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Ciéncia&Ambiente Perlite Welw colt Suméario|C&.A|37 3 EDITORIAL 4 PROXIMA EDICAO APRESENTACAO 5 O AUTOMOVEL E A CIDADE Erminia Maricato 13 AUTOMOBILISMO QUAL USO, QUAL SIGNIFICADO? Ronai Pires da Rocha 29 CRITICA A CULTURA DO AUTOMOVEL OU TEORIA CRITICA DA TECNOLOGIA? Ricardo Toledo Neder 39 A IDEOLOGIA RODOVIARISTA NO BRASIL Marco Aurélio Lagonegro 51 SAO PAULO 2054 Ailton Brasiliense 61 DA RABETA AO 4x4 ‘A EXPANSAO DA MODERNIDADE (E DE SEU COLAPSO) NA FRONTEIRA NORTE DO BRASIL Tatiana Schor 73 A POLITICA DE MOBILIDADE URBANA E A CONSTRUGAO DE CIDADES SUSTENTAVEIS Renato Boareto 93 REVISITANDO O “NAO-TRANSPORTE” ATESE DA RUA HUMANIZADA Nazareno Stanislan Affonso 105 MOTORES DE COMBUSTAO INTERNA ‘Miguel Neves Camargo 139 ENERGIA VEICULAR E ALTERNATIVAS PARA © SECULO 21 Felix A, Farret, Luiz A. Righi e Tiago Guedes 161 EFICIENCIA ENERGETICA NO TRANSPORTE URBANO ‘A PROPOSTA MAGLEV-COBRA Eduardo G. David, Richard M. Stephan e Raphael K. David PONTO DE VISTA 171 ERRES E ERROS NA ERA DOS AUTOMOVEIS Liana John 175 INSTRUCGOES PARA PUBLICACAO 176 INSTRUCCIONES PARA PUBLICACION APRESENTAGAO O AUTOMOVEL E A CIDADE Erminia Maricato «.. 0 carro tornou a cidade grande inabitével. Tornou-a fedorenta, barulhenta, asfixiante, empoeirada, congestionada, tdo congestionada que ninguém mais quer sair de tardinba.” Como seinstlou entre nés cultura do *rodoviatismo”? Como chegamos a tragé- dia verificada nos acidentes de trinsito, sempre atribuidos a questdes de natureza individual? Qual o peso e 0 custo do auto- mével, da indistria de infra-estrutura e da opsig energética para o ambiente ¢ a sad- de dos moradores urbanos? O que pode ser constituido com vistas a minimizar 0 impacto da “indistria do automével” no meio ambiente e para melhorar as condi- .s de mobilidade da maioria da popula- Gio urbana? O que pode ser feito na tec- nologia do automével ou em relagdo aos combustiveis para diminuir a emissio de André Gorz' gases poluentes? Quais as perspectivas de uma nova politica energética? E em rela- gio 8 cidade, quais modos de transporte ou politica de mobilidade e uso do solo po- dem ser introduzidos? Essas e outras ques- tes sio abordadas pelos colaboradores da presente edigio de Ciéncia & Ambiente. Algumas medidas propostas sio vidveis no requerem transformacdes profundas. Outras exigiriam mudancas significativas para a sua implementagio. Todas elas, no entanto, sio decisivas para o movimento de negacio dessa tragédia anunciada e contribuem para alimentar a consciéncia social sobre tema tio fundamental. Tlustragao de abertura: Google Earth GORZ, André. A ideologia social do suromével, Im LUDD, Ned (org) Apocas lipse motorizado, Sio Paulo Conrad Livros, 2004. p. 79 Chameiatengio anterior- mente pars 0 fato de que aoromével ni € uma escor tha uma necessdade mes mmo nas cidades do-mundo Bio desenvolvido, tal a fore ma de organizagio da mobi- Tidade esas cidades. Para dir um exemplo, t pesquisa sobre origem © destino do mettd de Sio Paulo most que « miobilidade diminuiu Para todos, ricos © pabres, orém as viagens feitas por Zutoméveis levam meaos tempo do. que as vagens fe que podem levar muitas ho fis 2 cada dia, (MARICA- 0, Erminia. Bail, idades a. Petrdpole! Vozes, 2001) Estamos fazendo refertncias 3s cidades dos pases capa sas cents mt expec age les dos Bsidos Unidos. Asi tuigio de cidades dos pases trcnos desenvolvidos, gue se zuem 0 modelo hegemonico, sect intada tas fence, B preciso lembrar tbe que, fede! de transporte coleriva permite una convivéncia com E motorizagso individual re- felada por iniciavat pics, Some a que instiuia © ped fio no centro de Londves mente preci. Apenay 0st or continuam podendo circi- ta de asoméves a fea cen tea, confirmando 0 fo de gue ea modaidade € inca secamente dsigual Ver a respeito © interessante video documentério elaborado por Michael Moore, Roger