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CADERNOS DE HISTÓRIA

Cad. hist. Belo Horizonte v. 5 n. 6 p. 1-72 jul. 2000


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Grão-Chanceler
Dom Serafim Fernandes de Araújo

Reitor
Prof. Pe. Geraldo Magela Teixeira

Pró-reitores
Execução Administrativa – Ângela Maria Marques Cupertino; Extensão – Bonifácio José Teixeira;
Graduação – Miguel Alonso de Gouvêa Valle; Infra-estrutura – Fábio Horácio Pereira; Pesquisa e
de Pós-graduação – Léa Guimarães Souki; Planejamento – Carlos Francisco Gomes; PUC Minas
Arcos – Ângela França Versiani; PUC Minas Betim – Carmen Luiza Rabelo Xavier; PUC Minas
Contagem – Geraldo Márcio Guimarães; PUC Minas Poços de Caldas – Geraldo Rômulo Vilela
Filho e Maria do Socorro Araújo Medeiros; Chefe do Departamento de História: Maria
Mascarenhas de Andrade; Colegiado de Coordenação Didática: Lucília de Almeida
Neves Delgado, Maria Alice Moreira Lima, Maria Mascarenhas de Andrade
(Coordenadora) e Rui Edmar Ribas; Conselho Editorial: Carlos Fico (UFOP), Eliana
Fonseca Stefani (PUC Minas), Liana Maria Reis (PUC Minas), Lucília de Almeida
Neves Delgado (PUC Minas), Maria do Carmo Lana Figueiredo (PUC Minas),
Maria Efigênia Lage de Rezende (UFMG); Coordenação Editorial: Alysson
Parreiras Gomes, Cláudia Teles; Coordenação Gráfica: Pró-reitoria de
Extensão – PROEx; Revisão: Virgínia Mata Machado;
Estagiário: Juniele Rabêlo de Almeida

Capa:
Mulher do capitão Krenak fotografada pelo padre André Colli

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


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Tiragem
1.000 exemplares

Preparada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Cadernos de História. — out. – 1997 — Belo Horizonte: PUC Minas,

v.

Anual

1. História – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica


de Minas Gerais. Departamento de História.

CDU: 98 (05)
SUMÁRIO

Temas para o estudo da história indígena em Minas Gerais


Izabel Missagia de Mattos ......................................................................................... 5

Vale do Jequitinhonha: um vale de muitas culturas


Geralda Chaves Soares .............................................................................................. 17

História kaxixó: aspectos etnográficos


Vanessa A. Caldeira .................................................................................................. 23

Breve história da presença indígena no extremo sul baiano


e a questão do território pataxó do Monte Pascoal
José Augusto Laranjeiras Sampaio ............................................................................ 31

Aspectos do processo de contato entre colonizadores e


grupos indígenas no norte de Minas Gerais – Região do
Vale do Rio Peruaçu
Alenice Motta Baeta .................................................................................................. 47

Territórios indígenas: materiais, existenciais


Rinaldo Arruda ......................................................................................................... 57

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TEMAS PARA O ESTUDO DA HISTÓRIA INDÍGENA EM MINAS GERAIS

TEMAS PARA O ESTUDO DA HISTÓRIA


INDÍGENA EM MINAS GERAIS

Izabel Missagia de Mattos*

RESUMO
O presente artigo trata de uma introdução ao estudo da história indí-
gena em Minas Gerais, feita com o objetivo de apontar temáticas ade-
quadas a abordagens interdisciplinares de História e Antropologia.
Para isso, o artigo discute alguns problemas à luz de correntes teóri-
cas da história indígena. Enumera, ainda, pesquisas realizadas ou em
andamento, sugerindo questões relevantes para novas investigações.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Identidade; Resistência; Trân-
sito intercultural.

O mesmo tipo de mudança cultural, induzido por forças externas mas orquestrado de modo
nativo, vem ocorrendo há milênios. Não somente porque as chamadas sociedades primitivas
jamais foram tão isoladas quanto a antropologia em seus primórdios, obcecada pelo interesse
evolucionista com o antigo, gostaria de acreditar (...). Os elementos dinâmicos em funciona-
mento – incluindo o confronto com um mundo externo, que tem determinações imperiosas
próprias e com outros povos, que têm suas próprias intenções paroquiais – estão presentes
em toda a experiência humana. A história é construída da mesma maneira geral tanto no in-
terior de uma sociedade, quanto entre sociedades. (Sahlins, 1994, p. 9)

OS “OUTROS” PASSADOS E FUTUROS dos, de um passado de encobrimentos e


ivisibilidades.

A
necessidade de se discutir aspec- Quando lançamos o olhar para os ín-
tos da história e da identidade na dios, esses diferentes, inevitavelmente de-
cional – especialmente em pauta paramos com nossa própria imagem, pro-
hoje, nesta ocasião de balanço simbólico jetada no espelho daqueles “outros”. Nes-
da construção do Brasil – abre um espaço se sentido, redescobrir os índios é também
importante para atores sociais de diver- redescobrirmo-nos como brasileiros – que,
sas etnias que têm emergido, revitaliza- afinal, participamos da sua “invenção”, ao

* Antropóloga e doutoranda em Ciências Sociais na Unicamp.

