1
CLAUS ROXIN: «Sentido e limites da pena estatal», in Problemas Fundamentais de Direito Penal, 3.ª ed.,
Ed. Vega, Lisboa, 1998, p. 15.
Introdução
2
Para uma visão geral, v. LUIGI FERRAJOLI, Derecho y razón, pp. 247-248.
3
ELENA LARRAURI: «Criminología critica: Abolicionismo y Garantismo», in Ciencias Penales, A.C.P. Costa
Rica, 17, Marzo-2000, http://www.cienciaspenales.org/REVISTA%2017/larrauri17.htm; «Abolicionismo
del Derecho penal: las propuestas del movimiento abolicionista» in Poder y Control n.º 3, 1987, pp. 101-
127, onde expressa que «el abolicionista 'verdadero' aboga no sólo por la abolición de la cárcel sino
también por la abolición del sistema de justicia penal». Sobre os diversos movimentos abolicionistas v.
ainda EUGÉNIO RAUL ZAFFARONI: En busca de las penas perdidas, Ediar Editora, Buenos Aires 1989, pp. 101
ss; LUIGI FERRAJOLI: «El Derecho Penal Mínimo», in Juan Bustos Ramirez et alli, Prevencion y Teoria de la
Pena, Ed. Conosur, Santiago de Chile, 1995, pp. 25-48.
4
Gerrard Winstanley (1609-1676) antecipou toda a série de filósofos libertários, ao condenar o castigo,
afirmando que o crime é uma consequência da desigualdade social (GEORGE WOODCOCK: Historia Das
Ideias e Movimentos Anarquistas, Vol. 1, L&PM Editores, Porto Alegre, 2002, p. 49). Deixando de lado as
visões mais radicais, e uma espécie de “glorificação” do crime, como a de Max Stirner, em que o homem
ideal, o egoísta, deve lutar contra a existência do Estado, com todos os meios ao seu alcance,
independente de todas as concepções éticas; e em que «os pobres só se tornarão livres e proprietários
quando se revoltarem», numa espécie de guerra de «cada um, contra todos» (apud GEORGE WOODCOCK:
predominantemente que o crime, enquanto produto do sistema capitalista,
desapareceria com a construção de uma nova sociedade e, consequentemente, de um
“homem novo”5.
Enquanto as antigas teorias abolicionistas postulavam o desaparecimento do
conflito, através da eliminação do Estado, ou da modificação das relações de
produção, a abordagem abolicionista contemporânea não acredita neste
desaparecimento do conflito.
Centrando-nos no debate actual, o que está em causa não é, como acabámos
de referir, o desaparecimento do conflito, mas a abolição do sistema penal, ou das
penas privativas da liberdade, como uma falsa solução desses conflitos6. Assim, há
quem defenda a necessidade de acabar, desde logo, com o próprio Direito Penal, isto
porque o próprio sistema penal é – em si mesmo – um problema social a erradicar.
Segundo os defensores desta ideia, o sistema penal é, desde logo, anómico, porque as
normas não cumprem efectivamente as funções esperadas: não protegem nem os
cidadãos nem as relações sociais; não cumprem a sua função intimidatória, porque não
evitam o crime; é falsa a sua “igualdade de aplicação”, ou seja, é um sistema
sumariamente selectivo, tanto em relação às condutas criminalizadas, como em
relação ao acesso ao Direito; não cumpre a sua função reeducativa, pelo contrário,
limita-se a “destruir” o infractor; por último, mas não menos importante, o sistema
penal não se interessa pela vítima, cujos interesses ocupam um lugar muito secundário
nos procedimentos penais, orientados, primordialmente, a essa quimérica “descoberta
da verdade”7.
À margem desta luta pela abolição do Direito Penal, surgiram nestas últimas
quatro décadas, diversas organizações, especialmente na Holanda e nos países
Historia Das Ideias e Movimentos Anarquistas, p. 113); o fio condutor das ideias anarquistas em relação
ao crime pode sintetizar-se na ideia de que a libertação do Estado e do seu direito positivo bastariam
para que as relações e os conflitos sociais se regulassem e resolvessem por si próprios (EUGENIO RAÚL
ZAFFARONI: En Busca de las Penas Perdidas, p. 102). Por outro lado, outros autores, aproximam-se da
abordagem marxista quando sustentam, como William Godwin, que a acumulação de riqueza é ela
própria geradora do crime, que resulta do facto de que «um homem possua em abundância aquilo de
que o outro carece» (apud GEORGE WOODCOCK: Historia Das Ideias e Movimentos Anarquistas, p. 95).
5
Deste ponto de vista, o desaparecimento do crime resultaria do desaparecimento das situações
problemáticas ou conflituais que normalmente conduzem aos processos de criminalização (LOUK C.
HULSMAN: «La Criminologia Critica e el Concepto de Delito», in Juan Bustos Ramirez et alli, Prevencion y
Teoria de la Pena, Ed. Conosur, Santiago de Chile, 1995, p. 122).
6
EUGENIO RAÚL ZAFFARONI: En Busca de las Penas Perdidas, p. 102.
7
MAURICIO MARTÍNEZ SÁNCHEZ: La abolicion del sistema penal, Temis, Bogotá, 1990, pp. 13 e 57 ss.
escandinavos, nos anos 60 e 70 do século passado8, que assumiam como objectivo
estratégico a abolição do sistema prisional, ou seja, a abolição da pena de prisão9.
Pegando num dos aspectos que referíamos há pouco, o “esquecimento” da
vítima no Direito Penal10, Louk Hulsman, acusa a actual justiça criminal de não oferecer
aos cidadãos aquilo que eles mais desejam: protecção e reparação. Afinal, a pessoa
que deveria ser o “sujeito” da justiça criminal acaba por ter de recorrer ao Direito Civil
ou Administrativo no sentido de minimizar algumas das suas dificuldades ou
necessidades11. Advoga, portanto, a “devolução” do conflito aos seus protagonistas –
vítima do delito e agressor – para que o conflito não seja “apropriado” pelas
“instâncias formais de controlo” (polícia, tribunais, sistema penitenciário). Para isto,
defende o Autor, há que estabelecer mecanismos de “concertação” (compensação)
entre a vítima e o agressor, ou seja, a “privatização”, ou “civilização” do Direito
Penal12.
