Você está na página 1de 80
A ETICA DA DIFERENCA Transmissao da Psicanalise diretor: Mareo Antonio Coutinho Jorge Doris Rinaldi A Erica pa Direrenca Um debate entre psicandlise eantropologia *_ “ we # pint tl Vv f . e \ow* - yy we t ye - ‘ ‘ att us car fe he a Qe) Editora da UERJ Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Capytight © 1996, Deris Rinaldi ‘Totes os direitos reservadus, A reprodugio nio-autorizade desta publicacae, no todo ou em parle, constitt violagaa de copyright. (Lei 5.988) Direitos contratades para esta edigio com Jone Zawar Eprror Lrpa Tua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (021) 240-0226 / fax; (021) 262-5123 Em co-edigao com a Enron pa Universipape Do Esiapo no Rio be Janre — UERS rua Sio Francisco Xavier $24 sala T-126 20550-013 Rio de Jangire, RJ tol. (O21) 587-7788 / S87-7789 / fox: (021) 284-5088 UERJ Reiter - Antonio Celso Alves Pereira Vige-reitor - Nileéa Freire EAUERJ Conselso Editorial Ivo Hiasio Barbieri (Presidente) / Gerd Bormheim / Marcus Pacheco! Miitio Pontes / Reinaldo Guimaries / Silviano Santiago # Vivaldo Maura Neto Produgao + Renato Casimire Editoragdo - Resania Rolins Revisio - francisco Inacio Bastos Apoio Administrative - Maria Mitima de Mattos Ficha Catalogrfica alaborada pela Divisio de Processamento ‘Técnico — SISBUUERI 159,964.2:1 R578 Rinaldi, Doris. Etica da diferonga / Doris Rinaldi. — Rio de Janeiro: EMUBRJ : Jorge Zahar Ed. 1996. 160p. — (Transmissio da psicanalisy) Inclui bibliografia ISBN &5-85881-|1-9 L. Psicandlise e filosofia 1. Titulo, CBU 159.964.2:1 R578 Sumario Por uma politica da singularidade 7 Agradecimentos 9 Introdugio = 11 CapituLol — Psicanilise & antropologia: um debate clissica = 19 CapfruLo ll Freud e a moralidade 43 Capfruco Tl Lacaneaética 67 1. Acoisa: nem bem, nem mal = 72 2.Leiedesejo 77 3, O amor ao préximo 83 CartruLolV Eticae politica 97 Carruco V Sublimagao ¢ ética: um didlogo entre antropologia e psicanalise 113 CapiruLo VI A crise atual da ética 127 Bibliografia 151 para Gabriela, Clarisse e Tiago Por uma politica da singularidade Marcos Cormaru! A proposta lacaniana de uma ética desvinculada da moral do poder ou do servigo de bens — eis a questio que Doris Rinaldi desenvolve com precisio, neste livro que marca sua estréia no Ambito da psicandlise, Enguanto seu primeiro livre versa exclusivamente sobre o campo da antropologia, o presente trabalho — resultado de seu doutoramento em antropologia — propde desdebramentos efetivos para o didlogo fecundo entre psicandlise ¢ antropologia, existente ha quase um sécu- lo, tendo como perspectiva a éfica da diferenca Em sua empreitada, a autora parte, por um lado, das formulagdes de Lacan acerca da especificidade do inconsciente psicanalitico — cortelative do conceito de sujeito - é, por outro, da proposta antrope- Jégica de valorizagGo das diferengas vividas pelos homens enquanto seres sociais. Fm ambas a énfase recai, privilegiadamente, sobre a nogio de singularidade, Sob esse prisma, o intercimbio entre psicanilise ¢ antropologia @ rigorosamente apresentado e comentado 4 Inz de uma leitura desimaginarizada tanto do mito freudiano de Zorem e tabu quanto do complexo de Edipo. Deles, Doris destaca a particular constituigao do desejo humano, estruturalmente enlagado a Lei, sublinhando o cardter contingente dos contetidos culturais em sua determinagao simbdlica. Para explicitar a dimensao paradoxal do desejo, inextricavelmente vinculado a uma falta real de objeto, a autora revolve as formulagdes freudianas sobre o “complexe do préximo” — apresentadas no Pro- jeto de 1895 — de onde Lacan pinga o termo das Ding, a Coisa. Ao elevd-lo A categoria de um conceito, a concepgae tradicional de que o prinefpio de realidade é apenas um adiamento necessério do principio de prazer é problematizada e complexificada. Tendo apontado a precariedade do princfpio de realidade no ser humano, Lacan costura, com precisio, a ética da psicandlise com a problematica do desejo humano na sua referéncia a um objeto impos- sivel: das Ding, a Coisa, ’ Mestre em teoria psicanalitica UPRI ¢ psicanalista 8 adtica da diferenga Freund introduz o termo das Ding ao lematizar 0 registro que o infans (aquele que nao fala) adquire daquele que executa os primeiros cuidados. Esse registro divide-se em dois componentes: os tragos de memoria reconheciveis no campo perceptivo, que permitent a compre- ensio ¢ a identifica¢ao do préximo, ou melhor, que podem ser proces~ sados, metabolizados ¢ teconhecidos pelo ifans; e uma poderosa impressdo, nZo assimildvel, ndo incorporavel e intraduzivel psiquica~ mente. cuja estrutura constante permanece retida como uma Coisa (das Ding), Essa impress4o sem correspondéncia no campo perceptive, enquistada no seio do movimento desejante, € responsdvel pela insaciabilidade do desejo humano. Ao rastrear rigorosamente. tais articulagdes Doris explicita a dimen- s4o ética, genuinamente psicanalitica, presente no Projeto de 1895, que nao tem seu ponto de apoio na realidade material nem nos ideats socials. No que h4, estruturalmente, privacdo real de objeto torna-se imperative — do ponto de vista ¢tico — represeniar, simbolizar ¢ substitnir esse enigmatico objeto do desejo, Como diz Freud “La onde © isso estava, o cu [sujeito] deve advir”. E nessa via que Lacan nao cessou de afirmar que a psicandlise nfo ¢ um idealismo, muito menos uma ética do Bem Supremo mas sim uma ética do Bem-dizer. Em um tempo onde a faléncia dos ideais socials tem sido carac- terizada pela exacerbagdo do individualismo e pela razSo cinica, a retomada das teses de Lacan sobre a ética da psicandlise é de funda- mental importincia, Visto que em sua proposta a queda dos ideais nao visa, em hipétese alguma, 4 produgio de um incremento do narcisismo, ou em outras palavras, 4 identificagio do en com os ideais. Tal colagem seria produtera de uma radical oposi¢ao 20 movimento desejante que, como vimos, concerne A falta, ao enigma, a Coisa. No argumento lacaniano, como demonstra a autora, a queda dos ideais é apontada, justamente, para que o sujeito possa bem-dizer 0 seu proprio sintoma descomprometendo-se de qualquer razdo cinica cativa do recalcamento da yerdade do desejo, Considerando esses aspectos, Doris enfatiza que o universal do desejo é se apresentar numa particularidade, Ao lermos 0 presente livro temos a satisfagio de acompanhar uma argumentagao criteriosa ¢ original que sustenta, com um vigor acima de tudo ético, uma politica da singularidade onde a psicandlise possa fazer par com © anti-etnocentrismo antropoldgico na sustentagao das diferen- gas €, por conseguinte, na manutengao da idiossincrasia do desejo. ee sae Agradecimentos A primeira versio deste trabalho foi apresentada ao Programa de Pos- Graduagao em Antropologia Social do Museu Nacional — UFRJ, como tese de doutoramento, em abril de 1993. Sua elaboragdo resultou da confluéncia de preacupagdes tedricas em dois campos do saber — psi- candlise e antropologia — e da tentativa de articula-los, a partir da dis- cussiio de tema da ética. Esta foi uma escolha, inecente a todo trabalbo tedrico, que revela as peculiaridades de minha trajetéria intelectual. Tendo jniciado meus estudos no campo das ciéncias sociais com uma forma- Zo em antrepologia social, onde realizcio mestrado e o curse de doute- rado, passei a dedicar-me ao estudo da psicanillise, tendo levado a efei- to uma outra “formagio”. O trabalho, de certa forma, espelhaesse cami- nho, na medida em que o “retorno’” & antvopologia se da via psicaniilise, na busea de um dialogo produtive, Aatal vers4o apresenta pequenas modificagdes em relagao a ver- sio original, tendo se bencficiado das discusses com os membros da banca examinadora, composta pelos professores Eduardo Vivelros de Castro, Luis Eduardo Soares, Luis Fernando Dias Duarte, Octavio de Souza c Otavio Velho, a quem manifesto 9 meu agradecimento, em es- pecial a esse tiltimo, meu orientador, pelo apoio ¢ pelas sugestées sem- pre oportunas durante a elaboragiio da tese. No campo da psicandlise, sou grata ao Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, instituigao em que empreendi a minha formagio, ¢ aos ami- gos Dionfsia Rache de Andrade, Maria Tavares Cavaleanti e Ricardo de Sa, com quem partilhei meus primeiros passos no estudo da psicanalise. Dionisin ¢ Maria pela leitura e discussiio do serinario A ética da psica- néilise, de Jacques Lacan, ¢ Ricardo pela intensa troca ao longo dareda- cio da tese e pelas crilicas ¢ sugestOes para essa verso final, Finalmente, agradeco a Paulo Jager, por varias razies, entre elas, a infra-estrutura, a revisdo final do texto e, principalmente. o companhei- rismo. Introdugao Vivemos