Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Abstract Introdução
1 Escola de Enfermagem, The low-income population’s practices and strate- As práticas e estratégias da população de baixa
Universidade Federal
gies for coping with daily problems, especially renda no enfrentamento de seus problemas co-
do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, Brasil. in relation to the search for health care, are an- tidianos, sobretudo em relação à procura de cui-
alyzed by means of therapeutic itineraries. To dados em saúde, são aqui analisadas através dos
Correspondência
unveil this population’s coping strategies in re- itinerários terapêuticos. A relação entre itinerá-
T. E. Gerhardt
Departamento de Assistência lation to their health-disease process means rios terapêuticos e pobreza é bastante relevante
e Orientação Profissional, identifying the individual and collective strate- no campo da Saúde Coletiva, em especial no
Escola de Enfermagem,
gies and the meaning of these social dynamics contexto brasileiro, marcado pela desigualdade
Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. related directly or indirectly to health. The search social e diversidade cultural que se reflete na
Rua São Manuel 963, for treatment is described and analyzed here in busca do cuidado. O termo itinerário terapêuti-
Porto Alegre, RS
90620-110, Brasil.
relation to socio-cultural practices in terms of co é aqui utilizado como sinônimo de busca de
tatiana.gerhardt@ufrgs.br the paths chosen by individuals in the attempt cuidados terapêuticos e procura descrever e
to solve their health problems. The study thus analisar as práticas individuais e sócio-culturais
indicates an interdisciplinary and multi-method- de saúde em termos dos caminhos percorridos
ological and conceptual approach relating con- por indivíduos pertencentes a camadas de baixa
cepts of practices, strategies, and health and life renda, na tentativa de solucionarem seus pro-
situations. The point of departure is that ways blemas de saúde. A partir do surgimento de um
of coping with health problems require an un- ou mais sintomas físicos ou psíquicos e de seu
derstanding of the strategies developed in a reconhecimento como tal, o indivíduo se en-
process of (re)appropriation and (re)construc- contra frente a uma rede complexa de escolhas
tion of knowledge. It is equally important to possíveis 1. Os processos de escolha, avaliação e
identify social support networks and individual aderência a determinadas formas de tratamen-
capacity to mobilize such resources. The recog- to são complexos e difíceis de serem apreendi-
nition of these practices allows (re)directing ac- dos se não for levado em conta o contexto den-
tions in collective health. tro do qual o indivíduo está inserido, sobretudo
frente à diversidade de possibilidades disponí-
Delivery of Health Care; Socioeconomic Factors; veis (ou não) em termos de cuidados em saúde
Problem Solving para as populações de baixa renda.
Para se compreender a saúde dos indivíduos
e a forma como eles enfrentam a doença torna-
se necessário analisar suas práticas (itinerários cuidados em relação à complexidade dos fatores
terapêuticos), a partir do contexto onde elas sociais que ela implica” 4 (p. 118).
tomam forma, pois cada contexto possui ca- Já no Brasil, Alves & Souza 6 desenvolveram
racterísticas próprias e especificidades É nesse uma importante revisão da literatura sócio-an-
contexto que acontecem os eventos cotidianos tropológica sobre o processo de escolha e ava-
(econômicos, sociais e culturais) que organi- liação de tratamento para problemas de saúde,
zam a vida coletiva, que enquadram a vida bio- enfocando as diferentes abordagens e interpre-
lógica e é dentro dele que os indivíduos evo- tações e o próprio conceito de itinerário tera-
luem ao mesmo tempo em que seu corpo, seus pêutico. Segundo os autores “é necessário que
pensamentos, suas ações, são formatados por os estudos sobre itinerário terapêutico possam
esse espaço social. Por outro lado, é necessário ‘descer’ ao nível dos procedimentos usados pelos
também considerar os indivíduos como atores autores na interpretação de suas experiências e
sociais, definidos ao mesmo tempo por esse es- delineamento de suas ações sem, contudo, per-
paço social no qual se inserem e pela consciên- der o domínio dos macroprocessos sócio-cultu-
cia de agir sobre esse espaço 2. rais” 6 (p. 132). Alves & Souza, baseando-se em
Assim, “é preciso hoje reconhecer que a na- Rabelo 7, propõem que não existe um padrão
tureza das formas de procura de cuidados é va- único e pré-definido no processo de busca tera-
riada e complexa, que se diferencia de um indi- pêutica e que o itinerário é um processo com-
víduo a outro, que pode variar em um mesmo plexo não podendo ser reduzido “a generalida-
indivíduo de um episódio de doença a outro e des que procedem pela descoberta de leis que or-
que a procura de cuidados está sujeita a ques- denam o social. A recorrência simultânea a vá-
tionamentos repetidos em cada uma das etapas rios tratamentos e a existência de visões discor-
do processo de manutenção da saúde. De fato, a dantes – e até mesmo contraditórias – sobre a
natureza e a seqüência dos encaminhamentos questão terapêutica evidenciam que tanto a
na procura de cuidados são determinadas por doença como a cura são experiências intersub-
uma série de variáveis situacionais, sociais, psi- jetivamente construídas, em que o paciente, sua
cológicas, econômicas e outras. A procura de família e aqueles que vivem próximos estão con-
cuidados está condicionada tanto pelas atitu- tinuamente negociando significados” 6 (p. 136).