Um outro grupo de penalistas tem vindo a defender uma espécie de
“abolicionismo minimalista”: apenas situações socialmente muito graves e (ou)
recorrentes justificariam a intervenção do Estado13; ainda assim proscrevendo toda e
qualquer sanção que pudesse infringir dor ou sofrimento pessoal ao condenado14.
Em qualquer circunstância, o abolicionismo, tanto nas suas versões mais
radicais, como no chamado abolicionismo minimalista de Mathiesen e Christie
acabam, em bom rigor, por admitir a necessidade de adoptar uma medida de coacção,
não para castigar, é certo, mas para reparar ou neutralizar o conflito; e em casos
excepcionais para neutralizar o agente portador de perigosidade.
8
Curiosamente, dos países que levaram mais longe a ideia de reinserção.
9
Para uma panorâmica geral, v. ELENA LARRAURI: «Criminología critica: Abolicionismo y Garantismo»,
citado; IÑAKI RIVERA BEIRAS: Política Criminal y Sistema Penal. Viejas y nuevas racionalidades punitivas,
Anthropos, Barcelona, 2005, pp. 204-213; JESÚS MARÍA SILVA SÁNCHEZ: Aproximación al Derecho Penal
Contemporáneo, Bosch Ed., Barcelona, 1992, pp. 18-26.
10
Sobre o «esquecimento» da vítima em Direito Penal, v. ALBERTO BOVINO: «La víctima como
preocupación del abolicionismo penal», in Albin Eser et alli, De los Delitos y de las Victimas, pp. 261 ss.
11
LOUK HULSMAN, JACQUELINE BERNAT DE CELIS: Sistema Penal y Seguridad Ciudadana: Hacia a una
alternativa, Ariel, Barcelona, 1984, pp. 62, 106 ss.
12
LOUK C. HULSMAN: «La Criminologia Critica e el Concepto de Delito», pp. 119-135; «El enfoque
abolicionista: políticas criminales alternativas», in AAVV, Criminologia Critica y Control Social, N.º 1, "El
Poder Punitivo del Estado", Editorial Juris, Rosario (Argentina), 1993, pp. 75 ss.
13
THOMAS MATHIESEN: «Diez razones para no construir más cárceles», in Nueva doctrina penal, Nº. 1,
2005, Buenos Aires, Argentina, pp. 3-20.
14
NILS CHRISTIE: Los límites del dolor, Fondo de Cultura Economica, México, 1984; «Los conflictos como
pertenencia», in Albin Eser et alli, De los Delitos y de las Victimas, pp. 157-182.
Sem cuidar agora das críticas que se podem formular – e que têm sido
formuladas – a estas correntes15, sendo certo que nem a justificação, nem o tipo de
resposta, nem a forma obedecem àquilo que normalmente entendemos por castigo, a
questão que, imediatamente se coloca, é saber se estas reacções não são, em bom
rigor, castigos, embora com outro nome16.
Apesar disso, algumas propostas das correntes abolicionistas têm vindo a ser,
paulatinamente, incorporadas – desde os EUA à generalidade dos países europeus, e
agora também entre nós, embora, as mais das vezes, sem que se reconheça a
proveniência dos institutos desta índole – nos diversos ordenamentos penais17. É, por
exemplo, (1) o recurso à mediação, como alternativa ao processo judicial18; ou (2) da
pena de trabalho a favor da comunidade (que entre nós adopta a designação de
“prestação de trabalho socialmente útil”), como “alternativa” à pena de prisão19.
Assiste-se hoje, portanto, a uma tentativa, embora tímida20, de construção de
um novo paradigma politico-criminal que ganha cada vez mais adeptos sob o nome de
justiça restaurativa (restorative justice). Duas ideias chave sobressaem desta
alternativa ao actual modelo de justiça: em primeiro lugar, a ideia de “devolução” do
15
Nomeadamente a de que o abolicionismo penal conduz, por um lado, a um Estado terapeuta e
totalitário, por outro, á vingança privada (AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO: «Condicionalidade sócio-cultural
do direito penal», Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 1985, p. 74, nota 134). Veja-se
ainda, LUIGI FERRAJOLI, Derecho y razón, pp. 247 ss; «El Derecho penal mínimo», pp. 25-48; JESÚS M. SILVA
SÁNCHEZ: Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo, pp. 20-25; WINFRIED HASSEMER: Fundamentos
del Derecho penal, Bosch Ed., Barcelona 1984, pp. 399-400. Elencando um conjunto de críticas que têm
sido feitas a estas correntes abolicionistas, sem no entanto as compartilhar, cfr. ELENA LARRAURI:
«Abolicionismo del Derecho penal: las propuestas del movimiento abolicionista», pp. 106-108.
16
Falando num «cambio de etiquetas, […] de titulares y de víctimas, pero no del contenido y extensión
del lus puniendi», cfr. ANTONIO GARCÍA-PABLOS DE MOLINA: «Reflexiones sobre el actual saber jurídico-penal
y criminológico», in Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense, Nº. 63, 1981, p.
26.
17
Cfr. JOÃO PEDROSO: «A reforma da justiça penal», pp. 155-156.
18
Entre nós prevista no actual art.º 88 do CP, que estabelece como medidas alternativas ao julgamento
(a epígrafe “medidas alternativas à pena de prisão” é enganadora), a transacção penal e a suspensão
provisória do processo (n.º 1) que, sob mediação do Ministério Público, prosseguem fins de
consensualização entre o infractor e o lesado (n.º 3). Verificados os pressupostos, e requisitos,
estabelecidos no art.º 102/1 do CP, estas medidas são de aplicação obrigatória às infracções puníveis
com pena superior a um, e inferior a dois anos (n.º 2).
