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ARCHER
O ARQUEIRO E SUAS FLECHAS
Tradução de
JOSÉ ANTONIO ARANTES
Revisão de
RACHEL HOLZHACKER
DIFEL
Difusão Editorial S. A.
Título do original: "A Quiver Full of Arrows”
Copyright © 1980 by Jeffrey Archer
Capa: Isabel
Composição: Intertexto
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
A712a
Archer, Jeffrey, 1940-
O arqueiro e suas flechas / Jeffrey Archer ; tradução de José Antonio Arantes ; revisão de Rachel
Holzhacker. — São Paulo : DIFEL, 1986.
1. Contos ingleses I. Título. 86-0282
CDD-823.91
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:
1. Contos : Século 20 : Literatura inglesa 823.91
2. Século 20 ; Contos : Literatura inglesa 823.91
1986
Contracapa
J. A.
Índice
A estátua chinesa
O Almoço
O Golpe
O primeiro milagre
O perfeito cavalheiro
Amantes por uma noite
Quebra de rotina
O contratempo de Henry
Uma questão de princípio
O professor húngaro
Amor antigo
A estátua chinesa
A estatueta chinesa era o próximo item a ser posto ao correr do martelo do
leiloeiro. O Lote 103 provocou um daqueles discretos murmúrios que sempre
precedem a venda de uma obra-prima. O assistente do leiloeiro ergueu a delicada
peça de marfim para que o superlotado auditório a admirasse, enquanto o
leiloeiro corria os olhos pela sala para certificar-se de que sabia onde estavam
sentados os verdadeiros arrematadores. Examinei com atenção o meu catálogo e
li a minuciosa descrição da peça, e o que se conhecia de sua história.
A estátua fora adquirida em Ha Li Chuan, em 1871, e era mencionada, na
peculiar designação da Sotheby, como “de propriedade de um cavalheiro”, em
geral querendo significar que algum membro da aristocracia não desejava
admitir que precisava se desfazer de uma das heranças de família. Pensei comigo
mesmo se não era este o caso naquela ocasião e decidi investigar para descobrir
como a estatueta chinesa tinha ido parar na casa de leilões naquela manhã de
quinta-feira, pouco mais de um século depois.
— Lote n° 103 -— anunciou o leiloeiro. — Quanto me oferecem por este
magnífico exemplar de... ?
Sir Alexander Heathcote, além de cavalheiro, era um homem exato. Media
exatamente um metro, noventa e um centímetros e sete milímetros, levantava-se
às sete horas todas as manhãs, juntava-se à esposa no desjejum para comer um
ovo que tinha sido cozido durante precisamente quatro minutos, duas fatias de
pão torrado com uma colherada de geleia de laranja Cooper e tomar uma xícara
de chá chinês. Apanhava então uma carruagem de aluguel à porta de sua casa em
Cadogan Gardens, exatamente às oito e vinte, e chegava no Ministério das
Relações Exteriores pontualmente às oito e cinquenta e nove, voltando para casa
às dezoito horas em ponto.
Sir Alexander fora exato desde tenra idade, pois era o filho único de um
general. Mas, ao contrário do pai, optou por servir à Rainha na diplomacia, outra
profissão precisa. Progrediu de simples funcionário no Ministério das Relações
Exteriores em Whitehall a terceiro secretário em Calcutá, segundo secretário em
Viena, primeiro secretário em Roma, embaixador adjunto em Washington e,
finalmente, ministro plenipotenciário em Pequim. Ficou encantado quando o Sr.
Gladstone o convidou para representar o governo na China, já que cultivava,
havia algum tempo, um interesse mais do que de amador pela arte da dinastia
Ming. Essa nomeação real em sua notável carreira lhe proporcionaria o que até
então ele julgara impossível: a oportunidade de observar, em seu habitat de
origem, algumas das magníficas estátuas, pinturas e desenhos que ele até então
pudera admirar apenas nos livros.
Quando chegou em Pequim, após uma viagem por terra e mar que lhe tomou
quase dois meses, Sir Alexander apresentou à Imperatriz Tzu-Hsi suas
credenciais e uma carta pessoal, de caráter confidencial, da Rainha Vitória.
Vestindo branco e dourado da cabeça aos pés, a Imperatriz recebeu o novo
embaixador na sala do trono do Palácio Imperial. Leu a carta da soberana
britânica diante de Sir Alexander, que permanecia de pé, aguardando atento. Sua
Alteza Imperial nada revelou de seu conteúdo ao novo ministro, limitando-se a
lhe desejar completo êxito no exercício de suas funções. Em seguida contraiu
ligeiramente os cantos dos lábios, levando Sir Alexander à correta conclusão de
que a audiência estava encerrada. Ao ser conduzido à saída por um mandarim
em traje palaciano longo, negro e dourado, Sir Alexander percorreu o mais
vagarosamente possível os vastos salões do Palácio Imperial, atraído pela
esplêndida coleção de estátuas de jade e marfim, distribuídas ao acaso pelo
interior do edifício, mais ou menos como Cellini e Michelangelo permanecem
hoje amontoados em Florença.
Tendo em vista que seu mandato ministerial era de apenas três anos, nesse
período Sir Alexander não tirou licença, preferindo usar suas horas livres para
deixar a embaixada e percorrer a cavalo os distritos mais distantes, com o intuito
de aprender mais sobre o país e o povo. Nessas excursões, sempre se fazia
acompanhar por um mandarim do corpo de assistentes do palácio, que lhe servia
de intérprete e guia.
Numa dessas viagens, passando pelas ruas lamacentas de um vilarejo muito
pequeno chamado Ha Li Chuan, a uma distância de cerca de oitenta quilômetros
de Pequim, Sir Alexander deparou com a oficina de um velho artesão.
Apartando-se de seus servos, o ministro apeou da cavalgadura e entrou na
deteriorada oficina de madeira, a fim de admirar as delicadas peças de marfim e
jade que abarrotavam as prateleiras de cima abaixo. Embora modernas, as peças
eram soberbamente trabalhadas por um experimentado artesão, e o ministro
adentrava a pequena cabana com a intenção de adquirir uma lembrança de
viagem. Uma vez na oficina, quase não pôde avançar em qualquer direção, com
receio de bater a cabeça em algum objeto e derrubá-lo. A construção não fora
projetada para um visitante de um metro, noventa e um centímetros e sete
milímetros. Sir Alexander ficou paralisado e fascinado, aspirando o suave
perfume de jasmim que impregnava a atmosfera.
Um velho artesão, trajando longa bata azul de cule e usando boina preta,
adiantou-se alvoroçadamente para recebê-lo; um rabicho preto-azeviche caía-lhe
pelas costas. Ele curvou-se profundamente e então levantou os olhos para aquele
gigante oriundo da Inglaterra. O ministro retribuiu o cumprimento, enquanto o
mandarim explicava quem era Sir Alexander e o desejo deste de obter permissão
para examinar os trabalhos do artesão. O velho estava expressando seu
consentimento com um sinal de cabeça antes mesmo de o mandarim concluir seu
pedido. Durante mais de uma hora, suspirando e sorrindo de satisfação, o
ministro examinou com admiração várias peças, até que, finalmente, voltou-se
para o velho e elogiou-lhe a habilidade. O artesão curvou-se mais uma vez e seu
sorriso tímido não revelou os dentes, mas apenas uma verdadeira alegria
despertada pelas lisonjas de Sir Alexander. Apontando para os fundos da oficina,
convidou os dois distintos visitantes a que o seguissem. Assim fazendo-o,
penetraram numa verdadeira Caverna de Aladim, com fileiras e fileiras de belas
miniaturas de imperadores e personagens clássicos. O ministro seria capaz de
entregar-se alegremente àquela profusão de marfim por no mínimo uma semana.
Sir Alexander e o artesão puseram-se a conversar através do intérprete, e em
breve se revelou o amor e o conhecimento do ministro com relação à dinastia
Ming. O rosto pequeno do artesão iluminou-se diante desta descoberta e,
voltando-se para o mandarim, fez um pedido com voz sussurrada. O mandarim
aquiesceu e traduziu.
— Vossa Excelência, eu possuo uma peça do período Ming que o senhor
gostaria de ver. Uma estátua que pertence à minha família há mais de sete
gerações.
— Eu me sentiria honrado — respondeu o ministro.
— Eu é que me sentirei honrado, Vossa Excelência — retrucou o
homenzinho, que em seguida precipitou-se pela porta dos fundos, quase
atropelando um cão vadio, e entrou apressado numa velha casa rústica situada a
alguns metros da oficina.
O ministro e o mandarim permaneceram na sala dos fundos, pois Sir
Alexander sabia que o velho jamais pensaria em convidar uma visita tão ilustre a
entrar em sua humilde casa antes que se conhecessem por anos e anos, e ainda
assim só depois de ter sido primeiramente convidado para ir à casa de Sir
Alexander. Passaram-se alguns minutos até que o homenzinho de azul voltasse
às pressas, o rabicho saltando de um lado para outro sobre os ombros. Ele estava
agora agarrando-se a um objeto que, pelo jeito com que o estreitava contra o
peito, devia ser um tesouro. O artesão entregou a peça ao ministro para que ele a
examinasse. Sir Alexander ficou boquiaberto e não pôde esconder a emoção. A
estatueta, que não media mais que dezesseis centímetros, era do Imperador Kung
e o mais admirável exemplar Ming que o ministro jamais vira. Sir Alexander
tinha certeza de que o artífice era o notável Pen Q, que fora protegido do
Imperador, e que, portanto, a data de sua produção estaria situada por volta da
virada do século XV. A única imperfeição da estátua era a inexistência da base
de marfim, sobre a qual as peças deste tipo em geral são assentadas, e uma
minúscula vareta que se projetava na parte inferior dos trajes imperiais; mas, aos
olhos de Sir Alexander, nada era capaz de aviltar a plenitude de sua beleza.
Embora os lábios do artesão não se mexessem, seus olhos brilhavam
intensamente diante da satisfação que seu visitante manifestava ao examinar o
imperador de marfim.
— O senhor acha que a estátua é de boa qualidade? — perguntou o artesão
através do intérprete.
— É magnífica — respondeu o ministro. — Realmente magnífica.
— As minhas peças não merecem ficar ao lado dela — acrescentou com
humildade o artesão.
— Não, não — fez o ministro, embora, na verdade, o pequeno artesão
soubesse que o grande homem estava apenas sendo gentil, pois só o modo com
que Sir Alexander segurava a estátua de marfim já denunciava o mesmo amor
que o velho tinha pela peça.
Ao devolver o Imperador Kung, o ministro sorriu para o artesão e proferiu
talvez as únicas palavras pouco diplomáticas que jamais pronunciara em trinta e
cinco anos de serviço à Rainha e ao seu país.
— Como eu gostaria que esta estátua fosse minha!
Sir Alexander arrependeu-se de exprimir seu pensamento assim que ouviu o
mandarim traduzi-lo. Conhecia muito bem a velha tradição chinesa segundo a
qual, quando uma ilustre visita pede alguma coisa, o doador crescerá na estima
de seus semelhantes ao desfazer-se dela.
Uma expressão de tristeza toldou o rosto do velho artesão quando ele
devolveu a estatueta ao ministro.
— Não, não. Eu estava apenas brincando — disse Sir Alexander, procurando
devolver rapidamente a peça ao proprietário.
— Vossa Excelência desonraria a minha modesta casa se não aceitasse o
Imperador — disse ansiosamente o velho, enquanto o mandarim concordava
gravemente com uma inclinação de cabeça.
O ministro permaneceu em silêncio por um momento.
— Desonraria a minha própria casa, meu senhor — retrucou, olhando para o
mandarim, que permanecia inescrutável.
O pequeno artesão curvou-se.
— Preciso fixar uma base na estátua — disse —, senão Vossa Excelência não
poderá expô-la.
Retirou-se para um canto do cômodo e abriu uma abarrotada arca de madeira
que devia conter uma centena de bases destinadas às suas próprias estátuas.
Depois de muito vasculhar, escolheu uma base decorada com minúsculas figuras
negras que não mereceu a apreciação do ministro, mas que, no entanto, ajustava
perfeitamente à peça; assegurou a Sir Alexander que, embora desconhecesse sua
história, a base trazia em si a marca de um excelente artesão.
O ministro, desconcertado, aceitou o presente e tentou, inutilmente,
agradecer ao velhinho. O artesão curvou-se profundamente mais uma vez
enquanto Sir Alexander e o imperturbável mandarim deixavam a pequena
oficina.
No caminho de volta a Pequim, o mandarim deu-se conta do deplorável
estado em que se encontrava o ministro e, numa atitude que lhe era pouco
característica, falou primeiro:
— Vossa Excelência sem dúvida conhece o velho costume chinês segundo o
qual, quando um estranho mostra-se generoso, deve-se retribuir a gentileza antes
que finde o ano civil.
Sir Alexander agradeceu com um sorriso e ponderou sobre as palavras do
mandarim. Já em sua residência oficial, foi imediatamente para a extensa
biblioteca da Embaixada, para ver se descobria o real valor da pequena obra-
prima. Após intensa e diligente pesquisa, encontrou um desenho de uma estátua
da dinastia Ming que era quase uma cópia exata daquela que agora estava em seu
poder; com a ajuda do mandarim, pôde estimar seu valor real, um montante
equivalente aos vencimentos de três anos de um funcionário da Coroa. O
ministro expôs o problema a Lady Heathcote e ela não deixou o marido em
dúvida quanto ao procedimento que ele deveria adotar.
Na semana seguinte, através de um mensageiro particular, o ministro enviou
uma carta aos seus banqueiros, Coutts & Co., no Strand, Londres, pedindo-lhes
que remetessem para Pequim, o quanto antes, boa parte de suas economias.
Quando o dinheiro chegou, nove semanas depois, o ministro voltou a consultar o
mandarim, que lhe ouviu as indagações e, passados sete dias, lhe forneceu os
pormenores solicitados.
O mandarim descobrira que o pequeno artesão, Yung Lee, descendia da
antiga e honrada família de Yung Shau, cujos membros dedicavam-se ao
artesanato havia cerca de cinco séculos. Sir Alexander soube também que muitos
dos ascendentes de Yung Lee possuíam exemplares de seus trabalhos nos
palácios dos príncipes manchus. O próprio Yung Lee, envelhecido, desejava
retirar-se para as colinas que encimavam o vilarejo, onde seus ancestrais tinham
morrido. Seu filho estava preparado para assumir a oficina e continuar a tradição
da família. O ministro agradeceu ao mandarim por sua presteza e fez-lhe apenas
mais um pedido. O mandarim ouviu cordato ao embaixador da Inglaterra e
retornou ao palácio a fim de aconselhar-se.
Poucos dias mais tarde, a Imperatriz deferiu o pedido de Sir Alexander.
Quase um ano depois, o ministro, acompanhado pelo mandarim, deixou de
novo Pequim e partiu para o vilarejo de Ha Li Chuan. Ao chegar, Sir Alexander
imediatamente apeou de sua cavalgadura e adentrou a oficina de que tão bem se
lembrava; o velho estava sentado em seu banco, a boina ligeiramente inclinada,
uma peça de marfim por esculpir segura carinhosamente entre os dedos. Ele
desviou os olhos do trabalho e caminhou arrastando os pés em direção ao
ministro, não reconhecendo o visitante até quase poder tocar o gigante
estrangeiro. Curvou-se, então, profundamente. O ministro falou através do
mandarim:
— Voltei, meu senhor, antes de findar o ano civil, para saldar a minha dívida.
— Não era preciso, Vossa Excelência. É uma honra para a minha família que
a estatueta habite uma grande embaixada e possa um dia ser admirada pelo povo
de sua nação.
Não encontrando palavras para formular uma resposta adequada, o ministro
simplesmente pediu ao velho que o acompanhasse numa pequena viagem.