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encará-los como estranhos por uma ótica nenhuma saberia perpetuar para além de si mes-
que coincide com sua “descoberta”. Re- ma. É preciso, portanto, atentar para a força nas-
cente, encorajar as potencialidades secretas, des-
presentação e realidade articuladas para pertar todas as vocações para conviver com o
configurar a imagem do aborígene do “no- que a história tem em reserva; é preciso também
vo mundo”. estar pronto para considerar sem surpresa, sem
Todavia, mesmo com toda a destruição repugnância e sem revolta, o que todas essas no-
vas formas sociais de expressão não poderão dei-
que a situação de confronto interétnico
xar de oferecer de inusitado. (Lévi-Strauss,
significou para os índios, cabe-nos, aqui, 1989, p. 361-366)
valorizar sua participação como atores e
co-autores dessa história, e não apenas rei- Creio que a mesma dialética pode ser
terar seu papel de vítimas. Para isso, pode- aplicada no caso de uma reflexão crítica
mos lançar mão de um dos princípios da sobre a alteridade, considerada em dire-
dialética do senhor e do escravo concebi- ção ao passado, tomando-se o momento
da por Hegel (1992), muito válida para o presente como um momento simbólico de
entendimento das relações entre povos di- ruptura para que se possa construir, des-
ferentes, postos em uma situação hierár- ta vez no futuro, “outros 500”, na medida
quica. Para que a plena consciência de si em que o processo de universalização, tão
do sujeito dominado, individual ou soci- “bem-sucedido” nesse passado, possa ser
al, possa surgir, com o subseqüente esta- direcionado não apenas no sentido da dis-
do de emancipação que isso implica, é ne- seminação da racionalidade e da tecnolo-
cessário que se estabeleça o conhecimen- gia, mas também da disseminação de ou-
to do outro, dominante, a partir da incor- tros valores, agora e no futuro indispen-
poração de sua linguagem. Do ponto de sáveis à vida do planeta e que exigem um
vista dos índios, aprender a linguagem do convívio mais respeitoso entre a diversi-
branco faz parte do seu processo de eman- dade das culturas.
cipação, não implicando, automaticamen- De acordo, pois, com os princípios éti-
te, destruição de sua diferença. Aprender cos estabelecidos na Carta da Terra, pro-
a linguagem do dominante torna-se, ao clamados na Conferência Continental das
contrário, cada vez mais um instrumento Américas realizada em dezembro de 1998
imprescindível para a libertação do outro, em Cuiabá, “os povos indígenas e tribais
diferente. (...) têm o direito de ter resguardados sua
A situação de contato intensificada pela espiritualidade, conhecimento, terras
globalização pode ser lida não apenas pela (...)”, considerando seu “papel vital no cui-
ótica da destruição promovida pela impo- dado e proteção da Terra Mãe”. (Carta da
sição de uma linguagem universal aos di- Terra, 1998)
ferentes povos, mas também pelo enri- Otimismo utópico? Se se trata, aqui, de
quecimento que ela pode produzir, res- uma utopia relativa à emancipação huma-
saltando a diversidade, como bem nos fez na, associada à luta pelo direito à diversi-
ver Lévi-Strauss (1989): dade – seja dos povos, seja do planeta –, é
mister não se esquecer que o conhecimen-
A fatalidade exclusiva e a única tara que podem to humano, que nunca é neutro, posicio-
afligir um grupo humano e impedi-lo de reali-
zar plenamente sua natureza é a de ser só. (...) na-se freqüentemente em prol de valores
É o fato da diversidade que deve ser salvo, não o e de buscas dessa natureza, contribuindo
conteúdo histórico que cada época lhe deu, e que para pressionar movimentos sociais no

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sentido da conquista de significativas mu- constante transformação. Assim, os gru-


danças no rumo da história. pos indígenas, mesmo aqueles considera-
Passemos a examinar noções corrente- dos isolados, procuram interagir entre si
mente utilizadas nos debates, como as de e com os demais grupos que os envolvem.
“índio isolado”, “identidade indígena”, Por isso, o olhar que busca o índio na his-
“perdas culturais” provocadas pela influ- tória não pode vê-lo considerando ape-
ência dos brancos. Em seguida, enfocare- nas o que se perdeu no contato com os
mos alguns aspectos da história dos índi- brancos. A partir de uma abordagem in-
os de Minas, sugerindo temas para pes- terdisciplinar – característica, aliás, da si-
quisas, propícios às abordagens interdis- tuação generalizada de “mistura” e globali-
ciplinares de História e Antropologia, para zação, não apenas de matrizes culturais,
depois concluir sobre como os novos valo- mas também de paradigmas teóricos –, os
res atribuídos à indianidade apontam para índios não podem mais ser considerados
futuras conformações da noção de brasi- como “vítimas” da história. Assim, os pro-
lidade. cessos de contatos, que resultam em hi-
bridismos de diversas naturezas, podem
ser vistos em sua dimensão positiva e não
O MITO DO ÍNDIO ISOLADO apenas enquanto perdas: o que se obser-
va são reconstruções criativas dos mun-
Pouco estudada nos cursos de Histó- dos por parte dos atores indígenas, que
ria, a questão indígena parece pertencer são capazes, como os demais atores histó-
a uma província restrita da Antropologia. ricos, de produzir ressignificações identi-
Importa aqui pensar como Antropologia tárias.
e História podem articular-se para ampli- A mudança é inerente ao processo in-
ar o olhar sobre os povos indígenas den- cessante de conhecer e agir no mundo. Os
tro da história, hoje ou no passado. indivíduos pertencentes a um determina-
O fato de o estudo da questão indíge- do grupo indígena não são apenas her-
na ter-se restringido a um olhar sincrôni- deiros e reprodutores de uma tradição,
co da Antropologia associa-se à própria mas também a transformam de acordo
forma como os índios foram freqüente- com um processo dinâmico em que a es-
mente representados pelas ciências soci- trutura interage com a história. Encarado
ais relativamente à sua atividade históri- dessa maneira, o acontecimento, ou seja,
ca, a saber, como atores que, ao contrário uma novidade exterior que venha incidir
de nós, modernos, inovadores, tendem a sobre uma estrutura, uma tradição, não
repetir indefinidamente o mesmo padrão faz necessariamente com que ela seja des-
cultural de seus ancestrais, desde que truída: a lógica que orquestra o conheci-
mantidos em uma situação ideal, ou seja, mento tradicional dos índios é capaz de
isolados. interpretar e absorver o novo, ajustando-
A existência desses seres “primitivos” o, adaptando-o, dando-lhe sentido, tor-
e isolados, no entanto, é um mito que fa- nando-o inteligível nos termos da lógica
cilitou, por contraste, a configuração de nativa.
uma imagem de sociedade moderna, his- Por isso podemos dizer, com tranqüili-
tórica, pois toda sociedade humana, indí- dade, que o processo planetário de oci-
gena ou não, é dinâmica, complexa e em dentalização não significa absolutamente

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a destruição das culturas indígenas. Elas na o fato de que, na década de 80, várias
são capazes de absorver o novo e adaptá- das principais lideranças indígenas que
lo aos seus quadros tradicionais. Esses es- então despontavam tinham participado
quemas da tradição acabam por se trans- de alguma forma de instituições dos bran-
formar à medida que o novo é assimila- cos, mesmo da GRIN, a Guarda Rural In-
do, mas também se reproduzem nesse dígena, que entendemos como uma ins-
processo, ao conferirem sentido às mu- tituição completamente contrária ao
danças introduzidas externamente. modo de ser dos índios, posto que basea-
A destruição ocorreu, de fato, na situ- da numa rígida disciplina hierárquica. Es-
ação colonial, que se caracterizou pela vi- ses índios, treinados como soldados, uti-
olência, humilhação e exploração perpe- lizaram, no entanto, seu aprendizado en-
tradas contra os índios. Nesse sentido, a tre os brancos para despontarem como in-
relação entre o Ocidente em movimento terlocutores privilegiados nas negociações
de expansão e os índios – cujo movimen- políticas entre as diferentes sociedades.
to histórico não seguia na mesma direção Podemos então concluir que o próprio
– não pode ser considerada apenas como movimento indígena – então iniciado em
um simples “encontro” entre diferentes Minas – possui, paradoxalmente, nas suas
povos, mas um “encontrão” entre povos raízes, a herança da formação dos índios
indígenas e “civilizados”. Porém, isso não enquanto soldados da GRIN, fato que, de
significa o fim dos índios, que demons- qualquer maneira, os teria habilitado à
tram enorme capacidade de resistir atra- prática de negociação com os brancos,
vés da reelaboração de seu patrimônio possível apenas no patamar da sua lingua-
cultural, tomando da sociedade ocidental gem, que os índios passaram, então, a
alguns elementos e incorporando-os se- dominar. Esse exemplo indica que o re-
gundo sua própria lógica. sultado do contato, muitas vezes conside-
rado erroneamente como simples desca-
racterização dos índios (se são soldados,
AS ESPECIFICIDADES DE MINAS GERAIS não são mais índios), pode ser encarado,
ao contrário, como forma de incorpora-
Há um imenso vácuo no conhecimen- ção de instrumentos necessários para a
to histórico da questão indígena em Mi- própria sobrevivência e resistência dos
nas Gerais, apesar de sua importância em grupos indígenas enquanto tais, a partir
relação à história dos índios no Brasil. Inú- do fortalecimento de seu poder de nego-
meras interrogações e dúvidas surgem ciação com os brancos. Nesse caso – como
quando nos debruçamos sobre períodos em diversos outros na história indígena
históricos ou contemporâneos. Em Minas em Minas1 – fenômenos como o fortale-
Gerais, depararemos com uma riqueza de cimento de uma consciência étnica e a mo-
situações relativas à questão indígena que bilização que ela produz derivam da ação
desafia nossa imaginação antropológica e mediadora de líderes capazes de transi-
histórica. tar entre as duas culturas. A etnicidade
A indigenista Geralda Soares mencio- surge, como fenômeno político, em situa-