um tempo que tem se caracterizado come de tragmenta- gio, de dispersiio de sentidos, de fim das utopias: Fala-se em crise dos valores morais, manifesta tanto no cotidiano, através dos com- porlamentos individuais, quanto na vida politica, Os antigos valo- res teriam caido em descrédito, provocande a diluigdo das certezas ¢ a sensagdo de uma falta de sentido. Para alguns, a faléncia dos ideais tem como resultado a exacerbagio do individualismo, na chamada “cultura do narcisismo”.' Para outros, 9 campo da ideo- logia caracteriza-se pela expansio de wma “razio cinica”, que explora a distancia entre os princfpios morais e a sua pratica, nao no sentido da contestacio ou da transgzessiio direta da moral, mas de sua manutencio em nome da legitimagao de praticas que a contrariam. Trata-se de conservar a “mdseara”, mesmo sabenda que ela nfo serve mais, eolocando a moralidade a servigo da imo- ralidade,* Naretsismo exacerbado por um lado, cinismo por outro, € nesse contexto que a discussie sobre a ética ganha relevo, con- frontando diversas correntes do pensamento conltemporanes, que, por sua vez, também revelam seus sinais de crise. Como ja foi afirmado diversas vezes, momentos de “crise”, em que a antiga ordem ja perden seu valor, so os mais fecundes, pela discussdo que instauram, pela busca de alternativas e por estimularcm o surgimento de alge novo. Este trabalho se inscreve no contexto do debate sobre a ética como um exame da contribuigao da psicandlise, na medida em que seus desdebramentes permitem a formulacdo de uma ética, tal como a concebe Jacques Lacan, a partir da descoberta freudiana. Creio nao ser necessdrio falar da importincia do pensamento freudiano para a cultura ocidental moderna e para o nosso tempo. coe 12 a diica du ditronga Nao sé porque inaugurou um novo campo do saber, mas porque transpds essas fronteiras exercendo sua influéneia em outros cam- pos, ¢ até mesmo na vida cotidiana atavés da vulgarizagdo de seus conceitos. A telagho do homem com o mundo € consigo mesmo muda de perspectiva a partir da descoberta do inconsciente, que, embora nem sempre considerada em sua plenitude, nao pode mais ser ighorada, O pensamento de Lacan, por sua vez, € hoje reconhe- cido, mesmo por aqueles que dele diseordam, como uma contribui- go original que possibilitau importantes desdobramentos ao cam- po inaugurade por Freud, Mais que isso, Lacan, por sua presenga marcante e seu estilo singular, trouxe a0 cendrio intelectual francés um pensamento rico ern’ paradoxos provocantes, que s¢ expandiu para além-mar, como atestam seus seguidores em outras partes do jhundo, A importancia de pensamento de Freud, bem como do de Lacan, em nosse universo cultural deriva também do fato de que, embora referides a um determinado campo do saber, articularam snas formulagdes a outros campos — historia, antropologia, filo- sofia, lingiifstica, biologia, ffsica, matematica, arte e religtio — dando a suas obras um cardater pluridimensional, Liggo que nem sempre os pensadores contemporanees absorveram, mesmo aqué- les que sc dizem seus diseipulos, Um dos sintomas da crise do pensamento conlemporfneo € a especializagaio do saber em disci- plinas que pouco se comunicam entre si ¢, internamente a cada uma deélas, entre correntes que muitas vezes fazem questo de se ignorar. [sto pode ser observado em relagiio tanto a antropologia quanto 4 psicanalise, ambas filhas da modernidade e, nesse senti- do, sujeitas as unilateralizagdes que a razao moderna imps. Louis Dumont (1983) observa que a antropologia como cién- cia social estd, mais do que qutras ciéncias, exposta fs influéncias da ideologia vigente, no caso a ideologia individualista, que, a seu ver, opde-se ao principio de uma antropologia aprofundada, O resultado é o desenvolvimento de “antropologias particulares”, li- gadas a “campos” especfficos que ¢riam © seu proprio ptiblico, dificultam o debate mais amplo e o enriquecimento tedrico que daf decorre. Até mesmo no interior de uma mesma instituigfo a falta de comunicagado € sentda. Em conseqiiéneia, essa “especializa- ¢ao” tem afastado a antropologia da discussio de questées centrais 4 nossa sociedade e ao nosso tempo. Quanto 4 psicandlise, se a funcagao de sociedades indepen- dentes da Internacional de Psicandlise constituiu-se em um fator iniditgao = 13 positivo ao revelar a rigidez ¢ 0 envelhecimento dessa instituigde, a fragmentagio que se seguiu, no caso do movimento lacaniano, redundou em um fechamento de cada grupo em si mesmo, ma dogmatizagao € na auséncia de uma discugsio produtiva entre es- ses grupos ¢ cate eles ¢ aqueles filiados 4 IPA. O isolamento condug a esterilidade, pois limita os questionamentos, cristalizan- de coneepedes que passam a compor um quadro de crenga, em relagio ao qual resta apenas a possibilidade de adesiio. Como afir- ma Bourguignon, “a longo prazo as palavras sao tomadas pelas coisas ¢ jd ndo conseguinios perceber claramente com que realida- des estio relacionadas” (Bourguignon, 1991:11). Além disso, a crise da psicandlise se mostra ne fechamento dos psicanalistas — sejam eles de que escola forem, ortodoxos ou nao — em sua teoria e em sua pratica, desconhecendo a preaoupacie de Freud e de Lacan com a insergie da psicandlise na discussao mais ampla do mal-estar na cultura, onde ¢la se defrenta com outros saberes." O nosso “mal-estar™ Cultura é hoje, o da diluigdo das certezas, da dispersiio dos valores, da decadéncia de ema determi- nada ordem. A discussdéo dessas questoes em um terreno onde se cruzam diferentes campos do saber ganha, portanto, uma imper- tancia renovada. Apesar das “especializagGes” que a razao moder- na trouxe, que culminaram no encerramento de cada disciplina em si mesma, a antropologia e a psicanilise, desde a publicagao de Totem ¢ tabu (Freud, (1913) 1976), estabeleceram um campo Co- mum de discussio, nio sé em torne das formulagdes de Freud na chamada “antrepologia Freudiana”, mas também das apropriagdes da teoria psicanalitica por parte da antropologia, Come observa Capranzano (1992:137), muites antrepdlogos tém side ambivalen- tes em relagdo a psicandlise, chegando alguns a rejeitar sua utili- dade tedrica para a antropologia, por considerd-la uma cultura psicoldgica especffica, fundada em um universalismo reducionisia. Ainda assim, outros, como os “antropdlogos psicanalistas”, toma- ram as explicagdes psicanaliticas, com a devida adequagae, como se formecegsem a chave da compreensao etnogrifica. De fato, importa que 0 campo de debate foi aberto, tendo se desenvolvido em diversas diregGes, como procurarei mostrar no primeiro capi- tulo, A proposta deste fivro é a de retomar esse debate, no no sentido da aplicagao da rede de conhecimentos da antropologia sobre a psicanilise, ou vice-versa, mas como um didloge proficuo em tosno do estudo da proposta de Lacan para uma éhea da psi- 14 tive ola diferencer candlise, Através desse didlogo pretende-se inserit tanto a antropo- Jogia quanto a psicandlise no debate mais amplo que se trava atualmente sobre a ética, A intengdo é mostrar nio apenas o que a psicanalise tem a dizer sobre o tema da ética, como também indicar o papel que a antropologia pode ter — por sta propria especificidade como disciplina que estuda as diferencas vividas pelos homens como seres sociais — na formulagao de uma ética da diferenga. Lacan desenvelveu sua obra sob o Signo de um “retorno a Freud", ao rigor da letra freudiana, Por oposigao a uma con- cep¢ao adaptativa da psicandlise que retirava da teoria freudiana seu cardter subversivo, Reafirmou em intimeras ocasides sua fidelidade a Freud, ainda que hoje se reconheca o quanto de originalidade ha em sua contribuicao, Em relagdo ao conceito de inconsciente, colocou em evidéncia a formulacio freudiana a respeito da ptimazia deste sobre a conscigneia, uma vez queo inconsciente “...ndo deixa nenhuma de nossas agdes fora de seu campo” (Lacan, 1966:514), por oposigio a uma concepeag que The confere © estatuto de negativo das representagdes conscientes. Alguns autores, entretanto, consideram gue ele renovou esse con- ceilo, ao articuld-lo A linguagem, onde se observa a influéncia da lingilistica e também da antropologia de Lévi-Strauss. Nesse sen lido, o inconsciente freudiano apenas prefiguraria © inconsciente lacaniana* Na leitura que faz de Freud, Lacan procura extrair o conceito de inconsciente das formas que o precederam, ¢ que ainda 0 cer- cam, pelas interpretagdes diversas que a obra do mestre suscitou, distinguindo-o do inconsciente romintico da imaginagao, assim como daquele dos contetidos profundos. Em sua concepcio, o incousciznte n&o se constitui como uma realidade profunda em telagio 4 qual