O artesão concordou sem fazer perguntas e os três homens partiram em
lombos de burros em direção ao norte. Por mais de duas horas subiram por
estreitas e sinuosas trilhas as colinas que se erguiam atrás da oficina do artesão;
ao alcançarem o vilarejo de Ma Tien, foram recebidos por outro mandarim, que,
curvando-se profundamente, solicitou ao ministro e ao artesão que seguissem
viagem com ele a pé. Caminharam em silêncio até muito além da aldeia e
pararam somente ao atingirem uma cavidade na montanha, de onde se
descortinava uma esplendida vista do vale até Ha Li Chuan. Na cavidade erguia-
se uma casinha branca recém-construída, com linhas das mais harmoniosas
proporções. Dois leões de pedra, com as línguas projetando-se da boca aberta,
guardavam a porta de entrada. O pequeno velho artesão, que nada dissera desde
que tinha deixado a oficina, continuou sem saber do propósito daquela viagem
até que o ministro, voltando-se para ele, ofereceu:
— Um pequeno e insuficiente presente meu, numa humilde tentativa de
retribuir-lhe em espécie.
O artesão caiu de joelhos pedindo perdão ao mandarim, pois ele devia saber
que a um artesão era proibido aceitar presentes de um estrangeiro. O mandarim
ergueu do chão o amedrontado homem de azul, explicando ao seu compatriota
que a própria Imperatriz aprovara o pedido do ministro. Um sorriso de alegria
tomou conta do rosto do artesão e ele dirigiu-se vagarosamente para a entrada da
bela casinha, não resistindo a deslizar a mão pelos leões esculpidos. Por mais de
uma hora os três viajantes admiraram a casinha antes de voltarem para a oficina
em Ha Li Chuan, compartilhando em silêncio a mesma felicidade. Satisfeito o
ponto de honra, os dois homens separaram-se e Sir Alexander retornou a cavalo
para a Embaixada naquela noite, contente por seu procedimento ter recebido a
aprovação do mandarim e de Lady Heathcote.
O ministro concluiu seu mandato em Pequim, a Imperatriz conferiu-lhe a
Estrela de Prata da China e a Rainha, agradecida, acrescentou a Comenda de
Cavaleiro da Ordem Real Vitoriana à sua já extensa lista de condecorações. Após
passar algumas semanas no Ministério das Relações Exteriores, redigindo os
últimos relatórios sobre a missão na China, Sir Alexander retirou-se para o seu
Yorkshire natal, o único condado inglês em que os habitantes ainda esperam
poder morrer no lugar onde nasceram, a exemplo dos chineses. Sir Alexander
viveu seus últimos anos na casa do falecido pai, em companhia da esposa e do
pequeno Imperador Ming. A estátua ocupava o centro do consolo da lareira na
sala de estar, para que todos a vissem e a admirassem.
Homem exato que era, Sir Alexander fez um longo e pormenorizado
testamento no qual deixou instruções precisas sobre a transmissão de seus bens,
inclusive que destino teria a estatueta após sua morte. Legara o Imperador Kung
ao filho mais velho, instruindo-o que fizesse o mesmo, para que a estátua sempre
passasse ao primeiro filho, ou à primeira filha, caso a descendência direta
masculina viesse a ser interrompida. Dispôs também que a estátua jamais fosse
vendida, a menos que a honra da família estivesse em jogo. Sir Alexander
faleceu à meia-noite em ponto, ao completar setenta anos de idade.
Seu primogênito, o Major James Heathcote, estava servindo à Rainha na
Guerra dos Boêres no momento em que recebeu por herança o Imperador Ming.
O major era um homem guerreiro, lotado junto ao Regimento do Duque de
Wellington, mas, embora tivesse pouco interesse pela cultura, mesmo ele pôde
perceber que aquela herança de família não era um tesouro comum. Assim,
emprestou a estátua para o quartel em Halifax, para que o Imperador, exposto no
refeitório, pudesse ser apreciado pelos seus irmãos de armas.
Quando James Heathcote tornou-se general dos duques, o Imperador
figurava orgulhosamente sobre a mesa, ao lado de troféus conquistados em
Waterloo, Sebastopol, na Crimeia e em Madri. E ali ficou a estátua Ming até o
general retirar-se para a casa do pai, em Yorkshire, oportunidade em que o
Imperador voltou ao consolo da lareira da sala de estar. O general não era
homem que desobedecesse ao falecido pai, mesmo depois de morto, e deixou
claras instruções para que a herança de família sempre se transmitisse ao
primogênito dos Heathcote, a menos que a honra da família estivesse em risco.
O General James Heathcote M. C. não teve morte de soldado; certa noite
simplesmente adormeceu junto à lareira, o Yorkshire Post no colo.
Naquela época, o primogênito do general, o Reverendo Alexander
Heathcote, presidia um pequeno grupo de fiéis na paróquia de Much Hadham,
em Hertfordshire. Depois de enterrar o pai com honrarias militares, colocou o
pequeno Imperador Ming sobre o consolo da lareira do presbitério. Poucos
membros da Liga de Mães apreciaram a obra-prima, mas uma ou duas velhas
senhoras chegaram a fazer comentários sobre a delicadeza de seu entalhe. E
somente depois de o Reverendo tornar-se Reverendíssimo, e de a estatueta
encontrar seu lugar no palácio episcopal, o Imperador atraiu a merecida
admiração. Muitos dos que visitavam o palácio, e que tinham ouvido a história
de como o avô do bispo adquirira a estátua Ming, ficavam fascinados ao
constatarem a disparidade entre a magnífica estátua e a base que a sustentava. O
assunto sempre ensejava uma boa conversa após o jantar.
Deus leva até mesmo Seus próprios embaixadores, mas Ele não o fez sem
antes permitir que o Bispo Heathcote concluísse um testamento, segundo o qual
deixava a estátua para o filho, com as exatas instruções do avô devidamente
reiteradas. O filho do bispo, o Capitão James Heathcote, era um oficial lotado no
regimento do avô, de modo que a estátua Ming retornou à mesa do refeitório em
Halifax. Durante a ausência do Imperador, os troféus regimentais foram
acrescidos pelos conquistados em Ypres, Marne e Verdun, O regimento achava-
se de novo em guerra com a Alemanha, e o jovem Capitão James Heathcote foi
morto nas praias de Dunquerque, sem deixar testamento. Por conseguinte,
prevalecendo a lei inglesa, a conhecida vontade de seu bisavô e o senso comum,
o pequeno Imperador passou a pertencer ao filho do capitão, de dois anos de
idade.
Alex Heathcote não tinha, lamentavelmente, o mesmo caráter de seus
valorosos antepassados e cresceu sem nenhum desejo de servir a ninguém que
não fosse ele mesmo. Quando da trágica morte do Capitão James, a mãe de
Alexander cercou profusamente o menino de tudo o que lhe permitiam os seus
parcos rendimentos. Isso nada remediou, e não foi inteiramente por culpa do
jovem Alex que ele se tornou, nas palavras de sua avó, um pirralho mimado e
egoísta.
Quando deixou a escola, apenas um pouco antes de estar na iminência de
uma expulsão, Alex concluiu que jamais conseguiria sujeitar-se a um emprego
por mais de algumas semanas. Sempre lhe parecia necessário gastar um pouco
mais do que ele, e em última instância sua mãe, podia suportar. A boa senhora,
sentindo que não tinha mais forças para levar aquela vida, partiu para reunir-se
aos outros Heathcote, não em Yorkshire, mas no céu.
Quando se abriram os cassinos na Inglaterra, nos agitados anos 60, o jovem
Alex estava convencido de que tinha encontrado a forma ideal de ganhar a vida
sem de fato precisar trabalhar. Desenvolvera um sistema de jogar na roleta com o
qual era impossível perder. Mas, com efeito, perdeu. Aperfeiçoou então o
sistema, mas logo perdeu mais; tornou a aperfeiçoá-lo e, como resultado, viu-se
obrigado a tomar dinheiro emprestado para cobrir os prejuízos. Por que não? Se
acontecesse o pior, consolava-se, sempre poderia vender o pequeno Imperador
Ming.
O pior aconteceu, na medida em que cada um dos sucessivamente
aperfeiçoados sistemas de Alex o levava, gradativamente, a uma dívida cada vez
maior — até que os cassinos começaram a exigir-lhe o pagamento. Numa manhã
de segunda-feira, Alex finalmente cedeu ao receber a inesperada visita de dois
homens que pareciam decididos a cobrar-lhe cerca de oito mil libras devidas aos
seus patrões e que chegaram a lhe fazer ameaças veladas de agressão física caso
o assunto não fosse resolvido dali a catorze dias. Afinal, as instruções de seu
trisavô tinham sido precisas: a estátua Ming poderia ser vendida se a honra da
família estivesse eventualmente em jogo.
Alex tirou o pequeno Imperador de cima do consolo da lareira de seu
apartamento, em Cadogan Gardens, e examinou o delicado trabalho artesanal,
tendo ao menos o cuidado de sentir uma certa tristeza por ter de se privar da
herança de família. Dirigiu-se em seguida para Bond Street e entregou a obra-
prima à Sotheby, instruindo-os de que o Imperador fosse posto a leilão.
O chefe do departamento de arte oriental, um homem magro e pálido,
apareceu à mesa de recepção para examinar a obra-prima com Alex, de alguma
maneira ele se parecia muito com a estátua Ming que segurava tão
carinhosamente nas mãos.
— Serão necessários alguns dias para estimarmos o valor real da peça —
disse ele em tom satisfeito —, mas estou quase certo, após este exame
superficial, de que a estátua é a mais admirável das peças de Pen Q que jamais
apregoamos em leilão.
— Isso não é problema — retrucou Alex —, desde que o senhor possa me
informar sobre seu valor dentro de duas semanas.
— Oh, certamente — respondeu o especialista. — Estou certo de que poderei
lhe dar o preço mínimo já na sexta-feira.
— Não poderia ser melhor — disse Alex.
Durante aquela semana, ele contatou todos os seus credores, que, sem
exceção, se declararam prontos a aguardar a avaliação do especialista. Alex
voltou pontualmente a Bond Street na sexta-feira com um largo sorriso nos
lábios. Sabia quanto seu trisavô pagara pela peça e tinha certeza de que a estátua
devia valer mais de dez mil libras. Uma importância que lhe permitiria não
apenas cobrir todas as dívidas mas também, com o que sobrasse, pôr à prova seu
recém-aperfeiçoado sistema na mesa de roleta. Enquanto subia os degraus da
Sotheby, Alex agradecia intimamente ao trisavô. Pediu à recepcionista para falar
com o chefe do departamento de arte oriental. Ela falou pelo interfone e dali a
instantes o especialista apareceu à primeira mesa com uma expressão grave no
rosto. O coração de Alex quase parou de bater ao ouvir as palavras que o homem
tinha para lhe dizer:
— Uma bela peça, o seu Imperador, mas, lamentavelmente, falsa;
provavelmente feita há duzentos, duzentos e cinquenta anos, mas apenas uma
cópia da original. As cópias eram muito comuns, porque...
— Quanto ela vale? — interrompeu-o, ansioso, Alex.
— Setecentas libras, oitocentas no máximo.
O suficiente para comprar um revólver e algumas balas, pensou Alex com
sarcasmo, enquanto se voltava e começava a afastar-se.
— Senhor, será que...? — continuou o especialista.
— Sim, sim, venda essa droga — disse Alex, sem se dar ao trabalho de olhar
para trás.
— E o que o senhor deseja que eu faça com a base?
— A base? — repetiu Alex, virando-se para encarar o orientalista.
— Sim, a base. Ela é realmente magnífica, século XV, sem dúvida uma obra
de gênio. Não posso imaginar como...
— Lote n° 103 — anunciou o leiloeiro. — Quanto me oferecem por este
magnífico exemplar de... ?
O especialista acertara em sua avaliação. No leilão da Sotheby, naquela
manhã de quinta-feira, adquiri o pequeno Imperador por setecentos e vinte
guinéus. A base? Foi comprada por um senhor americano, descendência de
forma nenhuma desconhecida, por vinte e dois mil guinéus.
The luncheon
O golpe
O jato 707 azul e prata, ostentando um grande “P” pintado em seu
estabilizador, deslizou sobre a pista e foi parar na cabeceira norte do Aeroporto
Internacional de Lagos. Uma frota de seis Mercedes pretos aproximou-se da
lateral do avião e esperou em fila, numa disposição que lembrava um crocodilo.
Seis motoristas, suados e uniformizados, saltaram dos carros e puseram-se de
prontidão, Assim que o motorista do primeiro carro abriu a porta traseira, o
Coronel Usman, da Guarda Federal, desceu e caminhou apressadamente até o pé
da escada de passageiros, trazida às pressas por quatro funcionários do
aeroporto.
A porta da cabina na seção dianteira abriu-se e o coronel, olhando fixamente,
avistou, no vão, contra a penumbra do interior da cabina, a silhueta de uma
aeromoça esguia e encantadora, vestindo um tailleur azul com debrum prateado.
Na lapela de seu paletó havia um grande “P”. Ela voltou-se na direção da cabina
e fez um sinal de cabeça. Segundos depois, um homem de estatura elevada,
impecavelmente vestido, de bastos cabelos pretos e olhos castanho-escuros,
tomou-lhe o lugar no vão da porta. O homem possuía um porte naturalmente
elegante que outros milionários à custa de muito esforço pagariam boa parte de
sua fortuna para possuir. O coronel bateu continência quando o Senhor Eduardo
Francisco de Silveira, comandante do império Prentino, fez um breve
cumprimento de cabeça.
Silveira deixou a agradável temperatura do ar condicionado do 707 para
entrar no calor do causticante sol nigeriano sem demonstrar o menor sinal de
desconforto. O coronel conduziu o alto e distinto brasileiro, que se fazia
acompanhar por seu secretário particular, até o primeiro Mercedes, enquanto os
demais funcionários da Prentino desciam em fila a escada colocada na traseira
do avião e ocupavam os outros cinco carros. O motorista, um cabo que fora
destacado para servir dia e noite ao ilustre visitante, abriu a porta de trás do
primeiro carro e faz continência. Eduardo de Silveira não mostrou sinal de
reconhecimento. O cabo sorriu nervosamente, revelando a dentadura mais
branca que o brasileiro jamais vira.
— Bem-vindo a Lagos -— arriscou o cabo. — Espero que realize bons
negócios durante sua estada na Nigéria.
Eduardo nada comentou. Recostou-se no banco e pôs-se a observar, através
da janela embaçada, a longa fila dos passageiros do 707 da British Airways, que
aterrissara pouco antes dele, que, de pé na pista escaldante, esperavam
pacientemente passar pela alfândega. O motorista engatou a primeira marcha e o
crocodilo preto iniciou sua viagem. O Coronel Usman, agora sentado no banco
da frente ao lado do motorista, logo descobriu que o visitante brasileiro não era
de muita conversa, e que seu secretário, sentado ao seu lado, em nenhum
momento abriu a boca. Acostumado a tomar como exemplo a conduta alheia, o
coronel permaneceu em silêncio, deixando Silveira refletir sobre o plano de sua
campanha na Nigéria.
Eduardo Francisco de Silveira nascera na pequena cidade de Rebeti, 160
quilômetros ao norte do Rio de Janeiro, herdeiro de uma das duas maiores
fortunas familiares do Brasil. Recebera instrução particular na Suíça e em
seguida cursara a Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Completou os
estudos na Escola de Comércio de Harvard. Depois de formado, deixou os
Estados Unidos para trabalhar no Brasil, onde não começou nem por cima nem
por baixo na firma, mas pelo meio, gerenciando a empresa de mineração da
família em Minas Gerais. Em pouco tempo conseguiu chegar ao topo da
hierarquia, mais rápido até do que o pai imaginara, mas então o rapaz mostrou
que filho de peixe, mais que peixinho é. Aos 29 anos, casou-se com Maria, a
filha mais velha do melhor amigo do pai, e quando este veio a falecer, doze anos
depois, Eduardo o sucedeu no trono da Prentino. Eram ao todo sete filhos:
Alfredo, o segundo, cuidava dos negócios bancários; loão gerenciava a
expedição; Carlos organizava a construção; Manuel providenciava mantimentos
e suprimentos; Jaime administrava os jornais da família; e o caçula Antonio, o
último — mas não menos importante —, dirigia as fazendas. Todos dirigiam-se a
Eduardo antes de tomar qualquer decisão importante, pois ele ainda era o
presidente da maior empresa privada do Brasil, não obstante as pretensões
arrogantes de seu velho inimigo de família, Manuel Rodrigues.