1 Outro processo semelhante é o da atuação dos intérpretes, conhecidos como “línguas”, mediadores dos
índios e militares nos quartéis e presídios do Rio Doce e Jequitinhonha, na primeira metade do século
XIX. (Mattos, 1999b)

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ções interétnicas, em que as diferenças são A língua, patrimônio precioso, também


contrastadas e transformadas em instru- deixou de ser falada no contexto da sub-
mentos políticos de pressão. Conhecer as missão e da escravidão dos Xakriabás,
regras desse jogo de dominação – o que lembra o vice-cacique. Mas, o mais impor-
apenas o trânsito pela língua e cultura do- tante, segundo ele, o sentido de ser índio,
minantes pode permitir – é fundamental isso não se perdeu, uma vez que os Xakria-
para o processo de resistência indígena. bás entendem que a miscigenação, não
Permanecem ainda como uma interro- apenas biológica, não se coloca de forma
gação para a história indígena em Minas contraditória à identidade indígena: esta
Gerais fenômenos como o dos Kaxixós, os é capaz de lhe dar um sentido, inclusive
quais, após séculos de invisibilidade his- o de sobrevivência para o grupo indígena.
tórica, emergem, hoje, como novos ato- A língua do dominador pode ser fala-
res indígenas, de sua situação de traba- da – e mesmo sua religião, praticada – sem
lhadores rurais e sertanejos. Como enten- que o índio perca sua identidade. Mais
der sua indianidade, uma vez que se ex- ainda, é até necessário que a língua do-
pressam na mesma linguagem regional, minante seja aprendida para que o outro,
usam as mesmas roupas e se alimentem o dominado, possa emancipar-se. Não
da mesma comida de seus vizinhos não apenas a língua, mas as instituições do do-
índios? Ou, ainda, como entender sua in- minador podem ser absorvidas, sem que
visibilidade secular? o índio se perca nelas. Incorporar a fala
Perguntou-se ao vice-cacique Emílio do outro, a religião do outro, não repre-
Xakriabá a respeito das principais perdas senta necessariamente uma perda. Há
culturais sofridas por seu povo com os momentos em que a incorporação desses
brancos. Em sua resposta, o vice-cacique elementos exteriores é estratégica para a
remete curiosamente para o meio ambi- sobrevivência do grupo indígena, como
ente a questão das perdas: o que se per- enfatizou o vice-cacique Xakriabá. Preci-
deu com a chegada dos brancos foi a di- samos repensar essa idéia de que incor-
versidade, por exemplo, das espécies na- porar elementos brancos implica perda da
tivas de abelhas, tão importantes não ape- indianidade.2 Essa idéia traz, no fundo,
nas para o fornecimento do mel, mas tam- aquela imagem ideal do “índio”, “puro”,
bém para o próprio universo religioso. “isolado”.
Cabe-nos perguntar sobre o caráter desse Por outro lado, podemos identificar,
impacto destruidor da colonização sobre através do conceito antropológico de “re-
a natureza: ele não nos atinge a todos? sistência adaptativa” (Stern, 1987), diver-
Nesse sentido, pode, sim, ser considera- sos processos etnopolíticos que permane-
da uma grande perda a extinção, por cem por longos períodos em latência, sen-
exemplo, de espécies nativas na região on- do detonados, por exemplo, através da in-
de vivem os Xakriabás. Porém, essa perda fluência de um líder nativo capaz – a par-
não diz respeito apenas à herança indíge- tir do trânsito intercultural propiciado
na, ela atinge e ameaça todo o planeta. pelo aprendizado da língua e da cultura

2 Em uma peça de Shakespeare, A tempestade, um personagem “nativo” – Caliban (que é anagrama de


Canibal) – agradece seu “descobridor”, Próspero – um navegante europeu naufragado – o fato de este
ter-lhe ensinado a língua, porque assim ele aprendeu também a amaldiçoá-lo. Essa fala de Caliban, ape-
sar de formulada em período anterior à dialética hegeliana, de certa forma a condensa.

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dominantes – de articular e catalisar essa ALGUNS TEMAS INTERDISCIPLINARES