19
Que no nosso caso está prevista, a par de um conjunto de outras (a prestação pecuniária ou em
espécie; a perda de bens ou valores; a multa; e a interdição temporária de direitos), no art.º 89/1 do CP.
Igualmente verificados os pressupostos, e requisitos, estabelecidos no art.º 102/1 do CP, estas,
impropriamente, chamadas alternativas à pena de prisão, substituem, obrigatoriamente, a pena de
prisão, obstando à sua efectivação (art.º 89/ 2 e 3 do CP).
20
Até porque é questionável se as verdadeiras motivações são mais de carácter “logístico” –
superlotação dos estabelecimentos prisionais – ou de uma verdadeira política criminal. Cfr. Relatório da
Comissão de Estudos e Debate da Reforma do Sistema Prisional, Presidida pelo Prof. Doutor Freitas do
Amaral, Almedina, Coimbra, 2005, mx. Capítulos, VI e VII.
conflito penal aos particulares21; em segundo lugar, a ideia de “reparação”, rectius,
“neutralização” do conflito22.
Referem-se hoje, por isso, alguns autores, a uma nova e autónoma finalidade
da pena, o propósito de com ela se operar uma possível concertação entre o agente e
a vítima através da reparação dos danos – não apenas necessariamente patrimoniais,
mas também morais causados pelo crime23. O efeito politico-criminal positivo que
daqui se espera é, no essencial, impedir o efeito estigmatizante, em larga medida
criminógeno, da submissão ao sistema formal de justiça penal e, em particular, da
aplicação das tradicionais sanções criminais24.
21
Descontroi-se o crime, apresentando-o como um conflito entre pessoas que não deve ser resolvido
por um Estado burocrático que o que vai fazer é trazer ainda mais dor e agravar ainda mais o conflito
(JOÃO PEDROSO: Por caminhos..., 152-153). Sobre esta questão v. ALBERTO BOVINO: «La víctima como
preocupación del abolicionismo penal», pp. 260 ss; ELENA LARRAURI: «Victimología», in Albin Eser et alli,
De los Delitos y de las Victimas, Ad-Hoc, Córdoba, 1992, pp. 283-316.
22
Sobre a defesa deste modelo, v. NILS CHRISTIE: «Los conflictos como pertenencia», pp. 160 ss.
23
CLAUS ROXIN: «La reparación en el sistema de los fines de la pena», in Albin Eser et alli, De los delitos y
de las victimas, Ad-Hoc, Buenos Aires, 1992, pp. 131-156, surge, tanto de um ponto de vista político
criminal como dogmático, como um dos defensores mais firmes desta ideia (inclusive através de
propostas legislativas), procurando mesmo, através dela, construir um sistema tripartido de sanções
penais: penas, medidas de segurança e reparação de danos.
24
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal Português, Parte Geral, II. As consequências jurídicas do crime,
Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pp. 65-79, mx. §§ 44 ss; 60 ss e 66 ss.
São teorias absolutas todas as doutrinas da retribuição ou da expiação, que
concebem a pena como um fim em si mesmo – como castigo, compensação, reacção,
reparação, retribuição ou expiação do crime – justificada, portanto, pelo seu valor
axiológico intrínseco. Neste contexto, a reacção criminal não é nem um meio, nem um
custo, mas tão só um dever metajurídico, uma pura exigência de Justiça25. Para além
de uma indiscutível dignidade histórica, e da correspondência a sentimentos
profundamente ancorados na comunidade, estas doutrinas tiveram, desde sempre, um
forte acolhimento ao nível do pensamento filosófico. Dividem-se consoante o valor
religioso, moral ou jurídico atribuído à retribuição penal26.
Arrancando do princípio bíblico de talião – “olho por olho, dente por dente” –
tendo-se deixado penetrar, durante a Antiguidade, por representações mitológicas, e
durante a Idade Média, por racionalizações religiosas, estas teorias absolutas da
retribuição, louvam-se basicamente na ideia de realização da Justiça no mundo, como
mandato divino, conduzindo à legitimação da aplicação da pena retributiva pelo juiz
como um representante terreno da justiça divina27. Com o Iluminismo, estas ideias de
retribuição entraram, de certa forma, em crise, mas foram relançadas no séc. XIX e.c.
em duas versões laicas: (a) a versão kantiana, segundo a qual a pena é uma retribuição
ética, justificada pelo valor moral da lei violada (imperativo categórico de justiça)28; e
(b) a hegeliana, segundo a qual a pena é uma retribuição jurídica, justificada pela
25
Sobre a teoria da retribuição, v., por todos, CLAUS ROXIN: «Sentido e limites da pena estatal», pp. 16-20.
26
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 43; MARIA FERNANDA PALMA, Direito Penal, p. 39;
GERMANO MARQUES DA SILVA: Direito Penal Português. Parte Geral, Vol. I (reimpressão), Verbo, Lisboa/S.
Paulo, 1999, pp. 48-49.
27
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 43.
28
Kant assume o pensamento retributivo, justificando a pena independentemente de quaisquer fins, no
magnífico exemplo da punição do último condenado à morte numa ilha em que o Estado se dissolveu.
Identificava a pena (a “lei penal”) como um “imperativo categórico”, por isso que, “quando a justiça
desaparece, não tem mais valor que os homens vivam na terra”; e concluía afirmando que, ainda
quando o Estado e a Sociedade devessem desaparecer, “teria o último assassino que se encontrasse na
prisão de ser previamente enforcado, para que assim cada um sinta aquilo de que são dignos os seus
actos e o sangue derramado não caia sobre o povo que se não decidiu pela punição, porque ele poderia
então ser considerado como comparticipante nesta violação pública da justiça”, Metafísica dos
Costumes, §49, apud JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 44; MARIA FERNANDA PALMA: Direito
Penal, p. 40.
necessidade de reparar o direito violado com uma violência contrária, que restabeleça
a ordem legal (negação dialéctica do crime pela pena)29.