des, os valores e as ideologias quanto pelos per- Nos estudos sobre itinerários terapêuticos é
fis da doença, o acesso econômico e a disponibi- importante, portanto, que não se desconheça
lidade de tecnologias” 1 (p. 330). essa realidade, tal como o fizeram as teorias de
Desta forma, “o desafio lançado pela multi- caráter nomológico-dedutivo que procuraram
plicidade de escolhas, de condutas, de tratamen- explicar as ações individuais baseadas em ar-
tos adotados simultaneamente, ou em série, por gumentos previamente estabelecidos. “Na in-
um mesmo indivíduo, não pode ser apreendido terpretação de um determinado processo de es-
por uma abordagem centrada no sujeito, estri- colha terapêutica é preciso que se apresente o
tamente individual, interacionista e que retém sujeito desse processo como alguém que com-
somente a estratégia de escolha a fim de chegar partilha com outros um estoque de crenças e re-
na sua lógica. Isso conduziria a uma interpreta- ceitas práticas para lidar com o mundo, receitas
ção cognitiva que negligencia a incorporação estas que foram adquiridas (e ampliadas, refor-
de cuidados no social. Pois o pluralismo tera- muladas ou mesmo descartadas) ao longo de
pêutico é amplamente o resultado de relações uma trajetória biográfica singular. Porém, reco-
sociais que transcendem as condutas indivi- nhecer a existência de estruturas sociais não sig-
duais. Elas exercem pressão sobre as escolhas; nifica dizer que elas sejam determinantes das
elas orientam, favorecem ou penalizam as de- ações humanas. Uma coisa é o significado obje-
cisões” 3 (p. 7). tivo de um dado fenômeno sócio-cultural defi-
Fassin 4,5 demonstrou, a partir de estudos nido por um padrão institucionalizado; outra
na África de diversos itinerários terapêuticos, coisa, o modo particular como o indivíduo defi-
que “os caminhos percorridos pelo doente à ne a sua situação no seio dele” 6 (p. 133). Em es-
procura de diagnóstico e tratamento surge co- tudo anterior, Alves 8 já evidenciava o complexo
mo resultado de múltiplas lógicas, de causas es- processo de busca terapêutica com base na ex-
truturais (sistemas de representações da doen- periência da enfermidade dos indivíduos como
ça, posição do indivíduo na sociedade) e de cau- sendo uma expressão não antagônica das di-
sas conjunturais (modificação da situação fi- mensões cognitivas (individuais) e sociais (co-
nanceira, conselho de um vizinho) que torna letivas).