Quando o regime militar do General Castelo Branco depôs o governo civil,
em 1964, os generais, uma vez que não podiam eliminar todos os Silveira ou os
Rodrigues, concordaram que era melhor aprender a conviver com as duas
famílias rivais. Os Silveira, de sua parte, sempre tiveram o bom senso de nunca
se envolverem em política, a não ser distribuindo recompensas financeiras a
membros do governo, militares ou civis, conforme seu escalão. Isto assegurava
que o império Prentino crescesse independentemente da facção que subisse ao
poder. Uma das razões por que Eduardo de Silveira reservara três dias de sua
abarrotada agenda para uma visita a Lagos era a grande semelhança entre os
sistemas de governo nigeriano e o brasileiro, e ao menos naquele projeto ele
conseguira frustrar os planos de Manuel Rodrigues, o que compensaria
plenamente a perda da concorrência do aeroporto do Rio em favor do rival.
Eduardo sorriu ao pensar que Rodrigues nem sequer o imaginava na Nigéria para
fechar um negócio que o tornaria duas vezes mais poderoso que ele.
Enquanto o Mercedes preto movia-se lentamente pelas ruas barulhentas e
congestionadas, sem respeitar os vermelhos ou verdes dos semáforos, Eduardo
recordava-se de seu primeiro encontro com o General Mohammed, o Chefe de
Estado nigeriano, por ocasião de sua visita oficial ao Brasil. Falando durante o
jantar oferecido em homenagem ao General Mohammed, o Presidente Ernesto
Geisel manifestou sua esperança de que as duas nações chegassem a uma
cooperação mais estreita nos campos político e comercial. Eduardo concordava
com seu líder não-eleito e com a maior satisfação deixaria a política para o
presidente se este lhe permitisse desenvolver a parte comercial. O General
Mohammed formulou sua resposta em nome dos convidados, com um sotaque
britânico que normalmente só se atribuía a Oxford. Discorreu longamente sobre
o projeto que lhe era mais caro, a construção de uma nova capital nigeriana em
Abuja, uma cidade que, no seu entender, poderia até mesmo rivalizar com
Brasília. Encerrados os discursos, o general chamou Silveira de lado e, depois de
lhe falar mais detidamente sobre o projeto da cidade de Abuja, perguntou se ele
não gostaria de refletir sobre a possibilidade de apresentar uma proposta sua.
Eduardo sorriu e apenas desejou que seu inimigo, Rodrigues, estivesse ouvindo
aquela conversa confidencial com o Chefe de Estado nigeriano.
Eduardo examinou atentamente a proposta inicial que recebeu uma semana
mais tarde, após o retorno do general à Nigéria, e, concordando com o que lhe
tinha sido solicitado, enviou a Lagos uma equipe de sete pesquisadores para que
concluíssem um estudo sobre a viabilidade de Abuja.
Um mês depois o minucioso relatório da equipe estava nas mãos de Silveira.
Eduardo chegou à conclusão de que a lucratividade potencial do projeto
justificava a elaboração de um estudo completo endereçado ao governo
nigeriano. Contatou pessoalmente o General Mohammed e verificou que ele
estava de pleno acordo e autorizava o prosseguimento do trabalho. Desta vez,
vinte e três homens foram enviados a Lagos e, três meses e cento e setenta
páginas depois, Eduardo assinou e chancelou o projeto denominado “Uma nova
capital para a Nigéria”. Fez apenas uma alteração no documento final. A capa da
proposta era azul e prata, com o logotipo da Prentino estampado no centro;
Eduardo mudou-a para verde e branco, as cores nacionais da Nigéria, com o
emblema nacional de uma águia sobre dois cavalos: aprendera que pequenas
coisas é que impressionavam os generais e faziam pender a balança. Mandou ao
Chefe de Estado da Nigéria dez exemplares do estudo de viabilidade, junto com
uma fatura no valor de um milhão de dólares.
Depois de estudar a proposta, o General Mohammed convidou Eduardo de
Silveira para ir à Nigéria como seu hóspede, a fim de discutirem a etapa seguinte
do projeto. Silveira respondeu por telex, em princípio aceitando o convite e
lembrando, polida mas firmemente, que ainda não tinha recebido o
ressarcimento do um milhão de dólares gasto no estudo inicial de viabilidade.
Em resposta o dinheiro foi mandado por telex pelo Banco Central da Nigéria e
Silveira conseguiu encontrar quatro dias consecutivos de sua agenda para o
“Projeto da Nova Capital Federal”. Seu programa exigia que chegasse a Lagos
numa manhã de segunda-feira, porque teria de estar em Paris o mais tardar na
noite de quinta-feira.
Enquanto esses pensamentos atravessavam a mente de Eduardo, o Mercedes
se deteve diante de Dodan Barracks. Os portões de ferro abriram-se e um guarda
apresentou armas, numa saudação normalmente reservada apenas a um Chefe de
Estado em visita. O Mercedes preto transpôs lentamente os portões e parou
diante da residência presidencial. Um brigadeiro esperava nos degraus da escada
para conduzir Silveira até a presença do presidente.
Os dois homens almoçaram numa pequena sala que lembrava muito um
rancho de oficiais britânicos. A refeição consistia de um bife que não teria sido
apreciado nem mesmo por um vaqueiro sul-americano, rodeado por legumes que
despertaram em Eduardo lembranças do tempo de escola. Até aquele momento,
contudo, Eduardo jamais conhecera um soldado que compreendesse que um bom
cozinheiro-chefe era tão importante quanto um bom ordenança. Durante o
almoço conversaram genericamente sobre os problemas envolvidos na
construção de uma nova cidade, inteiramente incrustada na floresta equatorial.
A estimativa provisória do custo do projeto fora de um milhão de dólares,
mas, quando Silveira alertou o presidente de que, concluída a obra, seu
orçamento poderia alcançar, aproximadamente, três milhões de dólares, o
presidente ficou um tanto alarmado. Silveira tinha de admitir que aquele seria o
mais ambicioso projeto já assumido pela Prentino International, mas não deixou
de salientar ao presidente que o mesmo seria verdadeiro para qualquer empresa
construtora do mundo.
Silveira, um homem que não punha seus maiores trunfos na mesa antes de
chegar o momento oportuno, esperou até o café para introduzir o assunto de que
acabara de ganhar a concorrência, contra um grupo de fortes opositores (que
incluía Rodrigues), para construir uma rodovia de oito pistas que atravessaria a
selva amazônica e, eventualmente, faria ligação com a Pan-americana; um
contrato inferior em grandeza apenas àquele que agora pretendiam fechar na
Nigéria. Impressionado, o presidente quis saber se o empreendimento não
impediria Silveira de envolver-se no projeto da nova capital.
— Terei uma resposta a esta pergunta dentro de três dias — respondeu o
brasileiro, e comprometeu-se a manter um breve encontro com o Chefe de
Estado ao final de sua visita, quando lhe esclareceria se estava ou não em
condições de assumir a execução da obra.
Após o almoço, Eduardo foi levado ao Federal Palace Hotel, cujo sexto
andar inteiro fora colocado à sua disposição. A vários hóspedes queixosos que
estavam na Nigéria para fechar negócios que envolviam alguns meros milhões a
gerência do hotel solicitou que desocupassem seus quartos imediatamente, de
modo que abrigassem Silveira e sua comitiva. Eduardo nada sabia desse
procedimento, já que sempre havia um quarto disponível para ele em qualquer
parte do mundo em que chegasse.
Os seis Mercedes estacionaram diante do hotel e o coronel guiou seu tutelado
pela porta de vaivém, passando direto pela recepção. Eduardo não fazia um
registro de entrada num hotel havia catorze anos, salvo nas ocasiões em que
preferia registrar-se com nome falso, não desejando que se conhecesse a
identidade da mulher que eventualmente o acompanhasse.
O presidente da Prentino International cruzou o centro do corredor principal
do hotel e entrou no elevador que esperava. Suas pernas fraquejaram e ele de
repente sentiu-se mal. No canto do elevador estava um homem excessivamente
gordo, atarracado, calvo, vestindo calças jeans surradas e camiseta, abrindo e
fechando a boca ao mascar um chiclete. Os dois homens mantiveram-se distantes
um do outro o mais possível, sem darem o menor sinal de reconhecimento. O
elevador parou no quinto andar e Manuel Rodrigues, presidente da Rodrigues
International S.A., saiu, deixando atrás de si o homem que havia trinta anos era
seu inimigo figadal.
Ainda aturdido, Eduardo procurou equilibrar-se agarrando o anteparo do
elevador. Como desprezava aquele novo-rico inculto e batalhador, cuja família
de quatro meios-irmãos, todos de pais diferentes, arrogava-se a direção da maior
empresa construtora do Brasil. Os dois homens estavam tão interessados um no
fracasso do outro quanto em seu próprio sucesso pessoal.
Eduardo ficou um tanto intrigado com a presença de Rodrigues em Lagos,
uma vez que tinha certeza de que seu adversário não fizera nenhum contato
prévio com o presidente nigeriano. Afinal, Eduardo jamais cobrara o aluguel da
pequena casa no Rio em que morava a amante de um antigo funcionário do
departamento de protocolo do governo. E a única tarefa daquele homem era
assegurar que Rodrigues nunca fosse convidado a qualquer solenidade a que
comparecesse um dignitário em visita ao Brasil. A sistemática ausência de
Rodrigues nessas cerimônias governamentais garantia a “distração” do agente
imobiliário de Eduardo no Rio.
Eduardo jamais admitiria explicitamente que a presença de Rodrigues o
preocupava, mas, apesar disso, resolveu averiguar imediatamente o motivo que
trouxera o velho inimigo à Nigéria. Assim que chegou à suíte, instruiu o
secretário particular de que verificasse o que tramava Manuel Rodrigues.
Eduardo estava pronto para retornar imediatamente ao Brasil se descobrisse que
Rodrigues estava de algum modo envolvido no projeto da nova capital, ao
mesmo tempo que a jovem senhora do Rio se veria de uma hora para outra
obrigada a procurar outras acomodações.
Durante a tarde, Silveira examinou desgostoso sua agenda para os sete dias
seguintes. Deveria estar em Paris naquela manhã para avistar-se com o ministro
do Interior e de lá voaria para Londres para um encontro com o presidente da
Steel Board. Todos os próximos noventa e dois dias, até as férias de sua família,
em maio, estavam preenchidos. “Passarei as férias deste ano na Nigéria”,
comentou ele, amargurado, com um assistente.
O que mais aborrecia Eduardo com respeito ao golpe era a consequente
interrupção da comunicação com o mundo exterior. Não sabia o que estava
acontecendo no Brasil e irritava-se por não poder telefonar ou passar um telex
para Paris ou Londres explicando pessoalmente sua ausência. Contraíra o hábito
de ouvir a cada instante a Rádio Nigéria esperando alguma nova informação. Às
cinco horas soube que o Supremo Conselho Militar havia eleito um novo
presidente, que se dirigiria à nação através do rádio e da televisão às nove horas
daquela noite.
Eduardo voltou mais uma vez ao restaurante; Manuel tinha pedido uma
garrafa do melhor champanhe do hotel. Quando tinham mandado vir a segunda
garrafa, cantando uma animada versão de Está chegando a hora, o secretário
particular de Eduardo voltou a apresentar-se ao seu lado, desta vez com mais
dois telexes: um do presidente do Banco do Brasil e o outro do irmão Carlos.
Ambos solicitavam a confirmação do acordo de sociedade para o projeto da
estrada amazônica. Eduardo desarrolhou a segunda garrafa de champanhe sem
olhar para o secretário particular.
— Confirme Rodrigues International Construction para o presidente do
banco e para o meu irmão — disse, enquanto enchia o copo de Manuel. — E não
me incomode mais esta noite.
— Sim, senhor — respondeu o secretário particular, retirando-se sem mais
uma palavra.
Nenhum dos dois seria capaz de lembrar-se a que horas se deitou naquela
noite, mas na manhã seguinte, logo cedo, Silveira foi bruscamente despertado de
um sono profundo por seu secretário. O Tenente-Coronel Dimka fora capturado
em Kano, às três da madrugada, e todos os aeroportos tinham voltado a
funcionar. Eduardo pegou o telefone e discou três números.
— Manuel, você já sabe das novas?... Bom... Então vamos embora comigo
no meu 707, senão você só conseguirá viajar daqui a dias... Dentro de uma hora
nos encontramos no saguão... Certo. Até lá.
The coup
O primeiro milagre
O dia seguinte seria o primeiro anno Domini, mas ninguém tinha lhe dito
isso.
Se tivessem, ele não teria entendido, porque para ele aquele era o
quadragésimo terceiro ano do reinado do imperador e, além do mais, tinha outras
preocupações na cabeça. A mãe ainda estava zangada com ele e ele não podia
negar que se comportara mal o dia inteiro, mesmo pelos padrões normais de uma
criança de treze anos. Não tinha culpa de ter quebrado o cântaro quando a mãe o
mandou buscar água no poço. Tentou explicar-lhe que tropeçara sem querer
numa pedra; e isso, pelo menos isso, era verdade. O que não lhe contou foi que,
quando isso aconteceu, estava correndo atrás de um cão vadio. E depois foi o
caso daquela romã; como podia adivinhar que era a última e que o pai tinha
predileção por romãs? O menino agora estava com medo que o pai voltasse e lhe
desse outra surra. Lembrava-se ainda da última: por dois dias não pôde se sentar
sem sentir dor e as pequenas feridas avermelhadas levaram mais de três semanas
para cicatrizar.
Sentado num canto assombreado do peitoril da janela, ele tentava encontrar
alguma forma de redimir-se aos olhos da mãe, agora que ela o havia expulsado
da cozinha. Vá lá para fora brincar, insistiu ela depois que ele derramou um
pouco de óleo de cozinha sobre a túnica. Mas isso não era nada divertido, já que
só podia brincar sozinho. O pai proibira-o de se misturar com os meninos da
região. Como detestava aquele país! Se estivesse em sua terra natal, com os
amigos, teria muitas coisas para fazer.
Ainda bem que só faltavam três semanas para ele... A porta escancarou-se e a
mãe entrou. Vestia uma daquelas finas túnicas pretas que se usavam na região:
deixavam o corpo mais arejado, explicara ela ao pai do menino. Ele resmungara,
desaprovando, e todas as noites, antes que ele voltasse, ela tornava a vestir uma
túnica romana.
— Ah, você está aqui — disse ela ao filho, que estava de cócoras.
— Sim, mamãe.
— Sonhando acordado como sempre. Bem, acorde, porque preciso que você
vá à aldeia fazer compras para mim.
— Sim, mamãe, vou já já — disse o menino, saltando do peitoril da janela.
— Mas pelo menos espere eu dizer o que quero.
— Desculpe, mamãe.
— Agora escute, e escute com atenção. — Enquanto falava, enumerava as
coisas nos dedos da mão. — Quero uma galinha, um punhado de passas, figos,
tâmaras e.. . ah, sim, duas romãs.
À menção das romãs o rosto do menino enrubesceu e ele apressou-se a
baixar os olhos, na esperança de que ela tivesse esquecido. A mãe tirou duas
pequenas moedas da bolsa que trazia presa na cintura, e antes de entregá-las
obrigou o menino a repetir o que devia trazer.
— Uma galinha, passas, figos, tâmaras e duas romãs — recitou ele, tal como
fazia com os versos do moderno poeta Virgílio.
— E preste atenção para ver se lhe dão o troco certo — acrescentou ela. —
Lembre-se de que as pessoas daqui não perdem a oportunidade de trapacear.
— Sim, mamãe... — Por um momento o menino hesitou.
— Se se lembrar de tudo e trouxer de volta o troco certo, nada direi a seu pai
sobre o cântaro quebrado e a romã.