Mais recentemente, têm vindo a ganhar alguma visibilidade basicamente duas
abordagens retributivas: uma teoria que atribui à pena a finalidade de correcção de
uma “vantagem ilícita” que o criminoso obtém com a prática do crime. A função do
castigo seria a da “imposição de uma desvantagem compensatória”30; uma outra,
centrada no princípio da culpa, que vê na pena a finalidade de censura e reprovação
pela prática do crime. Em que termos?
A censura tem, em primeiro lugar, a função de reconhecimento do dano
causado à vítima31; a censura tem, em segundo lugar, uma função de possibilitar ao
agente o reconhecimento do dano e, em certos casos, induzir no agente um propósito
de emenda32, a censura desempenha, em terceiro lugar, a função de “apelar ao
sentimento” dos restantes cidadãos para o carácter danoso da conduta censurada
29
Em Hegel, por seu turno, a pena é uma consequência lógica do crime, pois sendo a negação deste
constitui a reafirmação dialéctica do Direito. Por outro lado, considera a pena como um modo de honrar
o criminoso e não como um instrumento ao serviço da sociedade, através do qual a dignidade do
criminoso como pessoa possa ser prejudicada. Hegel considerava o crime como a negação do Direito e a
pena como a negação da negação, como “anulação do crime, que de outro modo continuaria a valer” e,
por isso, como “restabelecimento do direito”. E acrescentava que inquinar esta consideração absoluta
da pena com quaisquer fins de prevenção seria como “levantar um pau contra um cão e tratar o ser
humano não segundo a sua honra e liberdade, mas como um cão”. Princípios da Filosofia do Direito, §§
99 e 101 e adição ao § 99, apud JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 44; MARIA FERNANDA
PALMA, Direito Penal, p. 40.
30
Esta teoria arranca, no essencial, de uma perspectiva de «custo benefício», vendo no crime a
obtenção de uma vantagem ilícita relativamente aos restantes cidadãos – os benefícios de não ter
actuado em conformidade com as regras de ordenação social e de não se ter submetido aos limites do
seu auto-controlo. A vantagem que aqui se refere não é vista em termos literais, quantificáveis. O que
está em causa é uma liberdade de acção adicional da qual o infractor se «apropriou de forma ilícita»
(ANDREW VON HIRSCH: Censurar y castigar, Editorial Trotta, Madrid, 1998, p. 34). A função do castigo seria
a da «imposição de uma desvantagem compensatória». Sobre esta abordagem v. HERBERT MORRIS:
«Persons and Punishment», in The Monist, 52, 4, 1968, pp. 475-501; JEFFRIE G. MURPHY: «Cruel and
Unusual Punishments», in Law, Morality and Rights (Royal Institute of Philosophy’s Conferences), M.A.
Stewart, Dordrecht, 1979, pp. 373-404. Ambos os autores estão hoje mais próximos de uma finalidade
de aperfeiçoamento moral do criminoso (prevenção especial positiva), v. HERBERT MORRIS: «A
Paternalistic Theory of Punishment», in American Philosophical Quarterly, University of Illinois Press,
Vol. 18, No. 4 (Oct., 1981), pp. 263-271, disponível em: http://www.jstor.org/stable/20013924; JEFFRIE G.
MURPHY: «Retributivism, Moral Education, and the Liberal State», in Criminal Justice Ethics, Vol. 4, N.º 1,
1985,pp. 3-11, disponível em: http://ssrn.com/abstract=1444904
31
ANDREW VON HIRSCH: Censurar y castigar, p. 36. No mesmo sentido, v. JOEL FEINBERG: «The Expressive
Function of Punishment», in Doing & Deserving: Essays in the Theory of Responsibility, Princeton
University Press, Princeton N.J., 1970, pp. 95-118.
32
Embora reconhecendo ser um fraco argumento, nos casos do criminoso por convicção, v. ANDREW VON
HIRSCH: Censurar y castigar, p. 36.
levando-os assim a desistir de cometer aquele tipo de crime33. Mas isto já é, em bom
rigor, uma teoria eclética (prevenção geral positiva).
Em síntese, o papel da pena aparece-nos, neste grupo de doutrinas,
intimamente ligado a um ideal de justiça, e pode traduzir-se, fundamentalmente, nas
ideias de restauração da justiça, e de ressarcimento da culpa34.
33
ANDREW VON HIRSCH: Censurar y castigar, p. 37.
34
Sobre a culpa como fundamento da pena e, por conseguinte, o ressarcimento da culpa como o fim
imediato da pena v. JOSÉ SOUSA E BRITO: «Os Fins das Penas no Código Penal Português», in Seminário
Internacional de Direito Penal, Universidade Lusíada, Lisboa, Março de 2000. Em sentido próximo,
vinculando a ideia de retribuição aos princípios da responsabilidade (culpa) e da igualdade, v. JOSÉ DE
FARIA COSTA: Linhas de Direito Penal e de Filosofia, p. 225-235.
35
A diferença entre doutrinas absolutas ou da retribuição e doutrinas relativas ou utilitaristas encontra-
se expressa de uma forma extremamente clara numa conhecida passagem de Platão, que é
normalmente citada pelos autores: «Ninguém deve punir o ilícito porque ele se praticou, ninguém deve
aplicar uma pena dirigida contra o mal passado («quia peccatum»), pois o que sucedeu não mais se
pode desfazer, mas considerando o futuro, ou seja, para que nem aquele que sofreu a pena volte a
praticar um crime (prevenção especial) nem aquele outro que veja a punição o faça (prevenção geral)»
(«ne peccetur») (Protágoras, § XIII, p. 324, apud EDUARDO CORREIA: Direito Criminal, I, p. 42).
sobre a comunidade, afastando a generalidade dos membros da prática de crimes,
“através da ameaça penal estatuída por lei, da realidade da sua aplicação e da
efectividade da sua execução”36.
