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DE SEMIÓFOROS, COTIDIANO E RETRATOS TROPONÔMICOS:


EXERCITANDO A DIDEYETICA

Maria Lúcia de Amorim Soares (UNISO)

Este texto pode ser lido a partir de qualquer platô – zona de intensidade vibrando
sobre ela mesma – no caminho de DELEUZE e GUATTARI (1995). Este é um texto
que aspira a elaboração de um “pensamento nômade” – máquina de guerra, totalmente
diferente dos exércitos estatais, procedendo por capturas pouco pacíficas; conectando
energias habitualmente soltas; desterritorializando velhas intensidades e fazendo
“rizoma”:

“Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no


meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o
rizoma é a aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”,
mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e....”. Há nesta
conjunção força suficiente para desenraizar o verbo ser. Entre as coisas
não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e
reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento
transversal que as carrega, uma e outra, riacho sem início nem fim, que
rói suas duas margens e adquire velocidade no meio” (p.37).

Assim, o propósito exponencial deste texto é o de considerar a imagem – categoria


de análise que permite relacionar práticas de seu uso na criação de processos de
formação cidadã com teorias explicativas desses processos – como um semióforo, no
caminho de MARILENA CHAUÍ (2000) quando informa “que existem alguns objetos,
animais, acontecimentos, pessoas e instituições que podemos designar com o termo
semióforo. São desse tipo as relíquias e oferendas, os espólios de guerra, as aparições
celestes, os meteoros, certos acidentes geográficos, certos animais, os objetos de arte,
os objetos antigos, os documentos raros, os heróis e a nação” ( p.11).
Este texto orienta-se, também, para a discussão do que é necessário para se captar
o que é a vida cotidiana sob ordem autoritária, acompanhando HENRI LEFEBVRE
(1991), que procurou fazer da vida cotidiana um objeto de meditação filosófica, modo
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de superação das concepções geradas pela ciência dominada pelo modo cotidiano de
pensar.
Nesta perspectiva, a empiria tem como senda poemas verbo-visuais, denominados
“Retratos Troponômicos”, construidos por alunos do Curso de Geografia da
Universidade de Sorocaba/São Paulo, que, cavando alienações, apanham produtos
industrializados vendidos em supermercados para construírem conceitos e expressá-los
em imagens fotográficas.
Trata-se aqui, então, de interrogar formas de conhecimentos no cotidiano, na
relação com a tecnologia, a imagem e a cidadania, mas formas que expurgam leituras
conclusivas/lineares. Através de estruturas que se projetam, ao mesmo tempo, sobre o
aspecto plástico presente nas formas das obras, fotográficas, quer-se a revitalização
entre os planos da expressão e do conteúdo das mesmas. Desta forma, no nível de
tentativa, responder se do olhar à reflexão, através da DidEYEtica, é possível subverter
a instituição escolar. Se isso for possível é o que se quer.

De Semióforos

Semeiophoros é uma palavra grega composta de duas outras palavras: semeion –


“sinal” ou “signo”, e phoros – “trazer para a frente”, “expor”. Apanhando POMIAN
(Entre I’invisible et le visible, Libre, nº 3, 1987) Marilena CHAUÍ em “Brasil – mito
fundador e sociedade autoritária” (2000), indica a Nação como Semióforo – Matriz,
aquele que será o lugar e o guardião dos semióforos públicos. Por meio da intelligentsia,
da escola, da biblioteca, do museu, do arquivo de documentos raros, do patrimônio
histórico e geográfico e dos monumentos celebratórios, o poder político faz da Nação o
sujeito produtor de semióforos nacionais e, ao mesmo tempo, o objeto do culto
integrador da sociedade uma e indivisa. Diz CHAUÍ:

“Um semeion é um sinal distintivo que diferencia uma coisa de


outra, mas é também um rastro ou vestígio deixado por algum animal ou
por alguém, permitindo segui-lo ou rastreá-lo... Signos indicativos de
acontecimentos naturais – como as constelações, indicadores das
estações do ano -, sinais gravados para o reconhecimento de alguém –
como os desenho num escudo, as pinturas, num navio, os estandartes -,
presságios e agouros são também semeion. E pertence à família dessa
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palavra todo sistema de sinais convencionados, como os que se fazem


em assembléias, para abri-las ou fechá-las ou para anunciar uma
deliberação. Inicialmente, um semeiophoros era a tabuleta na estrada
indicando o caminho; quando colocado à frente de um edifício, indicava
uma função. Era também o estandarte carregado pelos exércitos, para
indicar sua proveniência e orientar seus soldados durante a batalha.
Como semáforo, era um sistema de sinais para comunicação entre
navios e deles com a terra. Como algo precursor, fecundo ou carregado
de presságios, o semióforo era a comunicação com o invisível, um signo
vindo do passado ou dos céus, carregando uma significação com
conseqüências presentes e futuras para os homens. Com esse sentido, um
semióforo é um signo trazido à frente ou empunhado para indicar algo
que significa alguma outra coisa e cujo valor não é medido por sua
materialidade e sim por sua força simbólica: uma simples pedra, se for o
local onde um deus apareceu, ou um simples tecido de lã, se for o abrigo
usado, um dia, por um herói, possuem um valor incalculável, não como
pedra ou como um pedaço de pano, mas como lugar sagrado ou relíquia
heróica. Um semióforo é fecundo porque dele não cessam de brotar
efeitos de significação” ( p. 11-12).

Na exposição à visibilidade é que os semióforos realizam sua significação e sua


existência. Seu lugar é público: templos, museus, bibliotecas, teatros, cinemas, campos
esportivos, praças e jardins, lugares santos como montanhas, rios, lagos, cidades. Em
resumo: locais onde a sociedade possa comunicar-se celebrando algo comum e que
conserva o sentimento de comunhão e de unidade.
Um objeto, um acontecimento, um animal, uma pessoa, uma instituição é um
semióforo. A celebração de um semióforo pode acontecer por meio de cultos,
peregrinações, representações de feitos heróicos, passeatas, desfiles, monumentos, uma
vez que o semióforo é capaz de relacionar o visível e o invisível no espaço e no tempo:
o invisível pode ser o sagrado – um espaço além de todo espaço, ou o passado ou o
futuro distantes – um tempo sem tempo.
Entretanto, MAX WEBER, no início do século passado, já expressava a condição
de estarmos vivendo um “mundo desencantado”, mundo onde mistérios, maravilhas,
prodígios tornaram-se inteligíveis pelo conhecimento científico e regidos pela
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racionalidade por meio da lógica de mercado. A célebre expressão weberiana induz-nos


a dizer que, no modo de produção capitalista, não pode haver semióforo, pois, no
capitalismo, tudo é mercadoria, não tendo como ser retirado do circuito da circulação
mercantil. Mas, “a suposição da impossibilidade de semióforo na sociedade capitalista
só surgiu porque havíamos deixado na sombra um outro aspecto decisivo dos
semióforos, ou seja, que são signos de poder e prestígio” (CHAUÍ, 2000, p.13), visto
serem, também posse e propriedade daqueles que detêm o poder para produzir e
conservar um sistema de crenças ou um sistema de instituições que lhes permite
dominar o meio social. Chefias religiosas, detentoras do saber sobre o sagrado e, chefias
político-militares, detentoras do saber sobre o profano, são os detentores iniciais dos
semióforos. Sob o capitalismo a entrada da mercadoria e do dinheiro como mercadoria
universal pode acontecer sem destruir os semióforos e até fazer crescer a quantidade
desses objetos especiais. Agora a aquisição de semióforos passa a ter uma nova
determinação – a de seu valor por seu preço em dinheiro, insígnia de riqueza e de
prestígio.
A posse dos semióforos é disputada pela hierarquia religiosa, pela hierarquia
política e hierarquia da riqueza, bem como a capacidade de produzi-los quer sejam
milagres, propagandas ou objetos. Assim, as imagens - paradigmas de atração no mundo
audiovisual que vivemos – são semióforos.

