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Resumo
O presente trabalho discute a questão da opção das mulheres por não ter filhos sob a ótica de Carl Gustav
Jung e autores pós-junguianos, não deixando de observar um viés da psicologia social.
Palavras chave: Maternidade; psicologia; Jung e corpo.
Abstract
This paper discusses a question of the option of women for not have children from the perspective of Carl
Gustav Jung and post-Jungian authors, while observing a bias in social psychology.
Keywords: Motherhood; psychology; Jung and body.
1 Psicóloga com Pós Graduação em Gestão de Pessoas pela Universidade São Marcos e psicoterapeuta
com Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP,
email: priscillapsicologa@hotmail.com
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Introdução
Um casamento que se mantém artificialmente sem filhos é sempre algo problemático, pois
os filhos são a massa que segura quando nada mais segura. E é o cuidado dos filhos comuns
que, em inúmeros casamentos, mantém vivo o sentimento de companheirismo, tão impor-
tante para a constância do matrimônio. Quando não há filhos, o interesse dos parceiros se
volta um para o outro, o que em si é bom; mas na prática esta mútua preocupação nem
sempre é amorosa. Os esposos despejam um sobre o outro a insatisfação que sentem. [...]
(p. 215).
Cabe dizer que esta afirmação é marcada por preconceitos de gênero de uma época
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diferente da que vivemos atualmente, e que transmitem a falsa ideia de que os filhos
têm poder de manter um casamento vivo e que um casamento sem filhos é “artificial e
problemático”.
À medida que as civilizações se desenvolveram, a partir dos contatos e das limitações das
trocas, os sistemas de gênero – relações entre homens e mulheres, determinação de papéis
e definições dos atributos de cada sexo – foram tomando forma também. Por fim, essa
evolução haveria de entrelaçar com a das civilizações. O deslocamento da caça e coleta
para a agricultura pôs fim gradualmente a um sistema de considerável igualdade entre ho-
mens e mulheres. Na caça e na coleta, ambos os sexos, trabalhando separados, contribuí-
am com bens econômicos importantes. As taxas de natalidade eram relativamente baixas e
mantidas assim em parte pelo aleitamento prolongado. Em consequência disso, o trabalho
das mulheres de juntar grãos e nozes era facilitado, pois nascimentos muito frequentes e
cuidados com crianças pequenas seriam uma sobrecarga. A agricultura estabelecida, nos
locais em que se espalhou, mudou isso, beneficiando o domínio masculino. À medida que os
sistemas culturais, incluindo religiões politeístas, apontavam para a importância de deusas,
como geradoras de forças criativas associadas com fecundidade e, portanto, vitais para a
agricultura, a nova economia promovia uma hierarquia de gênero maior. Os homens agora
eram responsáveis, em geral, pela plantação; a assistência feminina era vital, mas cabia aos
homens suprir a maior parte dos alimentos. A taxa de natalidade subiu, em parte porque os
suprimentos de alimentos se tornaram um pouco mais seguros, em parte porque havia mais
condições de aproveitar o trabalho das crianças. Essa foi provavelmente a razão principal de
os homens assumirem a maior parte das funções agrícolas, já que a maternidade consumia
mais tempo. Dessa forma, as vidas das mulheres passaram a ser definidas mais em termos
de gravidez e cuidados de crianças. Era o cenário para um novo e penetrante patriarcalismo.
(STEARNS, 2007, p. 31-32)
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era da consagração da diversidade, embora isto seja mais uma meta do que uma realiza-
ção propriamente dita. Podemos verificar o que aponta Lima (2013):
Jung (1960) apud Faria (2016) refere que achava muito difícil falar sobre a mulher,
pois o que conhecia, a não ser teoricamente sobre ela? seria uma ousadia... Porém,
comenta nos “Seminários das Visões” (1960, p.12-47) sobre os diversos aspectos do ar-
quétipo da Grande Mãe, tanto positivos quanto negativos, ao analisar a evolução clínica
de um caso que atendia, chegando a observar que, enquanto nos considerarmos como
seres que priorizam um único sexo, estaremos presos a uma perspectiva unilateral, po-
dendo projetar tudo no nosso vis-à-vis. Tratando-se de uma mulher, ela projeta tudo
o que considera ligado ao homem (animus) em um homem, julgando-o inteiramente
masculino e identificando-se inteiramente com o feminino. Ela não tem absolutamente
qualquer introvisão ao fato de não ser exclusivamente mulher. E o homem projeta sua
anima em uma mulher, nunca duvidando de que esta é a mulher real. Uma mulher que
não pode escapar da gravidez e de ter filhos, depara-se com o “fogo do inferno”, e toda
a sua criatividade começa a queimar dentro de si. E um homem pode encontrar um obs-
táculo na sua carreira e ser incapaz de criar e construir; quando então, sua criatividade
começa a lhe devorar, como um fogo, situação em que descobre que não é um homem
apenas, mas bastante curioso, também uma mulher. Do mesmo modo, a mulher desco-
bre que não é apenas mulher, mas também um homem.