em vão toda tentativa de estrita formalização. Tais considerações teóricas são fundamen-
(...) Portanto, da necessidade de resituar a se- tais para o estudo do itinerário terapêutico, per-
qüência de eventos contextuais da procura de mitindo-nos pôr em relevância dois aspectos
do-se do quadro geral da cidade para as con- dicalizados diminui. Grupo de famílias já esta-
dutas individuais. Assim, os resultados do zo- belecido na cidade, mas que apresenta dificul-
neamento e da estratificação social mostram a dades para mobilizar “recursos sociais” em pra-
existência de uma grande diversidade e hetero- ticamente todos os níveis;
geneidade no espaço urbano em matéria de • Tipo III: maior número de famílias cuja es-
ambiente físico, moradia, demografia e vida so- trutura não permite a mobilização de recursos
cial. O zoneamento espacial 10 compreende cin- intrafamiliares e comunitários: não possuem
co grandes zonas, cujas características descri- laços familiares próximos ao local de moradia,
tivas se resumem da melhor zona em termos não participam de atividades da religião, a
de crescimento espacial, infra-estrutura, servi- maioria é de migrantes recentes, não sindicali-
ços e condições de vida, que se situam no cen- zados. Grupo de famílias que acumula todos os
tro urbano, até as piores zonas como as Franjas fatores desfavoráveis em relação à mobilização
e Ilha de Valadares (Figura 1). A estratificação de “recursos sociais”.
social 13 comportou um modelo final de três Ainda nesse nível mais geral de análise, o
estratos sócio-econômicos: superior (222 famí- estudo de Novakoski 15 quanto à utilização de
lias, 35% da população total), médio (240 famí- serviços de saúde e as trajetórias terapêuticas,
lias, 38%), inferior (177 famílias, 28%). evidenciou disparidades espaciais e desigual-
O confronto entre esses dois instrumentos dades sociais relacionadas aos aspectos sócio-
de análise (Figura 2) demonstrou que mesmo econômicos. A trajetória terapêutica demons-
existindo uma forte correlação entre o recorte trou-se diferenciada em função das queixas ou
espacial e a distribuição da população em fun- problemas de saúde serem considerados leves
ção da posição na hierarquia social, os três es- ou graves. Para a busca de recursos para solu-
tratos estão presentes em todas as zonas. A com- ção de problemas leves (Figura 3), o estudo ve-
binação dessas duas dimensões (espacial e so- rificou que a automedicação é freqüentemente
cial) constituiu o quadro geral de análise que a o primeiro recurso para 269 (88,2%) famílias,
antropologia não pode se contentar para ava- diminuindo significativamente, como medidas
liar a pobreza e as desigualdades sociais, pois subseqüentes. A procura de cuidados tradicio-
este não permite desvendar as condições e di- nais é menos freqüente, mas predomina como
ficuldades individuais ou familiares cotidianas segunda opção para 63 (46,2%) entrevistados e
no acesso aos bens e serviços, na medida em 44 (34,4%) recorrem a eles como terceira opção.
que múltiplos fatores intervêm na vida cotidia- A procura de serviços de saúde também apare-
na. Desta forma, a tipologia do “potencial de ce com menor freqüência, 181 (61,8%) como
mobilização de recursos sociais”, permitiu avan- segunda medida e para 68 (23,2%) como tercei-
çar na aproximação das famílias a serem acom- ra opção. Esta situação pode denotar que, ao
panhadas no seu cotidiano, sendo que foram longo da trajetória, parte dos problemas é so-
encontrados três grandes tipos de situação que lucionado.
se caracterizam, sumariamente por: A Figura 3 demonstra também que todas as
• Tipo I: agrupa o maior número de famílias famílias entrevistadas buscam algum tipo de
cuja estrutura permite uma maior possibilida- solução para os episódios ou problemas de
de de mobilização de recursos intrafamiliares, saúde, sendo que a maioria delas, 269 (80,5%),
com chefes e/ou cônjuge que possuem laços recorrem à automedicação como primeira me-
familiares próximos ao local de moradia, parti- dida de solução de seus problemas; no caso de
cipam de atividades de sua religião, nasceram insucesso nesta etapa, 270 (80%) procuram um
em Paranaguá e são sindicalizados. Apresen- segundo recurso, destacando-se os serviços for-
tam todos os elementos para a mobilização de mais de saúde; a utilização de uma terceira me-
diferentes redes de solidariedade (cidade, bair- dida é adotada por 122 (36,5%) casos, em rela-
ro, parentesco, trabalho); ção às 334 famílias entrevistadas. Nessa medi-
• Tipo II: o número das famílias cuja estrutu- da, a diferença entre a busca de serviços de saú-
ra permite uma maior possibilidade de mobili- de e a procura de cuidados tradicionais é rela-
zação de recursos intrafamiliares diminui sen- tivamente pequena.