Do cotidiano

Um fragmento de ALBERT CAMUS, em o Estado de Sítio (2002), carrega o


cerne deste platô:
“Um cometa sulca o céu de Cádiz. Mau presságio. Guerra. Uma
maldição se abate sobre a cidade. As pessoas temem e se agitam, mas
um mensageiro traz uma ordem do Governador e com ela a
tranqüilidade: “Que todos se apartem, cada um à sua ocupação. Os
bons governos são aqueles em que nada acontece. Assim, pois, a vontade
do governador é que nada aconteça em seu governo, para que este
continue tão bom como até agora. Em conseqüência, declara-se aos
habitantes de Cádiz que nada aconteceu neste dia, que possa motivar
alarme ou perturbação. Por isso todo mundo, a partir desta hora, deverá
considerar falso que algum cometa tenha aparecido no horizonte da
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cidade. Os transgressores desta decisão, que falem de cometas,


diferentes de fenômenos siderais passados ou futuros, serão castigados
com todo o rigor da lei”. Mas as pessoas não se enganavam: o cometa
anunciava a chegada da peste. O primeiro prefeito do rei dá a conhecer
ao povo a ordem do Governador face a tal situação: “A partir de hoje
em sinal de penitência pela desgraça coletiva e para evitar os riscos de
contágio , estão proibidas as reuniões públicas e diversões. “A peste,
entretanto, apodera-se da cidade e seus mensageiros proclamam as
novas instruções: “Todas as luzes deverão apagar-se às nove da noite, e
ninguém poderá permanecer em lugar público ou circular pelas ruas da
cidade, sem seu salvo-conduto nas devidas condições, que não será
libertado senão em casos muito raros e sempre de forma arbitrária.
Todo o que transgrida estas disposições sofrerá os rigores da lei...”.
Está severamente proibido prestar assistência a qualquer pessoa
alcançada pela enfermidade, a não ser para denunciá-lo às autoridades,
que dela se encarregarão. Recomenda-se particularmente a denúncia
entre os membros da mesma família que será recompensada com
entrega de dupla ração de alimentos, denominada ração cívica... A fim
de evitar todo contágio por comunicação através do ar, uma vez que as
palavras podem converter-se em veículo de infecção, ordena-se a todos
os habitantes que levem constantemente na boca um tampão impregnado
de vinagre, que os preservará da enfermidade ao mesmo tempo em que
os acostumará a discrição e ao silêncio. O novo governante adverte ao
povo que o caos deve ceder lugar a ordem : “A partir de hoje
aprendereis a morrer dentro da ordem . Até agora morríeis à espanhola,
um pouco de azar e arbítrio de cada um, por assim dizer. Morríeis
porque fizera calor, depois de fazer frio, porque vossas cavalgaduras
tropeçavam, porque a linha dos Pirineus estava azul, porque na
primavera o Guadalquivir atrai o solitário, ou porque há imbecis
desenfreados que matam pelo proveito ou pela honra, quando é muito
mais distinto matar pelo prazer da lógica. Sim: morríeis mal. Um morto
aqui, outro ali, este na cama, outro na areia; pura libertinagem. Mas,
felizmente, essa desordem vai ser administrada. Uma morte única para
todos, segundo a ordem de uma lista... Alinhar-se para bem morrer; isto
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é o principal! A tal preço gozareis do meu favor. Mas cuidado com as


idéias pouco razoáveis, com os furores da alma, como dizeis, com as
pequenas febres que engendram grandes revoltas... Outorgo-vos o
silêncio, a ordem e a justiça absolutas. No vos peço gratidão, pois o que
faço por vós é natural. Mas exijo vossa colaboração ativa. Meu
ministério começou” (p.76).