Podemos amplificar este tema ainda por meio de Wolff (1888-1953) apud Sanford
(2004), que descreveu quatro tipos de mulheres: a mãe, a hetaira, a amazona e a me-
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dium. A autora afirma que, embora toda mulher encarne um destes quatro tipos em si
mesma, um ou mais deles tendem a adquirir importância primordial e essa identificação
primordial confere a sua personalidade uma forma específica.
De maneira bastante sintética, a mulher que se identifica mais com a mãe, encontra
sua identidade e realização máximas em alimentar a vida. Geralmente, se sente satisfei-
ta criando e educando os filhos e é para essa tarefa que se inclinará primordialmente;
quando se casa, os filhos tenderão a ser mais importantes para ela do que o marido. Já,
a hetaira, refere-se a uma classe de mulheres da Grécia Antiga especialmente educadas
para serem companheiras psicológicas para os homens. A mulher hetaira encontra a sua
identidade e a sua realização máxima em fazer relacionamentos com os homens, o que
pode ou não incluir, o amor sexual, mas certamente incluirá o relacionamento psicoló-
gico em todos os níveis. A mulher do tipo amazona é a que encontra a sua identidade
e realização máximas no mundo exterior, o que em nossa sociedade geralmente ocorre
em determinados tipos de carreiras. Ela faz o que os homens fazem, demonstrando ser
capaz, criativa, inteligente e dando importantes contribuições sociais por meio do seu
trabalho. Por sua vez, o tipo medium refere-se às mulheres que encontram sua identi-
dade e realização primordiais por intermédio de um relacionamento com o inconsciente
coletivo, sendo uma espécie de ponte entre o mundo do inconsciente e a comunidade
humana. Geralmente, a encaramos com a mesma desconfiança com a qual olhamos o
inconsciente e, em nossa cultura, há pouco espaço para elas.
Como bem se sabe, as amazonas eram mulheres misteriosas que não davam impor-
tância ao casamento, em geral, nem aos homens e filhos, em particular. Ártemis de Tau-
ros, caçadora divina, não escondia sua própria condição de amazona, em que o aspecto
virginal e de irmã assume o primeiro plano, conforme citado por Hillman (1980):
Ela se mostra maternal e ternamente preocupada, mas de modo diverso do que o de uma
proteção à prole. Sob este aspecto ela é a guardiã de todo “vir-a-ser”, de todos os desen-
volvimentos futuros: ela está do lado de quem dá à luz; ensina os filhos e educa-os; protege
os jovens em crescimento. Entretanto, o aspecto virginal e de irmã do seu caráter inclui
também sua modéstia, dureza e crueldade (p. 74).
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Hillman (1980) apud Harding (1985) observa que nossa época se mostra aparente-
mente disposta de modo favorável ao que acima foi descrito resumidamente como tipo
feminino de Ártemis. Só que esse tipo não tem um modelo pronto à mão, e as mulhe-
res de hoje, influenciadas por Ártemis, em muitos casos estão apenas possuídas pelo
animus, o que pode ser também um estágio transitório, cujo propósito é estimular o
consciente, criando uma desarmonia necessária no interior de uma atitude passiva. O
protótipo persistente e auto afirmativo da nossa cultura continua sendo o da gestante e
mãe. Ao lado desta ideé force, todas as outras esmaecem ou se mostram, a um exame
mais atento, simples aproximação do espírito patriarcal. Por isso, as mulheres a quem a
maternidade seria uma segunda opção, tonam-se de algum modo mães como escolha
principal, apenas porque maternidade e feminidade ainda se equivalem. Para essas mu-
lheres, seria altamente vantajoso compreender a noção de que elas poderiam se colocar
na realidade sob a estrela da deusa da caça; aceitar esse aspecto da personalidade trans-
cendente é para elas uma precondição para a posterior experiência do eros afrodítico.
Ártemis não é mãe no sentido de dar à luz, mas sim de proteger a planta nova, a coisa
nova que mal começa a se desenvolver. Isto é verdade tanto no sentido concreto como
no espiritual.