a psicandlise se situaria como uma hermendutica, ou como uma forma de auto-reflexdio que traria @ tona, isto é, 3 cons- ciéneia, os seus contetidos. Como afirma, por ocasiiio do cente- nario do nascimento de Freud, em 6 de maio de 1956, a descoberta da psicandlise consiste em reintegrat ao universo da ciéneia o campo do sentido, mostrando sua supremacia na orientagio das agdes humanas, A originalidade de Freud, para Lacan, reside no fato de que ele se prende ao /iteral, ao discurso tal como ge da, pois é nele mesmo que alguma outra coisa fala, indicando o desejo. Em suas palavras: Intvodiugaa 15 “A otiginalidede de Freud, que desconcerta nosso senti- mento, mas por si sé permite compreender o efvito de sua obra, € 0 recurso ao Hteral. Eo sal da descoberta frendiana ¢ da pratica analitica. Se nde restasse fundamentalmente alguma coisa disso, hd muito tempo que da psicandlise nao restaria mais nada, Tudo decorre disso. Qual é esse outro que fala no sujeito, e de que o sujeito nao é nem mestre, nem semelhante, qual é outro que fala nele? Tudo esta af” (Lacan, (1956)1985b:272-273). Para Lacan, o inconsciente manifesta-se fenomenicamente enquanto descontinuidade, sob a forma de um tropego, no sonho, tia ato falho, no chiste. Essa descontinuidade evidencia uma fen- da, uma ruptura, um trago de abertura que faz surgir a auséncia, aso Como uma anterioridade misteriosa, mas inscrita por esse pré- prio trago, Como diz, “...0 grito nao se perfila sobre fundo de siléncio, mas, ao contrério, o faz surgir como siléncio” (Lacan, (1964)1979:31). No lugar onde se produz essa hidncia, no “umbi- no do sonho”, Lacan introduz a lei do significante, utilizando um artefato conccitual nao disponivel na époea de Freud. Em sua leitura, o que Freud apresenta. na Interpretag&a des sonhos sia jogos de significantes; neles Lacan embasa sua afirmagio de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, Ao mesino tempo, a nogio de inconsciente é, para Lacan, vorrelata i nogae de sujeito — sujeito do inconsciente —, o que ‘rend nao explicita, Esse sujeito, como observa Miller, “aio é uma alma, nao é um eu, ndo é uma forma, ¢ no é uma natureza hu- mana™ (Miller, 1989:11), O desenvolvimento da teoria lacaniana, ainda que centrado em uma linha mestra, njo €, contudo, uniforme, podendo-se per- veber um movimento em relagao ac sentido que atribui a determi- nados conceitos basicos, E o préprio Miller (ap. cirsl1) quem aficma que, “... contrariamente ao que se pensa, Lacan nem sempre disse a mesma coisa, inclusive se contradisse 4 voatade”, o que confere & sua obra um cariter ndo dogmdatico que muitos “lacanianos” nao apreenderam, Et relagio ao conceito de simbélico, que ocupa um lugar ventral em sua teoria, podemos distinguir trés momentos sucessi- vos onde o sentido se altera, jf que a énfase recai em pontos diferentes, No primeiro deles, é a dititensdo intersubjetiva da pa- 1G a dnew du diferenger lavra que se destaca, como meio de reconhecimento do desejo, pela sua realizag3o simbélica. E através da “palavra plena” que o desejo pade ser integrado ao universo da significagao, tal como € formulado, em 1953, no discurso de Roma, intitulado “Pungie campo da palavra ¢ da linguagem em psicanilise” (Lacan, 1978b; 101-187). Pode-se pensar, com Zizek (1991:76), que nesta fase predomina uma concepgio fenomencidgica da linguagem, onde a ordem da palavra é identificada da significagio. No momento seguinte, expresso no “Seupindrio sobre A carta roubada’’ (Lacan, (1955) 1978c:17-67), a énfase recai sobre a fingua e a ordem significante & vista como uma estrrtura feckada — a maquina da linguagem — que funciona segundo um automatismo cego, aa qual © sujeito ¢sté inteiramente “assujeitado”. Esta seria a fase mais estruturalista de Lacan, onde o simbdélico é concebido sincro- nicamente. como uma ordem diferencial que regula a ordem diacrénica da palavra. No terceiro momento, nao mais se trata da palavra que remete a uma sigaificagio ou da lingua como uma estrutura completa, mas da cadeia significante que se articula a partir de um fura, de um nticleo ndo-simbolizdvel, real. O simbo- lico é pensado como nio totalizdvel, na medida em que todo sen- tido carrega em si um nao-senso — 0 que indica a impossibilidade constitutiva de um saber pleno.’ A Enfase aqui recai no real, como dimensio radical do significante, onde se manifesta essa impossi- bilidade. O sujeito nao esta mais inteiramente assujeitade & cadcia significante, inscrevendo-se ness¢ lugar de falta, onde stge © desejo. Nao é apenas o sujeito do sentido, mas também uma “resposta do real”. Essa breve exposigie dos diferentes modes de tratamento do simbélico, no desenvolvimento da obra de Lacan, nao tem por objetivo tragar uma cronologia ou fazer uma deserigio da evo- luglio do pensamento do autor. Trata-se apenas de procurar siluar, no interior da sua obra, as concepgGes que nortelam a abordagem da quest3o ética, Para ele, a ética da psicandlise, como uma étiea do desejo, articula-se com referéncia ad real — esse niicleo impossivel de simbolizar — onde localiza a causa do desejo. Insereve-s¢, portanto, no terecira momento, em que o simbdlico é concebido como nao-todo, pertador de uma falta, uma vez que nfo ha significante dltimo que garanta 0 jogo significante ou, na sua formulagio, na medida em que o Outro ¢ barrado e nfo hd Outro do Outro.* introdugae 17 Ao centrarmos o estudo sobre o tema da ética, estabelecemos um recorte na obra de Lacan, tomando coma referéncia principal © seminirio que realizou, de fins de 1959 a meados de 1960, sobre A ética da psicandiise (Lacan, 1988). Nao se pretende, entretanto, levar a efeito uma interpretagao exanstiva desse texto, mas desta- car os prineipais pontes de sua argumentagdo, no sentido de esta- belecer um didlogo com a antropologia ¢ com algumas correntes do pensamente contemporanee que participam do debate atual sobre a étea. A andlise das concepedes de Freud sobre o tema serd feita de uma maneira sintética, dado que o objetivo principal é situar algumas quest6es que Lacan vai desenvolver e, também, assinalar algumas diferengas. O risco da escalha desse procedimento é o do reducionismo. Mas, como lembra Bourguignon (op. eft.:119), maior reducionismo ¢ o que prope o discurso que pretende dar conta das questées relevantes a partir, unicamente, do seu proprio ponto de vista, Acredito que tal escolha sé justifica como uma tentativa de articular a psicandlise a outros campos do saber, no contexto de um debate mais amplo sobre a ética. NOTAS . Ch a andlise que Christopher Lasch (1983 e 1986) faz da sociedade ame- ricana. Slayo) Zizek situa a “razde cinica’, a partir de livro de Peter Sloterdijk. Critica da razao cinica (1983), como uma manifestagde da ideologia, onde uma certa “ingenuidade™ constitutive da ideologia em seu sentido tradici- onal nao existe mais. Enquanto a nogio de idcologia. tal como Marx a define, supe um desconhecimento das suas pressuposigGes, uma vez que 6 “Sell proprio eonceito implica uma distincia entre 9 que efetivamente se foz ¢ a ‘falsa consciéneia” que se tem disso, (...) 4 razio efnisa jd nao é& ingénua, ¢o paradoxa de uma ‘faisa consciéncia esclarecida’(...) A formula da ‘razfo cfnica’ seria ‘eles sabem muito bem o que estao fazendo, mas mesmo assim o fazem’™” (Zirek, 1992:59). 3, Para uma andlise dessa quest@o ver Louis Dumont (1983) ¢ Otavio Velho (1991 ¢ 1992), 4. Para uma andlise dessa quesido ver André Bourguignon (1991) e Octavio Souza (1988). 5. Para uma andlise dessa questo ver Jacques-Alain Miller (1989) Bourguignon (ap. cit). 