and me (Warner Brothers, 1980) sobre 2 decadénciz de Flint (Michigan), sua cidade natal, apés a transferéncia da unida” de de producio da General Motors condenando a cidade € 06 trabalhadores 4 faléncia © automével ¢ a cidade automével conformou as cidades e definiu, ou pelo menos foi o mais forte elemento a influenciar, 0 modo de Vida urbano na era da industrializacio. Daquilo que era cialmente uma opeao ~ para os mais ricos evidentemente ~ © automével passou a ser uma necessidade de todos?. E como necessidade que envolve todos os habitantes da cida- de, ele nio matou apenas a cidade, mas a si proprio. Sair da cidade, fugir do tréfego, da poluigéo e do barulho passou a ser um desejo constante. Em outras palavras, 0 mais deseja- vel modo de transporte, aquele que admite a liberdade in- dividual de ir a qualquer lugar em qualquer momento, desde que haja infra-estrutura rodoviéria para essa viagem, funcio- na apenas quando essa liberdade € restrita a alguns. Quando tal possibilidade passa a ser “democratizada”, a partir das agoes pioneiras de Henry Ford, que incorporou seus ope- rarios no mercado desse bem, ela mostra-se invidvel pelos congestionamentos, além de insustentavel. A aparente liber- dade, mobilidade para todos com independéncia de trilhos ¢ horarios - uma verdadeira utopia, prometida aos trabalha- dores como parte do acordo entre capital ¢ trabalho, firma- do pelo Welfare State -, quando extensiva a toda a socieda- de, transformou-se numa prisio. A dependéncia em relagio 20 automével acabou se tornando maior do que a dependén- cia dos trens e, evidentemente, maior do que as viagens feitas a pé ou com tragio animal, embora envolva viagens mais longas ¢, apesar do tréfego, mais rapidas. Nao ha como comprar pio a pé nos subtirbios americanos desenhados em total dependéncia ao automével. Sem o automével nao ha como abastecer uma casa na cidade marcada pela urbaniza- gio dispersa: vastas areas com baixa densidade de ocupagéo onde predomina, no uso do solo, frequentemente de forma absoluta e exclusiva, a moradia ¢ a infra-estrutura rodovidria. A cidade do fim do século XX se confunde com a regio. Se 0 taylorismo e o fordismo (formas de organizagao da producio industrial no inicio e no fim do primeiro quar- to do século XX, respectivamente) induziram a uma ocupa- go urbana mais concentrada, a disseminacio do automével © © pos-fordismo determinaram uma ocupacio dispersa e fragmentada. A robotizagio, a terceirizagio, a incorporagio do just in time obedecendo a uma nova estratégia logistica, a mobilidade do capital que transfere unidades de produgio para regides ou paises onde a mio-de-obra € mais barata ¢ a legislacio ambiental menos rigorosa, condenando ao aban- dono cidades marcadas pela produgio fordista (como 0 caso clissico de Detroit)*, todas essas caracteristicas da chamada globalizacio levam a uma mudanga na ocupacio do territério. Ctincia & Ambiente 37 JACOBS, Jane, Morte ¢ vida de grandes cidades. S30 Paulo: Martins Fontes, 2000. A pu- blicagio original em ingles € de 1561. Jane Jacobs concen tra sua critica a0. urbanismo rmodernista segregadon, criado na primeira metade do século XX, mas suas ideias em defe- ‘a do uso misto do solo e da rua, incluindo a escala do pe- desire gerando uma vrbaniza- 40 mais viva, mais humana ¢ mais concentrada, aliads i critica posterior da insusten- tabilidade ambiental decor- rente da cidade dispersa, tém inspirado varias correntes in- ternacionais de urbanistas Smarth growth, New srbanism "que, em vio, tentam con tranar & orientagio. dada pela tirania do automével na pro- dugio do espago construido, Esta edicio da revista Ciéncia & Ambiente apresenta a versio de uma dessas correntes de- nominada “Ngo-transporte”. HARVEY, David. ©. novo im. perialismo, S30 Paulo: Loyola, 2004 ILICH, Ivan. Energia ¢ eqtic dade. in: LUDD, Ned. O apocalipse mororizado. Op. cit No momento em que