Esta actuação estatal sobre a generalidade das pessoas pode, porém, assumir
uma dupla perspectiva: (a) a pena pode ser concebida como uma forma estatalmente
acolhida de “coacção psicológica”, ou de intimidação da generalidade das pessoas para
que com a ameaça da pena (e do sofrimento que com ela se inflige ao delinquente)
contida na proibição penal37, se inibam de cometer crimes (Beccaria, Feuerbach). Fala-
se então a este propósito em prevenção geral negativa ou de intimidação38; ou (b) a
pena pode ser concebida, diferentemente, como forma de que o Estado se serve para
manter e reforçar, na comunidade, o sentimento de crença e de confiança na vigência
da ordem jurídica e, com isso, a fé no Direito (Durkheim, Jakobs, Figueiredo Dias).
Neste sentido se fala de uma prevenção geral positiva39, ou de integração40.
Deste ponto de vista a pena teria a mesma função preventiva que qualquer
outra consequência jurídica: numa lógica de prevenção geral negativa, serviria para
dissuadir da abstenção do comportamento prescrito, ou da prática do comportamento
proibido; numa lógica de prevenção geral positiva, serviria para persuadir para a
prática do comportamento prescrito, ou para a abstenção do comportamento
36
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, pp. 48-51.
37
Cremos que uma outra abordagem que foi feita desta ameaça, ou intimidação, assente no «exemplo»
oferecido pela imposição do castigo, que se pode identificar em autores como Grocio, Hobbes, Locke,
Beccaria, Filangieri ou Bentham (v. para todos, LUÍGI FERRAJOLI: Derecho y razón, pp.275-277), uma
espécie de doutrina do «bode espiatório», estaria hoje irremedialmente sujeita á crítica de cariz
kantiano de que a pessoa humana não é, nem pode ser, «em caso algum, um meio ao serviço de fins
sociais» (MARIA FERNANDA PALMA: Direito Penal. PG, p. 42), por mais louváveis que sejam, e, por isso,
absolutamente fora de questão.
38
É a formulação atribuida a Paul Joahann Anselm von Feuerbach, seguida por inúmeros juristas
posteriores. Veja-se, por todos, LUÍGI FERRAJOLI: Derecho y razón, p. 277, e bibliografia aí citada. Sobre o
pensamento penal em Feuerbach, concretamente, sobre o problema dos fins das penas, v. MARIO A.
CATTANEO: Anselm Feuerbach filosofo e giurista liberale, Edizioni di Communita, Milano, 1970, pp. 379-
477.
39
A reafirmação dos padrões de comportamento, garantindo assim «a protecção da vigência da
norma», v. GÜNTHER JAKOBS: Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal, Civitas, Madrid,
2003, p. 48 e passim.
40
Segundo esta abordagem podem distinguir-se, na prevenção geral positiva, «três fins e efeitos
distintos»: um efeito de «aprendizagem» (resultante da demonstração dos custos do facto punível); um
efeito de «confiança» no ordenamento jurídico-penal (quando o cidadão verifica a eficácia sancionatória
do Direito Penal); e um efeito de «pacificação» da sociedade (a resolução do conflito social suscitado
pelo crime: a consciência jurídica da comunidade concilia-se com o delinquente por meio da pena,
resolvendo assim o conflito). Sobre esta abordagem v. CLAUS ROXIN: Derecho Penal. PG, pp. 91-92; KAI
AMBOS: Direito Penal, Sérgio António Fabris Editor, Porto alegre, 2006, p. 31; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS:
Direito Penal, PG, I, pp. 48-49.
proibido. Em qualquer dos casos, à pena não caberia mais do que assegurar a eficácia
(sancionatória) da norma penal.
Depois, saber quais são os efeitos que esta afirmação “contrafáctica” da
validade da norma penal provoca41, já é uma questão que só mediatamente tem a ver
com as finalidades da pena. Efeitos esses, agora sim, de natureza eminentemente
metajurídica. Saber se a pena provoca um efeito de “coacção psicológica”, ou de
intimidação da generalidade das pessoas, para que com a ameaça da pena contida na
proibição penal, se inibam de cometer crimes; ou se diferentemente, um efeito de
aprendizagem social e pedagogicamente motivador42, depende, desde logo, da posição
filosófica de base de que se parta em relação à interminável querela sobre o
optimismo ou pessimismo antropológico43. O que não pode deixar de ser um mero
postulado de difícil, talvez mesmo impossível, demonstração empírica. Já que mais não
seja, pela diversidade de tipos de crimes e, consequentemente, da diversidade de
motivações para a sua prática.
Um outro efeito que nos é apresentado, tanto do lado das teorias da prevenção
geral negativa como da prevenção geral positiva, embora, naturalmente, com algumas
nuances é o efeito de pacificação da sociedade. Escreve, por exemplo, Roxin, que a
pena tem um efeito de “pacificação” da sociedade, através da resolução do conflito
social suscitado pelo crime. A aplicação da pena seria aqui um instrumento de
conciliação da consciência jurídica da comunidade com o delinquente. A pena teria
aqui uma finalidade de prevenção integradora44.
41
WINFRIED HASSEMER: Porqué no debe suprimirse el Derecho Penal, Instituto Nacional de Ciencias
Penales, México, 2003, p. 20.
42
CLAUS ROXIN: Derecho Penal. PG, p. 91.
43
Sobre essa contraposição, v. JOSÉ ADELINO MALTEZ: Princípios de Ciência Política, II Vol., Instituto
Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 1996, pp. 205-215.
44
CLAUS ROXIN: Derecho Penal. PG, p. 92. No mesmo sentido, v. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG,
I, p. 49.
Para Ferrajoli, o que legitima a intervenção do Direito Penal é a redução da
violência na sociedade. Mas esta violência é aqui analisada num duplo sentido:
violência é o crime, mas são também as reacções informais que se poderiam
desencadear na ausência da intervenção penal. Em bom rigor, para o Autor, só esta
última acaba por legitimar a imposição da pena (privativa da liberdade).
