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A CRUZ DE CRISTO: LOUCURA, ESCÂNDALO OU SABEDORIA DE DEUS?

Nos trabalhos bíblicos-catequéticos que tive a oportunidade de ministrar, várias


vezes surgiu a seguinte pergunta: Por que Deus, que é tão bom, permitiu que seu povo
caminhasse quarenta anos pelo deserto com tantas dificuldades? Deus não é todo
poderoso? Por que então Ele simplesmente não colocou seu povo na terra prometida sem
ter que passar pelo deserto? À primeira vista a caminhada do deserto parece não ter o
menor sentido levando-se em conta que Deus poderia ter feito de outro modo. Poderia ter
feito uma caminhada sem deserto, ou melhor ainda, poderia não ter feito caminhada
alguma. Poderia ter colocado seu povo no local escolhido como que num passe de mágica,
afinal, Deus é Deus, pode tudo. Aqui está o x da questão. Exatamente porque Deus pode
tudo, sabe tudo, que toma certas medidas que não conseguimos compreender, ao menos
no momento de nossa pequena história temporal, frágil como a erva do campo (Sl 90,6).
As dificuldades encontradas para entender o “procedimento” de Deus, por que Ele
tomou esta ou aquela medida, são realmente inúmeras se for levado em conta apenas o
modo material e humano de compreender as coisas. Para os padrões humanos e práticos
não se justifica escolher o caminho difícil se existe um mais fácil. Mas isto acontece
porque é fácil perceber o caminho (se espaçoso ou estreito), nem tanto perceber e entender
a caminhada. O caminho é algo concreto, visível, a caminhada é possibilidade, não pode
ser vista sem a ótica de Deus. Aliás, quando Jesus afirmou que Ele é o Caminho, não
estava falando de um caminho físico, de uma estrada pronta e acabada, mas de uma
proposta de vida, de uma caminhada a ser feita. Isto se torna perceptível pelo viés da fé,
uma visão que ultrapassa as conjecturas do homem. A visão humana, limitada pela própria
condição física, na maioria das vezes enxerga apenas o caminho, mas não consegue
vislumbrar a caminhada; vê o meio pelo qual se caminha, mas não é capaz de enxergar o
fim do trajeto. Deus vê o caminho e a caminhada, não olha apenas o meio, mas o princípio,
o meio e o fim.
Esta reflexão abordada, a partir da difícil caminhada que o povo de Israel teve que
fazer no deserto, é bastante oportuna, na verdade não deveria ser esquecida. Deus
concedeu à humanidade uma dádiva chamada de livre arbítrio. A capacidade de escolhas.
Caso não existisse o livre arbítrio, o homem seria uma “espécie de robô”, limitado por
um programa do que poderia ou não ser feito. Mas Deus nos fez livres, até para discordar
d’Ele (Gn 3). Isto significa que não somos um programa definido, acabado. Somos e
estamos abertos ao crescimento, ao aprendizado, ao novo. Isto implica escolhas, escolhas
supõe liberdade, mas ter liberdade é exigente. Como se trata de povo, a liberdade não é
de um, mas de todos. Daí a necessidade de diálogo, de reflexão, de tempo. A liberdade de
um povo é sempre um projeto comunitário, caso contrário não seria liberdade. Por isso
que caminhar com Deus nem sempre é fácil. Falar sobre liberdade, respeito é
politicamente correto, agrada. Travar um diálogo respeitoso e livre é um grande desafio.
Contudo, sem isso a humanidade seria apenas um “programa fechado” de computador,
sem possibilidades de crescimento. Aqui se entende a proposta do deserto e de outros
caminhos.
Quando o povo teve que caminhar no deserto foi uma experiência árdua. Teve
muita contenda, muita briga, mas também muita reflexão. Aconteceram desistências, mas
muita gente amadureceu a fé; surgiram divisões, mas um povo foi formado na caminhada,
uma nação foi forjada no calor do deserto. Sem esta experiência não seria possível falar
sobre liberdade. Se Deus tivesse simplesmente levado seu povo para a terra prometida
sem a caminhada no deserto, seria apenas uma espécie de jogo de xadrez, onde Deus seria
o jogador, o povo as peças do tabuleiro. Mas não somos peças de um jogo de xadrez,
somos imagem de Deus, com a liberdade de opinar nas regras do jogo. Esta reflexão
remete à uma outra, com a mesma ideia básica de fundo, porém, muito mais profunda. A
cruz de Cristo.
Na caminhada do deserto, quando faltou água todos acharam que a morte era certa,
mas de uma rocha brotou água e a vida prosseguiu seu curso. Na cruz de Cristo tudo
parecia ter terminado, um propósito perdido, mas ali se escondia uma grande sabedoria.
Ainda que loucura para alguns e escândalo para outros, na realidade a cruz não era um
fim, mas um momento de uma proposta de caminhada. São Paulo diz que a loucura da
cruz é sabedoria de Deus (1 cor 1,24). Mas que sabedoria pode existir numa morte de
cruz? Na morte nenhuma, mas na vida gerada por ela encontra-se a sabedoria mais
sublime. Ao morrer na cruz Jesus ensinou não só com palavras, mas com o derramamento
do seu próprio sangue, que a liberdade humana é um dom tão especial que precisa ser
respeitado até às últimas consequências. Jesus sendo Deus, poderia ter aniquilado seus
algozes, mas preferiu morrer para não encerrar o diálogo. Assim, o silêncio da cruz se
transformou em diálogo, palavra doada, partilhada. E ao ressuscitar dos mortos Jesus deu
aos seus acusadores a possibilidade de enxergar uma nova realidade, que a vida é dom de
Deus. E sendo dom não pode ser tomado à força, mas pode ser doado; que a dinâmica da
vida não se encerra na cruz, mas sim na incapacidade de dialogar. Não dialogar é não
respeitar o dom da palavra e a Palavra é Deus (Jo 1,1). Na cruz, portanto, pode ser
observado um dos grandes ensinamentos do Evangelho. Deus não se cansa de dialogar,
Ele é Palavra, Palavra partilhada. Sem partilha da palavra (dia+logo), não existe
liberdade; sem diálogo não existe respeito, não existe amor, pois amor supõe partilha. E
Deus é amor.

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