escte- vo essa linhas, 17 de janciro de 2008, acontecem os en terros de uma ciclista, mil tante dz mobilidade por bici cletas, atropelada na prin pal avenida da cidade de Sio Paulo a Avenida Paulisea =, e também de um cicista es portista dessa modalidade, ta cidade do Rio de Janeiro Em novembro de 2008, o presidente Bush tomou uma Iniciativa absolutamente im- pensivel nos anos anteriores dominados pela ideologis neoliberal. Enviow 20 Con- gresso americano uma pro posta de socjedade do Esta do americano com as princi- pais montadoras de autom: veis do pats, por meio da com- pra de 20% de suas agdes, para fazer frente a crise fi nanceira iniciada em setem- bro. © Congreso mio apro- vou 0 projeto. Pelo mesmo motivo € no mesmo perfodo, Exminia Maricato O capital imobilidrio acompanha esse movimento com a oferta dos condominios fechados e shopping centers no entroncamento de avenidas e rodovias. A segregacio ¢ a fragmentagio aumentam enquanto € decretada a morte da rua e do pedestre, do pequeno comércio, apesar do alerta feito por Jane Jacobs, ainda na década de 1960.2 O movi- mento de saida da cidade é paralelo a0 movimento de degra- dagio das areas centrais urbanas (fenémeno tipico da pro mocio imobiliria capitalista dirigida pela valorizagio do preco das localizagées) apropriada pelos pobres até ser ob- jeto de um projeto fashion de “renovagio urbana” que a incorpora novamente ao mercado. David Harvey lembra 0 movimento de destruigio e reconstrugio de ambientes construidos como parte do proceso de acumulacio de ca- pital.” A extenséo da ocupacio do solo urbano por novos condominios e shoppings centers, bem como a expansio por “recuperagio de areas degradadas” (com a conhecida gen- trificagio), constituem uma determinacio ilimitada do mer cado imobilidrio. Mais recentemente, nas dltimas décadas do século XX, os urbanistas incorporaram, além das criticas a0 anti- modernismo segregador, as criticas dos ambientalistas que haviam sido ignoradas nas formulagées do urbanismo mo- dernista. A impermeabilizacio do solo causada pela urbani- zacio dispersa que avanca horizontalmente sobre todo tipo de territ6rio ou de uso, a area ocupada ¢ impermeabilizada pelo automével nesse modelo de urbanizagio (estaciona- mentos, avenidas, amplas rodovias, viadutos, pontes, gara- gens, tiineis) fragmentando e dividindo bairros inteiros, a custosa e predatéria poluicio do ar, somam-se ao incrivel némero de acidentes com mortes ou invalidez, as horas paradas em monumentais engarrafamentos causadores de stress; enfim, 0 “apocalipse motorizado” é por demais visi- vel e predatério para ser ignorado. Suas conseqiiéncias en- volvem desde aspectos subjetivos, como a “solidio da abun- dancia”” (uma referéncia 20 modelo de consumo que tem no automével um item central), até o principal causador de impacto sobre 0 aquecimento global. Se essa condigio assumida pelas sociedades no mundo todo é tio impressionantemente clara, desumana ¢ ambien- talmente predatoria por que ela se aprofunda e se reafirma a cada momento? Por que movimentos sociais de ciclistas, pedestres, urbanistas, ambientalistas no ganham repercus- sio?* Por que a indtistria automobilista continua a ocupar a centralidade da preocupagio de governos com prioridade na concessio de subsidios?? Julho(Dezembro de 2008 ? © presidente Lula tomou a decisio de subsidiar a indis- tria automobilistica elimi- nando o Imposto sobre Pro- dutos Industrializados (IPI) de seus produtos. © Ver a respeito dessas razées o livro de David Harvey, O nove imperialismo. Op. cit. Ver também ARANTES, Paulo. Extingdo. Sio Paulo: Boitempo, 2007. (p. 29-30) 0 automével e a cidade A indéstria do automével nio envolve apenas a pro- dugio de carros (incluindo ai a exploracéo de minérios, a metalurgia, a indiistria de auto-pecas e os servigos mecini- cos de manutengio dos veiculos) ¢ as obras de infra-estru- tura destinadas a sua