sivelmente em relação ao nível anterior, chefes O estudo aponta que a automedicação e o
e/ou cônjuge que possuem laços familiares uso indiscriminado de medicamentos “bons
próximos ao local de moradia diminui igual- para tudo e para todos”, na solução de proble-
mente, a maioria não possui laços familiares mas de saúde, aparentemente leves e comuns,
próximos ao local de moradia, diminui a parti- podem provocar resultados inesperados e de-
cipação em atividades da religião, o número de sastrosos. Essa prática social alcança dimen-
chefes migrantes aumenta consideravelmente sões difíceis de estimar, mas pode revelar, além
em relação ao nível anterior e a de chefes sin- do aspecto cultural, a dificuldade de acesso aos
Figura 1
BAÍA DE PARANAGUÁ
Porto
Petrobrás
Fospar
Ri
o
Em
bo
gu
aç
u
rê
be
Iti
o
Ri
s
er
ain
nt
s
õe
Co
nh
mi
Ca or
to
p
ro
Ae
.
. S.A
Frigobrás F.F
R.
Sadia
Curitiba
Zoneamento
7
BR-27
ba
Curiti Centro urbano
la
Rio da Vi
Expansão portuária
Expansão recente
PR
-40
-
7
Franjas
Pra
ias
Ilha de Valadares
0 2.500m
Pra
ias
Figura 2
Distribuição dos estratos sócio-econômicos de acordo com as diferentes zonas da cidade de Paranaguá,
Paraná, Brasil, 1996.
100
Superior
90
80 Médio
70
Inferior
60
50
40
30
20
10
% 0
Centro urbano Expansão portuária Expansão recente Franjas Ilha de Valadares Zonas
Fonte: Gerhardt 2.
χ2 = 102,95; p = 0,0.
Figura 3
Árvore de recursos terapêuticos utilizados para problemas considerados leves ou costumeiros pela população
de Paranaguá, Paraná, Brasil.
52 CT 52 CT Problemas leves
269 A 40 problemas solucionados Resfriado e gripe – 249– 41,0%
177 SS 41 CT Dor de cabeça – 169 – 27,8%
16 A 16 SS Dor de barriga – 39 – 6,4%
334 21 CT 1 problema solucionado Febre – 37 – 6,1%
4 SS 1A Não especificado – 24 – 3,9%
10 A 3 CT Demais problemas – 180 – 14,8%
44 SS 23 problemas solucionados
11 CT 9A
Figura 4
Árvore de recursos terapêuticos utilizados para problemas considerados graves pela população
de Paranaguá, Paraná, Brasil.
Problemas graves
6A 6 SS Febre – 113– 17,8%
AIDS – 64 – 10,1%
1A 1 SS Câncer – 60 – 9,4%
334 2 CT Dor forte e desconhecida –
1 SS 58 – 9,1%
24 A 8 CT Diarréia – 41 – 6,5%
326 SS 290 problemas solucionados Demais problemas – 305 – 47,0%
12 CT 10 A
Figura 5
Exemplo de um itinerário terapêutico na situação de apoio social e enfrentamento da doença. Paranaguá, Paraná, Brasil, 1999.
Primeiros sintomas Sintomas evoluem GAPER (Grupo de Secretaria Muni- Casa da avó na Melhora dos Sintomas recomeçam,
↓ ↓ Apoio a Pessoas cipal de Saúde Ilha de Valadares sintomas assim como a busca
Chás com ervas PS outro com Doenças (encaminhamento ↓ ↓ terapêutica a partir
medicinais (consulta) Respiratórias) ao GAPER + Vereadora (cesta Interrupção do da mobilização dos
↓ ↓ ↓ consulta) básica) tratamento recursos sociais
PS próximo PA (“médicos Pastoral da Criança ↓ ↓ (medicamentos e disponíveis
(consulta) da capital”) (vale-transporte) PS da SMS (1/3 GAPER (consulta inalações – farmácia
↓ ↓ ↓ medicamentos) somente para o caseira)
Tratamento Tratamento Secretaria Muni- ↓ mês seguinte)
(medicamentos (medicamentos cipal de Saúde Farmácia do ↓
e inalações; dis- e inalações) (encaminhamento sindicato (restante Medicamentos +
tribuídos entre ↓ ao GAPER) dos medicamentos) Chás com ervas
os 4 filhos; Chás com ervas ↓ medicinais
“prevenção”) medicinais Chás com ervas
medicinais
Tipos de ajuda: conselhos, medicamentos, vale-transporte, cesta básica, Tipos de ajuda: apoio material (moradia, alimentação); apoio
contatos nos serviços de saúde, apoio religioso moral (conselhos, tomada de decisões, compartilhar informações);
monitoramento da doença
0 1 0 2 2 2 1 0 0 0 2 2 2 2 2 2 2 0 2
Alim = alimentação; Mor = moradia; IM = instabilidade moradia; S = saúde; AT = ausência trabalho; IT = instabilidade trabalho;
Div = dívidas financeiras; CF = conflitos familiares; CFI = conflitos familiares internos; DP = drogas, prostituição; Alcoo = alcoolismos;
AD = ajuda dada; AR = ajuda recebida; VD = vizinha dado; VR = vizinha recebido; Trab = trabalho; Relig = religião.
