser entendidos também como fatos de linguagem, pertencentes à mensagem (fala), às
categorias do discurso e não apenas como pertencentes ao código (língua), às categorias
da língua, como considerava Saussure. Essa visão dos pronomes, também como categoria
de linguagem, é dada pela posição que nela ocupam.
Desse modo, acredita-se que, para encontrar e tentar entender o sujeito e suas
representações na teoria enunciativa de Benveniste, é necessário partir da categoria de
pessoa. De acordo com Gomes (2004), “A subjetividade é vista como uma propriedade da
língua realizável pela categoria de pessoa”. Da mesma forma, Santos (2002, p.25), afirma
que
O fundamento da subjetividade repousa sobre a categoria de pessoa
presente no sistema da língua; todavia essa subjetividade depende da
inversibilidade do par eu-tu, a qual assegura um fator fundamental na
atribuição de sentido à categoria de pessoa - a intersubjetividade.
Segundo Benveniste (1989, p.87), “o que caracteriza a enunciação é a acentuação da
relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginário, individual ou coletivo”. Isso
determina a estrutura do quadro figurativo da enunciação, o do diálogo, que tem
obrigatoriamente um eu e um tu. Os dois participantes alternam as funções, caracterizando-
se como parceiros e protagonistas na situação de enunciação. Isso, na verdade, vai criar
uma relação intersubjetiva entre as pessoas do enunciado.
3. POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA ENUNCIATIVA DE BENVENISTE PARA A
FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE LÍNGUA
Freire (1982, p.42) afirma que “Toda prática educativa implica numa concepção dos seres
humanos e do mundo”. Dessa forma, o professor de língua (estrangeira) também deve ter
concepções claras sobre língua/linguagem, sujeito e o próprio processo de ensino-
aprendizagem, uma vez que o modo como são entendidos tais aspectos refletirá na sua
prática pedagógica e na educação.
Retomando o pensamento de Benveniste sobre a concepção de língua e linguagem,
percebemos que é entendida como o lugar e o fundamento da subjetividade, e esta, por sua
vez, é percebida e tem valor numa relação dialógica, intersubjetiva. Os sujeitos, via língua,
constroem sentidos interativamente no discurso.
Assim sendo, considerar tais idéias da teoria enunciativa benvenistiana contribui, com
certeza, para a formação do professor de língua e para o momento de ensino-aprendizagem
porque este processo também será entendido como social, interativo, intersubjetivo e
construído entre um eu (professor) e vários tus (alunos). Quer dizer, o ensinar e o aprender
só acontecem quando são construídos socialmente. Não há como separar os dois pólos e
pensar que alguém ensina e outros aprendem. Conforme Freire (1982, p.28), “Ninguém
educa ninguém” porque cada indivíduo é sujeito de sua educação e isso se caracteriza por
um a relação dialógica e interdependente.

Questão da Voz : Do ponto de vista da psicanálise no pensamento de Frantz


Fanon- Linguagem

- uma vez que falar é existir absolutamente para o outro.


-falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a
morfologia de tal ou qual língua , mas é sobretudo assumir uma cultura , suportar o
peso de uma civilização.

Questão da Voz : Do ponto de vista dos Estudos Culturais no pensamento de


Stuart Hall- Enunciado

- pensar em práticas de representação implica pensar em posições das quais


se fala ou se escreve – as posições de enunciação.
- o “eu” que escreve aqui precisa ser pensado, ele mesmo, como “enunciado”.
Nós todos escrevemos e falamos de um lugar e tempo particular, de uma
história e cultura que é específica. O que dizemos está sempre “em
contexto”, posicionado. Nasci e passei minha infância e adolescência em
uma família de baixa classe-média, na Jamaica. Toda a vida de adulto tenho
vivido na Inglaterra, na sombra da diáspora negra – “na barriga da fera”.
Escrevo tendo ao fundo uma vida de trabalho em Estudos Culturais. Se este
ensaio denotar preocupação com a experiência da diáspora e suas narrativas
de deslocamento, lembre-se então que todos os discursos são
“localizados”, e que o coração tem suas próprias razões.

Questão da Voz : Do ponto de vista da linguagem no pensamento da escritora


caribenha-americana Audre Lorde- visibilidade

A noção de Autorevelação e autodeterminação inscrita no pensamento de Audre Lorde


(1984) diz respeito à decisão do sujeito de definir-se em seus próprios termos, operando
uma outra lógica de visibilidade e posicionamento diante do mundo. Para Lorde, a
transformação do silêncio em linguagem e em ação é ato de auto revelação.

-a autodeterminação, a decisão de definir a nós mesmas, de dar nomes, de falar por nós
em vez de sermos nomeadas e expressadas por outros.
-cada uma de nós está hoje aqui porque de um modo ou outro compartilhamos um
compromisso com a linguagem e com o seu poder, também com a recuperação dela que
foi utilizada contra nós.
- na transformação do silêncio em linguagem e em ação, é de uma necessidade vital para
nós estabelecer e examinar a função dessa transformação e reconhecer seu papel
igualmente vital dentro dessa transformação. Para quem escrevemos, é necessário
examinar não só a verdade do que falamos mas também a verdade da linguagem em que o
dizemos. Para outras, se trata de compartilhar e difundir aquelas palavras que significam
tanto para nós.
- a transformação do silêncio em linguagem e em ação é um ato de auto revelação

Referências

CARNEIRO. Sueli.A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do


Ser. (tese de Doutorado) FEUSP.2005.

BRAIT. Beth. Bakhtin: Conceitos-chave. (org). 4ª edição.São Paulo. Contexto.


2010.

BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral I. 3 ed. São Paulo: Pontes,


1991.

FANON. Frantz. Peles Negras, Máscaras Brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.

GLISSANT.Édouard. Poética da Relação. Tradução. Manuela Mendonça. Porto


Editora.2011.
hooks. bell. Ensinando a Transgredir - A Educação Como Prática da Liberdade.
Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

LORDE. Audre. A transformação do silêncio em linguagem e ação. In:


Associação de Línguas Modernas, painel Lésbicas e literatura, 1977. Disponível em
https://www.geledes.org.br/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-e-acao/

Mbembe.Achille. Crítica da Razão Negra. tradução Marta Lança. 2ª


edição.Antígona.2017.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora


UFMG, 2014

SODRÉ. Muniz. Por um conceito de minoria. In: PAIVA, Raquel; BARBALHO,


Alexandre(orgs.). Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus. 2005.

______________ Claros e Escuros: identidade, povo, mídia e cotas no Brasil.


3ªedição. Petrópolis. Rio de Janeiro. Vozes. 2015.

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