O menino guardou sorrindo na túnica as moedinhas de prata, saiu correndo
da casa, e foi dar na guarda da guarnição. O legionário em serviço levantou a
grande tranca de madeira do portão para deixá-lo sair. O menino passou, de um
salto, pela abertura no portão e sorriu para o guarda.
Ainda bem que só faltavam três semanas para ele...
A porta escancarou-se e a mãe entrou. Vestia uma daquelas finas túnicas
pretas que se usavam na região: deixavam o corpo mais arejado, explicara ela ao
pai do menino. Ele resmungara, desaprovando, e todas as noites, antes que ele
voltasse, ela tornava a vestir uma túnica romana.
— Ah, você está aqui — disse ela ao filho, que estava de cócoras.
— Sim, mamãe.
— Sonhando acordado como sempre. Bem, acorde, porque preciso que você
vá à aldeia fazer compras para mim.
— Sim, mamãe, vou já já — disse o menino, saltando do peitoril da janela.
— Mas pelo menos espere eu dizer o que quero.
— Desculpe, mamãe.
— Agora escute, e escute com atenção. — Enquanto falava, enumerava as
coisas nos dedos da mão. — Quero uma galinha, um punhado de passas, figos,
tâmaras e.. . ah, sim, duas romãs.
À menção das romãs o rosto do menino enrubesceu e ele apressou-se em
baixar os olhos, na esperança de que ela tivesse esquecido. A mãe tirou duas
pequenas moedas da bolsa que trazia presa à cintura, e antes de entregá-las
obrigou o menino a repetir o que devia trazer.
— Uma galinha, passas, figos, tâmaras e duas romãs — recitou ele, tal como
fazia com os versos do moderno poeta Virgílio.
— E preste atenção para ver se lhe dão o troco certo — acrescentou ela. —
Lembre-se de que as pessoas daqui não perdem a oportunidade de trapacear.
— Sim, mamãe... — Por um momento o menino hesitou.
— Se se lembrar de tudo e trouxer de volta o troco certo, nada direi ao seu
pai sobre o cântaro quebrado e a romã.
O menino guardou sorrindo na túnica as moedinhas de prata, saiu correndo
da casa, e foi dar na guarda da guarnição. O legionário em serviço levantou a
grande tranca de madeira do portão para deixá-lo sair. O menino passou, de um
salto, pela abertura no portão e sorriu para o guarda.
— Arrumou mais alguma encrenca hoje? — gritou-lhe o guarda.
— Não, desta vez não — respondeu o menino. — Estou a ponto de me
redimir.
Despediu-se do guarda com um aceno e começou a caminhar apressado em
direção à aldeia, cantarolando uma música que lhe lembrava a terra natal.
Andava no centro da trilha tortuosa e poeirenta que os habitantes ousavam
chamar de estrada e que lhe parecia exigir que passasse a metade do tempo
tirando pedrinhas das sandálias. Se o pai tivesse sido destacado para servir ali há
mais tempo, ele teria feito algumas obras; aí, sim, teriam uma estrada de
verdade, reta e larga o suficiente para passar uma carruagem. Sua mãe, então, já
teria escolhido melhor as servas. Das que tinham, nenhuma sabia pôr uma mesa
ou mesmo preparar uma comida que fosse pelo menos limpa. Pela primeira vez
na vida via a mãe na cozinha, e tinha certeza de que seria a última, pois
voltariam logo para casa, agora que o pai ia chegando ao fim de sua missão.
O sol da tarde o envolvia todo enquanto caminhava; era um sol bem grande e
vermelho, do mesmo vermelho vivo da túnica do pai. O calor de seus raios fazia-
o transpirar e deixava-o com muita sede. Talvez sobrasse dinheiro suficiente para
comprar uma romã para si mesmo. Não via a hora de levar uma para casa e
mostrar aos amigos quanto eram grandes ali naquele país bárbaro. Marcus, seu
melhor amigo, já devia ter visto romãs daquele tamanho, porque seu pai já tinha
comandado toda uma legião naquelas paragens, mas o resto dos companheiros
ficaria impressionado.
A aldeia para onde a mãe o mandara ficava a apenas três quilômetros da
guarnição e a trilha poeirenta estendia-se ao longo do pé de uma colina que se
elevava por sobre um extenso vale. A estrada já estava cheia de caminhantes que
deviam estar indo buscar abrigo na aldeia. Todos eles haviam abandonado as
colinas por ordens expressas do pai, que tinha sido investido de autoridade pelo
próprio imperador em pessoa. Quando completasse dezesseis anos, também ele
serviria ao imperador. Seu amigo Marcus desejava ser soldado e conquistar o
resto do mundo. Ele, porém, estava mais interessado no estudo das leis e em
ensinar os costumes de seu país aos povos bárbaros das terras conquistadas.
Marcus dissera: “Eu os dominarei para que depois você possa governá-los.”
Aquela era uma justa distribuição de tarefas entre miolos e músculos,
respondera ele ao amigo, que pareceu não gostar nem um pouco, pois deu-lhe
um caldo no primeiro banho que encontrou.
O menino apressou o passo, pois sabia que tinha de estar de volta à
guarnição antes que o sol desaparecesse por trás das colinas. O pai lhe dissera
várias vezes que ele deveria cuidar de recolher-se sempre à segurança de casa
antes do crepúsculo. Sabia que o pai não era benquisto pelos habitantes, e fora
alertado de que sempre estaria seguro enquanto fosse dia, já que ninguém se
atreveria a lhe fazer mal à vista de todos, mas com o cair da noite tudo poderia
acontecer. De uma coisa ele tinha certeza: quando crescesse, não queria ser
coletor de impostos nem censor.
Assim que chegou à aldeia, encontrou as estreitas e tortuosas vielas que
separavam as casinhas brancas fervilhando de gente que vinha de todas as
regiões vizinhas, a fim de, em obediência às ordens de seu pai, registrar-se no
censo, e passar então a recolher impostos. O menino tirou a plebe do
pensamento. (Fora Marcus que lhe ensinara a chamar todos os estrangeiros de
plebe.) Logo que entrou no mercado também tirou Marcus do pensamento para
se concentrar em procurar as provisões que a mãe queria. Desta vez não podia
errar, senão na certa acabaria levando uma surra do pai. Andou com vivacidade
por entre as barracas, examinando as mercadorias com muito cuidado. Algumas
pessoas do lugar olhavam com estranheza aquele menino de pele clara, de
cabelos castanhos encaracolados e nariz reto, de linhas firmes. Não apresentava
nenhum sinal de imperfeição ou doença, como a maioria deles. Outras
desviavam o olhar; afinal, ele era um autêntico representante do dominador. Tais
pensamentos não passaram pela sua cabeça. O menino notou apenas que a pele
daqueles nativos era crestada e cheia de sulcos devido à intensa exposição ao sol.
Ele sabia que tomar muito sol fazia mal: a gente envelhece bem antes do tempo,
prevenira-o o preceptor.
Na última barraca, o menino viu uma velha pechinchando uma galinha viva e
bastante carnuda; ao vê-lo aproximar-se ela saiu correndo, assustada, deixando a
ave. Ele olhou para o mercador e recusou-se a barganhar com o aldeão. Isso não
condizia com sua posição. Apontou para a galinha e deu ao camponês um
denário. O homem mordeu a moeda de prata e olhou a efígie de César Augusto,
imperador de metade do mundo. (Quando seu preceptor lhe falou, durante uma
aula de história, sobre as realizações do imperador, ele lembrava-se de ter
pensado: espero que César não conquiste o mundo inteiro antes que eu tenha a
oportunidade de participar.) O mercador continuava examinando a moeda de
prata.
— Vamos com isso! Não tenho o dia inteiro — disse o menino, à maneira de
seu pai.
O homem não respondeu, pois não entendia o que o menino estava dizendo.
Mas sabia, com certeza, que seria pouco prudente desagradar ao invasor.
Segurou com firmeza a galinha pelo pescoço e, sacando uma faca da cinta,
cortou-lhe a cabeça com um só movimento, entregando, depois, a ave abatida ao
menino. Em seguida devolveu-lhe algumas moedas locais que traziam
estampada a imagem de um homem que o pai do menino mencionava como
“aquele inútil do Herodes”. O menino conservou a mão estendida, a palma para
cima, e o homem foi nela depositando até o último de seus talentos de bronze.
Quando viu que ele não tinha mais nenhum, o menino o deixou. Na barraca
seguinte, apontou para os sacos de passas, figos e tâmaras. O outro mercador
pesou a quantidade de cada um deles, pelos quais recebeu cinco das inúteis
moedas de Herodes. Quando o homem estava prestes a reclamar da troca, o
menino olhou-o fixamente nos olhos, do jeito que vira o pai fazer inúmeras
vezes. O mercador desistiu e limitou-se a inclinar a cabeça.
E agora, o que mais queria a mãe? Deu tratos à bola. Uma galinha, passas,
figos e... claro, duas romãs. Procurou entre as barracas de frutas frescas e
escolheu três romãs; abrindo uma delas, começou a comê-la, cuspindo os
caroços no chão. Pagou o mercador com os dois talentos de bronze que lhe
restaram, sentindo-se feliz porque, além de ter comprado o que a mãe queria, ia
para casa com um dos denários de prata. Até o pai ficaria impressionado com
isso. Terminou de comer a romã e, com os braços carregados, deixou lentamente
o mercado rumo à guarnição, tentando desviar dos cães vadios que a toda hora se
punham no seu caminho. Eles latiam e de vez em quando avançavam nos seus
tornozelos: não sabiam quem era ele.
Ao deixar a aldeia, viu que o sol já estava se escondendo atrás da colina mais
alta e, lembrando-se da recomendação do pai de que estivesse em casa antes do
anoitecer, apertou o passo. Ao verem-no descer a trilha pedregosa, os
caminhantes que iam para a aldeia se afastavam respeitosamente, mantendo
distância, para que ele tivesse uma visão clara de até onde os olhos conseguiam
alcançar, o que não era muito, porque era grande o volume que carregava nos
braços. Apesar disso, erguendo rapidamente os olhos, vislumbrou alguns passos
à sua frente um homem de longas barbas — uma maneira desleixada e porca de
se apresentar, dissera-lhe uma vez o pai —, usando o traje roto que indicava ser
ele da tribo de Jacó, puxando um burro teimoso que carregava uma mulher
bastante gorda. A mulher, como ditava o costume, estava vestida de preto da
cabeça aos pés. O menino estava pronto para ordenar-lhes que saíssem de seu
caminho quando o homem deixou o burro na beira da estrada e entrou numa casa
que, a julgar pela tabuleta, era uma estalagem.
Uma construção como aquela, em sua terra natal, nunca teria sido aprovada
pela fiscalização dos conselheiros locais como abrigo de viajantes. Mas o
menino sabia que, principalmente naquela semana, era de fato um luxo encontrar
até mesmo uma esteira para estender o corpo. Viu o homem barbudo sair da casa
com uma expressão de desalento no rosto cansado. Não devia haver
acomodações na hospedaria.
O menino, que poderia tê-lo informado disso antes mesmo que ele entrasse,
ficou curioso por saber o que faria agora o homem, já que aquela era a última
estalagem da estrada. Não que estivesse verdadeiramente interessado pela sorte
deles; pouco se lhe dava se o casal dormisse ao relento nas colinas. Aliás só lhes
restaria fazer isso. O homem de longas barbas disse alguma coisa para a mulher
apontando para os fundos da hospedaria; em seguida, sem dizer mais nada,
conduziu o burro na direção que indicara. O menino não imaginava o que
poderia haver ali atrás da hospedaria e, com a curiosidade aguçada, seguiu-os.
Ao chegar aos fundos da casa, viu o homem tentando fazer o burro passar pela
porta de um lugar que lhe pareceu ser um estábulo. O menino seguiu o estranho
grupo e espiou através da fresta deixada pela porta entreaberta. O estábulo estava
coberto de palha suja e coalhado de galinhas, carneiros e bois; o cheiro ali
reinante recordava ao menino os esgotos instalados nas ruas de sua terra natal.
Começou a sentir enjoo. O homem começou a remover a parte mais suja da
forração do centro do estábulo, para terem um cantinho limpo onde descansar —
uma tarefa quase inútil, pensou o menino. Quando o homem terminou de fazer o
melhor que pôde, tomou a mulher nos braços, ajudando-a a desmontar do burro,
e depositou-a delicadamente sobre a palha. Em seguida aproximou-se de uma
tina de água no outro lado do estábulo, onde um dos bois bebia. Pegou água com
as mãos em concha e voltou para junto da mulher gorda.
O menino começava a se aborrecer e estava se preparando para partir quando
a mulher curvou-se para a frente e bebeu das mãos do homem. O xale
escorregou, descobrindo-lhe a cabeça, e pela primeira vez ele viu seu rosto.
Ficou paralisado, olhando-a fixamente. Nunca vira mulher mais bela. Ao
contrário dos membros comuns de sua tribo, sua pele tinha um quê de
translúcido e seus olhos brilhavam; mas o que mais impressionava o menino era
seu porte e sua presença. Nunca se sentira tão tomado pela admiração, nem
mesmo quando visitara o Senado para ouvir uma pronunciamento de César
Augusto.
Por um instante permaneceu hipnotizado, mas logo decidiu o que fazer.
Passando pela porta aberta, encaminhou-se para a mulher, ajoelhou-se diante
dela e lhe ofereceu a galinha. Ela sorriu; ele lhe presenteou também as romãs e
ela tornou a sorrir. Ele então depôs tudo o que trazia diante dela, que continuava
em silêncio. O homem de longas barbas voltou com mais água e, ao deparar com
o jovem estrangeiro, caiu de joelhos, derramando a água sobre a palha, e cobriu
o rosto. O menino ficou de joelhos por algum tempo, depois levantou-se e
caminhou lentamente até a porta do estábulo. Ao sair, voltou-se e olhou mais
uma vez o rosto da bela mulher. Ela nada disse.
Depois de breve hesitação, o jovem romano inclinou a cabeça e retirou-se.
O menino, diante do pai, contou tudo o que acontecera. Começando pela ida
à aldeia, contou que tivera um grande cuidado em escolher a comida, porque,
com isso, economizava metade do dinheiro que a mãe lhe dera. Contou depois
que, já a caminho de casa, encontrara a senhora gorda montada no burro, que
não conseguira abrigo na hospedaria, e explicou por que lhe dera toda a comida.
Continuando a descrição, falou dos pastores que gritavam e cantavam até
aparecer no céu um grande clarão, quando fizeram silêncio e se ajoelharam; e
finalmente dos três homens paramentados que procuravam o Rei dos Reis.
À medida que ouvia a narrativa do filho, o pai ia ficando cada vez mais
furioso.
— Isso é história que se conte! — gritou ele. — Continue. Você encontrou
esse tal de Rei dos Reis?
— Não, senhor, eu não — respondeu ele, enquanto o pai se levantava e
começava a andar de um lado para o outro.
— Talvez haja uma explicação bem mais simples para o seu rosto e os seus
dedos estarem manchados do vermelho de suco de romã — insinuou ele.
— Não, papai. Comprei uma romã a mais, mas mesmo depois de ter
comprado tudo consegui economizar um denário.
O menino devolveu à mãe a moeda de prata, acreditando que assim
confirmava a veracidade de sua história. Ao ver a moeda, porém, o pai ficou
ainda mais irritado. Parou de andar e encarou o filho bem dentro dos olhos.
— Você gastou o outro denário com você mesmo e por isso não conseguiu
nada para trazer!
— Isso não é verdade, papai, eu...
— Pois então te dou uma outra oportunidade de me dizer a verdade — disse
o pai, sentando-se. — Se não for, filho, te darei uma surra que você não
esquecerá para o resto da vida.
— Mas eu lhe disse a verdade, papai.
— Ouça-me com atenção, filho. Nascemos romanos, nascemos para
governar o mundo, porque nossas leis e nossos costumes são sólidos, inspiram
confiança e foram sempre baseados em honestidade absoluta. Os romanos não
mentem jamais; isso constitui a nossa força e a fraqueza dos nossos inimigos.