Whitmont (2010) também destaca a importância de se discutir detalhadamente a
diferenciação dos arquétipos femininos descritos por Wolff (1888 – 1953):
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arrefecerem ela pode estar pronta para abandonar um relacionamento, sem levar em conta
as necessidades dos filhos.
Por outro lado, a mulher que, como Medium, é por demais sensível às coisas intangíveis da
atmosfera, não será facilmente bem-sucedida ao obrigar-se a ter uma atividade externa. Ela
pode oferecer aos outros aquelas coisas que eles próprios não percebem, pode ser a femme
inspiratrice, mas não é provável que seja bem-sucedida no mundo dos negócios. Seu peri-
go está na propensão para a exploração não-crítica de seu poder indefinível (WHITMONT,
2010, p. 162).
O autor mostra a multiplicidade de facetas que uma mulher pode ter, e o quanto
não há uma única via e sim uma mistura de várias características que podem estar em
constante movimento no sentido de se poder vivenciar uma experiência ou várias como
mulher a cada etapa ou momento da vida.
Lembrando também o desenvolvimento do ego e as fases da vida Whitmont explica:
a evolução do ego é a evolução daquele aspecto do Self que se manifesta no tempo e no es-
paço; desse modo, uma evolução contínua avança como interação entre uma personalidade
realizada centrada no ego e uma inteireza potencial centrada no Self. As formas característi-
cas dessa interação variam nas diferentes fases da vida. (Ibidem p. 235)
Feitas estas considerações, é importante destacar que qualquer mulher pode satisfa-
zer uma parte de si mesma e, mais tarde, ser mobilizada pelo Self no sentido de realizar
outra parte. Assim, uma mulher pode realizar-se primeiro como mãe, depois descobrir a
hetaira ou a amazona emergindo em si, reclamando igual realização. A tensão entre uma
ou mais destas formas estruturais, que evidentemente podem entrar em conflito entre
si, é capaz de complicar muitíssimo a sua situação psicológica e social.
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Para Jung (1875-1961): “os instintos são formas típicas de comportamento, e toda
vez que nos deparamos com formas de reação que se repetem de maneira uniforme e
regular, trata-se de um instinto, quer esteja associado a um motivo consciente ou não”
(p.270).
Ainda, segundo ele:
Uma discussão do problema do instinto sem levar em conta o conceito do inconsciente seria
incompleta, porque são precisamente os processos instintivos que pressupõe o conceito
complementar de inconsciente. Eu defino o inconsciente como a totalidade de todos os
fenômenos psíquicos em que falta a qualidade da consciência. (JUNG, 2011, p.270)
Apesar destas informações de Jung podemos lembrar que existe um livre arbítrio que
permite escolhas e questionamentos a respeito dos referidos instintos, como comenta:
O instinto como fator extra psíquico desempenharia o papel de mero estímulo. O instinto
como fenômeno psíquico seria, pelo contrário, uma assimilação do estímulo a uma estrutu-
ra psíquica complexa que eu chamo de psiquificação. Assim, o que chamo simplesmente de
instinto seria um dado já psiquificado de origem extra psíquica (JUNG, 2011, p. 234).
Ou seja, embora exista um “instinto maternal”, é possível para o ser humano desviar-
-se do instinto por escolha própria, usando o seu livre arbítrio?
A imagem arquetípica da Grande Mãe tem raízes no instinto maternal, na função
geradora de vida e condutora das relações familiares. “A Grande Mãe é uma imagem
feminina universal que mostra a mulher como eterno ventre e eterna provedora” (RAN-
DAZZO, 1997, p. 103). O arquétipo da Donzela, Virgem ou Musa representa o lado da
Grande mãe que é dotado de uma beleza etérea, pueril e fascinante. O oposto deste
arquétipo é a Prostituta ou Tentadora. A Prostituta/Tentadora traz a sexualidade não do-
mesticada que enfeitiça os homens e ameaça a ordem da estrutura familiar. O arquétipo
da Guerreira ou Heroína traz elementos ligados à coragem, bravura, luta e persistência.