Na sua apresentação, Ferrajoli começa por pôr em causa a abordagem
utilitarista clássica, centrada única e exclusivamente na prevenção dos crimes. A esse
respeito, entende que uma abordagem nesses termos, ao direccionar o Direito Penal
apenas no sentido da prevenção dos crimes, pode redundar na adopção de modelos
de Direito Penal máximo, ilimitadamente severos45. Para superar essas deficiências46 –
e aqui talvez um dos aspectos mais importantes da sua tese – torna-se necessário
recorrer a um segundo parâmetro de utilidade. Nas palavras de Ferrajoli: “además del
máximo bienestar posible de los no desviados, también el mínimo malestar necesario
de los desviados”47.
A introdução deste segundo parâmetro, a que podemos chamar de
racionalidade, ou eficiência, não tem propriamente em vista a finalidade de prevenção
do crime. Essa, seria, das duas uma: ou uma batalha perdida; ou o caminho para um
Direito Penal máximo48. Ou seja, a existência do crime põe em causa a idoneidade da
imposição de penas para a sua prevenção, não sendo, por isso, causa suficiente de
legitimação da intervenção penal. Essa legitimação adquire-se, contudo, se
45
Referindo-se em concreto ao modelo de Beccaria ou de Bentham «de la “máxima felicidad dividida
entre el mayor número”», escreve que, «En razón de este límite, que depende a su vez de la atribución a
la pena del fin único de prevenir los delitos, he caracterizado al moderno utilitarismo penal como un
utilitarismo a medias, referido sólo a la máxima utilidad de la mayoría, expuesto a tentaciones de
autolegitimación autoritaria e incapaz de proporcionar – además de criterios de justificación – criterios
de deslegitimación de los sistemas penales concretos y de cada una de sus instituciones». Alertando
que, «un utilitarismo semejante, al orientar el derecho penal únicamente hacia el fin ne peccetur,
encamina sus opciones hacia la adopción de medios penales máximamente fuertes e ilimitadamente
severos» (LUIGI FERRAJOLI: Derecho y razón, p. 331).
46
E, assim, «fundamentar una doctrina adecuada de la justificación externa y al mismo tiempo de los
límites del derecho penal» (LUIGI FERRAJOLI: Derecho y razón, p. 331).
47
LUIGI FERRAJOLI: Derecho y razón, pp. 331-332.
48
Continua, citando Carrara, «“pretender que la pena impida el delito en todos los facinerosos” es
“imposible”, y [que] el intentar lograrlo, en todo caso, “fue causa fatal para el progresivo
encarnizamiento de los suplicios”» (FRANCESCO CARRARA: Opusculos de derecho criminal, vol. 11, p. 131;
Programa, Parte especial, vol. 1, pp. 14-15, apud LUIGI FERRAJOLI: Derecho y razón, p. 332).
encararmos essa intervenção penal do ponto de vista da sua virtualidade para impedir
a reacção informal ao crime que a falta, ou ineficiência daquele poderia propiciar49.
Por conseguinte, se dúvidas subsistem quanto à virtualidade da ameaça penal
para impedir que se cometam crimes, menos dúvidas haverá quanto à sua virtualidade
de prevenir as reacções informais. Neste contexto, a pena mínima deixa de ser apenas
um meio, assume-se como um fim em si mesma: a minimização da reacção violenta ao
crime. Tal não significa que a prevenção geral dos crimes não seja uma finalidade
essencial do Direito Penal. Mas essa será uma finalidade primordial, não da imposição
de penas, mas antes das proibições penais, enquanto meio de tutela de direitos
fundamentais dos cidadãos50. Nestes termos, o Direito Penal apresenta-se no contexto
da obra de Ferrajoli com uma dupla função: a prevenção geral (negativa) do crime; a
prevenção geral das penas arbitrárias ou desproporcionadas. A primeira função
indicaria o limite mínimo; a segunda, o limite máximo das penas51.
49
Explica: «Hay sin embargo otro tipo de fin al que cabe ajustar el principio de la pena mínima, y es la
prevención no ya de los delitos, sino de otro tipo de mal antitético al delito que suele ser olvidado tanto
por las doctrinas justificacionistas como por las abolicionistas. Este otro mal es la mayor reacción –
informal, salvaje, espontánea, arbitraria, punitiva pero no penal – que a falta de penas podría provenir
de la parte ofendida o de fuerzas sociales o institucionales solidarias con ella. Es el impedir este mal, del
que sería víctima el reo o incluso personas ligadas a él, lo que representa, me parece, el segundo y
fundamental fin justificador del derecho penal» (LUIGI FERRAJOLI: Derecho y razón, p. 332). Neste ponto é
importante recordar que o monopólio do uso dos meios de coacção no âmbito de um determinado
território, a que já nos referimos, surge precisamente como uma reacção á vingança privada. Neste
sentido, pode dizer-se, com Ferrajoli, «que la historia del derecho penal y de la pena corresponde a la
historia de una larga lucha contra la venganza. […] El derecho penal nace precisamente en este
momento: cuando la relación bilateral parte ofendida/ofensor es sustituida por una relación trilateral en
la que se sitúa en una posición de tercero o imparcial una autoridad judicial» (LUIGI FERRAJOLI: Derecho y
razón, p. 333).
50
LUIGI FERRAJOLI: «El Derecho Penal Mínimo», pp. 25-48. Cfr. ainda do mesmo autor, a este respeito:
«Derecho Penal Mínimo y Bienes Jurídicos Fundamentales», in Revista Ciencias Penales, n.º 5,
Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica, Junio de 1992, disponível
em:http://www.cienciaspenales.org/REVISTA%2005/ferraj05.htm; e «Sobre el papel cívico y político de
la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho», in Crimen y Castigo, Cuaderno del
Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho, Universidad de Buenos Aires,
Año I, Agosto de 2001, N° 1, Ed. Depalma, Buenos Aires, 2001.