Por isso governamos, ao mesmo tempo que outros são governados, e enquanto
for assim o Império Romano nunca será derrotado. Entende o que estou dizendo,
filho?
— Sim, papai, entendo.
— Então você também entende por que é imperioso dizer a verdade.
— Mas eu não menti, papai.
— Nesse caso, não há esperança para você — disse o homem, irado. — E
resta-me apenas uma maneira de resolver esta questão.
A mãe do menino teve o impulso de socorrer o filho, mas sabia que qualquer
protesto seria ignorado. O pai levantou-se da cadeira, tirou o cinto de couro da
cintura e o dobrou em dois, deixando os pesados botões de latão do lado de fora.
Ordenou então ao filho que se curvasse e tocasse os dedos dos pés. O menino
obedeceu sem vacilar; o pai ergueu a faixa de couro no ar e desceu-a com toda a
força contra a criança. O menino em nenhum momento retraiu o corpo ou emitiu
um lamento, enquanto a mãe dava as costas para a cena e chorava. Depois de
aplicar o décimo segundo golpe, o pai mandou que o filho fosse para o quarto. O
menino saiu sem dizer uma palavra; a mãe o seguiu e viu-o subir a escada.
Correu para a cozinha e pegou um pouco de unguento e óleo de oliva com que
esperava aliviar a dor das feridas do filho. Levou as pequenas ânforas para o
quarto dele, onde o encontrou já deitado. Aproximou-se dele e puxou o lençol.
Depois despiu delicadamente sua túnica de dormir, receando que a fricção do
tecido lhe aumentasse a dor. Olhou fixamente o corpo do filho, sem acreditar no
que via.
A pele do menino não exibia nenhuma marca.
Correndo levemente os dedos sobre o corpo perfeito do filho, ela constatou
que ele estava tão liso quanto após um banho. Virou-o de bruços: nenhuma
marca em parte alguma. Cobriu-o rapidamente com o lençol.
— Jamais diga a seu pai o que vou te dizer agora; tire de sua lembrança para
sempre, pois isso vai deixá-lo ainda mais furioso.
— Sim, mamãe.
A mãe curvou-se e apagou com um sopro a chama da vela junto à cama;
pegou os óleos dispensáveis e caminhou até a porta na ponta dos pés. No limiar,
imersa na penumbra, virou-se para olhar o filho e disse:
— Agora sei que você disse a verdade, Pôncio.
Michael pegou uma ponte área para Nova Iorque na tarde de quinta-feira
logo que terminou de passar a reportagem do discurso do presidente para a sede
de Londres. Depois de instalar-se em outro quarto de hotel — desta vez com
cama de casal, para o caso de os filhos de Debbie estarem em casa —, tomou um
demorado banho e fez lentamente a barba, cortando-se duas vezes e exagerando
um pouco demais na loção pós-barba. Remexeu as roupas, à procura da gravata,
da camisa e do terno mais elegantes, e assim que se vestiu examinou-se diante
do espelho, penteando cuidadosamente o cabelo recém-lavado de modo que os
finos fios longos formassem um penteado natural e ao mesmo tempo cobrissem
as entradas que começavam a se formar na testa. Depois de uma última
conferida, saiu convencido de que aparentava ter menos que seus 38 anos.
Tomou o elevador até o térreo e, deixando o Plaza para sair numa 5ª Avenida
toda iluminada por neon, dirigiu-se animadamente para a 68th Street. No
caminho, comprou uma dúzia de rosas na pequena floricultura à esquina de 65th
Street com a Avenida Madison e, cantarolando, prosseguiu confiante. Chegou à
porta da pequena casa de arenito pardo de Debbie Kendall às oito e cinco.
Quando Debbie abriu a porta, Michael achou-a ainda mais bela do que trazia
na lembrança. Ela trajava um vestido longo azul com colarinho e punhos de seda
branca enfeitados com rufos, que lhe cobria o corpo do pescoço aos tornozelos, o
que, no entanto, tornava-a ainda mais desejável. Praticamente não usava
maquilagem, salvo um toque de batom que Michael ansiava por remover. Seus
olhos verdes cintilavam.
— Diga alguma coisa — comentou ela, sorrindo.
— Você está um arraso, Debbie — foi tudo o que ele pôde dizer, enquanto
lhe entregava as rosas.
— Mas que gentileza a sua — respondeu ela, e convidou-o para entrar.
Michael acompanhou-a até a cozinha, onde ela cortou os caules longos das
flores e arranjou-as num vaso de porcelana. Conduziu-o depois à sala de estar,
onde colocou o vaso de flores sobre uma mesa oval, ao lado de uma fotografia
de dois meninos pequenos.
— Temos tempo para tomar um drinque?
— Claro. Reservei uma mesa no Elaine's para as oito e meia.
— Meu restaurante favorito — disse ela, com um sorriso que desenhou uma
covinha no rosto. Sem perguntar nada, Debbie serviu dois uísques e entregou um
copo a Michael.
Ela tem boa memória, pensou ele, enquanto pegava e largava o copo
nervosamente, como um adolescente enfrentando o primeiro encontro amoroso.
Quando finalmente Michael terminou de tomar o drinque, Debbie achou que
estava na hora de sair.
— O Elaine's não reservaria uma mesa nem por um minuto a mais, mesmo
que você fosse Henry Kissinger.
Michael riu e ajudou-a a vestir o casaco. Quando ela abriu a porta, ele se deu
conta de que não havia babá ou barulho de crianças. Devem estar com o pai,
pensou. Já na rua, ele parou um táxi e pediu ao motorista que os levasse à
esquina da 87th com a 2nd. Michael nunca estivera antes no Elaine's. Quem lhe
recomendara o restaurante fora um colega da ABC, que lhe garantiu: “Indo a
esse restaurante, você já terá meio caminho andado”.
Entraram no salão lotado e, enquanto esperavam o maître junto ao bar,
Michael percebeu que aquele era um lugar frequentado por ricos e famosos;
pensou se teria fundos para arcar com as despesas e, o que era mais importante,
se esse investimento se revelaria compensador.
Um garçom conduziu-os a uma pequena mesa no fundo do salão, onde os
dois tomaram outro uísque enquanto estudavam o cardápio. Quando o garçom
voltou para tomar nota dos pedidos, Debbie dispensou o primeiro prato, ficando
apenas com a vitela piccate, e Michael fez o mesmo pedido para si. Ela recusou
a manteiga de alho adicional. Michael concedeu-se apenas uma leve alta em suas
expectativas.
— Como vai Adrian? — perguntou ela.
— Oh, na medida do possível, vai bem — respondeu Michael. — Mandou-
lhe lembranças, naturalmente. — Deu destaque à palavra lembranças.
— Foi muito gentil em lembrar-se de mim. Mande-lhe também lembranças
minhas. Mas o que o trouxe de volta a Nova Iorque, Michael? Outro filme?
— Não. Nova Iorque pode até ter se tomado a escala obrigatória de muita
gente, mas desta vez vim apenas para vê-la.
— Para ver-me?
— Sim, eu tinha de editar um tape lá em Washington, mas, sabendo que
poderia terminar o trabalho à hora do almoço de hoje, eu estava torcendo que
você estivesse livre para sairmos Juntos à noite.
— Sinto-me lisonjeada.
— Pois não deveria.
Ela sorriu. A vitela chegou.
— A aparência está boa — comentou Michael.
— O sabor também — disse Debbie. — Quando volta para Londres?
— Amanhã de manhã, acho que no voo das onze.
— Não está com tempo para fazer muita coisa em Nova Iorque.
— Vim apenas para vê-la — repetiu Michael. Debbie continuou comendo
sua vitela. — Como é que foram se divorciar de você, Debbie?
— Oh, nada de original. Ele se apaixonou por uma loura de 22 anos e deixou
sua esposa de 32.
— Que estúpido! Ele bem que poderia ter tido um caso com a loura de 22 e
continuar fiel à esposa de 32.
— Isso não é uma contradição em termos?
— Oh, não, penso que não. Nunca achei anormal desejar outra pessoa.
Afinal, a vida é longa demais para que se espere de alguém que nunca deseje
outra mulher.
— Não sei se concordo com você — disse Debbie pensativa. — Eu gostaria
de ter podido continuar fiel a um só homem.
Oh, diabos, pensou Michael, eis aí minha filosofia nada animadora.
— Sente saudade dele? — tentou mais uma vez.
— Sim, às vezes. É verdade o que se fala nas revistas sobre a meia-idade: o
ser humano pode sentir-se muito solitário quando de repente se vê sozinho.
Isso já está melhor, pensou Michael, e deixou escapar;
— Sim, eu compreendo essas coisas, mas uma mulher como você não era
para continuar sozinha tanto tempo.
Debbie não respondeu.
Michael tomou a encher-lhe o copo de vinho quase até a borda, pensando em
pedir a segunda garrafa antes que ela terminasse a vitela.
— Michael, está querendo me deixar bêbada?
— Se você acha que isso pode ajudar... — respondeu ele, rindo.
Debbie não riu. Michael tentou de novo.
— Tem ido ao teatro ultimamente?
— Sim. Na semana passada fui ver Evita. Adorei. — Quem a terá
acompanhado?, pensou Michael. — Mas mamãe dormiu no meio do segundo
ato. Acho que vou assisti-la sozinha pela segunda vez.
— Eu gostaria de poder ficar mais tempo aqui para levá-la.
— Seria um prazer — disse ela.
— Mas terei de me contentar em assistir à peça em Londres.
— Com sua mulher.
— Garçom, por favor, outra garrafa de vinho.
— Para mim basta, Michael, falando sério.
— Bom, você pode me ajudar tomando só um pouquinho. — O garçom
desapareceu. — Já esteve na Inglaterra sozinha? — perguntou Michael.
— Não, só uma vez, quando Roger, meu ex, levou toda a família. Amo
aquele país. Ele correspondeu a todas as minhas expectativas, mas acredito que
tenhamos feito apenas o que se espera dos americanos. Visitamos a Torre de
Londres, o Palácio de Buckingham, e depois, antes de irmos para Paris,
passamos por Oxford e Stratford.
— Uma maneira abominável de se conhecer a Inglaterra. Eu poderia ter-lhe
mostrado muitas outras coisas.
— Suponho que quando vêm aos Estados Unidos os ingleses não conhecem
muito além de Nova Iorque, Washington, Los Angeles e talvez São Francisco.
— Concordo — disse Michael, não querendo contradizê-la. O garçom tirou
os pratos.
— Posso seduzi-la com uma sobremesa, Debbie?
— Não, não, estou tentando perder alguns quilinhos.
Michael passou delicadamente o braço em torno da cintura dela.
— Esqueça — fez ele. — Você está ótima.
Ela riu. Ele sorriu.
— Mesmo assim aceito só um cafezinho, por favor.
— Um conhaque?
— Não, obrigada, só café.
— Preto?
— Preto.
— Dois cafés, por favor — disse Michael ao irrequieto garçom.
— Eu gostaria de tê-la levado a um lugar mais calmo e menos badalado —
comentou ele, voltando-se para Debbie.
— Por quê?
Michael pegou-lhe a mão. Estava fria.
— Por que queria dizer-lhe coisas com a certeza de que ninguém ouviria.
— Michael, não acho que ninguém fica chocado com o que ouve por acaso
aqui no Elaine's.
— Pois então, muito bem. Você acredita em amor à primeira vista?
— Não, mas acredito que uma pessoa possa sentir-se atraída fisicamente por
outra ao encontrarem-se pela primeira vez.
— Bom, devo confessar que fiquei atraído por você.
Mais uma vez ela nada comentou.
O café chegou e Debbie tirou a mão para pegar a xícara. Michael também
tomou um gole.
— Na noite em que nos conhecemos, Debbie, havia cento e cinquenta
mulheres naquele salão, mas não consegui tirar os olhos de você.
— Nem durante o filme?
— Eu tinha assistido àquela droga uma centena de vezes. Mas você eu
poderia não ver nunca mais.
— Isso me emociona.
— E por quê? Provavelmente isso lhe acontece muito.
— De vez em quando — disse ela. — Mas nunca levei ninguém a sério
desde que o meu marido me deixou.
— Desculpe-me.
— Não é nada. É que não é tão fácil assim esquecer uma pessoa com quem
se viveu durante dez anos. Duvido que a maioria das divorciadas esteja
realmente disposta a ir para a cama com o primeiro homem que aparece, como
sugerem os filmes que andam fazendo ultimamente.
Michael tomou-lhe de novo a mão, desejando ardentemente não ser
enquadrado naquela categoria.
— Está uma noite muito gostosa. Por que não vamos caminhando até o
Carlyle para ouvir o Bobby Short? — O amigo da ABC lhe fizera essa
recomendação para o caso de ele ainda ter alguma chance.
— Sim, acho ótimo — disse Debbie.
Michael pediu a nota — oitenta e sete dólares. Se estivesse com sua mulher
ele teria conferido meticulosamente item por item, mas naquela ocasião não foi o
que fez. Deixou simplesmente cinco notas de vinte dólares no pires e não
esperou o troco. Ao saírem na 2ª Avenida, pegou na mão de Debbie e juntos
começaram a caminhar em direção ao centro. Na Avenida Madison detiveram-se
diante das vitrinas das lojas e ele lhe comprou um casaco de peles, um relógio
Cartier e um vestido de Balenciaga. Debbie achou que era uma sorte todas as
lojas estarem fechadas.
Acordou na manhã seguinte e fitou a bela mulher que estava deitada ao seu
lado. O relógio digital sobre o criado-mudo marcava sete horas e três minutos.
Ele beijou-lhe levemente a testa e começou a acariciar-lhe o cabelo. Ela
despertou preguiçosamente e sorriu para ele. Amaram-se, lenta e ternamente,
com o mesmo prazer da noite anterior. Michael nada disse quando ela se
levantou da cama e foi preparar-lhe o banho antes de ir para a cozinha fazer o
café. Relaxou o corpo sob a água quente, cantando, a plenos pulmões, uma
canção de Bobby Short. Como gostaria que Adrian o visse naquele momento!...
Enxugou-se, vestiu-se e foi ter com Debbie na cozinha pequena mas bem
equipada, onde tomaram juntos o café da manhã — ovos, bacon, torradas, geleia
de laranja inglesa e um café preto bem quente. Debbie subiu para tomar um
banho e vestir-se, enquanto Michael ficou na sala de estar lendo o New York
Times. Quando ela reapareceu, num elegante vestido coral, ele lamentou ter de
partir tão cedo.
— Precisamos ir agora, senão você perderá o avião.
Michael levantou-se relutante e Debbie levou-o de volta ao hotel, onde ele
rapidamente jogou as roupas dentro da mala, fechou a conta do quarto com a
supérflua cama de casal e voltou para o carro dela. No trajeto até o aeroporto,
conversaram sobre as próximas eleições e torta de abóbora moranga, como se
fossem casados há muitos anos ou como se a noite anterior jamais tivesse
existido.
Debbie deixou Michael na frente do edifício da Pan Am e, depois de pôr o
carro no estacionamento, reencontrou-se com ele no balcão de registro de
chegada. Esperaram a chamada do voo.
“A Pan American anuncia a partida do voo número 006 com desembarque no
aeroporto de Heathrow, Londres. Senhores passageiros, queiram dirigir-se com
seus passaportes ao Portão Nove.”
Quando chegaram ao portão que só podia ser transposto pelos passageiros,
Michael tomou Debbie em seus braços por um momento.
— Obrigado por esta noite inesquecível — disse.
— Quem deve agradecer sou eu, Michael — respondeu ela, beijando-o no
rosto.
— Confesso que não imaginei que fosse acabar assim — disse ele.
— E por que não? — perguntou ela.
— Não é fácil explicar — respondeu, procurando palavras que elogiassem e
não embaraçassem. — Digamos que eu estava surpreso por...
— Estava surpreso porque dormimos juntos na primeira noite? Não era para
estar.
— Não?