circulagdo. Somente nos processos citados jé terfamos 0 envolvimento’de forte movimento econémico e, portanto, de significativo poder politico. Mas a rede de negécios ¢ interesses em torno do automével vai bem mais longe, envolvendo inclusive 0 coragio da politica energética, estratégica para qualquer projeto de poder na- cionalista ou imperialista. Exploracio, refinamento e comer- cializacéo do petréleo, com as extensas e significativas redes de distribuicéo constituem, na verdade, a parte mais impor- tante na disputa pelo poder no mundo. As dltimas guerras promovidas pela nago mais poderosa do globo confirmam. tal assertiva. O argumento falacioso que justificou a invasio do Iraque pelos Estados Unidos nao resistiu até o final do governo Bush. O presidente foi obrigado a reconhecer que, diferentemente do havia anunciado ao mundo, nao havia armas quimicas estocadas no Iraque. As razdes da guerra foram outras. Como afirma Harvey: “O acesso ao petréleo do Oriente Médio é portanto, uma questio de seguranca crucial para os Estados Unidos, bem como para economia global como um todo.” Ou ainda: “Hé igualmente um as- pecto militar envolvido nessa discussio: os militares so movidos a petréleo.”!? _ O capitalismo tem necessidade de expansio ilimitada. de Karl Marx a demonstragio da tese de que néo € 0 consumo que determina a produgio mas o inverso, a pro- ducio € que determina 0 consumo no modo de produgio capitalista. E preciso consumir para alimentar a producio ou, mais exatamente, a acumulacio. E preciso, portanto, criar a necessidade do consumo. Produgio pela producto e consumo pelo consumo. Uma vasta maquina de propaganda acompanha a indistria do automével. A construgio de toda uma cultura e de um universo simbélico relacionados a ideologia do automével ocupa cada poro da existéncia urba- na. Como ja admitimos, 0 rumo tomado pelo crescimento das cidades impés a necessidade do automével, mas como qualquer outro produto de consumo industrial, e mais do que qualquer outro, ele ndo escapa ao fetichismo da merca- doria. Ao comprar um automével, 0 consumidor nao adqui- re apenas um meio para se locomover, mas também mascu- linidade, poténcia, aventura, poder, seguranca, velocidade, charme, entre outros atributos, Citncia & Ambiente 37 "1 Durante varios anos das dé- cadas de 1970 e 1989, essa pesquisa foi desenvolvida pe- los professores Telmo Pam- plona, Yvonne M. Mautner ¢ Erminia Marieato, juntamen- te com alunos da disciplina de Desenho Industrial Erminia Maricato ‘As cidades ¢ 0 automével na periferia do capitalismo ‘Apés reconhecer que 0 automével ocupa um lugar central nas relagdes de poder entre as nagSes e apds reco- nhecer ainda sua determinacéo no crescimento e formato das cidades, € necessirio verificar como se da essa relagio na periferia do capitalismo, ja que esta guarda especificida- des que a diferenciam dos paises centrais. Todos sabemos que as relacdes entre as nacdes do mundo sao assimétricas. Desde a expansio mercantilista até ‘os tempos atuais, dominados pela globalizagio, as relagdes internacionais de dependéncia se aprofundam. Essa depen- déncia € biunivoca, porém nio equilibrada, pois alguns paf- ses tém uma posigéo subordinada e, outros, de supremacia no quadro de poder internacional. Os poderes hegeménicos impoem, frequentemente pela forca, mas também pela per suasio, modo de vida, valores, cultura, que acompanham as exigéncias da expansio dos mercados. Entretanto, é impor tante lembrar que, se a forma de insergdo nas relagGes inter- nacionais € determinante para uma dada sociedade, hé que se levar em conta suas especificidades hist6ricas. No Brasil, de modo bastante semelhante ao de outros paises da América Latina, as cidades e as formas de mobi- lidade guardam diferencas marcantes em relagio aos casos dos paises centrais, em que pese a mimetizagio do modo de vida. Essa dominagio nio se restringe apenas & importacio