6, Para uma andlise mais detalhada desses és momentos, ver Slavoj Zizek (1991), 18 a ética da diferenga 7. A respeito das diferentes concepgoes de sujeito que Lacan apresenta ne decorrer de sua obra, ver Miller (op, cit.:8-12). Nesse texto, 9 autor comen- ta. afirmago feita por Lacan em 1972 - “O discurso analitico diz respeito a0 sujeito que, como efeito de significagao, é resposta do real" — mostran- do que nfo foi desta maneira que Lacan, anos antes, introduziu 0 sujelito em psicandiise. Pelo contréso, foi come sujeito do sentido, : 8. No Semindrio if Lacan intreduz a nogao de grande Outro, come a dimen- sho da alteridade inteiramente remetida a0 simbdlico, 4 linguagem, distin guindo-o do pequeno outro, enquanto semelhante, gue se identifica a0 eu. ‘Ao longo de sua obra, ele vai mostrar que esse Outro é barrade, que o simbdlico ndo se totsliza, 0 que € indicado pela nogao de Real. CAPITULO I Psicandlise e antropologia: um debate classico No debate que antropologia ¢ psicandlise travam hi quase um éculo podé-se perceber a existéncia de apropriagdes € festiliza- des recipracas. assim como de mal-entendices, incompatibilida- des e conflitos. Niio reconstruirei aqui a histéria desse debate, mas ressaltarei apenas alguns pontos importantes que permitam situar melhor, nao sé a questdo que serd objeto deste trabalho, come também o ponto de vista adotado, Sao definigdes prévias, necessarias, que nao se constituem, todavia, em “camisas-de-forga”, e que podem ¢ devem ser alteradas pela propria dindmica da discussiio. Para tanto, toma- rei como base alguns trabalhos que tratam mais exaustivamente das relagSes entre antrepologia e¢ psicandlise, tais como “Totens € tabus nas relagdes_ antropologia/psicandlise ov O sentido do retor- no a Malinowski” (Musumeci, 1991), “Freud ¢ a imaginagao secio- \6gica moderna” (Duarte, 1989} ¢ “Anthropologie et psychanalyse: ‘paix et guerre’ entre les hermeneutiques” (Pulman, 1984), além de outras referéncias Niio poderia comecar a abordar esse debate sem citar Michel Foucault que, em seu belo livre As palavras e as coisas — uma arqueolagia das ciéncias humanas, afirma o parentesco entte an- tropologia € psicandlise, a partir da posigéo que ooupam e€ da fungado que exercem no espaco geral da episteme. “A psicandlise e a ctnologia ocupam no nosso saber um lugar privilegiado. Nao decerto porque teriam, melhor do que qualquer eutra ci@ncia humana, assente a sua positi- vidade e realizado, enfim, o velo projeto de serem ver- dadeiramente clentificas; antes. porque, nos confins de todos os conhecimentos sobre o homem, formam por certo 19 20 a dtiew das dierengar um perpétuo principio de inquictude, de retificagao, de erftica, de contestacgio do que porventura pode ter pare- cido, por outro lado. definitivamente adguinido”, Ou ainda: “Em relagio as ciéncias humanas, a psicandlise ¢ a etnologia sfio antes ‘contra-ciéncias’, 9 que nao quer dizer que sejam menos ‘racionais’ ou ‘objetivas’ do que as outras cifncias, mas sim que as abordam contra a corrente, reconduzindo- as A sua base epistemolégica, e que nfo cessam de ‘desfa- zer’ esse homem que nas ciéncias humanas faz e refaz a sua positividade” (Foucault, 1966:485, 492). Ampbas tributiirias de um tempo em que “co homem se constitui na cultura ocidental ao mesmo tempo como o que € nécessario pensar eo que hd a saber” (Foucault, 1966:448), elas operam, cada qual a sua maneira, uma espécie de deseentramento, percorrendo territérios impensados ¢ abalando os pilares da racionalidade oci- dental moderna, A psicandlise, no seio desta racionalidade mesma, através da nogao de inconsciente, atinge as certezas do sujeito. A etnologia, com o desvendamente de outras racionalidades, coloca em cheque os valores e prineipios ordenadores da cultura ociden- tal, O combate ao etnocentrismo ¢ a critica d psicologia da cans- ciéncia situam, portanto, antropologia e psicandlise em posigdes andlogas no espago geral do saber moderno, Entretanto, nem s6 de parentescos, vizinhangas ¢ identidades de lugar vive antropologia ¢ psicandlise. Como afirma Pulman, talvez seja justamente esta proximidade topografica no espaco do saber o que as tém afastado, contribuindo para o surgimento de relacGes de conflito (Pulman, op. cit.). Desde a publicacdéo de Torem e raby em 1913, as criticas de antropdlogos e outros cientistas sociais se sucedem, seja pela acu- sagio de utilizagio, por parte de Freud, de tearias etnolégicas equivocadas, como na resenha eserita por Alfred Kroeberem 1920’, s¢ja na critica bastante conhecida de Bronislaw Malinowski a universalidade do complexo de Edipo. Embora alguns psicanalistas tenham participado ativamente da polémica, como Ernest Jones, que em 1925 resporide a Malinowski, ou Geza Roheim, com a critica aos culturalistas norte-americanos*, psivandlise e aniropologia: um debuie céssivo 21 Hreud ignorou as contestagées afirmando em Moisés e 0 mono- tetsmo: “Repetidamente defrontei-me com violentas ceasuras por nao ter alterado minhas opinides em edigdes posteriores de meus livros, apesar do fato de etndlogos mais recentes terem unanimemente refutado as hipdteses de Robertson Smith e em parte apresentado outras teorias, totalmente divergentes. Posso dizer em resposta que esses avangos ostensives me so bem conhecidos. Mas no fui conven- cide quer da corregao dessas inovagdes, quer dos erres de Robertson Smith. Uma negagdo nfo € uma refutagio, uma inevagdo nde € necessariamente um avango, Acima de tudo, porém, nado sou etndélogo, mas psicanalista. Te- nho o direito de extrair da literatura etnoldgica, o que possa necessilar para o trabalho de andlise’”’ (Freud, (1939) 1976:15 5-6), Com isto, ele reconhece as fronteiras interdisciplinares ¢ se exime de considerar as objegdes, em nome de uma transposigno de limites exclusivamente a partir de interesses do seu préprio campo — a psicanilise, Entretanto, isto nao foi suficiente para encerrar o debate, pois ainda hoje alguns se preocupam com a possibilidade de que a fragilidade das hipcteses etmoldgicas de Freud afetem a psicanilise,* Quanto a Malinowski, se as consideragdes de Jones, que atri- buia a suposta auséncia do complexo de Edipo entre os trobriandeses 4 existéncia de formagGes de defesa em relagdo a uma posigdo edipiana primdria, nado conseguiram dar um termo i questi, hoje & praticamente consenso, em ambos os lados, a fragilidade das objeedes de Malinowski, Atendo-se aos comportamentos ¢ discur- sos manifestos, cle ignorou o nivel estrutural da proposta de Freud. Como assinala Mezan, “Seu instrumento essencial, 0 conceito de “atjtude”, é um construto fumcionalista gue nada tem a ver com o nivel inconsciente em que se situa Freud’ (Mezan, 1985:343). Quanto a Freud, por sua vez, é também relativamente con- sensual que suas hipdteses histéricas ¢ etnolégicas, tomadas en- quanto tais, sao inaceitiveis, 2 a ética da diferenga De qualquer forma, a critica 4 centralidade e universalidade do Edipo alimentou por muito tempo o debate antropologia/psica- nélise, que girou e ainda gira em grande parte, em torno do eixo “velativisrno/universalismo” (Musumeci, op. cit.:223). De um lado, ‘os antropdlogos, em nome do relativismo cultural, pondo em ques- tio determinados pressupostos da teona psicanalitica, acusando-a de etnocentrismo ¢ limitando seu campo de validade ao homem ovidental modemo. De outro, os psicanalistas denunciando as re- sist&ncias, os mal-entendidos, o desconhecimento do texto freudiano ec de seus conceitos bdsicos como inconsciente, recaleamento e& fantasia, No que dia respeito 4 antropologia cultural americana, que tentou estabelecer um didloge mais pradutive com a psicandlise, 0 que ela demonstea, segundo Pulman, é uma profunda denegagao da descoberta freudiana do inconsciente. “De uma maneira geral, a teflexdio de Margaret Mead manter-sé-4 muito longe do pensamento freudiano cuja jnfluéncia permanece difusa ¢ se faz sentir mais pela emergéncia de novas temdtioas, tal como o estudo da infincia ¢ da educagio, do que por um conhecimento verdadeiro da metodologia e da teoria psicanalitica. Os quadros de pensamento de Margaret Mead permanecem, enfim, aqueles de uma psicologia classica” (Pulman, op. cit.). Qs culturalistas manterao uma proximidade considerivel da chamada “psicandlise norte-americana™ que, a despeito de suas diferengas internas, tem como denominador comum a centralidade da nogao de ego, enquanto individuo e a tentativa de adaptar os principios do tratamento a comportamentos sociais ou a caracteres psicoldgicos. Tanto em Margaret Mead, como no conjunto dos culturalistas americanos, a énfase nas diferengas ¢ especificidades culturais implica na reeusa de quaisquer leorias que invoquem mecanismos universais subjacentes aos comportamentos humanos. Mais recentemente, 0 debate antropologia/psicandlise vem se nutrindo por estudos antropolégicos que focalizam a psicandlise a partir da disoussao da nogio de individuo. Vinculados predominan- temente A tradig¢Za da escola sociolégica francesa, especialmente psicandlise.