— Não. E a explicação é bem simples. Meus amigos me diziam, quando me
divorciei, que eu procurasse um homem com quem pudesse passar uma noite. A
ideia era divertida, mas eu não gostaria que os homens de Nova Iorque me
achassem fácil. — Ela tocou delicadamente a face dele. — Assim, quando
conheci você e Adrian, os dois vivendo na segura distância de mais de seis mil
quilômetros, pensei comigo: “O primeiro de vocês que voltar... ”
One-night stand
Quebra de rotina
Septimus Horatio Cornwallis não vivia de acordo com seu nome. Com um
nome como este, deveria ter sido ministro, almirante ou pelo menos deão de uma
paróquia rural. No entanto, Septimus Horatio Cornwallis era analista de
ocorrências na sede da Prudential Assurance Company Limited, 172 Holborn
Bars, Londres EC 1.
O nome de Septimus era de responsabilidade do pai, que conhecera Nelson
brevemente, da mãe, que era supersticiosa, e do tataravô, que, segundo se
afirmava, fora primo de segundo grau do ilustre governador-geral da índia. Ao
deixar a escola, Septimus — um jovem franzino, anêmico e prematuramente
calvo — entrou na Prudential Assurance Company, seguindo os conselhos de seu
orientador profissional, para quem era este o começo ideal para um jovem com o
seu potencial. Algum tempo depois, quando Septimus se lembrava dessa
orientação, ficava aborrecido, porque até ele mesmo já percebera que não tinha
qualquer potencial. Apesar disso, ao longo dos anos Septimus progrediu
lentamente de office-boy para analista de ocorrências (não exatamente galgando
os degraus, mas estacando em cada um deles por um bom tempo), o que lhe deu
o pomposo título de gerente adjunto (seção de sinistros).
Septimus passava o dia num cubículo de vidro no sexto andar, analisando
ocorrências e liberando os pagamentos até um milhão de libras. Achava que se
trabalhasse honestamente (uma das expressões prediletas de Septimus) poderia
tornar-se, após outros vinte anos, um chefe (seção de sinistros), alojar-se entre,
paredes opacas e pisar num tapete diferente daquele composto de quadradinhos
em tons quase iguais de verde. Poderia até tornar-se o autor de uma daquelas
assinaturas que endossavam os cheques de um milhão de libras.
Septimus residia em Sevenoaks com sua esposa. Norma, e os dois filhos,
Winston e Elizabeth, que frequentavam uma escola técnica de nível médio. Ele
teria preferido colocá-los num liceu, conforme costumava dizer aos colegas, se o
governo trabalhista não houvesse acabado com eles.
Septimus dividia sua vida diária num conjunto de sub-rotinas invariáveis,
como um microcomputador, pois se acreditava um grande cultor da tradição e da
disciplina. Se não era nada, pelo menos era uma criatura de hábitos sólidos. Se,
por alguma razão inexplicável, a KGB quisesse eliminar Septimus, bastaria
vigiá-lo durante sete dias para conhecer cada um de seus movimentos ao longo
de todo um ano de trabalho.
Septimus levantava-se todas as manhãs às sete e quinze e vestia um dos seus
dois ternos de tweed. Saía de sua casa na 47 Palmerston Drive às sete e
cinquenta e cinco, depois do café da manhã de sempre, composto de um ovo
malcozido, duas fatias de torrada e duas xícaras de chá. Ao chegar à Plataforma
1 da estação de Sevenoaks, comprava um exemplar do Daily Express antes de
embarcar no trem das oito e vinte e sete que o levava a Cannon Street. Durante o
trajeto, Septimus lia o jornal e fumava dois cigarros, chegando em Cannon Street
às nove e sete. Caminhava então até o escritório e às nove e meia estava sentado
à sua escrivaninha no cubículo de vidro no sexto andar, examinando a primeira
ocorrência que exigisse verificação. Fazia um intervalo para o cafezinho às onze,
permitindo-se o luxo de fumar mais dois cigarros, enquanto, como de costume,
brindava seus colegas com as previsíveis proezas dos filhos. Às onze e quinze
voltava ao trabalho.
À uma hora deixava a Grande Catedral Gótica (outra de suas expressões) por
uma hora, que passava num bar chamado o “Havelock”. onde tomava um caneco
de Carlsberg amarga com uma gotinha de lima e almoçava o prato do dia.
Depois disso, fumava novamente dois cigarros. À uma e cinquenta e cinco,
voltava aos arquivos do seguro até o intervalo de quinze minutos para o chá, às
quatro horas, uma outra oportunidade ritual para mais dois cigarros. Às cinco e
meia em ponto, Septimus pegava o guarda-chuva, a pasta reforçada com aço e
com as iniciais S.H.C. em prata afixadas na lateral e ia embora, depois de trancar
com duas voltas de chave seu cubículo de vidro. Enquanto percorria a seção de
datilografia, despedia-se com uma cortesia mecânica:
— Até amanhã à mesma hora, garotas.
Cantarolava alguns compassos de The Sound of Music dentro do elevador
que o levava ao térreo e engrossava a torrente de trabalhadores que se
comprimiam pelo High Holborn. Dava largas e enérgicas passadas em direção à
estação de Cannon Street, batendo a ponta do guarda-chuva na calçada,
esbarrando em banqueiros, armadores, diretores de companhias de petróleo e
corretores, sentindo-se satisfeito por fazer parte da grande City de Londres.
Ao chegar à estação, Septimus comprava um exemplar do Evening Standard
e um maço de dez cigarros Benson & Hedges na banca de livros do Smith,
colocando-os sobre os documentos da Prudential que trazia na pasta. Entrava no
quarto carro do trem na Plataforma 5, às cinco e cinquenta e cinco, e garantia seu
banco predileto à janela num compartimento fechado voltado para a locomotiva,
do lado do cavalheiro calvo com seu inevitável Financial Times e em frente à
bem vestida secretária que lia longos folhetins românticos até alguma estação
bem além de Sevenoaks. Antes de sentar-se, tirava da pasta o Evening Standard
e o novo maço de Benson & Hedges, punha-os sobre o braço do banco e
colocava a pasta e o guarda-chuva fechado sobre o bagageiro acima de sua
cabeça. Uma vez acomodado, abria o maço de cigarros e fumava o primeiro dos
dois reservados para o trajeto, enquanto lia o Evening Standard. Com isto
restavam-lhe oito para fumar antes de tomar o trem das cinco e meia, na tarde
seguinte.
Quando o trem entrava na estação de Sevenoaks, ele murmurava um boa-
noite aos passageiros conhecidos (a única palavra que pronunciava durante todo
o trajeto) e descia, dirigindo-se para a casa geminada de 47 Palmerston Drive e
chegando à porta pouco antes das seis e quarenta e cinco. Entre seis e quarenta e
cinco e sete e meia, ele ou terminava de ler o jornal ou verificava a lição de casa
dos filhos, dizendo um “ora bolas” quando detectava algum erro ou suspirando
quando se sentia incapaz de resolver os problemas de matemática moderna. Às
sete e meia, a “boa cara-metade” (outra de suas expressões prediletas) colocava à
sua frente, na mesa da cozinha, o prato do dia extraído do Woman's Own ou o
seu jantar favorito, de três filés de peixe dispostos em forma de dedo, ervilha e
batata frita. Ele então comentava; “Se Deus quisesse que os peixes tivessem
dedos, Ele lhes teria dado mãos”. Ria, cobria o peixe com molho de tomate e
devorava a refeição ao som do relatório da esposa sobre os acontecimentos do
dia. Às nove, assistia ao grande noticiário da BBC 1 (jamais assistia à ITV) e às
dez e meia ia se deitar.
Esta rotina era adotada durante anos e anos, com intervalos apenas para as
férias, para as quais, evidentemente, Septimus também tinha uma rotina.
Alternadamente, passava um Natal com os pais de Norma em Watford e o outro
com sua irmã e o cunhado em Epson, enquanto que no verão, o ponto máximo
do ano, a família servia-se de um pacote de férias por duas semanas no Hotel
Olímpico, em Corfu.
Septimus não apenas apreciava seu estilo de vida como também se
desesperava quando, por alguma razão, sua rotina sofria uma pequena alteração.
Esta existência monótona, para ele, prometia durar até a morte, pois Septimus
não tinha aquele espírito que inspira os escritores em sagas de duzentas mil
palavras. Mas houve uma ocasião em que a rotina de Septimus não sofreu uma
mera alteração, mas foi, simplesmente, quebrada.
Certa noite, às cinco e vinte e sete, quando Septimus estava fechando a pasta
da última ocorrência do dia, seu superior imediato, o subgerente, chamou-o para
uma consulta. Por causa dessa flagrante falta de consideração, Septimus só pôde
deixar o escritório alguns minutos depois das seis. Embora todos já tivessem ido
embora na seção de datilografia, ele dirigiu às mesas vazias e às silenciosas
máquinas de escrever o seu invariável “Até amanhã à mesma hora, garotas”, e
cantarolou alguns compassos de Edelweiss enquanto descia de elevador. Assim
que pôs os pés fora da Grande Catedral Gótica, começou a chover. Com
relutância, Septimus desenrolou o seu guarda-chuva meticulosamente dobrado,
abriu-o, saiu desabalado pulando poças d'água, esperando ainda conseguir pegar
o trem das seis e trinta e dois. Ao chegar em Cannon Street, entrou na fila para
comprar o jornal e os cigarros, guardou-os na pasta e correu em direção à
Plataforma 5. Para aumentar ainda mais seu aborrecimento, o alto-falante
anunciou, em meio a pedidos formais de desculpas, que três trens já haviam sido
tirados de circulação naquela noite em virtude de um congestionamento da linha.
Septimus abriu seu caminho energicamente em meio àquela fervilhante
multidão de pessoas molhadas e conseguiu embarcar no sexto carro de um trem
extra. Estava lotado de pessoas que ele não conhecia e, o que era pior, com todos
os assentos já ocupados. O único lugar vago que encontrou para sentar situava-se
no meio do trem, de costas para a locomotiva. Jogou a pasta e o amarrotado
guarda-chuva sobre o bagageiro, espremeu-se no assento um tanto a contragosto
e passou os olhos pelo vagão. Não havia um só rosto familiar entre os seus seis
vizinhos. O banco à sua frente mal comportava uma mulher com seus três filhos,
enquanto um velhote dormia a sono solto à sua esquerda. À sua direita,
debruçado sobre a janela e olhando para fora, estava um jovem de cerca de vinte
anos.
Quando deitou os olhos pela primeira vez sobre o rapaz, Septimus não
acreditou no que viu. O jovem vestia uma jaqueta de couro preta e calças jeans
bem justas e assoviava. Seus cabelos pretos e empastados estavam penteados
para cima na frente e para baixo nos lados, e as duas únicas cores de seu traje
que combinavam eram a da jaqueta com a das unhas. Mas o que mais feriu a
natureza sensível de Septimus foi o slogan impresso nas tachas presas nas costas
da jaqueta: “Heil Hitler”, anunciava descaradamente sobre o símbolo nazista
pintado de branco. Como se isso não bastasse, abaixo da suástica cintilava em
ouro a palavra “Sifu”. Aonde ia parar aquele país? pensou Septimus. Era preciso
reconstituir o Serviço Nacional para delinquentes daquele naipe. O próprio
Septimus não fora aceito no Serviço Nacional por causa de seus pés chatos.
Resolvido a ignorar a criatura, Septimus pegou o maço de cigarros Benson &
Hedges que estava sobre o braço do banco ao seu lado, acendeu um e começou a
ler o Evening Standard. Recolocou então o maço sobre o braço do banco, como
sempre fazia, sabendo que fumaria outro antes de chegar à estação de
Sevenoaks. Quando finalmente o trem deixou Cannon Street, o rapaz de preto
virou-se para Septimus e, deitando-lhe um olhar feroz, pegou o maço de
cigarros, tirou um, acendeu-o e começou a dar baforadas. Septimus não pôde
acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Estava prestes a protestar quando
percebeu que naquele vagão não havia nenhum de seus conhecidos para apoiá-
lo. Refletiu sobre a situação por um momento e concluiu que a discrição era o
componente mais nobre da coragem. (Outra das expressões de Septimus.)
Quando o trem parou em Petts Wood, Septimus fechou o jornal, embora mal
tivesse conseguido ler uma palavra sequer, e, como quase sempre fazia, tirou o
segundo cigarro. Acendeu-o, deu uma tragada e estava prestes a reabrir o
Evening Standard quando o jovem o agarrou por uma ponta e cada um acabou
ficando com metade do jornal. Desta vez Septimus passeou os olhos pelo carro
em busca de apoio. As crianças à sua frente começaram a rir disfarçadamente,
enquanto a mãe se empenhava em fazê-las desviar os olhos da cena,
evidentemente para evitar se envolver; o velho à esquerda de Septimus agora
roncava. Septimus estava a ponto de salvar o maço de cigarros, colocando-o no
bolso, quando o jovem apoderou-se dele, tirou outro cigarro, acendeu-o, tragou-o
profundamente e soprou a fumaça propositalmente contra o rosto de Septimus,
antes de recolocar o maço sobre o braço do banco. Q olhar furioso de Septimus
expressou todo o ódio capaz de atravessar o halo cinzento. Rangendo os dentes
de raiva, retornou ao Evening Standard, apenas para constatar que ficara com os
classificados de empregos, carros usados e as seções de esporte, assuntos pelos
quais não tinha o menor interesse. A única compensação, contudo, era saber com
certeza que detinha a única seção que o marginal realmente queria, a de esportes.
Septimus, em todo caso, foi incapaz de ler o jornal, pois tremia em consequência
dos abusos sofridos.
Aplicava-se agora em planejar uma vingança, e não tardou a arquitetar um
plano com o qual, tinha certeza, convenceria o jovem de que a prática da virtude
pode valer mais do que sua própria recompensa (uma variação de uma das frases
de Septimus). Sorrindo levemente, ele tirou um terceiro cigarro e, quebrando sua
rotina, recolocou desafiadoramente o maço sobre o braço do banco. O rapaz
apagou seu cigarro e, aceitando o desafio, apossou-se do maço, tirou outro
cigarro e o acendeu. De modo algum Septimus estava derrotado; deu algumas
rápidas tragadas no cigarro, apagou-o — metade sem fumar —, tirou um quarto
e acendeu-o imediatamente. A corrida tinha de se acirrar ao máximo, pois agora
restavam apenas dois cigarros. Mas Septimus, não obstante a quantidade de
tragadas e de tosses, conseguiu terminar o quarto cigarro antes do rapaz.
Inclinou-se sobre o rapaz de jaqueta preta e apagou-o no cinzeiro da janela. O
carro, àquela altura, já estava impregnado de fumaça, mas o rapaz continuava
puxando suas tragadas o mais rápido que podia. As crianças em frente tossiam e
a mulher abanava, agitando os braços para cima e para baixo. Sem levá-la em
conta, Septimus manteve os olhos sobre o maço de cigarros, ao mesmo tempo
que fingia ler sobre as chances do Arsenal no campeonato da federação de
futebol.
Septimus lembrou-se então da máxima de Montgomery, segundo a qual a
surpresa e a escolha do momento são, em última análise, as armas da vitória.
Quando o jovem terminou o quarto cigarro e o apagou, o trem entrava
vagarosamente na estação de Sevenoaks. A mão do rapaz já estava no ar, mas
Septimus agiu com mais rapidez. Previra o gesto seguinte do inimigo e agora
apoderava-se do maço de cigarros. Depois de tirar o nono cigarro, colocou-o
entre os lábios, acendeu lenta e pomposamente e tragou o mais profundamente
que pôde antes de atirar a fumaça contra o rosto do inimigo. O jovem olhou-o
assombrado. Septimus então tirou o último cigarro do maço e desfez o fumo
esmagando-o entre o indicador e o polegar, deixando os pequenos flocos caírem
de novo dentro do maço vazio. Em seguida fechou meticulosamente o maço e,
num gesto vigoroso, recolocou a embalagem dourada sobre o braço do banco.
Em seguida, sem deixar ao adversário tempo para tomar fôlego, pegou de seu
banco vazio as seções de esportes do Evening Standard, rasgou o jornal ao meio,
em quartos, em oitavos e finalmente em dezesseis partes e empilhou os
minúsculos pedaços no colo do rapaz, formando uma pilha bem arrumada.