resistência latente, escamoteada em uma
situação de aparente acomodação. Com Gostaria de sugerir alguns temas e ti-
esse conceito podemos compreender pos de abordagem possíveis para o estu-
como líderes nativos potencializam o grau do dos índios na história de Minas Gerais.
de rebeldia de seu povo quando se trans- Primeiramente é preciso retornar à
formam em tradutores, após terem pas- questão que estou frisando aqui: a de des-
sado por processos de aprendizagem da mistificar a idéia de um índio isolado. Es-
cultura dominante.3 tudos sobre uma sociedade indígena não
Muitas outras situações de resistência podem se fazer sem que se compreenda
e negociação nas relações entre índios e o processo situacional mais abrangente,
brancos podem ser encontradas nesse seja ele econômico, social, simbólico.
grande baú de informações sobre o pas- Neste caso, remeto à minha pesquisa
sado indígena que a história de Minas sobre os Botocudos, povo representado,
Gerais nos fornece. Podemos ler a histó- já no imaginário colonial, como também
ria dos índios a partir de um sentido étni- no Império e ainda na República, como
co, tentando recuperar o seu papel como ferozes inimigos da civilização.
atores históricos, não apenas como vítimas O contraste entre os índios Tupis e os
de uma situação inexorável de aniquila- Tapuias é recorrente desde os tempos co-
ção em casos, por exemplo, de recompo- loniais. A recusa desses últimos fez com
sição de grupos indígenas em situações que sobrevivessem até o século XIX com
de fuga à escravização, como estratégia de esse estigma de “inimigos”, “ferozes”, “ir-
sobrevivência e resistência. Em uma bre- redutíveis”.
ve pesquisa sobre a história da região do No século XIX, porém, essas imagens
Alto São Francisco, deparamos com uma tomaram ares de ciência. Os Botocudos
dessas situações, no final do século XVIII: foram considerados, no quadro evoluti-
os Candindés, grupo aparentemente de vo das raças, os seres mais primitivos da
origem Tupi, encontrava-se “aquilomba- Terra. Sua inferioridade nata era avaliada
do” no local onde se formou o primeiro de acordo com a medida de seus crânios.
núcleo populacional que se tornaria a ci- Mesmo os políticos ou missionários que
dade de Divinópolis. (Mattos, 1999a) se diziam seus “protetores” admitiam nos
Uma pesquisa mais detida nas inúme- Botocudos uma incapacidade inata de se
ras bibliotecas e arquivos desse Estado nos tornarem trabalhadores “civilizados”. É
mostraria a quase generalização da presen- claro que essas imagens orientaram as re-
ça indígena na história dos municípios lações e atitudes hostis dos brancos con-
mineiros, repleta de singularidades e idi- tra os índios, a ponto de muitos deles acre-
ossincrasias que a tornam ainda mais ins- ditarem que a ferocidade dos índios e
tigante. De fato, grande parte desses mu- mesmo a sua suposta antropofagia eram
nicípios surgiu, senão de um aldeamento uma resposta à violência dos brancos.
propriamente dito, de um quartel ou guar- (Mattos, 1999b)
nição militar criada para combater índios. É importante ver o Botocudo do sécu-

3 Este parece ser o caso, por exemplo, de líderes nativos como Mahatma Gandhi, que recebeu uma forma-
ção acadêmica na Europa antes de se tornar o que foi para a Índia: um símbolo de libertação.

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lo XIX nesse contexto social e ideológico recem, revestidas de novo valor, memóri-
mais amplo, onde a identidade é forjada. as vivas das negociações entre índios e
A identidade não é intrínseca ao grupo brancos naquela situação de contato que,
indígena, não se afirma isoladamente, mas além das lideranças indígenas, envolvia
é constituída na relação com o outro. Va- missionários, funcionários do governo e
lores são atribuídos pelo outro nesse jogo políticos preocupados em planejar formas
em que os estereótipos sobre pertencer ao de lidar com o “problema” dos índios. A
nosso ou a outro grupo são absorvidos e recuperação dessas histórias, por outro
assimilados, a ponto de os próprios Boto- lado, permite-nos trabalhar diferentes di-
cudos – que não praticavam o canibalis- mensões do contato, como a dimensão de
mo – o admitirem aos brancos, por ser esta gênero, através da importância do papel
a moeda corrente nas relações interétni- político desempenhado pela mulher in-
cas estabelecidas entre eles. dígena, descrita brevemente na “Introdu-
A problemática identitária nos contex- ção à leitura das fotos”, adiante.
tos multiétnicos é, pois, uma área temáti- Por fim, outro tema sugestivo para pes-
ca que pode ser estudada quando o obje- quisa histórica dos índios de Minas é o de
to são os índios históricos, pois a identi- destrinchar o processo de mestiçagem – a
dade não é dada, mas construída nas re- um só tempo racial, social e cultural – que
lações. As formas de interação históricas compõe uma teia de relações interétnicas
entre os grupos indígenas atuais em Mi- que caracterizam, por exemplo, atuais
nas – Maxakali, Krenak, Pataxó, Xakriabá, populações sertanejas do Vale do Jequiti-
Pankararu e os demais emergentes – e a nhonha, herdeiras de um passado em que
sociedade abrangente, por si só, represen- se mesclam tradições indígenas e africa-
tam um vasto campo de pesquisa e estu- nas. A riqueza cultural do Vale tem a ver
do. com a contribuição dos diferentes povos
Alguns outros temas, como o trabalho que entre si interagiram e sobre os quais
indígena, a transformação do índio em tão pouco sabemos.
escravo no século XVIII e o imaginário
racial do século XIX que envolve o Boto-
cudo são objetos de pesquisas atualmen- CONSIDERAÇÕES FINAIS
te em curso em Minas.4
A análise da iconografia indígena é O sentido de ser brasileiro está profun-
outro campo que abre uma ampla gama damente arraigado à imagem do índio,
de possíveis investigações. A série de fo- reelaborada continuamente de acordo
tografias da “pacificação” dos Botocudos com processos políticos aos quais corres-
do Rio Doce, no Caderno de Fotos a se- pondem novas visões sobre a identidade
guir, é apenas uma mostra do que pode nacional. É importante lembrar como a
ser recuperado em relação à memória das figura do mestiço representa um elemen-
relações interétnicas no início do século. to fundamental na mitografia da nacio-
Prova disso é que, juntamente com as fo- nalidade brasileira. O atraso do país che-
tos, que são recordações de família, apa- gou a ser atribuído, por intelectuais de

4 O primeiro tema vem sendo desenvolvido pela historiadora Profª Maria Leônia Chaves, da Funrei, e o
segundo pelo historiador Prof. Marco Morel, da UERJ.

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Izabel Missagia de Mattos

inspiração “raciológica”, firmemente com- CADERNO DE FOTOS


prometidos com a hegemonia das elites
econômicas, durante o final do século XIX, Introdução a uma leitura das fotos
início do século XX, à sua composição ét- Esta série de fotos foi gentilmente ce-
nica. Infelizmente, até os dias de hoje ain- dida pela família do advogado José Vieira
da imperam noções de senso comum des- Fonseca, através de sua neta, a estudante
sa natureza, principalmente em regiões de História da PUC Minas, Thereza de
onde a presença indígena histórica é mais Laurentys, que se empenhou em torná-
marcada. las públicas, por um lado, por perceber seu
A globalização, no entanto, tem propi- imenso valor para a melhor visualização
ciado aos índios e seus descendentes mes- da presença indígena na história de Mi-
tiços um momento de reflexão e ressigni- nas e, por outro lado, para homenagear a
ficação de sua imagem histórica. Esse memória de seu avô, que se dedicou, du-
movimento, por sua vez, vem afetar pro- rante toda sua vida, à causa dos Krenak.
fundamente nossa idéia de brasilidade, Ainda em 1909, José Vieira Fonseca
como nos mostra Hermano Viana (1999). participou das primeiras expedições para
De fato, investidos de uma nova posi- a “pacificação” do grupo de Botocudos en-
tividade, valores relacionados à indiani- tão liderado pelo “capitão” Krenak. Esse
dade, antes relegados ao apagamento, capitão foi caracterizado como “terrível”,
tendem a adquirir uma nova roupagem. segundo consta na legenda explicativa da
Esse movimento é sentido em toda a na- sua foto, única conhecida até hoje, certa-
ção e mesmo em nível mundial, mani- mente por sua capacidade de comandar
festando-se também em Minas Gerais, seu povo, fazendo-o opor-se ao avanço
onde ser índio ou possuir herança indí- dos colonos e resistir em abandonar aque-
gena não constitui mais, necessariamen- le reduto às margens do Rio Doce, então
te, motivo de vergonha. Isso talvez nos coberto por densa mata. Ao que parece,
permita entender o processo de ressur- não devia gostar de ser fotografado, tal
gimento de populações indígenas,5 ob- como foi seu filho, Muin, outro importan-
servado como tendência entre sertane- te líder, que o sucedeu. Este, ao contrário
jos de origem indígena, em busca de sua de Krenak, é figurado com uma expres-
“redescoberta”. são bem à vontade, tanto pelo Padre Colli
– autor desta série de fotos – como nos
demais ensaios fotográficos sobre os Bo-
tocudos, realizados posteriormente.6