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pessoa. Assim, os adjetivos masculino e feminino passam a ser a fonte de grande confu-
são semântica para descrever a individuação. Ao perceber que o Arquétipo da Grande Mãe
existe também na personalidade do homem e o Arquétipo do Pai, na da mulher, mudei sua
denominação para incluir os dois gêneros. Passei a chamá-los de Arquétipo Matriarcal para
designar o arquétipo da sensualidade, e o Arquétipo Patriarcal para nomear o arquétipo
da organização, ambos presentes na personalidade do homem e da mulher e em todas
as culturas em combinações variáveis. Este passo mostrou-se importante para vincular o
desenvolvimento arquetípico às neurociências, pois o Arquétipo Matriarcal, como o arqué-
tipo dominante da sensualidade, da imagem e do desejo, pode ser associado ao hemisfério
cerebral direito, ao sistema límbico e ao sistema neuroendócrino-vegetativo, enquanto que
o Arquétipo Patriarcal, como o arquétipo dominante da organização, do poder e da abstra-
ção, pode ser relacionado ao hemisfério cerebral esquerdo e aos sistemas volitivo sensório-
-motor e associativo cortical. (BYINGTON, 2006, p. 12-13)
Forma-se uma relação didática, empática, simbiótica, de causalidade mágica, chamada par-
ticipação mística, por Levy-Brühl, ou de processo primário do desejo e do inconsciente, pela
Psicanálise. Esta posição é binária porque o Ego se relaciona dominantemente com um só
polo de uma polaridade em cada ilha da Consciência. Numa pode manifestar agressividade,
e logo depois, noutra ilha, afetividade com a mesma pessoa, sem que isso signifique um
Split. A passagem de uma ilha para outra ocorre exclusivamente pelo desejo de satisfação
ou pela frustração do momento. A intimidade da polaridade Ego-Outro aproxima muito os
polos consciente-inconsciente, em função do prazer e da sensualidade, das funções do sen-
timento, da intuição e da sensação, dentro de uma mentalidade habitualmente pré-verbal,
imagética e característica do hemisfério cerebral direito. (BYINGTON, 2006, p. 15-16)
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Conclusão
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Temos verificado que recentemente algumas mulheres vêm expondo com mais co-
ragem seus pontos de vista sobre não serem totalmente felizes com a maternidade, ou
mesmo, questionando-se sobre o instinto materno, posicionando-se de maneira incisiva
em relação à maternidade como escolha e não como um papel a ser cumprido pela mu-
lher na sociedade.
O desenvolvimento, chamado por Jung de individuação, é como uma semente que
guarda a vida inteira, mas que não tem como ser puxada para fora à força. Ela tem que
emergir, não há outro caminho, e por isso o processo, a vivência, é tão importante e
valorizado na teoria junguiana.
Tudo o que podemos fazer é propiciar o terreno para que as vivências ocorram e a
liberdade de escolha seja o caminho mais fértil para que cada mulher possa se desenvol-
ver e se encontrar: com o mundo, com o outro, consigo mesma e com o seu caminho ou
chamado. Não existe nada pronto, perguntas e respostas vão surgindo e sendo respon-
didas, mas as imposições do patriarcado e dos costumes sociais existem e a pressionam
por caminhos já conhecidos ou pré-definidos, como por exemplo o que aponta que toda
mulher tem que ser mãe para se sentir completa na vida, ou ficará frustrada.
Ou seja, se para a realização do “vir a ser” em nosso processo de individuação, cada
um deve ser verdadeiramente si mesmo, qual seria a razão para querermos seguir um
padrão pautado no externo, em normas sociais e contextos históricos não necessaria-
mente alinhados aos nossos objetivos inconscientes, para que possamos “acontecer
para nós mesmos”, segundo Jung descreveu?
Feitas essas considerações, é importante destacar que uma mulher pode satisfazer
uma parte de si mesma e, mais tarde, ser orientada no sentido de realizar outra parte.
Assim, uma mulher pode se realizar primeiro como mãe, depois descobrir a hetaira ou a
amazona emergindo dentro de si e reclamando igual realização. A tensão entre uma ou
mais destas formas estruturais, que evidentemente podem entrar em conflito entre si, é
capaz de complicar muitíssimo sua situação psicológica e social.
Vários estudos relacionados à maternidade estão sendo realizados atualmente e,
pensando na sociedade contemporânea e na educação vigente, tão focada na diversida-
de e baseada na expressão do indivíduo, é completamente incongruente pensar que o
caminho da maternidade é obrigatório a todas as mulheres e que não exista espaço livre
para outras possibilidades de realização além desta opção. Este tipo de imposição, base-
ada em relações de poder, não permite que haja livre expressão das particularidades de
cada pessoa e do exercício da maternagem em suas mais diversas formas.
Por isso, concluímos que cada um tem seu direito de escolha, considerando que esta
escolha poderá ser muito mais genuína, se levarmos em conta nossa sabedoria ou bússo-
la interna, que pode realmente nos guiar ao nosso propósito, o que Jung chamou de Self.
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Referências
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