Pontuação: 0 = inexistente; 1 = presente; 2 = fortemente presente.
Situação síntese:
• Capacidade comprometida em relação a reprodução física, devido a problemas como ausência ou instabilidade
de emprego, dívidas importantes, alguns problemas de saúde e de moradia;
• Certa capacidade de reprodução social, devido à ausência de problemas de conflitos familiares internos e externos,
problemas de drogas, alcoolismo e prostituição na família;
• Alta mobilização de recursos familiares e comunitários (conforme figura abaixo).
Família 1 Família 3
Aportes externos
sa. As famílias aparentadas moram distantes Os intensos conflitos familiares e com seu pa-
geograficamente sem que isso impeça a mobi- rentesco, sua doença crônica que a impede fi-
lização de apoio em caso de doença (por exem- sicamente de tomar em mãos sua própria vida,
plo, a mobilização da família 2, residente na a impede ainda mais de mobilizar outros tipos
Ilha de Valadares, durante um certo período de de recursos, sobretudo comunitários, e de mi-
tempo para cuidar dos filhos doentes). Da mes- nimizar a vulnerabilidade das crianças frente à
ma forma, simultaneamente, mobiliza apoio doença, mesmo as mais simples (parasitoses,
em entidades religiosas diversas (católica e pen- problemas de pele, infecções respiratórias).
tecostais) como forma de garantir algum supri- Essas duas situações mostram que as forma
mento em termos de medicamentos ou alimen- de enfrentar a doença e de minimizar os im-
tos. Além disso, a busca terapêutica envolve a pactos de eventos imprevistos sobre a saúde
automedicação e a utilização de vários servi- dos indivíduos deve-se muito à capacidade in-
ços de saúde da rede de Atenção Básica local, dividual de tomar decisões, ao mesmo tempo
independente da sua localização. Sua forma de em que se mobiliza redes coletivas de entre-
enfrentar e de minimizar o impacto dos even- ajuda e outros tipos de recursos sociais, mes-
tos imprevistos sobre a saúde dos membros de mo havendo influência das concepções de saú-
sua família depende em muito da sua capaci- de, da doença e do corpo (não abordados neste
dade em tomar decisões individuais, ao mes- texto), e dos recursos de saúde disponíveis. A
mo tempo em que mobiliza recursos coletivos, maneira como colocam em prática o conheci-
mesmo devendo mobilizar outros recursos que mento ou o modo pelos quais eles enfrentam
permitam percorrer toda a cidade para tal. os eventos (neste caso, a doença), pode vir a
A segunda situação (exclusão social e enfren- perturbar o frágil equilíbrio de suas vidas coti-
tamento da doença), ilustra exatamente a si- dianas. Como observado por Fonseca 17 em ou-
tuação inversa: quantitativamente, se caracte- tros contextos, em Paranaguá, são as mulheres,
riza por famílias que acumulam todos os fato- que mesmo em contextos de grandes dificul-
res favoráveis em relação à mobilização de “re- dades materiais, agem como atores de suas si-
cursos sociais” (Tipo I). Todavia, a análise qua- tuações de vida.