O trem parou em Sevenoaks. Um vitorioso Septimus, depois de ter
desfechado seu último golpe contra a maioria silenciosa, retirou o guarda-chuva
e a pasta do bagageiro e virou-se para sair.
Ao apanhar a pasta, esta chocou-se com o braço do banco à sua frente e a
tampa se abriu, mostrando a todos os passageiros tudo o que continha. Ali, sobre
os documentos da Prudential, achava-se um cuidadosamente dobrado exemplar
do Evening Standard e um maço ainda fechado de dez cigarros Benson &
Hedges.
Broken routine
O contratempo de Henry
Quando lhe nasceu o primeiro filho homem em 1900 (tivera antes doze filhas
com seis esposas), o Grande Paxá batizou-o de Henry, em memória de seu
amado rei da Inglaterra. Henry veio ao mundo já provido de muito mais dinheiro
do que mesmo um fanático coletor poderia sonhar e, assim, estava destinado a
viver uma vida de ócio e conforto.
O Grande Paxá, que imperava sobre dez mil famílias, defendia a opinião de
que um dia restariam apenas cinco reis em todo o mundo: o rei de espadas, o de
copas, o de ouros, o de paus e o da Inglaterra. Com base nessa convicção,
decidiu que Henry receberia uma educação à inglesa. O menino teve então de,
aos oito anos, abandonar o Cairo para começar sua educação formal,
suficientemente jovem para que retivesse apenas vagas lembranças do ruído, do
calor e da imundície de sua terra de origem. Henry começou a nova vida na
Escola Dragon, que, como asseguravam os conselheiros ao Grande Paxá, era o
melhor curso preparatório da Inglaterra. Quatro anos mais tarde, ao deixar
Dragon, havia desenvolvido entusiástica paixão pelo campo de polo e profunda
aversão pela sala de aula. Reunindo então o mínimo dos requisitos acadêmicos,
entrou no Eton, que, como asseguravam os conselheiros de seu pai, era o melhor
colégio da Europa. O Paxá estava feliz de saber que a escola fora fundada pelo
seu venerado rei. Lá Henry viveu cinco anos, acrescentando squash, golfe e tênis
às suas paixões, além de adicionar a matemática, o jazz e corridas pelos campos
às suas aversões.
Ao longo de sua estada em Eton, também só conseguiu impressionar seus
professores o suficiente para ser aprovado. Contudo, foi-lhe garantida uma vaga
na Universidade de Balliol, em Oxford, que, como asseguravam os conselheiros
ao Paxá, estava entre as maiores do mundo. Três anos na Balliol somaram outras
duas paixões à sua vida: os cavalos e as mulheres, e mais três aversões
irredutíveis: política, filosofia e economia.
Ao final de seu período statu pupillari, não sendo capaz de causar a mais
leve impressão nos examinadores, Henry ficou sem diploma. O pai, porém,
considerando os dois gols que Henry fizera contra Cambridge, na competição de
polo, um resultado plenamente satisfatório enviou o rapaz numa viagem pelo
mundo afora, para que ele pudesse completar sua instrução. Henry apreciou a
experiência, pois aprendeu mais sobre hipódromo em Longchamps e nas ruelas
de Bengazi do que ao longo de toda sua educação formal na Inglaterra.
Seu pai certamente teria se orgulhado do jovem alto, requintado e simpático
que retornou à Inglaterra um ano depois revelando apenas um levíssimo vestígio
de sotaque estrangeiro. O Grande Paxá, porém, morrera antes do adorado filho
chegar a Southampton. Henry, sem dúvida de coração partido, não estava
quebrado. O pai lhe deixara cerca de vinte milhões em bens, incluindo um
plantei de cavalos em Suffolk, um iate de cem pés em Nice e um palácio no
Cairo. Mas, decididamente, a parcela mais importante do legado era constituída
pelo refinado criado de Londres, um certo Godfrey Barker. Barker era capaz de
organizar ou dissolver qualquer coisa num abrir e fechar de olhos.
Henry, na ausência de coisa melhor para fazer, hospedou-se na velha suíte de
seu pai no Ritz, sem, é claro, preocupar-se em ler a seção de “precisa-se” do
London Times. Ao contrário, deu início a uma vida voltada exclusivamente à
procura do prazer, a única carreira para a qual Eton, Oxford e a herança tinham-
no preparado adequadamente. A bem da justiça, Henry possuía, a despeito da
generosa ajuda do charme e da boa figura, bastante senso para escolher as
pessoas que poderiam ganhar o privilégio de desfrutar inesquecíveis momentos
em sua companhia. Selecionava-as apenas entre os velhos amigos de escola, os
quais, embora nem sempre fossem muito bem-educados, não eram do tipo que
viesse pedir emprestado para saldar dívidas de jogo.
Sempre que perguntado sobre o maior amor de sua vida, Henry hesitava
entre os cavalos e as mulheres, e, como era possível passar o dia com uns e a
noite com outras sem despertar ciúmes ou recriminações, nunca exigiu de si
mesmo a resolução do dilema. Muitos de seus cavalos eram garanhões velozes,
lisos, de pele aveludada, com olhos negros e membros rijos; tal descrição caberia
perfeitamente à maior parte de suas mulheres, só que estas, é claro, eram
potrancas. Henry apaixonava-se e desapaixonava-se por todas as coristas do
London Palladium e, quando seus casos chegavam ao fim, Barker providenciava
para que elas recebessem uma lembrancinha conveniente, afastando a
possibilidade de escândalos. Henry também, antes de completar 35 anos, pôde
ganhar muitas das corridas clássicas do turfe inglês, e Barker sempre parecia
saber em quais delas deveria apostar nos cavalos do patrão.
Em pouco tempo a vida de Henry entrou numa rotina que poderia ser tudo
menos monótona. Passava um mês no Cairo fingindo cuidar de negócios; outros
três no Sul da França, ao fim dos quais costumava fazer uma excursão a Biarritz;
o restante do ano permanecia no Ritz. Quando se ausentava de Londres, a
magnífica suíte com balcão sobre o Parque de Saint James ficava desocupada.
Não se sabe se ele a deixava vazia porque não tolerava a ideia de pessoas
desconhecidas mergulhando na sua banheira de mármore ou se simplesmente
detestava as minudências do registro de entrada e saída no hotel, duas vezes por
ano. A gerência do Ritz jamais fizera comentários quando seu pai a usava; por
que faria agora ao filho? Este plano de vida orientava todos os dias dos anos de
Henry, exceto quando de uma brusca viagem a Paris, sempre que uma garota
parecia estar com muita pressa de aproximar-se do altar. Embora quase todas as
mulheres que conheceram o valor da herança de Henry quisessem desposá-lo, a
verdade é que boa parte delas o teria feito mesmo que ele fosse pobre. Contudo,
Henry não conseguia ver nenhuma razão para manter-se fiel a uma única mulher.
“Tenho uma centena de cavalos e uma centena de amigos”, explicava. “Por que
limitaria minha vida a uma mulher?” Difícil oferecer resposta imediata à lógica
de Henry.
A história de Henry teria terminado aqui caso continuasse a levar a vida que
o destino parecia lhe reservar. Mas até os Henrys do nosso mundo têm de sofrer
o seu primeiro contratempo.
Henry havia adquirido o hábito de nunca fazer planos antecipados, pois que a
experiência — e o seu competente criado, Barker — sempre o incentivara a crer
que uma vasta fortuna tudo poderia comprar, a qualquer momento. Ainda assim,
nem o próprio Barker pôde elaborar um plano de emergência para prever as
consequências do anúncio feito pelo Sr. Chamberlain. no dia 3 de setembro de
1939; o povo inglês estava em guerra com os alemães. Henry achou que
Chamberlain fora precipitado em logo declarar guerra após Wimbledon e Oaks. e
ainda mais precipitadas foram as autoridades do Ministério do Interior ao
determinar, poucos meses depois, que Barker deixasse de servi-lo para servir à
Sua Majestade, por tempo indeterminado.
O que o pobre Henry podia fazer? Agora, aos quarenta anos, não poderia se
acostumar a viver em nenhum outro lugar além do Ritz, e os alemães, que
provocaram a neutralização de Wimbledon, ocupavam também o George V, em
Paris, e o Negresco, em Nice. À medida que as semanas passavam e uma
invasão parecia mais certa, Henry acabou concluindo, a contragosto, que era
forçoso retornar ao neutro Cairo e lá aborrecer-se um pouco até que os ingleses
batessem os alemães. Nunca passara pela sua cabeça, nem mesmo por um
milionésimo de segundo, que os ingleses pudessem perder a guerra. Afinal, se
haviam saído vitoriosos na Primeira Guerra Mundial, como poderiam perder na
Segunda? “A história se repete” — era o único axioma do qual se lembrava de
seus três anos de Oxford.
Henry chamou o gerente do Ritz e disse-lhe que a suíte deveria permanecer
desocupada até sua volta. Pagou um ano adiantado, o que, esperava, era mais do
que suficiente para se dar cabo de gente arrogante como Herr Hitler, e partiu
para o Cairo. Mais tarde o gerente teria observado que a partida do Grande Paxá
para o Egito era tristemente simbólica; ele era, afinal, o mais britânico dos
britânicos.
Henry teve de viver um ano em seu palácio do Cairo, antes de concluir que
não poderia mais conviver entre seus conterrâneos; transferiu-se, pois, para Nova
Iorque apenas pouco tempo antes de ter de se ver face a face com Rommel. Em
Nova Iorque, Henry instalou-se no Pierre Hotel, na 5.ª Avenida, escolheu um
criado americano de nome Eugene e ficou à espera de que o Sr. Churchill
pusesse fim à guerra. De lá, como que para demonstrar seu sólido apoio aos
ingleses, a cada l° de janeiro enviava um cheque ao Ritz para cobrir os custos
com a reserva de seus aposentos.
Depois de comemorar o dia da vitória em Times Square com um milhão de
americanos, Henry pôs-se a fazer planos de imediato retorno à Inglaterra. Ficou
surpreso e até desapontado quando a embaixada inglesa em Washington
informou-o de que deveria esperar ainda algum tempo para voltar ao seu amado
país e, não obstante as pressões contínuas e todas as influências que conseguiu
reunir, só subiu a bordo de um navio com destino a Southampton em julho de
1946. Do alto do convés de primeira classe, fez seu aceno de adeus à América do
Norte e a Eugene, já ansioso para reencontrar-se com a Inglaterra e Barker.
Assim que desembarcou em solo inglês, dirigiu-se diretamente para o Ritz,
onde encontrou seus aposentos exatamente como deixara. Pelo que pôde avaliar,
nada mudara, exceto pelo fato de que seu criado (agora mordomo de um general)
não seria desmobilizado antes de pelo menos seis meses. Henry sentiu-se
estimulado a fazer sua parte na recuperação do pós-guerra — sobreviver sem o
criado durante o semestre seguinte — ao lembrar-se das palavras de Barker:
“Todos sabem quem o senhor é. Nada será diferente”. Confiava em que tudo
sairia bem. E, de fato, no Bonheur-du-jour, em seu quarto do Ritz, havia um
convite para jantar, na noite seguinte, com Lorde e Lady Lympsham na mansão
deles de Chelsea Square. Parecia que as previsões de Barker estavam se
cumprindo: tudo continuaria o mesmo de sempre. Henry escreveu aceitando o
convite, feliz ao pensar que retomaria sua vida na Inglaterra exatamente do
ponto em que a deixara.
Tão feliz que, na noite seguinte, chegou à entrada do palácio de Chelsea
Square alguns minutos depois das oito horas. Os Lympsham, um velho casal
pouco preparado para encarar qualquer possibilidade de conflagração, logo
deram evidências de que nem sequer haviam notado que se havia travado uma
guerra ou que Henry estivera ausente da sociedade londrina. A mesa, mesmo
com o racionamento vigente, era uma das mais fartas de que Henry já havia visto
e, mais importante, um dos convidados era uma das mais distintas
personalidades que jamais havia visto. Seu nome, como Henry soube pelos
anfitriões, era Victoria Campbell, a filha de outro comensal, o General Sir Ralph
Colquhoun. Lady Lympsham confidenciou a Henry, enquanto saboreavam ovos
de codorna, que a pobrezinha perdera o marido quando os aliados avançaram
sobre Berlim, apenas alguns dias antes da rendição dos alemães. Foi nesse
momento que Henry sentiu-se, pela primeira vez, culpado por não ter
desempenhado nenhum papel na guerra.
Durante todo o jantar não conseguiu tirar os olhos da jovem Victoria, cuja
beleza clássica só era comparável à sua conversa bem informada e animada.
Henry receava que estivesse sendo muito indiscreto para com a jovem esguia, de
cabelos pretos e maçãs salientes; agia como se, de tanto admirar uma bela
escultura, desejasse tocá-la. Seu sorriso cativante arrancava sorrisos cúmplices
em todos que o recebiam. Henry esforçou-se ao máximo por se tornar também
um receptor e em vários momentos viu-se recompensado, já ciente de que, pela
primeira vez na vida, estava ficando perdidamente apaixonado — e com muita
alegria.
Os galanteios seguintes foram para Henry dos mais insólitos, pois nada fizera
de extraordinário no sentido de obter o interesse de Victoria. Sempre atencioso e
cortês, assim que a jovem despiu o luto, procurou seu pai para ?aber se poderia
pedir a mão de Victoria em casamento. Henry encheu-se de expectativa,
primeiro, quando o general concordou e depois, de felicidade, quando Victoria o
aceitou. Após uma participação no The Times, festejaram o noivado com um
jantar seleto no Ritz, que teve a presença de cento e vinte amigos íntimos. Cada
um deles seria perdoado por julgar que Attlee exagerara no seu programa de
austeridade econômica para o pós-guerra. Saído o último convidado, Henry
acompanhou Victoria à casa do pai em Belgrave Mews, e, no trajeto,
conversaram sobre os preparativos para o casamento e seus planos para a lua de
mel.
— Você merece que tudo saia perfeito, meu anjo — disse ele, admirando
mais uma vez a graça com que os longos cabelos pretos de Victoria caíam
ondeados sobre os ombros. — Casaremos na Saint Margaret de Westminster.
Uma recepção no Ritz e então iremos à Estação Victoria. Fred, o mais antigo dos
carregadores, estará esperando por você. Fred não permitirá que ninguém além
dele leve minhas malas até o último vagão do Golden Arrow. É importante subir
sempre no último vagão, minha querida — explicou Henry —, para evitar o
incômodo dos outros viajantes.
Victoria estava impressionada pela mestria de Henry em fazer preparativos,
principalmente agora com a ausência de Barker.
Henry falava com gosto sobre seu assunto predileto do momento.
— Assim que estivermos no Golden Arrow, vão lhe servir chá chinês e
sanduíches de salmão defumado cortado em fatias finas, Com eles vamos nos
deleitar descontraídos até chegarmos a Dover. No porto, Albert, que Fred já terá
avisado, estará esperando por você. Albert só' vai tirar a bagagem do nosso
vagão depois de todos terem deixado o trem. Depois, ele nos acompanha até o
navio. Lá tomamos xerez com o capitão enquanto estiverem colocando nossas
malas no camarote três. Eu, como papai, sempre reservo o camarote de número
três; além de ser o maior camarote particular e o mais confortável, é situado no
centro do navio. Assim sempre desfruto de uma agradável travessia, mesmo
quando tenho o azar de pegar mau tempo. E, quando chegarmos em Calais, você
encontrará Pierre esperando por nós. Ele terá organizado tudo para o primeiro
vagão do Flèche d'Or.
— Um roteiro como esse realmente exige um plano extremamente detalhado
— comentou Victoria, os olhos castanhos-claros brilhando enquanto ouvia o
futuro marido descrever a prometida excursão.
— Isso é mais tradição que organização, minha querida — respondeu Henry
com um sorriso, enquanto caminhavam de mãos dadas pelo Hyde Park. — Devo
confessar, porém, que Barker sempre se prevenia contra todo imprevisto
desfavorável. De qualquer modo, sempre usei o primeiro vagão do Flèche d'Or
porque isso me garante deixar a estação antes que percebam minha chegada a
Paris. A não ser Raymond, é claro.