¢ artropologiu: wn debate clissivo 23 aos estudos de Marcel Mauss® sobre a nogio de pessou, esta linha de abordagem fundamenta-se nos trabalhos de Louis Dumont’, que relativizam a nocio de indivfduo, enfocando-o como produto par- ticular da cultura ocidental moderna, Tais estudos inserem-se no conjunto de andlises “telescopizadoras”? da psicandlise que, em Ultima instancia, tanto quanto as relativizagdes culturalistas, a acu- sarao de etnocentrismo. Estas andlises, nao apenas antropoldgicas, mas também socio- ldgicas, caracterizam-se por tratar a psicandlise como um “ fendmeno social entre outros ¢ no como um sistema de saber parceiro ou contendor, [tomando] como moni- festagées do mesmo fendmene tudo aquilo que, no ima- ginario das ciéncias sociais, se considerou como senda Psicandlise, expressio ou heranca de um pensamento ori- ginado na obra de Freud” (Duarte, op. cit,:207-213). Deste ponto de vista’, o discurso freudiano é suas extensGes sin tomados como comprometidos “explicita e univocamente™ com © universo simbdlico do individualismo ou mais radicalmente com a ideologia individualista, E & dicotomia individuo x sociedade que se di proeminéncia, onde a psicandlise é enfocada com um misto de interesse e critica, Nas palavras de Duarte, “Freud (...) ocupa-se.do que muito estranhamente repre- sentamos come aposto ao social, residuo e limite do nosso saber. E ocupa-se, além do mais, de um modo que nao se deixa reduzir facilmente a um modelo positivista de cién- cia, ameagando com freqiiéneia confundir-se com uma religido —- ¢ monoteista ainda por cima’? (Duarte, ap. cit.:206). Alguns autores, contudo, vao estabelecer nuangas quanto ao enquadramento da teoria psicanalitica nos parametros do indivi- dualismo modemo. Eo caso de Figueira quando afirma que, ape- sar da psicandlise ser filha do universo individualista, ela nfo se reduz a esses parimetros, uma vez que “a ideologia individwalista nio penetra a teoria psicanalitica e nem tampouco a teoria da técnica, que em nenhum momento apde individuo & sociedade de modo ingénuo” (Figueira, ap. cit.:159). 2 «diva da diferencu A sua anélise encaminha-se no sentido de pensar a psicandlise como fruto do individualismo alemao, que abordaria 9 homem simultaneamente como individuo e ser social. Freud, portante, ope- raria “pela captura de um universal que sé existe nas formas par- ticulares que sao os individuos particulares™ (Figueira, op. cin: 162). Apesar dessas consideragGes, o laco entre individuo e psica- nalise continua sendo afirmado, “malgrado o descentramento do sujeito que teria sido reiterado pela leitura lacaniana’. Esta ultima referéncia — 4 leitura lacaniana da obra de Freud — chama a ateng&o para um aspecto do debate ainda nfo tratado: a confluéncia das abordagens de Claude Lévi-Strauss ¢ Jacques Lacan. & no dmbito do estruturalismo francés, onde Lévi-Strauss estabelece noves parametros para a etnologia a partir do tecurse A lingtiistica, que Lacan vai estabelecer com a antropoiogia um did- logo produtive, Fundamentalmente, em terne da afirmagdo da universalidade da fungdo simbdlica, que se manifesta tanto no nivel da sociedade quanio do psiquismo. Pede-se dizer, como fazem alguns, que, na antropologia, 0 perfodo de ascensdo e afirmagao da obra de Lévi-Strauss corresponde a um “eclipse parcial dos rela+ tivismos” (Soares, [990:7). A “troca simbdlica” entre ambos toi bastante grande, embara tenha sido principalmente o psicanalista que demonstrou uma di- vida constante para com 0 antropdélogo, reverenciando-o de diver- Sas formas, apesar das divergéncias.’ Da parte de Lévi-Strauss, ainda gue haja algumas referéncias a Lacan na sua obra, observou- se alguma feserva quanto a figura do psicanalista, expressa num misto de admiragao e espanio.'? E neste “nove regime” (Duarte, ap. cit.) de interagdo entre as duas disciplinas que é possivel entender as palavras de Foucault, ao apresentar tanto a etnologia quanto a psicandlise come “cién- cias do inconsciente”, A articulacao entre elas nao se di no nivel das relagdes, de complementaridade ou de oposipao, entre indivi- duo e sociedade. “Nao € porque 9 individue fax parte de seu grupo, niio é porque uma cultura se reflete ¢ se exprime de uma maneira mais ou menos refratada no individuo, que essas duas for- mas de saber sao vizinhas. Elas s6 tem, a bem dizer, um ponto em comm, mas que é essencial e inevitavel: é aque- psicandlise e antopalagia: am debate cldssica 25 le em que elas se cruzam perpendicularmente: porque a cadeia significante por meio da qual se constitui a expe- rigncia tinica do individuo é perpendicular ao sistema for- mal a partir do qual se constituem as significagdes de uma cultura” (Foucault, op. cit.:493-4) (grifo meu). A interpretagdo dada por Lévi-Strauss ao “mito cientifico” freudiano de orem e tabu, na obra Estruturas elementares da parentesco, de 1947, onde a critica 4 validade. histérica da hipdtese de Freud nao impede o reconhecimento da sua importdncia en- quanto mito, marcou a lertura de Latan. Convém lembrar que uma interpretagde puramente metafdrica do texto de Freud ja havia sido proposta por Kroeber em 1939, como atesta a referéncia de Lévi- Strauss a seu trabalho, Totem and Taboo in Retrospect", quando afirma: “0 gue é apresentado, com tio grande forga draméatica, por Totent ¢ tabu, admite duas interpretagdes. desejo da mae ou da ima, o assassinato do pai © o arrependi- mento dos filhos, nao correspondem, sem diivida, a qual- quer fato, ou conjunto de fatos, que ocupam na histéria um lugar definido, Mas traduzem, talvez, em forma sim- bélica, um sonho ao mesmo tempo duradouro e antigo” (Lévi-Strauss, (1947) 1976:532). A interpretacao psicanalftica mais atual de Totem ¢ tabu, o vé como uma invengiio de Freud, o mito freudiano da origem da Lei e da civilizacdo. Lei da castragaio, de instauracie do simbélico, com referEncia a este “fora-da-lei” que € 0 pai primevo. E em tomo do “pai morte” enquanto “pai simbélico” que Lacan vai tecer a sta leitura do texto freudiano. O aparecimento do signifi- cante do Pai, enquanto autor da Lei, esta ligado A morte — o assassinaio do pai — e “...esta morte ¢ o momento fecunde da divida por onde o sujeito se liga i vida e & Lei” (Lacan, 1971:72). No pensamento de Lacan, portanto, hd uma “dessubstanciali- zagao” da hipdtese freudiana, o “assassinato” sendo compreendido. de forma simbdlica. Em semindzio mais recente — © avesso da psicandlise — ele explicita sua critica a Freud por ter se apegado ao cardter cientifico do mito € 4 veracidade histérica dos fatos que descreveu, mesmo em nome da psicanilise.!' Qe wetlen da diferenga Da mesma maneira, o Edipo é dessubstancializado na leitura lacaniana, importando destacar a estrutura stmbdlica triangular que esta na base do desejo humano, sejam quais forem os contetidos culturais que ela possa assumir. O ponto chave dessa estrutura é a impossibilidade de satisfagfio completa que caracteriza o desejo, expresso na presenga de uma instancia de interdigio que barra o accesso A satisfagao c liga o desejo a Lei. O complexo de Edipo esté judissoluvelmente vinculade ag complexo de castragio, sendo apenas, como afirma Moustapha Safouan, “wna forma cultural entre outras, que slo igualmente possfveis, contanto que cumpram a mesma fungdo, que é a promogao da fungda da castragdo no psiquismo” (Safouan, (1974) 1979:128), Esta afirmagao, feita em um trabalho intitulado “Seri o Edipo Universal?”, vem corroberar a hipdtese de estudigsos do debate Antropologia/Psicandlise de que a objecio malinowiskiana continua a surlir seus efeitos, tendo exercido um papel importante na. relattvizagiio do Edipo c na sua desubstancializagio como forma de manter a sua universalidade,"* Entretanto, é preciso qualificar melhor esta afinmagio: nao se trata apenas de. por um artificio, reafirmar a mesma posigao, mas de formular a questio em novas bases. Para Lacan, esta universalidade decorre da fungao simbdlica, © qué nao significa que seja necessino espalhar-se pela superficie da terra inteira para ser universal. Ele distingue o universal do genérico, afirmando que “no ha nada que faca a unidade mundial dos seres humanos” (Lacan, (1954-55) 1985a:49}. Todavia, qual- quer sistema simbélico que se constitui é, enquanto tal, universal, O que esté em jogo. portanto, 6 a universalidade da funcde sim- bélica € nie dos contelidos que os diversos sistemas podem apre- sentar. Diz ele neste mesmo semindric: “ ... 