litativa revelou famílias com baixa capacidade Os itinerários e escolhas terapêuticas foram
de reprodução física, devido a importantes pro- analisados, portanto, não somente como um
blemas materiais e físicos (moradia, emprego, estado crônico ou agudo, mas como o resulta-
saúde, alimentação); baixa capacidade de re- do de um processo. A saúde se insere nas estra-
produção social, devido a importantes proble- tégias individuais e familiares, ao mesmo tem-
mas de conflitos familiares internos e externos, po em que se apóia em diferentes tipos de re-
problemas de drogas, alcoolismo e prostituição cursos coletivos. Os itinerários observados ilus-
na família; certa capacidade de mobilização de tram a prática cotidiana de recursos frente a
recursos familiares (mas com dificuldades), não doença, onde diferentes estratégias incorpo-
mobilização de recursos externos à família, ram diferentes escolhas e diferentes alternati-
muitas vezes por incapacidade da mãe e não vas que não se excluem e que são, ao contrário,
participação do pai. A não mobilização de re- plurais. Eles revelam um processo no qual se
cursos familiares (apesar de terem a rede de articula o individual e o coletivo nas estratégias
parentesco situada próxima geograficamente) de enfrentamento colocadas em prática por in-
e comunitários se deve ao fato de que as mu- divíduos capazes de mobilizar recursos mate-
lheres apresentam uma situação social extre- riais e imateriais.
mamente frágil, a ponto de se encontrarem psi- O que se observa igualmente, é que as ativi-
cologicamente depressivas, fisicamente debili- dades ligadas à saúde se desenvolvem em casa,
tadas e socialmente sozinhas. Este estado não com atividades que compreendem não somen-
permite a mobilização de nenhum recurso fa- te os primeiros cuidados, mas a avaliação do
miliar ou comunitário, fato que repercute de estado de saúde e as decisões sobre o tipo de
forma bastante negativa na saúde dos indiví- recurso a ser mobilizado. Seja qual for o grau
duos que compõem o núcleo familiar, deixan- de dificuldade econômica, este não é o único
do muitas vezes antever um comportamento em questão quando se trata de saúde. Às difi-
“passivo” diante de condutas a serem tomadas. culdades de acesso econômico e geográfico
Léa é um exemplo dessa situação: ela reside na acrescenta-se o contexto cultural, que não se
Ilha de Valadares e sua rede de entre-ajuda, se resume às crenças e condutas individuais. En-
é que existe uma, é bastante reduzida. Ela é ca- volvem também o diálogo entre os diferentes
tólica e privilegia a utilização de serviços de saú- atores, fato primordial para a compreensão da
de, ao mesmo tempo em que busca cuidado te- natureza do problema e a sua solução. Igual-
rapêutico junto a curandeiros e benzedeiros. mente, o espaço intervém seguramente no aces-
so aos serviços de saúde, mas torna-se secun- ganizadas em torno das igrejas, a integração
dário quando se trata de resolver um problema em redes sociais e políticas de clientelismo que
para as famílias que possuem certa capacidade podem dar acesso às cestas básicas. Sendo as-
em desenvolver estratégias. As conseqüências sim, num país como o Brasil, fortemente mar-
da situação econômica, espacial e ambiental cado pela diversidade cultural, pela mobilida-
num mesmo local não são as mesmas para todos de, esses valores de solidariedade, de ajuda, as
os indivíduos. Como observou Raynaut 16,18,19, relações clientelistas de proteção do depen-
ao mesmo tempo em que alguns perdem o ru- dente e de fidelidade ao patrão desempenham
mo e encontram-se presos a um ciclo dificil- um papel essencial na construção dos laços so-
mente reversível, outros, ao contrário, conse- ciais entre os indivíduos.