— Raymond?
— Raymond é um criado par excellence que adorava papai; ele terá
providenciado uma garrafa de Veuve Cliquot 37 e um pouco de caviar para nós.
E também um sofá para o carro do trem, no caso de você precisar descansar, meu
bem.
— Acho que você pensou em tudo, meu querido Henry — disse ela, quando
se aproximavam de Belgrave Mews.
— Espero que sim, Victoria, pois quando chegarmos a Paris, que não tenho
visitado há tantos anos, haverá um Rolls-Royce estacionado junto ao vagão, de
portas abertas. Você entrará no carro e Maurice nos levará ao George V, sem
dúvida o melhor hotel da Europa. Louis, o gerente, estará na entrada para recebê-
la e nos guiará até a suíte nupcial, que tem uma espetacular vista para a cidade.
Uma criada desfará as malas, para que você possa tomar um banho e descansar
da viagem. Quando recomposta, jantaremos no Maxim's. Você será escoltada a
uma mesa de canto, longe da orquestra, por Marcel, o melhor maître do mundo.
Assim que você se acomodar, os músicos executarão A Room with a View, minha
música preferida, e então nos servirão a mais magnífica lagosta que você já
provou.
Henry e Victoria haviam chegado à entrada da pequena casa do general, em
Belgrave Mews. Ele lhe tomou a mão e continuou.
— Depois do jantar, minha querida, vamos passear por Madeleine, que eu
quero lhe comprar uma dúzia de rosas vermelhas de Paulette, a mais bela florista
de Paris. Ela é quase tão bonita quanto você. — Henry suspirou e concluiu: —
Depois voltamos ao George V e passaremos juntos a nossa primeira noite.
Os olhos castanho-claros de Victoria brilharam com encantada ansiedade.
— Eu só gostaria que tudo isso acontecesse amanhã — disse.
Henry beijou-a suavemente no rosto e disse;
— Valerá a pena esperar, querida. Asseguro que nós dois jamais
esqueceremos esse dia.
— Tenho certeza — respondeu Victoria, enquanto Henry lhe soltava a mão.
Na manhã do casamento, Henry saltou da cama, abriu energicamente as
cortinas e se deparou com uma garoa cerrada.
— Este chuvisco vai passar às onze horas — disse em voz alta, com grande
convicção. Depois, enquanto se barbeava lenta e cuidadosamente pegou-se
cantarolando cheio de um delicioso entusiasmo.
Henry's hiccup
Uma questão de princípio
Sir Hamish Graham reunia muitas das qualidades e a maior parte dos
defeitos que caracterizam o indivíduo originário de uma família escocesa de
classe média. Bem-educado, trabalhador e honesto, era, ao mesmo tempo,
intolerante, briguento e orgulhoso. Em momento algum de sua vida permitiu-se
experimentar bebida alcoólica e tratava com desconfiança todos os homens que
não haviam nascido ao norte de Hadrian's Wall e a maior parte dos que
provinham desses lados.
Depois de passar seus anos de estudante na Fettes School, para a qual
ganhara uma magra bolsa de estudos, e na Universidade de Edimburgo, onde se
diplomara em engenharia com média distinção, viu-se selecionado entre doze
estagiários na empresa de construção multinacional TarMac (o nome
homenageia seu fundador, J. L. McAdam, o homem que descobriu que a mistura
de piche com pedras era a melhor solução para a pavimentação de estradas). O
novo estagiário, com um trabalho diligente e procedimentos rígidos, tornou-se
em breve o mais jovem e o mais de testado chefe de projetos da empresa. Aos
trinta anos, quando Graham foi nomeado subdiretor gerente da TarMac,
começou a compreender que não podia esperar maior progresso em sua vida
enquanto continuasse, apesar do cargo, um simples empregado. Passou, então, a
pensar em constituir sua própria empresa. Quando, dois anos depois, o
presidente da TarMac, Sir Alfred Hickman, o convocou para substituir o diretor-
gerente que se apo sentava, Graham demitiu-se. Afinal, se Sir Alfred o julgava
capaz de administrar a TarMac, ele também deveria ser mais que competente
para criar sua empresa própria.
No dia seguinte, o jovem Hamish Graham compareceu a uma entrevista com
o gerente regional do Banco da Escócia, que administrava a conta da TarMac e
com o qual mantinha relações profissionais havia dez anos. Graham lhe expôs
seus planos para o fu turo, e submeteu a sua apreciação uma proposta por escrito
em que solicitava um aumento em seu crédito de cinquenta para dez mil libras.
Três semanas depois, Graham recebeu o comunicado de que seu pedido tivera
parecer favorável. Continuou morando num quarto de pensão em Edimburgo ao
mesmo tempo que alugava um escritório (ou, para ser mais exato, um cômodo a
dez xelins por semana) na zona Norte da cidade; comprou uma má quina de
escrever, contratou uma secretária e encomendou papel de carta timbrado.
Empregou dois engenheiros, ambos diplomados pela Universidade de Aberdeen,
após dias de meticulosas entre vistas, e cinco operários desempregados de
Glasgow.
Ao longo dessas primeiras semanas de escritório próprio, Graham apresentou
propostas de orçamentos para a construção de diversas pequenas estradas nas
planícies do centro da Escócia, das quais perdeu as primeiras sete. A elaboração
de propostas para concorrência pública é tarefa sempre espinhosa e em geral
dispendiosa. Ao final dos primeiros seis meses no negócio, Graham já começava
a se perguntar se sua saída da TarMac não fora um rompante imprudente. Pela
primeira vez em sua vida experimentava uma sensação de insegurança, a qual,
entretanto, logo depois seria vencida pelo conselho administrativo do condado
de Ayrshire, ao aceitar sua proposta para uma curta estrada que ligaria uma
escola em projeto à rodovia principal. A estrada tinha apenas quinhentos metros,
mas sua conclusão exigiu da equipe de Graham sete meses de trabalho duro.
Quando as contas foram pagas e as despesas deduzidas, o balanço da
Construtora Graham apresentava um prejuízo de £143.10s.6d.
Mesmo assim, a coluna dos lucros indicava que a ponta de reputação fora
fisgada de forma imperceptível, como o demonstrou, mais uma vez, o conselho
administrativo de Ayrshire ao convidar Graham para construir também a escola
junto ao terminal da nova estrada. O contrato proporcionou à sua construtora um
lucro de £420, além de dar solidez à sua incipiente reputação.
A partir daí, a companhia só fez crescer a ponto de em apenas três anos de
atividades poder declarar um pequeno lucro isento de tributação e nos cinco
seguintes experimentar uma expansão acelerada. Quando as ações da
Construtora Graham passaram a participar da Bolsa de Valores de Londres, a
demanda por seus títulos multiplicou por dez seu ativo, e a recém cotada
empresa logo passou a ser considerada uma blue-chip, o que não deixava de ser
proeza de razoável importância para Graham. Apesar disso, Graham teve de
continuar a trabalhar duro, pois o típico investi dor inglês só aprecia capitães de
indústria meter-se em negócios arriscados.
David Heath deixou a sala, satisfeito por ter persuadido o patrão a concorrer,
mas receoso de que, no fim das contas, fosse mais difícil superar os princípios de
Sir Hamish do que as exigências do governo mexicano. Mesmo assim preencheu
imediatamente a última linha da proposta orçamentária como fora instruído e
colheu para o documento a assinatura de três diretores, além da do presidente, tal
como a lei mexicana exigia. A proposta, enfim, chegou à Diretoria de Obras no
Paseo de la Reforma pelas mãos de um mensageiro especial: quando se concorre
a um contrato de mais de trinta e nove milhões de dólares, não é recomendável
enviar documentos pelo correio.
... Talvez Hardy, como você, fosse preconceituoso a ponto de poder pensar
apenas em sua amada Exmoor, a aldeia de Tiverton e a Plymouth de Drake.
— Qual é o seu condado preferido? — perguntei.
— Na minha opinião, o North Riding de Yorkshire sempre foi subestimado
— respondeu o velho. — Quando se fala de Yorkshire, imagino que lá Leeds,
Sheffield e Barnsley acorrem à memória. Jazidas carboníferas e indústria pesada.
Os visitantes deveriam olhar também para os vales da região; eles os acharão tão
diferentes quanto um giz e um queijo. Lincolnshire é bastante plano e acho que
muitos dos condados centrais devem estar hoje prejudicados pela expansão das
cidades. Os Birmingham deste mundo não exercem nenhuma atração sobre mim.
Mas, no fim, acabo dando preferência a Worcestershire e Warwickshire, essas
duas graciosas e velhas aldeias inglesas aninhadas no Cotswalds e coroadas por
Stratford-upon-Avon. Como eu gostaria de estar na Inglaterra em 1959, enquanto
as feridas da revolução cicatrizavam entre meus conterrâneos. Olivier
interpretando Coriolanus — outro homem que não quis mostrar suas cicatrizes.
— Eu vi seu desempenho nessa peça — disse eu. — Fui com um grupo da
escola.
— Rapaz de sorte. Traduzi esta peça para o húngaro aos dezenove anos. No
ano passado, relendo meu trabalho, tomei consciência de que devo repetir o
exercício antes de morrer.
— O senhor traduziu outras peças de Shakespeare?
— Todas, menos três. Deixei Hamlet por último. Pretendo retomar
Coriolanus e começar de novo. Em que universidade você estuda?
— Oxford.
— E sua escola?
— Brasenove.
— Ah, BNC Que maravilha estar a poucos metros da Bodleian, a maior
biblioteca do mundo. Se tivesse nascido na Inglaterra, gostaria de passar os meus
dias em All Souls... fica do outro lado de BNC, não é?
— Fica.
O professor ficou em silêncio enquanto assistíamos à corrida seguinte, a
primeira semifinal dos 1.500 metros. O vencedor foi Anfras Patovich, um
húngaro, e a torcida vibrou de alegria.
— Isso que eu chamo dar força — comentei.
— Como o Manchester United, quando marcou o gol da vitória na final do
campeonato. Aqui, porém, os meus conterrâneos não aplaudiram porque o
húngaro foi o primeiro colocado — disse o velho.
— Não? — fiz eu, surpreso.
— Oh, não, deram vivas porque ele derrotou o russo.
— Nem notei nisso.
— Você não tinha por que notar, mas nós, a primeira coisa que pressentimos
é a presença de um russo. Além do mais, são raras as oportunidades que temos
de vê-los derrotados.
Procurei envolvê-lo num assunto mais alegre.
— Se não fosse aceito pelo All Souls, a que universidade o senhor gostaria
de ter ido?
— Como estudante, você quer dizer?
— Sim.
— Sem dúvida a universidade mais bonita é a Magdalen. Com a grande
vantagem de situar-se às margens do rio Cherwell. Já dá para você perceber
minha fraqueza pela arquitetura perpendicular e meu amor por Oscar Wilde.
No final dos anos 50, Harold Macmillan convidou Philippa para integrar o
conselho da IBA.
— Imagino que você vá se tornar o que se poderia chamar de telelente —
disse William — e, como a média de idade mental dos que assistem a esse
caixote não vai além dos sete anos, você vai sentir-se à vontade.
— Concordo — disse Philippa. — Vinte anos de vida com você me
capacitaram a lidar com crianças.
O presidente da BBC escreveu para William semanas depois e convidou-o
para integrar o conselho de diretores.
— Você substituirá o Meia Hora com Hancock ou o Dick Barton, Agente
Especial? — perguntou Philippa.
— Darei uma série de doze conferências.
— Sobre que assunto, se posso saber?
— Genialidade.
Rapidamente Philippa girou o botão do dial da Radio Times.
— Percebo que o “Gênio” poderá ser visto às duas da madrugada de
domingo, o que é bem compreensível: é quando você atinge seu mais alto grau
de brilhantismo.
Quando William recebeu um título de doutor honoris causa em Princeton,
Philippa compareceu à cerimônia e sentou-se orgulhosa na primeira fileira no
anfiteatro da universidade.
— Tentei garantir um lugar no fundo — explicou ela —, mas estava lotado
de estudantes sonolentos que obviamente nunca ouviram falar de você.
— Então, Philippa, surpreende-me que você não os tenha confundido com
alunos que frequentam suas aulas.
À medida que os anos foram se passando, muitas anedotas, das quais apenas
algumas eram apócrifas, engrossaram a trama dos diz-que-diz de Oxford. Todos
os que lá estudavam conheciam as histórias sobre os “briguentos Hatchards”.
Como passaram juntos a sua primeira noite. Como ganharam juntos o prêmio
Charles Oldham. Como Phil concluía as palavras cruzadas do Times antes
mesmo que Bill terminasse de fazer a barba. Como ambos foram indicados para
suas cadeiras no mesmo dia e trabalhavam longas horas mais que seus colegas,
como se ainda tivessem algo para provar, ao menos um ao outro. Parecia quase
uma exigência das leis da harmonia que eles fossem sempre considerados iguais.
Até que se anunciou nas comemorações do Ano Novo que Philippa fora eleita
Dama do Império Britânico.
— Pelo menos a nossa querida rainha compreendeu qual de nós dois é
realmente merecedor de reconhecimento — disse ela durante a sobremesa.
— Nossa querida rainha — disse William, abrindo o Madeira — sabe muito
bem que não há muita competição nas faculdades femininas: às vezes é
necessário encorajar as candidatas mais fracas na esperança de que isso inspire
algum autêntico talento recalcado.
Depois disso, toda vez que compareciam juntos a um acontecimento público,
Philippa pedia ao mestre de cerimônias que os anunciasse como Professor
William e Dama Philippa Hatchard. Esperava que, daí em diante, sempre
parecesse mais importante que o marido em todas as comemorações oficiais,
mas o sabor de triunfo durou apenas seis meses. William recebeu um título de
cavaleiro durante os festejos pelo aniversário da rainha. Philippa fingiu surpresa
ante o erro de julgamento da querida rainha e passou a exigir que fossem
apresentados em público como Sir William e Dama Philippa Hatchard.
— É natural — disse ele. — A rainha teve de condecorá-la primeiro para que
ninguém tomasse você como lady. Quando nos casamos, Philippa, você era uma
garota jovem, e agora fico sabendo que vivo com uma velha Dama.
— Não admira — disse Philippa — que os pobres dos seus alunos não
consigam resolver se você é homossexual ou se simplesmente sofre de fixação
materna. Agradeça por eu não ter aceitado o convite de Girton; então você
estaria casado com uma dona de casa.
— Eu sempre estive, sua velha idiota.
À medida que os anos se passavam, nunca abandonaram a suposta crença na
mediocridade mental do outro. Os livros de Philippa — “obras de muito mérito”,
insistia ela — eram publicados pela editora da Universidade de Oxford,
enquanto as “obras de monumental importância” de William, como ele próprio
as considerava, eram editadas pela Universidade de Cambridge.
O número de professores de inglês recém-nomeados, para quem haviam
lecionado quando ainda graduandos, dobrou.
— Se você considerar a politécnica, terei de incluir o público de Maguire, no
Quênia — disse William.
— Você não lecionou para o professor de inglês de Nairóbi — disse Philippa.
— Eu, sim. Você lecionou para o chefe de Estado, o que pode comprometer o
prestígio da Universidade, dada a desordem em que está o país.
Se havia uma coisa em Philippa que irritava William na velhice, era a sua
inabalável disposição matinal para completar as palavras cruzadas do Times
antes que ele se sentasse à mesa para o café da manhã. Por um período, William
manteve duas assinaturas do jornal até que Philippa passou a preencher as
cruzadas dos dois exemplares, explicando que estavam jogando dinheiro fora.
Sir William, com sua bela letra, fizera uma anotação à margem: “Perdoem-
me, mas eu tinha de informá-la disto”.
Do quê?, perguntou-se o professor. Tentou tirar o livro da mão de Sir
William, mas os dedos frios o prendiam com decisão.
Diz a lenda que nunca se separaram por mais de poucas horas.
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1 John Skelton (1460-1529), poeta e tutor do Rei Henrique VIII.