0 complexo de Edipo é, a0 mesmo tempo, universal e contingente, porque é tinica e puramente simbdlico” (Lacan, op. cir.:49). Seguindo ainda os passos de Lévi-Strauss, que nas Estrutras elementares afirma a inexisténcia de comportamento natural do homem — uma vez que é justamente nesta falta que vém se ins- talar os sistemas culturais (Lévi-Strauss, op. cét:43) --, Lacan enfatiza o ¢ariiter contingencial das formagées simbdélicas, recu- sando qualquer tentativa de fazer do simbélico a nossa natureza. Segundo ele, esta é¢ também uma preecupagio de Lévi-Strauss, que nao deseja que, por sob a autonomia do registro simbslico, ressutja Deus (Lacan, 1954-55 op. cit.:52). psicundlise © antropolegia um debute exissica 27 Postetiormente, vai considerar o complexe de Edipo como um senho de Freud, do qual os analistas — que devem “se des- prender um pouquinko do plano do sonho” (Lacan, (1969-70) 1992:120) — ainda nfo extrafram tudo que podiam. Articulando- aa mito de Torem e tabu, vé surgir, na relagio entre o Pai morta © 0 Gozo, para além do Edipo, 0 Real enquanto impossivel, cate- goria que tera um lugar central na parte final de sua obra. E do Pai morto, que tem © gozo sob sua guarda, que parte a interdigdo desse gozo total, impossivel. “Que o pai morto seja o gozo, isto se apresenta a nds como o sinal do préprio impossivel. E é nisso mesmo que reeficontramoas aqui os termos que defini como aqueles que fixam a categoria do real, na medida em que ela se distingue radicalmente, no sentido que articulo, do sim- bédlico e do imaginaric — o real é o impossivel” (Lacan, (1969-70) ops. cit: 116), Para upreender a démarche de Lacan é fundamental conhecer a distingdo entre os trés registros qué compdeni a sua t6pica: Real, Simbdlico e Imaginério. O Real para ele nao é a realidade externa, material ou ndo, nem muite menos a realidade psiquica de Freud, constituida pela fantasia; o Real € 6 que subsiste a toda simboli- zacde, 6 o que sempre resta, © impassivel de siimbolizar. O Sim- bélico nao é a cultura — ¢ aqui ji se anuncia a sua diferenga em relegiio a Lévi-Strauss —- mas a rede significante. 9 conjunto dos significantes mareado pelo significante da falta de um significante que pudesse totalizi-lo. O imagindtio nao é a imaginagdo, mas o sistema dos significados ou das significacdes cristalizadas. Se pelo Simbélico Lacan se aproxima de Lévi-Strauss, guar- dadas as diferengas, pois, para Lacan, o Simbdlico é o lugar da cultura mas ndo se resume a ela, € pela conceituagio do Real que eles claramente se afastam, ainda que em alguns momentos da obra de Lévi-Strauss observe-se uma indicacio dessa fenda, real, Por exemplo, quando ele afirma, na “Intredugao 4 Obra de Marcel Mauss” (Lévi-Strauss Jn: Mauss, 1974), que nenhuma sociedade € integralmente simbolica, ou quando descnvolve a nogao de “signi- ficante flutuante”, a partir do “mana” de Mauss, Quanto a este tiltime, procurou ele ver, em nogdes como a de “mana”, o simbolo em estado puro, suscetivel de se revestir de qualquer contetido 28 a ética da diferenga simbélica, o que iria [he conferir, no sistema de simbolos, um “valor simbdlico zero” (Lévi-Strauss, op. cit.:35). Esta nogao po- deria se aproximar do conceito de real para Lacan, como dimensio radical do significante, Lévi-Strauss chega a dizer que o “'signifi- cante flatuante” é“... a garantia de toda a arte, de toda poesia, de toda invengdo mitica e estética”, mas supGe que o conhecimento ¢ientifico seria capaz, “... sendo de estancd-lo, pelo menos de disciplina-lo parcialmente” (Lévi-Strauss, op, cit34). Essa suposi- gao jd o afasta da perspectiva de Lacan, que recusa uma aproxima- giao entre a nocao lévi-straussiana e 0 seu S(* ).* Diz ele: “Observeros portanto bem o que se opGe a que se con- fira a nosso significante SX) o sentido do Mana ou de qualquer de seus congéneres. E que nao saberemos nos contentar em articuld-la pela miséria do fate social, mes- mo se ele fosse acuado até num pretense fato total. Sem divida, Claude Lévi-Strauss, comentando Mauss, quis af reconhecer o efeito de um simbolo zero, Mas é antes do significante da falta desse simbolo zero que parece tratar- sé em nosso caso” (Lacan, (1960) 1978e:304), E principalmente ao compararmos a nogio de inconsciente nos dois autores que a distincia entre cles se estabelece mais cla- ramente, Para Lévi-Strauss o inconsciente ¢ totalmente recoberto pela fungie simbélica, resumindo-se ao conjunto de leis que re- gem esta funcio (Lévi-Strauss, 1970:223). Nesse sentido, é ecognoscivel, por meio de um processo de abjetivagao. Ja para Lacan, o inconsciente freudiano, ainda que estruturade como uma liaguagem nas suas formagdes, é marcado por uma hidneia, uma fenda, algo de “nie-nascido”, real, impossivel de simbolizar, da ordem do “niio-realizado”, No semindrio sobre Os quatro concei- tos fundamentais da psicandlise, de 1964, ele afirma: “...0 que & propriamente da ordem do inconsciente — é que ele nao é nem ser nem nio-ser, mas é algo de nao-realizado” (Lacan, (1964) 1979-34). FE em tome desta fenda, real, que se tece a trama das repre- sentagdes, da Vorsreliung freudiana e do significante lacaniano, segundo certas leis. Ha, portanto. uma diferenga de concepgao, O inconsciente lévi-straussiano € mais um incensciente kantiano, eategorial, combinatério, como afirma Ricoeur." Sistema categorial sem referéncia a um sujelto, o que aprofunda a distingdo em rela- potcanitive © anrropalogia: wn debate clissies — 29 gio.a Lacan. Para cste: ““o inconsciente se manifesta sempre como. o que vacila num corte do sujeite —- donde ressurge um achado. que Freud assimila ao cesejo” (Lacan, (1964) op. cir.:32). A presenga de uma “teoria do sujeito” no pensamento lacaniano —“sujeito do inconsciente” —, vai afasta-lo de Lévi-Strauss e dos demais participantes do movimento estruturalista que tendiam a subsumir © conceito de sujeita ao conceito de estrutura. Em o Peasemento selvagem (1970), Lévi-Strauss prescinde desta fungio ao expor a sua concepeao de sistema classificatério primario. Mes- mo incorporande as afirmagdes de Lévi-Strauss sobre a ordem simbdlica, Lacan indaga se elas sao suficientes para pensar o in- consciente frendiano que comporta o desejo 6, nesse sentido, o sujeito (Lacan, (1964) ap. cit.:20). © préprio Foucault, no imbito do estruturalismo, vé nas for- mulagdes de Lacan uma proposta de explosio do sujeito, o que, no entanto, nic coincide com as afitrmagdes deste, Ressaltando a importancia de uma ordem de determinacio estruturalista da exis- téncia humana, ele imputa ao pensamento lacaniano duas conse- qiiéncias: “o esvaziamento do sujeito e uma concepgae de indivi- duo como né numa rede, come pura encruzilhada de influéncias” (Ogilvie, 1988:45), A isto Lacan responde que: “\estruturalismo ou nae, niio se trata absolutamente (...) da negagio do sujeito. Trata-se da dependéncia do sujeito com referencia a alguma coisa de verdadeiramente ¢ele- mentar, € que tentamos isolar sob o termo de ‘significan- 7 O termo “sujeito” é pouco encontrado na obra freudinna, B, entretanta, sob o signe de seu retorno a Freud, ao rigor da desco- berta frendiana do inconsciente, que Lacan propde uma teoria do sujeito do inconsciente, por mais paradoxal que isto possa parecer. Para Lacan, como para muitos, a psicandlise nfo seria possivel sem a filosofia cartesiana do Cogito que, no séc. XVII, posterior- thente &s reflexSes de Galileu, funda a ciéncia moderna. Mas o que Freud vem mostrar com a descoberta do inconsciente é que o sujeito da consciéncia, tio caro aos fildsofos, “nao é mais senhor em sua casa". O ew é a sede das resisténcias e fonte de desconhe- cimento. O sujeito cartesiano nao tem mais a autonomia a ele atribuida. Freud desvia o estatuto do sujeito cartesiano que pensa, BO étiow due difeienga demonstrando, pela andlise dos sonhos — “‘a via régia de acesso ao inconsciente” —, gue este sujeito € pensado. A novidade de Frend, segundo Lacan, esti no fato de que ele indica que é no campo do sonho que o sujcito esté em casa. Wo es war soll Ich werden. “Onde isso estava, o eu (como sujeito) deve advir.” (Lacan, (1964) ap, cit:A7), Tal é.o sentido que ele da A assertiva freudiana," Lacan miroduz uma distingio, no explicitada em Freud, entre o ego ¢ 0 en, entre um ego imagindrio e um sujeito de inconseten- te, aproveitando a distingfo da lingua francesa entre “wei” (ego) e “je” (eu), anteriormente explorada pelo gramatico Edouard Pichon. £ uma maneira de retomar a Freud, criticando os tedricos do ego que, baseados nas ambigilidades da segunda tépica freudiana, fa- zem do ego o centro de uma psicandlise adaptativa (Roudinesco, 1988:321). Ble retoma o coneeito freudiano de spaliung', numa outra acepeio, apontando para duas divisées: 1. entre o eu imagindrio ¢ o sujeito do inconsciente; 2. no interior do préprio sujeito, representando uma divisio origi- naria: a “refenda”. onde o sujeito dividido é representado de um significante para outro significante, Eo recurs 4 lingiiistica de Saussurre ¢ Jakobson que possi- bilita a Lacan reiventar o inconsciente freudiano e, pela convoca- ¢80 do sujeito cartesiano da diivida — “nfo sei o que sou” —, dotar este inconsciente de um sujeito dividido. No jugar do “eu penso” cartesiano ele coloca o “isso fala” freudjano, subvertendo a filosofia do Cogiro, No texto “A instncia da letra no inconseien- te ou a razdo desde Freud’, Lacan reconhece que desconcertou seus onvintes ao afirmar: “Penso onde nao sou, loge, sou onde nig penso” (Lacan, (1966) 1978d:248). O sujeito da psicanalise, portanto, para Lacan, é um sujeito descenttado", sujeito do inconsciente que se distingue do ew en- quanto insergie do individuo num sistema de comportamentes sociais. O sujeita do inconsciente desloca-se na cadeia significan- fe, que numa “outra cena” se repete é insiste. Por oposicio, o eu, pelas suas inércias imagindrias, opera justamente para acobertar esse deslocamento que ¢ o sujeito. Anogio de deslocamento na cadeia significante, onde o sujeito se representa de um significante para outro, traz implicita uma outta que, para Lacan, esta na base da sua constiluigaa: a nogao de alfenagdo.'