guem reagir e, às vezes, tirar vantagens das pos- A diversidade e a pluralidade de fatores que
sibilidades que lhes são oferecidas. estão presentes na saúde e na doença são ain-
da portadores de múltiplos sentidos: pluralida-
de de condutas, pluralidade de terapeutas, plu-
Considerações finais ralidade de etiologias (causas), pluralidade de
percepções e de visões de mundo. Os resulta-
Com base nessas informações algumas consi- dos deste estudo não nos deixam, portanto,
derações podem ser feitas, sobretudo em rela- pensar na doença, suas causas e seu tratamen-
ção à existência de uma pluralidade de fatores to de forma linear onde só há lugar para uma
que intervêm na escolha dos indivíduos, que forma de resolução do problema. Torna-se evi-
através de um estudo aprofundado pode ser dente a necessidade de considerar que dentro
colocado em evidência. Também igualmente do contexto no qual está inserida a vida coti-
importante, a abordagem interdisciplinar, pa- diana dos indivíduos, existe uma possibilidade,
no de fundo desta pesquisa, permitiu a interfa- um espaço, uma margem onde os indivíduos,
ce entre as diferentes disciplinas, momentos sendo atores de suas próprias vidas, desenvol-
cruciais para conduzir o aprofundamento da vem estratégias de enfrentamento aos proble-
problemática, como na interpretação, análise e mas que lhes são impostos e, desta forma, cons-
contextualização dos resultados. troem suas próprias situações de vida. Essas es-
O que fica evidenciado neste estudo é que tratégias incluem as modalidades de manejo do
além dos limites das condições materiais de vi- quadro de vida material e social restritivo e ex-
da, os indivíduos constroem as estratégias de pressam as diferentes capacidades individuais.
vida de acordo com suas capacidades, suas his- Por outro lado, o nível de análise macrosso-
tórias de vida e suas experiências individuais. cial trouxe contribuições importantes, permi-
A capacidade de ação dos indivíduos em Para- tindo construir um quadro geral dentro do
naguá permite questionamentos sobre as rela- qual evoluem as diferentes situações existen-
ções entre condições de vida e estado de saú- tes. Para compreender a relação entre itinerá-
de, relação que não possui sempre uma deter- rio terapêutico, saúde e pobreza, algumas ve-
minação direta, sendo modulada pelo savoir zes nítida e em outros casos pouco expressiva,
faire das mulheres em situação de pobreza (ca- foi necessário situar as estratégias e as lógicas
pacidade de adaptação ao consumo restritivo e utilizadas pelas populações nos diferentes ní-
de ter múltiplas relações), portanto pelas ca- veis onde se desenvolvem.
racterísticas do sujeito, do problema e da per- Desta forma, algumas questões levantadas
cepção de saúde e da configuração do sistema no nível mais global foram retomadas: as zonas
de saúde. da cidade não são homogêneas, pois dentro de-
As alternativas de escolha terapêutica tam- las “co-residem” diferentes categorias sociais
bém são múltiplas e vão desde a “informal” (au- que, mesmo se situando em um mesmo con-
tomedicação, conselho ou tratamento recomen- texto espacial, dispõem de meios distintos pa-
dado por parente, amigo, vizinho...), passando ra encontrar respostas aos problemas que se
pela “popular” (curandeiros, benzedeiros, “vo- apresentam. A saúde dos indivíduos expressa o
vós”...), até a “profissional”. Cada uma possui impacto dos problemas materiais sobre o cor-
vantagens e desvantagens e são escolhidas em po, e permite, de um certo modo, uma leitura
função das disponibilidades circunstanciais e destas relações. Por outro lado, existem meca-
das explicações culturalmente aceitas pelo in- nismos de regulação ou de perturbação da saú-
divíduo e seu grupo. As estruturas sociais utili- de e da doença que são de ordem social e cul-
zadas e as estratégias desenvolvidas em Para- tural, a saber: papel das relações sociais (fami-
naguá compreendem as relações familiares e liares e comunitárias); solidariedades que as
de vizinhança (desempenhando o papel prin- fortalecem ou conflitos que as dividem – como
cipal), a integração a redes de solidariedade or- mediadores entre o indivíduo e seu ambiente
Resumo
Referências
1. Massé R. Culture et santé publique. Les contribu- 12. Raynaut C, Damasceno AF. Metodologia do diag-
tions de l’anthropologie à la prévention et à la nóstico interdisciplinar em Paranaguá: a constru-
promotion de la santé. Montréal: Gaëtan Morin ção de um quadro de trabalho comum. In: Ray-
Éditeur; 1995. naut C, Zanoni M, Lana PC, Floriani D, Ferreira
2. Gerhardt TE. Anthropologie et santé publique: AD, Andriguetto Jr. JM, organizadores. Desenvol-
approche interdisciplinaire. Pauvreté, situations vimento e meio ambiente: em busca da interdis-
de vie et santé à Paranaguá, Paraná, Brésil [Tese ciplinaridade. Pesquisas urbanas e rurais. Curiti-
de Doutorado]. Bordeaux: Université de Bordeaux ba: Editora UFPR/Organização das Nações Uni-
2; 2000. das para Educação, a Ciência e a Cultura; 2002. p.