de modelos — como é o caso da cidade ou da vida orientada pela matriz automobilistica ou a0 parque industrial que tem no automével seu carro-chefe -, mas também se estende a produgio das idéias, a0 desenvolvimento da ciéncia, da tec- nologia e da cultura. Necessidades bésicas como o esgoto ou a habitagdo segura estio ausentes num quadro em que esto presentes eletrodomésticos, aparelhos eletrénicos ¢ até automéveis. De fato, pesquisa desenvolvida durante muitos anos na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Sio Paulo mostrou a presenca de bens industriais moder- nos (incluindo o automével usado) convivendo com a falta de saneamento bdsico ou mesmo de um banheiro com as minimas condigées técnicas de funcionamento nas favelas da metrépole paulistana. Esse € 0 quadro de uma indus- trializagdo calcada principalmente nas demandas da expan- sao capitalista internacional e nao nas necessidades basicas do mercado interno. As conseqiiéncias da dependéncia su- bordinada desde os tempos coloniais foram muito bem ex- ploradas por diversos estudiosos da sociedade brasileira — Julbo(Dezembro de 2008 ° Observa-se em codo 0 pals uma predominancia de fave- las cm Areas ambientalmente frigeis. O- mercado. imobi= listo rejeita localizasoes de baixs qualidade ou localiza bes. procegidas por legisla- gio ambiental. Pois so exa- famente as areas rejeitadas pelo mercado que “sobram” para o assentamento da. po= Palio excuda do di Eidade, jé que nfo The cesta, alkemacvas. E quase uma re- gra nas regides metropolta- fas 4 ocupagio de mangues, dunas, beira dos. crregon, beira dos tiot, vitzeas, ene A expressio “exilio na perife- ia” foi cunhada por Milton Santos, a0 analisar a perma- cia da populagio, especi- almente masculina ¢ jovem, nos bairros da periferia de Sio Paulo, sem alternativas de_mobilidade na. cidade. SANTOS, Milton. Merrépole corporativa fragmentada: 0 caso de Sao Paulo, Sio Pau: lo: Nobel, 1999. As pesqui- sas “origem-destino” da As- soviagio Nacional de Trans- portes Poblicos (ANTP) tém mostrado que a= condigdes de transporte tém piorado aps os anos 80 nas metrd- poles brasileiras ‘Muitas das observagies feitas Aqui estio bascadas em expe- rigneia pessoal da aurora, de 35 anos de convivéncia com reas de moradia precéria nas idades. brasileira. © antomével ¢ a cidade Caio Prado, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Roberto Schwarz, Francisco de Oliveira, entre muitos. Podemos dis- pensar seu desenvolvimento aqui para nos determos na especificidade da mobilidade urbana, em especial da metro- politana, na era da globalizagio. Grande parte da cidade brasileira ¢"construida infor- malmente a margem da legislagio urbanistica ¢ até da legis- lacio de propriedade. O mercado residencial formal abran- ge menos da metade da populagio em nossas metrépoles. O Estado nao controla a totalidade do uso e da ocupagio do solo e nem oferece alternativas habitacionais legais. Uma parcela da cidade, aquela que se dirige 4 maior parte da populacio e evidentemente as parcelas de rendas mais bai- xas, é resultado da compra ¢ venda de loteamentos ilegais ou simplesmente da invasio de terras. As favelas constitu- em a forma de moradia de grande parte da populagio me- tropolitana. Nao se trata de excecio, mas de regra. Ao con- tririo do senso comum, a maior parte das favelas nio esté nas areas valorizadas pelo mercado, mas na periferia urba- na.” Até mesmo no Rio de Janeiro as favelas se localizam em sua macica maioria na zona norte e nio na zona sul, como muitos pensam. Essas areas periféricas, onde sio lo- calizados também os conjuntos habitacionais de promogio publica, constituem praticamente uma outra cidade: ilegal, informal, invisivel, ou seja, um verdadeiro depésito de gen- te desprovido de todos os equipamentos e servigos que caracterizam a “cidade”. O transporte € precario, obrigando 2 populagio a longas jornadas a pé