5 Além dos Kaxixós, que há mais de uma década se organizam em torno da luta pelo seu reconhecimento
oficial, outro grupo, no município de Coronel Murta, Vale do Jequitinhonha, autodenominado Aranã,
busca resgatar suas raízes étnicas, presentes em sua memória. (Mattos, 1998)
6 Outra série composta por 18 fotos de Botocudos do Aldeamento do Rio Pancas, em 1920, pertencentes
ao acervo do Arquivo Histórico do Espírito Santo e realizadas por Walter Garbe, encontra-se publicada e
analisada por Beatriz Bushinelli (1998). Diversos autores já utilizaram essas imagens em seus estudos,
identificando, porém, erroneamente, a figura de um protagonista como sendo a do Capitão Muin. A
série pertencente à família de José Vieira Fonseca vem esclarecer definitivamente que o grupo fotografa-
do em Pancas – ES, onde foi aldeado pelo SPI outro grupo botocudo do Rio Doce – não é o mesmo do
Capitão Muin.

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TEMAS PARA O ESTUDO DA HISTÓRIA INDÍGENA EM MINAS GERAIS

O capitão Krenak faleceu em 1926, aco- da celebração de uma missa, por sua vez,
metido de tuberculose (Soares, 1992), mas não deixa de ser um símbolo de “conquis-
seu nome marcou a história de sua des- ta” daqueles Botocudos, até então repre-
cendência, que passou a ser designada sentados como “feras bravias” e até mes-
etnicamente pela alcunha do líder. Os mo antropófagos, como nos desenhos de
Krenak habitam hoje a mesma região ao Debret (Debret, 1975). As fotos os tornam
norte do Rio Doce, onde foram fotografa- mais humanos do que as representações
dos pelas equipes expedicionárias, com- sociais da época. Imagens dos Botocudos
pondo uma população em torno de 150 como “selvagens antropófagos” são domi-
indivíduos que, apenas há três anos, e nantes até o início deste século, quando,
após um longo período de luta, reconquis- finalmente, passam a não mais represen-
tou suas terras demarcadas pelo governo tar uma ameaça significativa para o avan-
em 1920. ço da “civilização”, após séculos de perse-
Através de suas legendas explicativas, guição e extermínio.
o advogado esclarece as condições em que O fato de aquela ter se tornado uma
as fotografias foram feitas: com verba go- das primeiras regiões de atuação do Ser-
vernamental, aquelas expedições, ao que viço de Proteção aos Índios, criado pelo
tudo indica, lideradas pelo Padre André governo em 1910 – um ano após o estabe-
Colli, da Paróquia de Cuieté, figura anto- lecimento dos primeiros contatos entre
lógica na memória da colonização da re- Krenak e “civilizados” –, certamente está
gião, contavam com a significativa presen- relacionado à presença dos Krenak que,
ça de indivíduos oriundos de grupos in- apesar de todos os problemas derivados do
dígenas já “civilizados” e levavam alimen- contato, que tendiam a dispersá-los, como
tos, roupas e outros “brindes” para aque- aconteceu com os outros grupos indíge-
les índios considerados arredios, a fim de nas da região, ainda se mantiam unidos.
conquistar sua confiança, estabelecer co- A família de José Vieira Fonseca pas-
municação e possibilidades de negocia- sou, a partir daquele momento, a estabe-
ção a respeito de seu aldeamento defini- lecer estreitos laços de convivência com
tivo. os índios, guardando com carinho a me-
O que podemos perceber nesta série mória daquelas primeiras experiências de
de fotos é, justamente, a intenção política relações pacíficas entre eles e a sociedade
de se estabelecer um diálogo entre os ín- abrangente.
dios e o governo. Documentar a existên- Dentre essas memórias, a “cara-meta-
cia do grupo para pressionar o governo a de” de Krenak – destacadamente retrata-
tomar posições oficiais em relação à ques- da pelo Padre André Colli – figura como
tão indígena parece ser o fundamento uma das principais lideranças de seu po-
desta documentação fotográfica, que, vo, por sua imensa energia e coragem.
além de atestar a existência daquele gru- Muitas outras memórias sobre o período
po, enfatiza a expressão de seus principais podem certamente ser desveladas em fu-
líderes: Krenak, sua esposa e seu filho turas pesquisas mais sistemáticas.
Muin, em atitude altaneira, mas disposta A família ainda procura as demais fo-
a negociações políticas. O cruzeiro finca- tos que compõem esta série, extraviadas
do em solo indígena (Foto 4) por ocasião durante uma exposição.

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Izabel Missagia de Mattos

Foto 1:
O terrível capitão Kre-
nak está assignalado
com um + e seus co-
mandados, sendo do
lado esquerdo sua cara
metade. Não tendo rou-
pas para vesti-los forne-
ci-lhes uns lenços gran-
des que singiram as ca-
deiras. Em 1909.

Foto 2:
Detalhe da foto 1

Foto 3:
Uma das visitas aos
Botocudos em 1910,
levando roupas e co-
mestíveis por ordem
do governo – Traves-
sia do rio Doce. Em
1910 – Padre André
Colli

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TEMAS PARA O ESTUDO DA HISTÓRIA INDÍGENA EM MINAS GERAIS

Foto 4:
Dia do levantamento
do Cruzeiro em fren-
te ao Quigeme (al-
deia) e distribuição
de roupas por conta
do governo pelo Pa-
dre André Colli.
Em 1910.
Foto 5:
Capitão Muin
(filho de Krenak)

Foto 6:
Excelentíssima esposa
do capitão Krenak

Foto 7:
Capitão Muin es-
quartejando um ca-
pado gordo e repar-
tindo ao pessoal
dele em frente ao
Quijeme

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Izabel Missagia de Mattos

Referências bibliográficas
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Ano 1, v. 1, n. 1, 1998.
CALDEIRA, Vanessa (Org.). Kaxixó: quem é este povo?. Belo Horizonte: CEDEFES/ANAI. 1999.
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HEGEL, G. W. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes. 1992
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Campinas: Unicamp/Fapesp, 1999b. (Relatório de Pesquisa)
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MATTOS, Izabel. O primitivo e o civilizado: reflexões a partir de uma antropologia histórica.
Vertentes, São João del Rei. (no prelo)
MATTOS, Izabel. Os Kaxixó e a identidade: da re-invenção cultural ao re-conhecimento oficial.
In: CALDEIRA, Vanessa (Org). Kaxixó: quem é este povo?. Belo Horizonte: CEDEFES/ANAÍ,
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NOVAES, Adauto (Org.) A outra margem do ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
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SOARES, G. Chaves. Os Borum do Watu: os índios do Rio Doce. Contagem: CEDEFES, 1992.
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poucos a noção de brasilidade. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23 de maio de 1999. Caderno
Mais!, Seção Brasil 500.