3. Benoist J. Soigner au pluriel. Essais sur le plural- 29-41.
isme médical. Paris: Karthala; 1996. 13. Gerhardt TE, Nazareno ER, Novakoski LER. De-
4. Fassin D. Entre pouvoir et maladie en Afrique. sigualdades sociais e situações de vida em Para-
Paris: PUF; 1992. naguá. Curitiba: Doutorado em Meio Ambiente e
5. Fassin D. Pauvreté, urbanisation et santé. Les iné- Desenvolvimento, Universidade Federal do Para-
galités d’accès aux soins dans la banlieue de Da- ná; 1997.
kar. Psychopathologie Africaine 1987; 21:155-76. 14. Lebrão ML. Estudos de morbidade. São Paulo:
6. Alves PCB, Souza IM. Escolha e avaliação de tra- Edusp; 1997.
tamento para problemas de saúde: considerações 15. Novakoski LE. As desigualdades socioambientais
sobre o itinerário terapêutico. In: Rabelo MC, Al- e a utilização de serviços de saúde [Tese de Dou-
ves PCB, Souza IMA, organizadores. Experiência torado]. Curitiba: Doutorado em Meio Ambiente
de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fio- e Desenvolvimento, Universidade Federal do
cruz; 1999. p. 125-38. Paraná; 1999.
7. Rabelo MC. Religião e cura: algumas reflexões so- 16. Raynaut C. Inégalités économiques et solidarités
bre a experiência religiosa das classes populares sociales. In: Fassin D, Jaffre Y, editors. Sociétés,
urbanas. Cad Saúde Pública 1993; 9:316-25. développement et santé. Paris: Ellipses/Aupelf;
8. Alves PC. A experiência da enfermidade: conside- 1990. p. 136-54.
rações teóricas. Cad Saúde Pública 1993; 9:263-71. 17. Fonseca C. Ser mulher, mãe e pobre. In: Del Priori
9. Caneparo SC, Carneiro SMM, Cerdeira PC, Costa M, Bassanezi C, organizadores. História das mu-
LJM, Gerhardt TE, Godoy AMG, et al. Espaço ur- lheres no Brasil. São Paulo: Editora da Unesp/
bano, situações de vida e saúde na Cidade de Pa- Contexto; 1997. p. 510-53.
ranaguá: relato preliminar de uma prática inter- 18. Raynaut C, Gerhardt TE, Nazareno ER. Pauvreté,
disciplinar. Cadernos de Desenvolvimento e Meio inégalités économiques et disparités de santé:
Ambiente 1996; 3:35-48. conditions de vie et stratégies d’acteurs. Revue
10. Gerhardt TE, Nazareno ER, Novakoski LER. Hete- Face à Face. Regards sur la Santé 2002; 4:3-20.
rogeneidades e homogeneidades do quadro de http://www.ssd.u-bordeuax2.fr/faf/ (acessado
vida urbano de Paranaguá. Curitiba: Doutorado em 05/Dez/2002).
em Meio Ambiente e Desenvolvimento, Universi- 19. Raynaut C. Interdisciplinaridade e promoção da
dade Federal do Paraná; 1996. saúde: o papel da antropologia. Algumas idéias
11. Gerhardt TE, Nazareno ER. Diálogo entre a epi- simples a partir de experiências africanas e bra-
demiologia e a antropologia nas questões de saú- sileiras. Rev Bras Epidemiol 2002; 5 Suppl 1:43-55.
de. In: Raynaut C, Zanoni M, Lana PC, Floriani D, 20. Raynaut C. L’anthropologie de la santé: carrefour
Ferreira AD, Andriguetto Jr. JM, organizadores. de questionnements. L’humain et le naturel, l’in-
Desenvolvimento e meio ambiente: em busca da dividuel et le social. Ethnologies Comparées 2001;
interdisciplinaridade. Pesquisas urbanas e rurais. 3. http://alor.univ-montp3.fr/cerce/revue.htm/
Curitiba: Editora UFPR/Organização das Nações (acessado em 05/Dez/2002).
Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura; 2002.
p. 103-25. Recebido em 04/Out/2005
Versão final reapresentada em 03/Abr/2006
Aprovado em 17/Abr/2006