51
Explica que «De los dos fines, el segundo – por lo general olvidado – es sin embargo el más
significativo y el que en mayor medida merece ser subrayado. En primer lugar porque, mientras que es
dudosa la idoneidad del derecho penal para satisfacer eficazmente el primero […], es por el contrario
bastante más segura su idoneidad para satisfacer el segundo, aun sólo con penas modestas y poco más
que simbólicas. En segundo lugar porque, mientras la prevención de los delitos y las exigencias de
seguridad y de defensa social siempre han ocupado el lugar más alto en el pensamiento de los
legisladores y de las demás autoridades públicas, no puede decirse lo mismo de la prevención de las
penas arbitrarias y de las garantías del acusado. En tercer lugar, y sobre todo, porque sólo el segundo fin
y no el primero es a la vez necesario y suficiente para fundamentar un modelo de derecho penal mínimo
y garantista […]. Más aún: sólo el segundo fin, esto es, la tutela del inocente y la minimización de la
reacción al delito, sirve para distinguir el derecho penal de otros sistemas de control social – de tipo
Conclui esta apresentação, expressando que um sistema penal só encontra
justificação a partir do momento em que a soma das violências – violência é o crime,
violência serão as reacções informais – que está em condições de prevenir for superior
à violência que se verificaria na sua ausência. Naturalmente – concede – que um
cálculo deste tipo é “impossível”, admitindo, por fim, a pena, como um “mal menor”
no confronto com outras reacções informais que seria de supor que pudessem
acontecer na ausência (ou na ineficácia) da intervenção penal52.
policial, disciplinario o incluso terrorista – que de un modo más expeditivo y probablemente más
eficiente serían capaces de satisfacer el fin de la defensa social respecto al que el derecho penal, más
que un medio, es por consiguiente un coste, o si se quiere un lujo propio de sociedades evolucionadas»
(LUIGI FERRAJOLI: Derecho y razón, p. 334).
52
Nas palavras do Autor, «el monopolio estatal de la potestad punitiva está tanto más justificado cuanto
más bajos sean los costes del derecho penal respecto a los costes de la anarquía punitiva» (LUIGI
FERRAJOLI: Derecho y razón, p. 336). Tivemos já oportunidade de escrever sobre as consequências da
ineficiência da intervenção penal e da deriva para uma “justiça” á margem do Direito e do Estado, no
nosso estudo sobre o fenómeno dos linchamentos populares em Moçambique. Sobre isso v. ANTÓNIO DA
COSTA LEÃO: «A justiça à margem do Direito e do Estado», pp. 149-157.
53
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, pp. 51-52.
54
Por outras palavras, elimina-se o criminoso com a pena de morte, ou restringe-se a possibilidade de
cometer crimes privando-o da sua liberdade.
destas hipóteses, podemos falar de prevenção especial negativa ou de neutralização55:
restringe-se a possibilidade de o criminoso voltar a cometer crimes privando-o da sua
liberdade, no limite, elimina-se o criminoso com a pena de morte.
2) De certo modo no outro extremo se situam aqueles que pretendem dar à
prevenção individual a finalidade de alcançar a reforma interior (moral) do delinquente
– aquilo que bem poderia designar-se como a emenda do criminoso, lograda através
da sua adesão íntima aos valores que conformaram a ordem jurídica. Bem como
aqueles outros para quem a finalidade terá de traduzir-se não na emenda moral mas,
verdadeiramente no tratamento das tendências individuais que conduzem ao crime,
exactamente no mesmo plano em que se trata um doente e, por isso, segundo um
modelo estritamente médico ou clínico. Outros, mais modestos, entendem que do que
deve tratar-se no efeito de prevenção especial é – com respeito pelo modo de ser do
delinquente, pelas suas concepções sobre a vida e o mundo, pela sua posição própria
face aos juízos de valor do ordenamento jurídico – criar as condições necessárias para
que ele possa, no futuro, continuar a viver a sua vida sem cometer crimes. Apenas
neste último caso se pode falar, propriamente, em prevenção da reincidência. Todas
estas doutrinas se irmanam, todavia, no propósito de lograr a ressocialização do
delinquente, e nesta medida, são consideradas como doutrinas de prevenção especial
positiva ou de socialização56.
Detenhamo-nos, agora, um pouco, sobre esta última abordagem.
55
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 52.
56
Sobre as diversas abordagens da prevenção especial, v. por todos, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito
Penal, PG, I, pp. 53 ss.
57
As origens modernas desta proposta afirmam-se com particular vigor na segunda metade do Séc. XIX
e.c., por força das escolas positivistas sociológicas italiana e alemã e do correccionalismo espanhol (JESÚS
M. SILVA SÁNCHEZ: Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo, pp. 27). Sobre o correccionalismo
espanhol v. SANTIAGO MIR PUIG: Introducción a las bases del derecho Penal, 2.ª ed., Julio César Faira,
prevenção especial e da crença na capacidade ressocializadora das penas, os
partidários desta abordagem colocam a tónica na necessidade que o Direito Penal, em
geral, e o sistema de penas privativas da liberdade, em particular, disponham dos
mecanismos necessários para uma autêntica reinserção social dos condenados,
criando as condições necessárias para que estes possam, no futuro, continuar a sua
vida sem cometer crimes eliminando ou, pelo menos, reduzindo de uma forma
significativa as taxas de reincidência58.
Trata-se, portanto, de uma forma de protecção da sociedade através da
prevenção dos crimes que o criminoso possa eventualmente cometer no futuro59.
Diferentemente das restantes doutrinas da prevenção especial, pelo seu carácter
positivo, não se limita – como as abordagens da intimidação, ou da neutralização – a
uma intervenção negativa sobre o delinquente60. Visa antes proporcionar-lhe
os meios que o capacitem para uma vida futura em liberdade no seio da sociedade61.