O que é necessário para se captar o que é a vida cotidiana sob ordem autoritária?
O necessário é pensar a vida cotidiana de uma forma não-cotidiana, acompanhando
LEFEBVRE (1989) que procurou fazer da vida cotidiana, um objeto de meditação
filosófica, modo de superação das concepções geradas pela ciência dominada pelo modo
cotidiano de pensar: “Os gestos de cada dia, as refeições, as roupas, as relações de
vizinhança, a missa, o cinema, os anúncios:...tudo isso tem um sentido. Tudo isso é
sentido, linguagem, efeito de poder” (p.131).

O cotidiano é centro de atenção para a produção capitalista dos bens de consumo.


Utensílios domésticos como a TV, o aparelho de som, o forno de microondas, o vídeo, o
microcomputador, o automóvel, a motocicleta, os cremes de beleza, os supercongelados
se apresentam como sedução ao prático, ao mágico, ao ilusório. Máquinas substituem os
vendedores de Coca-Cola, de cigarro, de café. Conselhos e receitas são fornecidas: a
arte de limpar, de cozinhar, de medicar, de emagrecer, da astrologia, da clarividência.
Receitas e conselhos que chegam estéticos, sensuais, eróticos. LEFEBVRE (1989) diz
que há uma dialética inerente ao cotidiano:

“É verdade que este último é, num certo sentido, produto e resíduo


de todas as atividades que se procura programar ou planejar ; mas
também é verdade que uma parte desse cotidiano escapa a este intuito,
que um anseio por outra coisa deixa entreaberto o campo dos possíveis”
(1989, p.133)

A dialética da cotidianidade é evidente para LEFEBVRE (1989):

“Se hoje existe um bem-estar maior do que outro, existe também


um maior mal-estar, mais ansiedade; há mais possibilidade de
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comunicação, mas também há mais solidão. Uma coisa não vai sem a
outra. Não basta ter a intenção de capturar o cotidiano, é preciso
também, para conhecê-lo de verdade, querer transformá-lo” (p.133).

A transformação do cotidiano vem pelo indivíduo que pode alargar fissuras, passar
pelos vãos, encontrar intervalos. O indivíduo pode ludibriar o Estado e a produção
capitalista que o querem um robô voraz e dócil, eliminando sua condição de sujeito e
cidadão.

A vida cotidiana é para LEFEBVRE (1991): vida da rotina diária, mundo de


alienação, espaço banal, medíocre, ambivalente, rica de tragédias, sonhos, ilusões, modo
de existência social fictício/real, heterogêneo, fragmentário/hierárquico, de
consumismo, espaço de resistência e possibilidade transformadora. Não pode ser
recusada ou negada como fonte de conhecimento e prática social.
É útil tornar os conceitos da vida cotidiana, cotidiano e cotidianidade mais
precisos. Diz LEFEBVRE (1989):

“Quanto à vida cotidiana, digamos apenas que ela sempre existiu,


porém, impregnada de valores, de ritos, de mitos. A palavra “cotidiano”
designa a entrada dessa vida cotidiana na modernidade: o cotidiano
enquanto objeto de uma programação cujo desenrolar é comandado
pelo mercado, pelo sistema de equivalências, pelo marketing e a
publicidade. Quanto ao conceito da “cotidianidade”, ele ressalta o que
é homogêneo, repetitivo, fragmentário na vida cotidiana: os mesmos
gestos, os mesmo trajetos...”( p.34)