ou ao “exilio na perife- ria”, ou seja, grande parte da populacio, especialmente jo- vens do sexo masculino raramente deixam o bairro que oferece poucas condigées para a pritica de lazer, esportes ou cultura.” Na cidade do capitalismo periférico, a satide, a previ déncia, a moradia digna e legal, a mobilidade urbana, sio apenas para alguns, mas 0 modo de vida hegeménico sub- verte qualquer previsio. Por meio de mercado agressivo ¢ de estratégias de publicidade, esses produtos penetram no interior das favelas, disseminando até produtos da revolu- cdo digital. Algumas transnacionais (especialmente na rea de celulares) desenvolveram uma estratégia especial para entrar no mercado das favelas.'* Com a globalizacio, a partir dos anos 1980, 0 quadro de pobreza ¢ desigualdade se aprofunda na cidade brasileira, A queda do crescimento econémico tem, como conseqiién- cia, a queda nos investimentos publics ¢ privados e 0 au- mento do desemprego. Essa tragédia é acompanhada de ou- Citncia & Ambiente 37 5 Ver a respeito, MARICATO, nia, pésfacio do livro Planeta’ favela, de Mike Davis, Sio Paulo: Boitempo, 2006. Ver a respeito: ARANTES, ©.; MARICATO, E. & VAINER, C. A cidade do pensamento nico, Petropolis: Vozes, 2000. Ver 0 caso da cidade de Sio Paulo durante gestio.muni- cipal do prefeito Paulo Ma- luf, citado em: Sio Paulo entre 0 atraso ¢ 2 pos-mo- deenidade, Jn: SOUZA, Ma- ria Adélia Aparecida de. Me- tropole ¢ globalizagao. Sio Paulo: CEDESP, 1999. Exminia Maricato tra: a implementagio de politicas neoliberais. Sob inspiragio do Consenso de Washington, do FMI e do Banco Mundial, © Estado brasileiro implementa o ajuste fiscal, 0 corte de subsidios nas politicas piblicas, a privatizagéo do patrimé- nio pablico, a desregulamentagio financeira e trabalhista, atingindo também os servigos pablicos. As conseqiiéncias dos recuos nos investimentos piblicos nao se fizeram espe- rar: aumento da violéncia, aumento exponencial da popula- io moradora em favelas, aumento da populagio moradora de rua, aumento da infancia abandonada, retorno de epide- mias que ja estavam erradicadas, entre outras mazelas.* A rea de transportes coletivos urbanos foi uma das mais atingidas. Se a regulacio estatal era precéria antes de 1980, apés o ajuste fiscal a situagdo piorou. A informalidade ganha uma nova escala com as redes de vans ¢ moto taxis ilegais ocupando os vazios deixados pela auséncia do Es- tado, conforme mostram alguns dos textos que compéem esta edigio da revista. Como ja foi mencionado, as determinagées gerais decorrentes da expansio capitalista internacional ndo sio as Gnicas a definir o destino da mobilidade urbana em um pais como o Brasil, onde a desigualdade social esta entre as maiores do mundo, em que pese pais figurar entre as dez maiores economias. O Brasil, assim como os demais paises do capitalismo periférico, guardadas as diferengas, apresenta especificida- des bastante estudadas pelos autores brasileiros citados an- teriormente. “Desenvolvimento incompleto ou interrompi- do”, “capitalismo travado”, “desenvolvimento moderno do atraso”, so conceitos que, embora nao totalmente satisfato- rios, tentam explicar as caracterfsticas especificas da socie- dade brasileira onde produtos, tecnologias, valores oriun- dos nos setores internacionais de ponta convivem com con- digées atrasadas e pré-modernas. Entre as caracterfsticas presentes em nossa formagio social, ganham destaque, na gestéo urbana, o clientelismo, © patrimonialismo, a prev: léncia dos privilégios (esta condigéo é notavel no judicia- rio), desprestigio do trabalho nao intelectual, retorica que contraria a pritica etc. Esta diltima caracteristica esta nota- velmente presente nos Planos Diretores: textos detalhistas e bem intencionados convivem com um pragmatismo ex- cessivo na gestio. Por esse motivo é comum encontrarmos planos sem obras e obras sem planos.'