Editor, Montvideo-Buenos Aires, 2003, pp. 268 ss. Em Portugal tiveram particular expressão as obras de
LEVY MARIA JORDÃO: «Fundamento do Direito de Punir», in Boletim da Faculdade de Direito de Lisboa, Vol.
LI, 1853, pp. 289-314; e de ANTÓNIO AYRES DE GOUVEIA: A Reforma das cadeias em Portugal, Imprensa da
Universidade, Coimbra, 1860, mx. pp. 15 ss. Atribuindo uma maior importância á influência da escola
correccionalista, cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 53. Atribuindo maior relevância á
«dirección moderna» de von Liszt na «generalización de los puntos de vista de la prevención especial,
cfr. SANTIAGO MIR PUIG: Introdución a las bases del derecho Penal, p. 55.
58
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 52; JESÚS M. SILVA SÁNCHEZ: Aproximación al Derecho
Penal Contemporáneo, pp. 26-33.
59
JESÚS M. SILVA SÁNCHEZ: Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo, p. 27.
60
A correcção dos delinquentes seria, para uns, «uma utopia, pelo que a prevenção especial só poderia
dirigir-se à intimidação individual: a pena visaria, em definitivo, atemorizar o delinquente até um ponto
em que ele não repetiria no futuro a prática de crimes». De alguma forma próximos, para outros, «a
prevenção especial lograria alcançar um efeito de pura defesa social através da separação ou da
segregação do delinquente, assim procurando atingir-se a neutralização da sua perigosidade social». Em
qualquer dos casos, podemos falar de prevenção especial negativa ou de neutralização (JORGE DE
FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 52).
61
De certa forma no extremo oposto «se situam aqueles que atribuem à prevenção individual a
finalidade de alcançar a reforma interior (moral) do delinquente» noutros termos, «a emenda do
criminoso, lograda através da sua adesão íntima aos valores que conformaram a ordem jurídica». De
igual forma aqueles para quem a finalidade terá de traduzir-se não propriamente na emenda moral, mas
«no tratamento das tendências individuais que conduzem ao crime», da mesma forma «que se trata um
doente e, por isso, segundo um modelo estritamente médico ou clínico». Outros, mais modestos,
entendem que do que deve tratar-se no efeito de prevenção especial é – «com respeito pelo modo de
ser do delinquente, pelas suas concepções sobre a vida e o mundo, pela sua posição própria face aos
juízos de valor do ordenamento jurídico – criar as condições necessárias para que ele possa, no futuro,
continuar a viver a sua vida sem cometer crimes». Apenas neste último caso se pode falar,
propriamente, em prevenção da reincidência. Todas estas doutrinas se irmanam, todavia, no propósito
de lograr a reinserção social, a ressocialização do delinquente, e nesta medida, são consideradas como
«doutrinas de prevenção especial positiva ou de socialização» (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal,
PG, I, pp. 52-53; JESÚS M. SILVA SÁNCHEZ: Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo, p. 28).
Esta ideia de ressocialização como legitimadora da intervenção penal e,
consequentemente, fundamento da punição viveu alguns “tempos de glória”, tendo
vindo inclusivamente a ser consagrada em alguns Códigos Penais, nomeadamente, no
Código Penal Português de 1982 (art.º 40.º/1). Glória “efémera”? Assim parece62.
e. Teorias ecléticas
Toda a interminável querela à roda dos fins das penas tem sido reconduzível a
uma destas três posições (retribuição, prevenção geral e prevenção especial), ou a
uma outra, resultante das suas múltiplas variantes através das quais se tem tentado a
sua combinação, normalmente designadas por “teorias mistas”63.
Uma dessas teorias mistas ou ecléticas, que ganhou algum relevo a partir dos
anos 60 do século passado, foi a tese defendida por Roxin64. O autor parte de uma
constatação (a clássica tripartição de Carrara), a de que o Direito Penal afecta o
indivíduo em três momentos distintos: ameaçando, impondo e executando a pena. E
se isto é assim – continua – cada uma destas três esferas carece de justificação em
separado. Consequentemente, se é distinta a justificação, também o serão as
finalidades. E concluía que, se poderia (e deveria) encontrar um fim específico para
cada uma daquelas fases.
No momento em que o legislador faz a lei, quando criminaliza uma
determinada conduta, aquilo que se tem (ou deve ter) em vista nesse momento (em
que ainda não se aplicou a lei), é, fundamentalmente, uma ideia de prevenção geral:
pretende-se com isso que os cidadãos não cometam crimes 65. Diferentemente, no
momento em que se aplica a lei, ou seja, em que se procede ao julgamento, a
aplicação da pena serve para a protecção subsidiária e preventiva de bens jurídicos,
tanto geral (a afirmação da validade do direito) como individual (...). Finalmente, o
terceiro momento, terá de ter, necessariamente, uma função eminentemente
62
Neste sentido, JESÚS M. SILVA SÁNCHEZ: Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo, p. 28. para uma
visão crítica v., por todos, ANTONIO GARCÍA-PABLOS DE MOLINA: «La supuesta función resocializadora del
Derecho penal: utopia, mito y eufemismo», in Anuario de derecho penal y ciencias penales, Tomo 32,
Fasc/Mes 3, 1979, p. 646, e bibliografía aí citada.
63
EDUARDO CORREIA: Direito Criminal, I, p. 40; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 42; WOLF
PAUL: «Esplendor y miseria de las teorías preventivas de la pena», p. 61.
64
CLAUS ROXIN: «Sentido e Limites da Pena Estatal», pp. 15-47.
65
CLAUS ROXIN: «Sentido e Limites da Pena Estatal», p. 31.
ressocializadora do delinquente, caso contrário perde toda a sua legitimidade66. Não
muito distante, a posição do Tribunal Constitucional alemão: “A pena visa a
retribuição, conjuntamente com a intimidação e a correcção do delinquente”67.
66
CLAUS ROXIN: «Sentido e Limites da Pena Estatal», pp. 40.
67
WOLF PAUL: «Esplendor y miseria de las teorías preventivas de la pena», p. 61.