A cotidianidade é o mundo da manipulação e da instrumentalidade , com respostas


funcionais às situações vivenciadas, onde o homem se movimenta com instintividade e
com sentido da familiaridade e das ações banais. A cotidianidade é uma cotidianidade
reificada. Ela se manifesta com anonimidade visto o sujeito da cotidianidade para um
alguém-ninguém pela própria anonimidade dos sujeitos históricos. Revela
EVANGELISTA (1992) que: “Os acontecimentos históricos afinal se revelam como
obra de ninguém e obra de todos” ( p.57).
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Na opinião de LEFEBVRE (1991) é através de uma “revolução cultural


permanente” que o homem poderá encontrar condições de vencer a rotina massificante e
dar um sentido verdadeiramente humano à sua vida, com o resgate do sentido original
da Festa e do Desejo, tão importante quanto a “reforma urbana ou a “reforma agrária”.
Mas:

“Pôr em questão seja o que for que concerne à cotidianidade é


algo grave, inquietante. Pense nas ínfimas modificações no tráfego dos
carros ou no próprio carro, que os especialistas, entendidos e
competentes decretam irrealizáveis, muito dispendiosos, causadores de
conseqüências em demasia. O que isso prova? Que a cotidianidade
inteira deve ser questionada. O homo sapiens, o homo faber o homo
ludens se transformam em homo quotidianus ainda um homem? Ele é
virtualmente um autômato. Para que reencontre a qualidade e as
propriedades do ser humano, é preciso que supere o cotidiano, dentro do
cotidiano, a partir da cotidianidade” ( p.204).

A afirmação de LEFEBVRE (1991) de que a cotidianidade inteira deve ser


questionada leva a realçar que não se legitima a análise da vida cotidiana senão quando
são superadas as balizas do pensamento cotidiano. É preciso requisitar categorias de
análise, assim como LEFEBVRE (1991) o faz:
• Entender a vida cotidiana como nível da realidade social, logo como um
“nível” da totalidade.
• Precisar o conceito de “praxis”, que coincide com a totalidade em ato, aí
englobados tanto a base como as superestruturas e as interações entre as duas.
• Organizar, a partir do esquema de análise do cotidiano – homogeneidade,
fragmentação e hierarquização, os fatores que intervém no cotidiano.
• Relacionar as linhas de ações para se oporem aos fatores: as diferenças
contra a homogeneidade, a unidade contra a fragmentação e a igualdade
contra a hierarquia.
• Distinguir obra de produto. Obra é única, podendo ser copiada, imitada.
Produto é reprodutivo. A obra possui uma presença enquanto o produto
permanece no meio das representações.
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• Entender que o espaço de representações preenche o que LEFEBVRE (1983)


chama de ausência. Presença é o momento que realiza em ato o resultado da
crítica sobre as representações, momento em que se dá a “unidade do sujeito
e objeto em ato”, ou quando o “outro” deixa de alienar o “sujeito” e quando
o “sujeito” deixa de impor sua lógica ao “objeto”. É esse o momento da
criação, do amor, do acontecimento no dizer de SONIA PENIN (1994,p. 38).
• Incluir uma teoria do desconhecimento já que a teoria do conhecimento hoje
não basta, se não adicionar, pelo menos, o conhecimento crítico dos meios de
comunicação de massa, especialmente pelo estudo das imagens e, sobretudo
pela análise política.
O zoom aproximativo, que trouxe miradas sobre as reflexões da vida cotidiana
efetivadas por LEFEBVRE (1983, 1989, 1991) permite a compreensão de que a
sociedade capitalista engendra, no processo da produção do conhecimento, a separação
teoria e prática em pólos opostos, teoria e prática que embora com características
diferenciadas constituem uma unidade indissolúvel. A teoria e a prática se fundem
mutuamente, como se uma não pudesse existir sem a outra, quando práticas curriculares
criadoras apanham como desafio, o oceano de imagens existente na cultura
contemporânea consumista, predominantemente sensorial, anuladora de elaborações
mentais.