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VALE DO JEQUITINHONHA: UM VALE DE MUITAS CULTURAS

VALE DO JEQUITINHONHA: UM
VALE DE MUITAS CULTURAS

Geralda Chaves Soares*

RESUMO
O artigo visa a dar visibilidade à dimensão étnica presente na cultura
e na história do Vale do Jequitinhonha. São descritas e analisadas si-
tuações que mostram a diversidade e a complexidade das relações
que compõem o rico amálgama sociocultural do Vale, que aqui não
pode ser encarado simplesmente como da “pobreza”, uma vez que
guarda verdadeiros tesouros ao olhar do observador mais atento. A
emergência de movimentos sociais que valorizam e revitalizam a
memória indígena é um exemplo da vitalidade do Vale do Jequiti-
nhonha, hoje.
Palavras-chave: Memória indígena; Comunidades negras; Imaginá-
rio; Revitalização cultural.

A
té recentemente, o Vale do Jequi- “País do Jequitinhonha”, lugar da fartura
tinhonha era conhecido como o e da abundância. Com a decadência das
Vale da Pobreza, o Vale da Misé- minas no Alto Jequitinhonha, em fins do
ria, a região onde se concentrava um dos século XVIII, ocorre uma descida enorme
maiores índices de analfabetismo do país. da população para a mata.1 A mata se tor-
Tudo isso tem seu fundo de verdade nes- nou o grande atrativo da época para quem
se vale economicamente empobrecido de desejava ficar rico, ter terras, descobrir la-
hoje, embora se devesse mudar a ótica e vras e aprisionar indígenas. Essas ondas
os referenciais, para uma análise mais pro- migratórias descem a partir das nascen-
funda. O Jequitinhonha que temos hoje tes dos rios. Outras frentes de migração
sofre ainda as conseqüências do processo ocorrem devido às secas (1870) ou vindas
de colonização. do litoral da Bahia.
Nos séculos passados, o vale era consi- Chegando à mata, esses migrantes en-
derado pelos grandes viajantes como o frentam novos desafios. A densa mata era

* Pedagoga indigenista da equipe do Cedefes – MG.


1 Região que se estendia do município de Virgem da Lapa até a foz em Belmonte, Bahia

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17
Geralda Chaves Soares

habitada por animais ferozes! Povos inú- rias contadas por nossos pais, avós, bisa-
meros, como Maxakali, Aranã, Poté, Nak- vós, a memória trágica desse período. Pou-
nenuk e Pojichá já tinham aí seus territó- cos registros ficaram de tantos massacres:
rios.
A primeira etapa da ocupação era o — Minha vó foi pega no laço;
— Minha bisavó com dente de cachorro;
corte da mata. Dizia-se: “Abrir uma pos- — Meu avô foi amansado em São Miguel;
se”. Um pequeno rancho se erguia e co- — Aqui não tem mais índio;
meçavam as roças. Com chuvas abundan- — Eles eram bichos do mato, viraram gente;
tes e terreno fértil, vinha a fartura. A caça, — Minha mãe era índia, mas eu não sou mais,
não;
a coleta de frutas, raízes e os remédios fei-
— Nós tá vivo porque tava de agrego na fazen-
tos das plantas complementavam essa da tal. Lá o coronel protegia nós.
conformação às condições naturais, po-
rém desejava-se mais: muitos nutriam a Ver, porém, a história por essa ótica não
utopia da riqueza vinda do chão, os mi- nos impede de perguntar: a guerra e o
nérios. E partia-se de novo em busca de processo colonizador foram tão eficientes
minérios, adentrando-se na mata cada vez que destruíram todos esses povos?
mais, repetindo-se o processo, em uma Não é desconhecida a força cultural do
região ainda povoada por indígenas que, povo do Vale. Qualquer povo que vê o seu
desde 1658, haviam se aliado aos africa- projeto de vida ameaçado engendra no-
nos na confederação dos Gueréns, defen- vas formas de se perpetuar. Impedidos de
dendo suas vidas e territórios. viverem como povos autônomos, tendo
A partir do século XIX, os Vales do Rio suas aldeias, cultura, tradições, milhares
Doce e Jequitinhonha são militarizados. desses que, de donos das terras passaram
Declarada a guerra aos indígenas (carta inicialmente à condição de inimigos, en-
régia de 13 de maio de 1808), funda-se um sinaram aos seus (suas) descendentes
sem-número de quartéis ao longo dos rios aquilo que lhes foi possível, como um úl-
para destruir essa resistência e colonizar timo grito de resistência. E surgem mara-
a região. Dessa forma, surgem na região vilhas desses gestos silenciosos, das mãos
do Vale (1804-1811) os quartéis de São indígenas e africanas: panelas, potes, pra-
Miguel do Jequitinhonha (Jequitinhonha), tos, máscaras, bonecas, caqueiros, rostos
Quartel da Água Branca (Joaíma), Quar- talhados na madeira, peneiras, esteiras,
tel de São João do Vigia (Almenara), Quar- cordas... E nesse perpetuar-se surgem os
tel do Salto (Salto da Divisa), em Minas cantos cadenciados das rodas, dos beira-
Gerais. Uma guerra violenta e cruel pro- mar, do batuque, da contradança, de foli-
metia terras aos colonos e militares, escra- as, de reisados, congados, poesias, escri-
vos indígenas (mão-de-obra) e anistia de tores, artistas de toda estirpe.
suas dívidas. Prisioneiros deportados de O Vale, hoje, é habitado por um povo
Portugal recebiam o perdão de seus cri- cuja identidade tem como traço funda-
mes e a liberdade ao servir nos quartéis. mental e marcante a arte. A herança indí-
Eram comuns o seqüestro de mulheres gena e africana forma aí essa enorme teia
indígenas e o tráfico de crianças. Povos de costumes de jeitos de ser, falar, sentir e
rivais eram aliciados para o combate a agir no Jequitinhonha. Um jequitinho-
outro povo inimigo. nhense reconhece o outro pela fala incon-
Guardamos ainda, no Vale, nas histó- fundível, pela dança...