* Os orcamentos piblicos, especialmente municipais, privilegiam os investi- mentos relacionados ao automével ou ao sistema vidrio, porém dificilmente o fazem seguindo o Plano Diretor.” Por Jullo/Dezembro de 2008 u A evidéncia da forga eletoral das obras de asfatamento foi pereebida pela autora, quan- o ocupava a Secretaria Exe- cutiva do Ministério das. Ci dlades, em reunido com ind reros prefeitos. Alguns re- conheceram que ganharam eleigses com essas obras. A equipe que ocupava a dice- G20 do Ministerio das Cid des entre 2003 ¢ 2008 ten- tou reorientar as emendas parlamentares que previam obras parceladas de asfal- nicipios brasleiros sem qual= quer eremasto utente jeqdentemente essas obras negavam 2 orientagio do Plano Dietor). Quando isso se revelow impossivel a equi- pe tentou 20 menos” garantie 2 canalzagio de esgoto e dre- rnagem nas ruas antes do as- faltamento ds superficie. Foi tudo em vio. Mais da meta- de do orgamento do Ministé- rio das Cidades era dirigido a asfaltamento por meio das emendas patlamentares. Erminia Maricato & graduada € doutora em Arquitetura © Urbanismo e professora titular da Faculdade de Arquitetura ¢ Urbanismo da Universidade de Sio Paulo (FAUUSP). Foi se- cretiria de Habitagio ¢ Desen- volvimento Urbano do munici- pio de Sio Paulo (1989/1992), coordenadora do Programa de Pés-Graduacio da FAUUSP (1998/2002), formuladora da proposta de criacéo do Minis- tério das Cidades ¢ ministra adjunta (2003/2005), erminia@usp-br 2 © automével ¢ « cidade outro lado, néo € pouco freqiiente que urbanistas se dete- nham nas regras de uso ¢ ocupacio do solo e ignorem que o grande promotor que orienta a ocupagio do solo é o transporte. A prioridade dada as obras vidrias tem relagio com os financiamentos das campanhas eleitorais, com a visibilidade notavel dos seus produtos, mas também se prestam muito ao jogo clientelista. A periferia desurbanizada € uma fonte inesgotavel de dependéncia politica que afirma a relagio de clientela. O asfalto, especialmente, tem forte apelo eleito- ral.!8 Nao € intengao eliminar aqui qualquer perspectiva propositiva ou contribuir com o imobilismo, como fazem tantos textos académicos criticos. Sempre ha espago para agio, mesmo na vida profissional e, frequentemente, em condigées especiais, até mesmo no aparelho de Estado. Aos pesquisadores, entretanto, impoe-se um mergulho mais profundo, renovador e necessariamente critico. Este nime- ro de Ciéncia e Ambiente, com o qual tive a satisfagio de colaborar, oferece andlises criticas e propostas para 0 en- frentamento de um dos maiores problemas ambientais sociais da humanidade. Como se instalou entre nés a cultura do “rodoviaris- mo”, quais foram seus agentes? Como chegamos a tragédia verificada nos acidentes de transito, sempre atribuidos a questées de natureza individual? Qual 0 peso ¢ 0 custo do automével, da indiistria de infra-estrutura e da opgao ener- gética para o ambiente e para a satide dos moradores urba- nos? O que pode ser constituido com vistas a minimizar 0 impacto dessa “industria do automével” no meio ambiente e para melhorar as condigdes de mobilidade da maioria da populacdo urbana? O que pode ser feito na tecnologia do automével ou em relacao aos combustiveis para diminuir a emissio de gases poluentes? Quais as perspectivas de uma nova politica energética? E em relagao 3 cidade, quais mo- dos de transporte ou politica de mobilidade e uso do solo podem ser introduzidos? Todas essas questoes sio aborda- das pelos colaboradores desta edicio da revista. Algumas medidas so mais viéveis ¢ nao requerem transformagées profundas. Outras propostas exigiriam mu- dancas significativas para sua implementacao. Todas elas so decisivas para 0 movimento de negacio dessa tragédia anun- ciada e dimensionada e contribuem para alimentar a cons- ciéncia social sobre tema tao fundamental. Citncia & Ambiente 37

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