* O sujeito, na sua dependéncia do significante, estd condenado a sé aparecer nesta divisio: “...se de um lado ele apa- pricantitise e antrpalogia: um debate clissico 31 rece como sentido produzide pelo significante, de outro cle apare- cé como afanise” (Lacan, (1964) op. ¢ff.:199). © termo de Jones — affinise — é utilizado em outro sentido, para deserever o desaparecimento do sujeito sob o significante, no momento de sua formacio.” Aparecimento/desaparecimento do sujeito, indicando que nenhum significante € capaz de representa- lo na sua integridade, justamente porque pSe-se em questiio a sua unicidade. O segundo movimento desse processo é o que Lacan designa como separacdo, onde o sujeito deseabre, no intervalo entre dois significantes, este ponto de falta onde. vige o desejo.! Alienacdo ¢ separacdo, operagSes simultineas, em que © sujeito se constitui como sentidd e como perda, como metdfora e metonimia. E pela metonimia — pelo deslocamento —. onde se situa © desejo, que o sujeito do inconsciente se afitma enquanto sujeito do desejo. E neste sujeito do desejo, dividido, barrado entre simbélico ¢ real, que sé pode localizar a castragao, A releitura que Lacan faz da obra freudiana articula 0 conceito de castragéo 4 estrutura da linguagem, onde a opacidade do significante indica a umpossibilt- dade de um gozo pleno. A divisio do sujeito, nesse sentido, pode ser melhor compreendida quando vinculada ao complexo de cas- tracio, isto é 4 interdigzio do goze pleno a todo falante. Coma afirma Rebert Geergin: “O homem é divércio, E ‘Spaltung” desde Freud. ‘Erostio de ser’ segunde Artaud. Ele é dividido entre consciente e inconsciente, entre a demanda que busca suprir a falta ¢ a satisfagdo que se subtrai, entre o descjo sem saida e o objeto que se dissipa” (Georgin, 1983:117). O sujeite do inconsciente, portant, distingue-se radicalmente do “sujeito psicoldgico”, da introspecgio e da conseiéncia, do sujeito livre da vontade. O “eu moderno”, autor e responsivel pelo seu pensamento ¢ pelos seu comportamentos, instaurador do sentido, é para Lacan © “sujeito parandico da civilizagao cientifies™ (Roudineseo, op. cit.:324). © inconsciente, como ja foi dito, nao é uma realidade onde estariam escondidas as suas fantasias, suas lendéneias ocultas. Nao se trata de nenhum contetido jd dado que marque pela profundida- de a subjetividade, Para Lacan, o inconsciente. como simbélico, é 32 drtea da diferengn uma exterioridade; como real, cle € 0 “nao-realizado”, cle se faz set, encontra-se numa zona que nao é do ser nem do nao-ser, zona de limbo, do v fi Retomando a discussdo com a antropologia, pode-se dizer que © inconsciente nfo se investiga a partir de seus contetdos, nao importando se o$ contetidos do inconseiente trobriandés sao iguais ou diferentes dos nossos. Outra questao, como lembra Miller, saber se tal cultura permite ou ndo o modo de palavra que a andlise autoriza” (Miller, 1989:14). Quanto a isso, Vincent Capranzano lemibra que ha, em outras culturas, terapias que podem ser consi- deradas, como a psicandlise, rafking cures, Ele se refere as confis- sides entre os esquimds, descritas por Rasmussen (1929), is terapi- as oniricas teatralizadas dos Iroqueses do séc. XVII (Wallace, 1958) € aos rites xamanisticos descritos por Lévi-Strauss (Capranzano, 1992:145). No que se refere ao debate com os cientistas sociais que véem na psicandlise um compromisso com o universo ideolégico do individualismo, parece-me que as consideracdes feitas acerca da leitura lacaniana de Freud sao suficientes para, pelo menos, complexificar a questéo, O que se poderia identificar com a nogio de individuo é mais a nocdo de eu, que é excéntrica ao conceite de sujeito da inconsciente. Isto jd é reconhecide por alguns dos cientistas sociais preocupades com a questo do individualismo. Como afirma Salem: “Cabe a nés, cientistas sociais interessados na questo do individualismo, levar o inconsciente freudiano a série” (Salem, 1992:69), Através da nogio de “despossessao subjetiva”, tomada de empréstimo a Marcel Gauchet (1980) — “expressa exemplarmente ne conceito freudiano de inconsciente” (Salem, op. cit.:63) — a autora assinala a existéncia de uma descontinuidade entre o que chama de “sujeito ético” ¢ a “sujeito psicalégico”. No primeiro caso, considera-se tanto o individue moderno, como valor moral e fundamento das instituigdes, no sentido de Dumont, quanto o in- dividuo psicolégice de Simmel, que afirma sua autonomia face ao social por um processo de interiorizacio, No segundo trata-se do sujeito constituido pelos “saberes psi’, onde se destaca a importan- cia da psicandlise. O que ela pretende mostrar € 0 contraste entre 0 individuo enquanto sujeito auténomo, senhor de sua vontade, pré-social, ¢ o individuo marcado por uma “despossessio subjeti- va", tal como vislumbrado pela psicandlise. psicandlise & autropeliaia son delure vhissico AR Pode-se super, a partir dessas afirmagdes, alputa purcntesco com o que se expés quanto ao descentramento do sujcito operado por Freud na leitura de Lacan, Ele €, entretanto, parcial, pois na abordagem acima referida o foco ainda est sobre o individua, enquanto na proposta de Lacan ha uma inversao: o foco esta sobre 9 sujeito enquanto estrutura que se constituj sobre os trés registros que caracterizam a tépica lacaniana; real, simbdlico ¢ tmagindrio, t6pica essa que ¢ transindividual. Além disso o que chama a aten- cio, por paradoxal, é que, em Lacan, a qualidade de ser “Stico” 6 prépria do sujeito do incensciente, despossuido de si, e nio do eu enquanto sujeito da sociedade modema. O estatuto do inconscien- te, para ele, é ético e néo Gnatico, Nao se trata do ser, mas de que “em alguma parte este inconsciente se mostra” (Lacan, (1964) ap. cit:37), Neste sentido o sujeito é ético, uma vez que vai se alojar no inconsciente, onde ganha importancia a célebre frase de Freud: Wo es war soll Ich werden, imperative ético de realizagdo do sujeito. E nesta inflexdo da questo do sujeito e da ética que inserevo este trabalho como um exame da proposta de Lacan de uma ética da psicandlise. Considerando-se a tdpica lacaniana come transin- dividual, onde o “..individualismo subjetivo aparece como uma ilusde muito superficial ¢ muito parcial, pouco representativa do psiquismo come um todo, que se reparte em registros que nao podem mais pertencer a individuo nenhum” (Ogilvie, op. 22), como pensar a insergao desta proposta num mundo em que o valor “individuo” € dominante? Valor que Lacan critica ao afirmar, iro- nicamente, que “o eu é a teologia da livre empresa” (Miller, op. eft 11), Nao se nega que a psicandlise, assim como a antropologia, s¢ja um saber historicamente datado, wndissolivel do advento do sujeito moderno e do “dispositivo da sexualidade” (Foucault, 1977). Todavia, isto nfoa esgota e, pelo contrario, convida ao estudo de suas contribuigdes no terreno da discussao das quest6es do sujeito e da ética, certamente tao atuais. Em um tempo marcado pela fragmentagao, pela crise dos valores, pelo fim das utopias, que contribuigdes cla pode trazer? Nao se trata agui de focalizar a psicandlise no sentido “teles- eopizador” referido anteriormente, como fenémeno social entre outros. Pretendée-se considerd-la enquanto fearo, tal como exposta no semindrio proferido por Lacan em 1939/60 sobre A ética da psicandlise, mas também em outros textos lacanianos e freudianos. 