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VALE DO JEQUITINHONHA: UM VALE DE MUITAS CULTURAS

A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO POVOS INDÍGENAS


ÉTNICA NO VALE
A chegada dos Pankararus e a
As comunidades negras emergência do povo Aranã
A presença da cultura africana no Vale Até 1994 a questão indígena no Jequi-
é evidente. Em muitos lugares da região, tinhonha se ligava, na maioria das vezes,
há grupos enormes de famílias que, em- às lembranças do passado, dos índios fe-
bora atingidos pela situação socioeconô- rozes da mata que foram amansados nas
mica e ambiental – empreendimentos hi- fazendas e, sobretudo, a algumas referên-
drelétricos, reflorestamentos, desmata- cias sobre a luta pela terra do povo Ma-
mentos, seca, dentre outros impactos – xakali, que ocupava uma área pertencen-
vivem ainda em comunidades rurais. São te, até 1955, ao Vale do Jequitinhonha.
descendentes de africanos, como ocorre A imagem do índio mítico, conhecedor
nos municípios Chapada do Norte, Fran- da natureza, que transmite conhecimen-
cisco Badaró (comunidades de Jacu e tos aos filhos, ou do índio rebelde, altivo,
Mocó), Jequitinhonha (comunidade de perpassava essa memória imposta. Ao lon-
Mumbuca), Araçuaí (comunidades de Sa- go do processo colonizador, o indígena
pé, Tum-Tum e Quilombo), Virgem da La- passou por uma transfiguração: de temi-
pa (comunidade de Quilombo) e Leme do do, soberano em seus territórios, passa a
Prado (Porto-Cori). inimigo do Estado, escravo, agregado, atu-
A toponímia regional guarda nomes almente bugre, caboclo, trabalhador rural,
ancestrais, revelando e lembrando a resis- agregado, canoeiro, artesão, morador da
tência desses povos: “fanado”, por exem- periferia das cidades, aprendendo a ocul-
plo, em Fanado e Córrego do Fanado.2 tar sua verdadeira identidade, temendo a
Com todas essas comunidades e outras estigmatização e a perseguição.
que ainda se encontram no anonimato, Essas identidades encobrem a identi-
temos uma dívida histórica, que é fazer dade indígena em vários níveis, tanto no
chegar-lhes informações sobre seus direi- interior das comunidades indígenas,
tos. Direitos garantidos a todos os cida- como para a maioria da população, insti-
dãos, nesse caso, na qualidade de descen- tuições religiosas, políticas etc. Mesmo a
dentes de quilombolas, o direito de posse atuação da Igreja Católica, com toda a sua
dos seus territórios históricos, garantido, perspectiva de ação libertadora, não tra-
após movimentos em nível nacional, pela balha, no Vale, o aspecto das identidades
Constituição Brasileira de 1988 – artigo 68 étnicas e sua organização.
do Ato das Disposições Constitucionais Em 1994, um grupo de famílias indí-
Transitórias: genas Pankararu que migrou de Pernam-
buco devido à inundação de suas terras
Aos remanescentes das comunidades dos qui- pela hidrelétrica de Itaparica, naquele Es-
lombos que estejam ocupando suas terras é re-
conhecida a propriedade definitiva, devendo o tado, recebeu uma doação de 60 ha de ter-
Estado emitir-lhes os títulos respectivos. ra da diocese de Araçuaí e iniciou um in-
teressante processo de reestruturação so-
ciopolítica e cultural na região.

2 Em Minas Novas e Araçuaí, Fanado é o nome de um ritual de iniciação dos povos de cultura banto.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 5, n. 6, p. 17-22, jul. 2000


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Geralda Chaves Soares

Para eles, o grande desafio era fixarem- da Lapa, Ponto dos Volantes, São Paulo,
se em uma região desconhecida, sem pra- Belo Horizonte, Juatuba, Itinga, Pará de
ticamente nenhum recurso para construir Minas, fazem parte possivelmente do gru-
a aldeia, fazer roças, cuidar da saúde e da po Aranã. Até o momento, os Aranãs são
subsistência. A única certeza que possuí- apenas denominados pela população re-
am é que ali poderiam “viver numa terra gional como “descendentes do índio Pe-
que era sua e viver como Pankararu”. dro Inácio de Souza ou Pedro Sangê”, re-
Outra certeza é que contavam com o gistrados em cartório pelo pai com o so-
apoio de algumas entidades, entre elas o brenome Índio ou Índia, o que demons-
Cedefes, o Cimi3 e a diocese de Araçuaí. trou um gesto de resistência étnica e de
Fazer amizades com os vizinhos da fa- muita coragem de um homem simples
zenda Alagadiço e conhecer a terra foram que, oficialmente, inscreveu a marca in-
suas primeiras atividades. Percebendo as dígena nos seus descendentes, desafian-
dificuldades para construir a sua aldeia, do a mentalidade de uma época.
canalizar água, tiveram que se relacionar Pedro Sangê casou-se duas vezes com
com a população regional e outras enti- mulheres de um outro grupo familiar de
dades. Foi assim que deles se aproxima- descendentes indígenas da região, deno-
ram outros descendentes indígenas que minados “Caboclos”. Ao todo, teve treze
há várias gerações ali habitavam, possu- filhos. Dez deles nasceram e foram cria-
indo pequenas glebas de terras, também dos na antiga propriedade do Sr. Miguel
doadas pela diocese em 1982. Murta, hoje Comunidade do Campo, mu-
Descobertas, aproximações, conheci- nicípio de Araçuaí. Duas dessas famílias
mento mútuo, mutirões fizeram com que vivem ainda nessa localidade, sendo que
um novo grupo fosse se revelando. Fre- as demais migraram para outras regiões.
qüentavam a aldeia pankararu, denomi- As duas famílias que ali permaneceram
nada Apukaré, participando dos trabalhos como agregados reivindicam atualmente
comunitários, tomando conhecimento da a sua transferência para terrenos mais fér-
luta indígena. Aos poucos, começaram a teis, onde possam receber outros paren-
falar de sua história, seu domínio da na- tes que se dispõem a viver em comunida-
tureza e do seu jeito próprio de sobrevi- de.
ver. As referências culturais coletivas prin-
Em levantamentos recentes de fontes cipais que caracterizam e diferenciam os
escritas sobre a ocupação indígena no Je- Aranãs do restante da população regio-
quitinhonha, foram encontrados registros nal são, em primeiro lugar, a autodeno-
sobre esse grupo que, analisados junta- minação indígena (sobrenome indígena)
mente com as informações orais colhidas e o profundo conhecimento das plantas
em campo, indicam tratar-se do povo Ara- do cerrado, em especial as medicinais.
nã, moradores do Vale do Mucuri. Cultivam, inclusive, uma planta denomi-
Parentes desse povo, atualmente espa- nada “quiabinho”, com a qual produzem
lhados pelas cidades de Araçuaí, Virgem uma bebida típica, o chamego, o vinagre

3 Centro de Documentação Eloi Ferreira da Silva (Cedefes) e Conselho Indigenista Missionário (Cimi). No
decorrer dos últimos anos, alguns órgãos e entidades, entre os quais a Manos Unidas (Espanha), a KMB
(Áustria)e alguns deputados estaduais apoiaram financeiramente a organização do povo Pankararu.