Retratos Troponômicos e DidEYEtica

Imagens de consumo enquanto excesso, com sugestões de prazeres e desejos


alternativos, são colocados, diariamente no mercado, via mídias. Destruir/esbanjar são
soluções encontradas para controlar o crescimento e administrar o excedente na forma
de guerras, estilos, modas, artes.
O capitalismo também produz locais de consumo que endossam os prazeres em
excesso. Resorts, parques temáticos, danceterias, lojas de departamentos, shoppings
centers e supermercados estetizam a vida cotidiana. As pessoas que perambulam por
esses espaços são alimentadas pela paisagem em constante mutação, onde os objetos
aparecem submetidos a associação misteriosas, lidas na superfície das coisas.
No centro desse labirinto de mercadorias fetichizadas, alunos do curso de
Geografia da Universidade de Sorocaba/São Paulo, integraram-se, com um olhar
vulpino, ao estágio de expansão do consumo, adotando procedimentos composicionais,
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fundados no estranhamento. Assim, “Retratos Troponômicos” apanham produtos


industrializados, vendidos em supermercados, para construir poemas e expressá-los em
imagens fotográficas, poemas verbo-visuais, poemas-montagens, objetivando o
exercício da didEYEtica: um salto (do olhar) da humanidade do reino da necessidade
para o reino da liberdade (MARX).
O Manifesto da DidEYEtica, uma pós-leitura da poesia visual, construído pelo
poeta Márcio Almeida e publicado no Catálogo da I Mostra Internacional de Poesia
Visual (1998) revela que:

“... a didEYEtica projeta não a imagem do objeto como “ser


dado”, ou mera “representação” do formal, não como versão única,
mas a expressão social do real através da pluralização das artes em sua
instância de síntese, do olhar crítico, da percepção do coletivo, do
conteúdo da consciência, do estatuto do olho, do nível de produção
poética: Seu caráter é uniVERsal, tendo a referência nacional como
prioridade, re-visão e democratização da mensagem para o olho.
DidEYEtica é uniVERso – unificação do ver.” (p. 69)

O poema-montagem tem origem no cinema. Foram os cineastas poéticos dos anos


10 e 20, especialmente Sergei Eisenstein, que fundamentaram a prática da montagem do
filme, dizendo que quando duas imagens são colocadas lado a lado, elas dizem uma
terceira coisa, mais do que as duas dizem isoladamente. Montar um filme é arranjar os
pedaços da película de modo a dizer várias coisas através das seqüências das imagens.
O poema-montagem usa poucos elementos procurando integrá-los. A intenção é
fazer com que a montagem dos elementos – palavras, letras, desenhos, objetos,
proporcione um conjunto de significados que devem ser descobertos com a observação
do poema. Pode ser visto como uma “charada” que precisa da atenção para que se
perceba o seu sentido. Mas na verdade, quer destacar os significados da imagem fora da
palavra, procurando romper com a desatenção e automação que existe na observação
das informações visuais, predominantes no mundo contemporâneo.
Em “Retratos Troponômicos” os poemas vão de encontro a seu “visor” = leitor,
expectador, participante, usando como retícula a fotografia. Exigem uma didática do
olho para apreensão dos elementos da visualidade que os compõem. A combinação se
dá num estágio mental dinâmico, lugar de potencialidade criativa da obra enquanto
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imagem que se verifica na mente do interpretador/obsevador/leitor. Um tear de imagens


– “Retrato de Mulher” e “Vote em Mim” - constitue artilharia silenciosa dirigida à
consciência de um leitor, desvelando um sistema eleitoreiro onde os candidatos são,
entre outros, Liza Teixeira ou Tio João; para o gênero feminino a necessidade de ser
Nova, Sempre Livre, Segura e Natural, exigências patrióticas da mundialização.