34 thien da diferenga Nao se visa, também, discutir se essa proposta deve ser conside- yada como ciéncia, religiio ou ideologia, mas pensa-la como uma ficgao, o que caracteriza todo trabalho tedrico. Ou eutio, como uma narrativa, enquanto produgio de sentido, na diregio propesta por Velho™, onde se precurard apreender os seus efeitos de verda- de (Velho, 1992:10-11). Freud nao teve nenhum pudor cientificista quando, em carta a Einstein, aproximou a ciéncia da mitologia: “Talwez ao senhor possa parecer serem nossas teorlas uma espécie de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradvel. Todas as ciéncias, porém, no chegam afinal, a uma espécie de mitologia como esta? Nao se pode dizer o mesmo, atwalmente, a respeito da sua fisica?” (Freud, (1933b) 1976:254). Lacan também reconhecia que partia de um fio “idealégico”: “FE porque eu parte de um fio, ideolégico eu nio tenho escolha, aquele onde se tece a experiéneia institufda por Freud. Em nome de que, se este fio provém da melhor trama posta A prova para fazer conjunto com as ideologi- as de um tempo que € o meu, cue rejeitaria?” (Lacan In: Georgin, op. cif.:157). A relativizagdo do relativismo, tio caro 4 antropologia, pode ser em alguns momentos necessaria, no sentido de pensar questoes centrais de nossa sociedade ¢ de nossa época. Foi em virtude da énfase no relativismo que a antropologia se situou relativamente 4 margemi do debate sobre a ética, o que nao significa que nao tenha produzido conhecimento sobre o tema (Velho, 1991:121-124), Ou talvez, porque “durkheimianamente”, tenha identificado “moral” & ‘social’, “tendo uma certa timidez em dizer o que compreende por moralidade além de que é uma forma de comportamente social- mente sancionada” (Parkin, 1985:5), Entretanto, come atesta 0 proprio Parkin, recentemente ha na antropologia social uma preo- cupacdo em focalizar “a moralidade como um campo de pressupo- sigdes culturais que inferma e cria, mais do que suporta relagdes entre grupos e pessoas” (Parkin, ap. eit:3). No ambito da producio brasileira reconhece-se hoje a impor- tancia do tema para a antropologia, como indica a conferéncia de psicandlive e unropologie: wn debate ehissien 38 Roberto Cardoso de Oliveira sobre “Antropologia e moralidade”, Partindo da observacio de que esse tema (em sido muito raramente analisado pelos antropdlogos, Cardoso de Oliveira recorre a filo- sofia, particularmente 4 tradigao hermenéutica erftica. A partir dis- SO procura tratar o tema da moralidade como um problema susce- tivel de investigagie antropolégica, tomando como instincia de observagao privilegiada os sistemas interétnicos, onde é possivel examinar a questio do conflito de valores (Oliveira, 1993), No terreno da filosofia, o debate € mais amplo, considerando-se a crise da sociedade moderna, a faléncia dos universalismos e a tendéncia ao esvaziamento dos compromissos morais pela tecnocra- lizagdo. Daf as tentativas de retomada do wniversalismo, sem elimi- nagio das particularidades, através, por exemplo, da proposta de Habermas de uma “ética do Discurso” baseada numa teoria da aio, de um “agir comunicativo” (Habermas, 1989). Apenas a titulo de provocaciio, vale lembrar que Lacan era cético quanta As possibilida- des de comunicagio. No L'Btourdir dizia: “Que se diga fica esque- cido detrds do que se diz no que se ouve” (Lacan, (1972-73) 1982:26). Na linha do pragmatismo anglo-amercano anti-universalista e anti-essencialista, Richard Rorty (1989) enfatiza a contingéncia de nossas cren¢as € desejos, a partir da consiceragio da propria contin- géneia da linguagem e do vocabuldrio que utilizamos. Ele sugere a possibilidade de uma utopia liberal, onde 0 reconhecimento das di- ferencgas ¢ do cardter contingencial e histérico de nossas convicgdes permita o ineremento da solidatiedade humana. Trata-se de ampliar o sentido do “nés”, na superacfio das diferengas a partir da identifi- cacdo com a “dor e a humilhacio do outro”. Em suas palavras: “\.. a solidariedade nfo € pensada como reconhecimento do nucleo do cu, a esséncia humana, em todos og seres bumanos. Ao contrario, € pensada como a habilidade para ver cada vez mais as diferencas tradicionais (de tribo, religiao, raga, costumes etc.) como nae importantes quando comparadas com similanidades em relagao 4 dor ¢ humi- lhagao — a habilidade para pensar as pessoas muito di- ferentes de nds mesmos como inclufdas na classe de nés” (Rorty, op. cif.:192). A aproximagao com 2 psicandlise € feita pelo préprio Rorty, ao considerar Freud um pensador que evita a idéia de um ser 36 a Stic da difeennga humano paradigmatico, e que sublinha as particularidades da cons- tituigdo subjetiva, ao mosirar a sofisticagdo e sutifeza das estraté- gias inconscientes. Se este € um ponto de convergéncia, a proposta do auter de um aumento da solidariedade, a partir da identificagio com o sofrimento do outro. incita 4 discussio com a psicanilise. Ba partir desse contexto que pretendo examunar as questées colocadas por uma ética da psicandlise, fundada no desejo — uma ética da diferenga — proposta por Lacan no seu tetorne a Freud e suas implicagées para nossa sociedade e nosso tempo. A hipétese que formulo é que esta via de abordagem da questao ética petmite tragar novos caminhos para o debate antropologia/psicandlise, definindo em novos termos nao sé a dicotomia classica “individuo x sociedade", como também aquela entre ‘‘relativismo” ¢ “univer- salismo". Se a psicanilise parte de um universal — a hipdtese do in- cousciente — é para ressaltar as parttcularidades da constituigfo subjetiva, onde o deseja “indestrutivel” tece a sua trama, O incons- ciente, como j4 tivemos oportunidade de observar, nao é nenhuma substincia dada desde sempre. que viria a constituir uma “‘natureza humana”. E antes um vazio gue se apreende “sé depois" pelas suas formagbes simbdlicas — ¢ por isso ele é uma hipétese. Como tal, 6, para Lacan, “estruturado come uma linguagem”, isto é, regido pelos mecanismos da metafora e da metonimia ou, como Freud identifica na andlise dos sonhos, pelos processas de conden- sagao ¢ deslocamento. Isto nao conduz a uma reificagao da lingua- gem, que surgivia Como uma nova natuteza, como querem alguns.” As preocupag6es de Lacan quanto a essa questio jd foram referi- das. O simbodlico para ele ¢, ao mesmo tempo, universal ¢ contin- gente, uma vez que a significagio & construfda retroativamente pela intervengio de um “significante-mestre” que opera um “basteamento” {“‘ponto-de-basta”) na totalizagdo do sentido. Esse basteamento, por sua vez, € contingente — o que aponta para a possibilidade de outras significagdes.** O que é universal, como diz Rorty, é a faculdade de criar metdforas, ao que Lacan acrescen- taria a possibilidade de deslizar metonimicamente e, portanto, de modo desejante entre os significantes. A produgdo significante totalizada em um sentido é sempre facticia, como o sio nossos desejos especificos, crengas e sistemas morais, Universal é 0 desejo, pensado enquanto deslocamento do sujeito, 0 que nao conduz a nenhum niilismo, na medida em que ha produgao de verdade na psicandlise © wntropotogia: um debate cldssica 37 produgdo de sentido — sempre parcial ¢ contingente “nao- toda”, A necdo de Real, tal come Lacan a concebe, é fundamental para se apreender a impossibilidade de totalizagio do simbdlica: é a partir dela que podemos nos referir a uma ética da psicaniilise, que postula nao sé a fidelidade ao desejo, que faz surgir a diferen- ca subjetiva, como também o respeito 4 diferenga do outro. No campo da antropologia, a énfase nas diferengas e o com- bate ao etnocentrismo, que caracterizam a sua posi¢ao epistemo- Iégica, parecem mais aproximé-la do que afastéi-la da postura ética da psicandlise, aqui referida, As palavras de Lévi-Strauss em 1952, no texto “Raca e cultura”, indicam essa convergéncia, uma vez que, frente a um munde ameagado pela uniformizacao, ele vai se posicionar como um defensor da diversidade, posi¢io essa que, mais do que heuristica, revela um fundamento ético.”) Nao sé o reconhecimento da diferenga cultural, mas também o “estranha- mento” da prépria cultura, que opera uma “desnaturali de seus pressupostos, revelando seu cardter artificial ¢ contingente, possibilitam essa aproximacao. A discuss4o, trazida por Velha (1992) para o seto da antropologia, da tese anti-representacionista de Rorty“ permite pensar a cultura nado como o que € dade, mas como uma invengio, como “produgdo de sentido”, ultrapassando a dicotomia relativismo-universalismo. Em suas palayras: “...€ como se 0 binédmic relativismmo-universalismo fosse substituido por uma operagao tinica: 4 da produgio de sentido que busque um efeito de verdade sem nada que a sustente externamente, Ou, nos termes aqui postos, a da narragio eficaz, Nada disso significando, evidentemente, a moderagao do relativismo, mas pelo contrario, uma transfiguragaio a que é Jevado por sua radicalizacio. O que é superado € © dualismo em que estava contido: ¢ nio havendo mais um absolut a ser relativizado (como: na sua versio moderada), nio estamos diante de uma leitura e sim de uma agao™ (Velho, ap. cit.:1D. De uma forma semelhante, a contingéncia da simbolizagao para Lacan refere-se ao fato de que, quando falamos, estamos num cireule vicioso, pois um significante remete sempre a outros signi- ficantes, nao havendo nenhuma garantia externa ao jogo da signi- licagdo, ou, como cle diz, “nao ha Outro do Qutro". Nao ha,

Você também pode gostar