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"Retropia" em Educação - a utopia a olhar o

retrovisor...
1 de Junho de 2013, 0 00
David Rodrigues<br />
<br />
A humanidade sempre viveu em estado de mudança. Mesmo
quando tudo parecia parado, existiram movimentos, para
muitos impercetíveis, de mudança e de pensamento para o
futuro. A questão atualmente é que a mudança que antes só
alguns percebiam é agora sentida pela grande maioria das
pessoas. Tornou-se óbvio para todos que a sociedade tal como
a conhecemos atualmente está a modificar-se muito e muito
depressa. As atitudes face a esta visível e inevitável mudança
são várias: para alguns o melhor é ignorar a mudança; talvez
se não lhe dermos importância ela não se venha a meter
connosco... Para outros, enfrentar as mudanças pressupõe
uma atitude entusiástica de rejeição de tudo o que era antigo
em favor dos novos valores, uma corrida acrítica para o "novo". Para
outros ainda, a atitude face à mudança é a de achá-la sempre nefasta
tendo em conta o "bem" com que as coisas se passavam "antigamente". E
dizem: "Antigamente, havia mais respeito, mais limpeza, mais educação,
mais segurança, melhores médicos, melhor educação. Tudo era bom e até
a comida sabia melhor..."

A esta atitude de desvalorizar o presente em nome do passado, de achar


que à nossa frente só pode estar o pior e de endeusar o passado chamarei
"retropia" , isto é, olhar para o passado como se fosse a idade do ouro e
para o presente como o paraíso conspurcado pela evolução. É uma utopia
ao contrário, a olhar para trás o que é, obviamente, a negação da ideia de
utopia. As pessoas "retrópicas" dizem que tudo foi já inventado, que o
passado (história) nos ensina como se vão passar as coisas e que, se
seguíssemos as lições do passado, resolveríamos não só o presente mas
também o futuro.

Também existe "retropia" em Educação? Claro que sim. Irei realçar três
aspetos:

a) O funcionamento que as escolas tinham antes é o modelo a seguir


atualmente. Bom, para aceitar esta premissa é preciso ser um "retrópico"
empedernido. Na verdade, o funcionamento que as escolas tinham (desde
as básicas às técnicas e aos liceus e universidades) é completamente
desadequado ao estádio de desenvolvimento social, produtivo e humano
de que agora dispomos. Por exemplo, as escolas promoviam a
homogeneidade e esta homogeneidade constituía a "justificação" para
uma impiedosa seleção social que hoje assumimos que a educação deve
combater. Hoje, precisamos de uma escola a tempo inteiro e de uma
escola que se constitua como um espaço de cidadania, de liberdade e de
responsabilidade. Pensar, por exemplo, que as Áreas de Enriquecimento
Curricular podem vir a desaparecer, deixar de ser gratuitas ou ser
fatalmente atingidas por critérios de falta de qualidade é, sem dúvida,
uma atitude "retrópica".

b) O ensino precisa de retomar as antigas metodologias em que todos


aprendiam. Bom, falar do ensino em que todos aprendiam, mais que uma
retropia, é uma amnésia. Apesar de a escola atual ter ainda um espaço
muito amplo de melhoria, nunca as metodologias de ensino estiveram tão
perto de todos os alunos. Encontramos hoje nas escolas projetos, clubes,
apoios, laboratórios que permitem não só aproximar o que se ensina do
que se aprende, mas também que estas metodologias são não para uma
minoria, mas para todos os alunos (isto é, deveriam ser para todos os
alunos...). Não temos nada que retomar as antigas metodologias de
ensino antes de mais porque, se elas forem precisas, continuam
disponíveis, mas sobretudo porque hoje conseguimos, mesmo com as
inerentes dificuldades, aumentar e superar o leque de opções de ensino e
de aprendizagem que os métodos tradicionais nos permitiam. Reduzir a
capacidade de apoio que a escola deve dispor para promover o sucesso de
todos os alunos é, pois, uma atitude "retrópica".

c) Controlar os alunos: mão dura na disciplina. Há problemas de


disciplina nas escolas. Basta falar com qualquer professor para saber que
sim. Mas estes problemas têm de ser entendidos antes de serem
intervencionados. Temos de saber, por exemplo, que os fatores
motivacionais que a escola tinha antes já não existem agora e por isso é
preciso mudar, inventar, criar novos espaços de pensamento e
significação da escola. Precisamos de uma escola que confie nos alunos,
que não aja com as bafientas ideias feitas de que "eles" são preguiçosos,
irresponsáveis, malcriados, cruéis, etc. A escola tem de acreditar nos
alunos, nas suas possibilidades, nos patamares de responsabilidade e de
solidariedade que podem assumir. Se não promovermos formas de
funcionamento da escola em que os alunos sejam comprometidos e
responsabilizados - e, pelo contrário, reforçarmos por exemplo, a
"transmissão" do conhecimento -, assumimos, pois, uma atitude
"retrópica".

Acreditar na criança não significa retomar a ideia de J. J. Rousseau da


bondade natural da criança: é antes acreditar na ação, na influência e na
bondade da educação. Pensar a escola é, conhecendo o passado e
conhecendo o presente (conhecendo muito bem o presente...), lançar
pontes para uma organização da escola e da aprendizagem, para um
currículo, para uma cultura escolar com sentido de futuro. E para as
pessoas "retrópicas", para aquelas que acham que a sua educação foi tão
boa, tão boa, que devia ser seguida por todos e sempre, dizemos que é
tempo de evitar mais acidentes, isto é, é tempo de tirar os olhos do
retrovisor e olhar através do pára-brisas.

Professor universitário, presidente da Pró-Inclusão -


Associação Nacional de Docentes de Educação Especial

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