Retrato de mulher

Vote em mim
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Último Round

Retomando DELEUZE e GUATTARI (1995):

“Existem linhas que não podem ser resumidas em trajetórias de um


ponto e que fogem da estrutura, linhas de fuga, devires, sem futuro nem
passado, sem memória, que resistem à máquina binária, devir – mulher
que nem é homem nem é mulher, devir – animal que nem é bicho nem
homem.. Evoluções são paralelas, que não procedem por diferenciações,
mas que pulam de uma linha para outra, entre seres totalmente
heterogêneos: fissuras, rupturas imperceptíveis, que quebram as linhas,
mesmo se retomam em outro lugar, pulando por cima dos cortes
significantes... é tudo isso o rizoma” (p.34).

Nesse sentido enfrentar a linha é cavalgá-la, é mergulhar em experimento, axioma


maior do devir. No dizer de LINS (2000):

“Mas ninguém fará a experiência por nós, em nosso lugar.


Experimentar é da ordem do devir-pensamento e não do devir-opinião,
do devir-moda, do devir fora-do-pensamento, do devir-burocrático,
devir-chefe: ´Pensar é sempre experimentar, não interpretar, mas
experimentar, e a experimentação é sempre o atual, o nascimento, o
novo, o que está em vias de se fazer´.
Em outras palavras: o homem´ não pode ficar encerrado no que
descobriu´sob pena de fazer de sua descoberta uma maloca identitária,
uma razão, um logos, um modelo. Ora, mesmo os “melhores modelos”
caducam, não suportam a violência positiva do novo, fragilizam-se ao
contato com os ventos do deserto ou com os murmúrios dos corpos
calados: amados, amantes.
É aqui que o devir e a resistência encontram sua lógica, seu campo
de combate, sua vontade de potência ativa, que tem no corpo o seu
aliado. Mais ainda: o sopro necessário à organização de um
pensamento-outro. Pensamento-outro, que é produção singular, gerado
na violência positiva, alheio à gramática do eu esclerosado pela sintaxe,
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determinado pelo consciente, ´fenômeno superficial e terminal´, que


amarra o devir numa estrutura, numa estabilidade, num tempo-morto:
cochilo do pensamento e da criatividade” ( p.107).

Criar, reinventar, criar ainda é o axioma fundamental do devir numa sociedade em


que a forma mais desenvolvida de mercadoria é a imagem, muito mais que o produto
material concreto. É o que sabe NILDA ALVES (2001) quando sente “necessidade de
usar a imagem como espaço tempo para a discussão sobre o cotidiano da escola e os
múltiplos currículos que aí são criados e estão em permanente disputa” (p.10-11).
Sabe, também, ANITA LEANDRO (2001) quando menciona que “uma imagem ensina
na medida em que ela, tanto do ponto de vista formal quanto do conhecido, veicula um
pensamento, engajando assim o pensamento no espectador” (p. 34). Continuando,
LEANDRO busca LUC GODARD, um cineasta ligado à técnica, quando diz que:

“Um pensamento que se entrega ao ritmo de suas mecânicas se


proletariza. A verdadeira condição do homem é pensar com suas mãos.
Neste sentido, pensar com as próprias mãos é de acordo com GODARD
um ato artesanal que garante a propriedade, a autoria do que se produz.
E uma imagem assim produzida tende a gerar um pensamento perigoso.
Perigo para o pensador e transformador do real. Perigoso e
transformador porque retira o produto do trabalho, no caso das
imagens, do contexto mercadológico da relação de troca, restituindo-lhe
seu valor de uso” (p.34-35)

Neste aspecto, a educação necessita ter posse dos códigos econômicos, sociais,
políticos, culturais que emanam das imagens. “Retratos Troponômicos”, pensados
enquanto um ato artesanal, que retirou produtos do trabalho humano do contexto
mercadológico restituindo-lhes seu valor de uso, deixam de ser semióforos. O exercício
didEYEtico remeteu à novas tessituras, novas redes de conhecimento. E, sob o signo do
desassossego, quando se pensa porque se é fustigado, a cidadania deixa de ser
perspectiva para ser o próprio horizonte, agulha e pólo na esteira de DELEUZE.
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15

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