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VALE DO JEQUITINHONHA: UM VALE DE MUITAS CULTURAS

e um vinho. O chamego
também é feito com cal-
do da cana.
Segundo os Aranãs, a
bebida, ensinada por Pe-
dro Sangê, tem um baixo
teor alcoólico, que os im-
pede de se embebeda-
rem, mas propicia um es-
tado de euforia, levando-
os a “chamegar”. O ritu-
al do chamego ocorre em
momentos festivos para o
Foto 1 – Dança sagrada dos Praiá – Ritual do povo Pankararu
grupo. A produção da
Aldeia Apukaré – Município de Araçuaí
bebida envolve vários
membros e articula as fa-
mílias na organização dos
eventos, principalmente
festas juninas e de fim de
ano.
A produção do cha-
mego sempre foi um dis-
tintivo fundamental para
as famílias, mesmo para
as que migraram para
ambientes não propícios
ao cultivo do “quiabi-
nho” e da cana-de-açú-
car. Essa prática conti-
Foto 2 – Descendentes indígenas da família de Pedro Sangê –
nuou a ser realizada em
comunidade rural da Fazenda do Campo – Município de Araçuaí
Araçuaí, utilizando li-
mão, canela, cachaça e
corante. Por outro lado, os Aranãs são pro- do profundamente o imaginário da po-
fundamente religiosos, como a maioria pulação com a qual entram em contato.
das comunidades rurais da região. Participando de exposições de artesana-
A visão da população do médio Jequi- to, feiras culturais, viagens, seminários,
tinhonha sobre o índio e a questão indí- reuniões, encontros, trazem à tona mui-
gena vem sofrendo tênues mudanças, a tas questões, ao mesmo tempo que se tor-
partir do momento em que os Pankara- nam conscientes da situação dos demais
rus lá chegaram. A presença deles nas áre- excluídos.
as rurais e urbanas, com suas pinturas Aos poucos, vão se firmando em suas
corporais, seus cantos, danças, artesana- diferenças. Embora admirando muito a
tos e principalmente sua fé nos “Praiá”, cultura pankararu, grande parte da po-
os encantados de sua cultura, vem afetan- pulação, especialmente os jovens, artistas

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 5, n. 6, p. 17-22, jul. 2000


21
Geralda Chaves Soares

e religiosos, ainda desconhece a importân- indígenas ostentados com orgulho. Quem


cia dos “Praiá” para eles. diria há alguns anos atrás que esses ho-
Os moradores das comunidades rurais, mens que usavam apenas correntes com
profundamente religiosos, ressentem-se medalhas, símbolos religiosos, hoje se
porque eles não vão à missa, nem batiza- enfeitariam de colares confeccionados
ram ainda os pequenos... Os Pankararus com sementes, bambus e miçangas?
lhes dizem que pensam em batizar as cri- Nesses 500 anos da chegada dos euro-
anças em Bom Jesus da Lapa na próxima peus ao Brasil, muita vida aos Pankararus
romaria e que os outros meninos têm que e aos Aranãs! Que se multipliquem no
passar pelo ritual do “menino no rancho” Vale, dando força a outros pequenos po-
na Aldeia-mãe do Brejo dos Padres, em vos até agora silenciados e que querem
Pernambuco. Afirmam: “É o nosso batis- renascer! Com sua garra fortaleçam o
mo. Batiza nas duas [religiões]”. movimento cultural do Vale, para que ele
A influência dos Pankararus na cultu- se faça presente no século vindouro. Pois
ra local também se faz notar pelo uso, por só um povo com uma cultura forte resis-
parte de trabalhadores rurais, de colares tirá ao impacto da globalização.

Referências bibliográficas
MATTOS, I. M. O nome de (do) índio: memória étnica de uma família sertaneja. Campinas:
Unicamp, 1998.
POEL, Frei Chico van der. Bibliografia do Jequitinhonha e outras coisas de lá. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1986.
POEL, Frei Chico van der. O rosário dos pretos. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1981.
RIBEIRO, E. M. (Org.). Lembranças da terra. Contagem: Cedefes, 1995.
SOARES, G. Chaves. Os Borum do Watu: os índios do Rio Doce. Contagem: Cedefes, 1992.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 5, n. 6, p. 17-22, jul. 2000


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HISTÓRIA KAXIXÓ: ASPECTOS ETNOGRÁFICOS

HISTÓRIA KAXIXÓ:
ASPECTOS ETNOGRÁFICOS

Vanessa A. Caldeira*

RESUMO
Este artigo sintetiza os resultados de uma pesquisa etnográfica reali-
zada sobre a história do grupo indígena kaxixó, que habita o vale do
rio Pará, no Alto São Francisco-MG.
Palavras-chave: Representações indígenas; Imagem arquetípica;
Emergência étnica; Conflito de terras.

A
proximidade da data oficial do sociada na maioria das vezes apenas ao
“descobrimento” do Brasil tem período da chegada dos portugueses ao
sido alvo de forte investimento da Brasil, começa a despertar o interesse da
mídia brasileira, envolvendo a população população brasileira, fugindo ao espaço
em uma “contagem regressiva” para as co- restrito dos livros didáticos de primeiro
memorações dos quinhentos anos. Toda- grau. Questionamentos como: ainda exis-
via, há quem questione o que estaríamos tem índios no Brasil? Onde estão e como
comemorando: a descoberta de um país vivem? Por que sabemos tão pouco sobre
já habitado? O massacre de milhões de eles?, surgem na composição das come-
pessoas? A política colonialista? Os movi- morações dos 500 anos.
mentos sociais lançaram este ano o mani- Contudo,
festo “Brasil: 500 anos de resistência indí-
gena, negra e popular”. Segundo eles, a há um uso muito difuso e generalizado do ter-
proximidade do dia 22 de abril de 2000 mo índio, materializado nas definições do dicio-
nário, expresso na fala cotidiana, no imaginário
nos remete ao passado, possibilitando popular, na literatura e nas artes eruditas, en-
uma oportunidade de reflexão sobre a his- raizando-se inclusive no pensamento científi-
tória brasileira. co. Nesses domínios índio corresponde sempre
Tema em voga, a questão indígena, as- a alguém com características radicalmente dis-

* Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais, atualmente vinculada à orga-
nização não governamental OPAN (Operação Amazônia Nativa) no Projeto de Formação de Professores
Indígenas do Alto Rio Madeira – grupo Kagwahiva, sul do Amazonas.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 5, n. 6, p. 23-30, jul. 2000


23
Vanessa A. Caldeira

tintas daquelas com que o brasileiro costuma se relatório “Kaxixó: quem é esse povo?”.1
fazer representar. A imagem arquetípica é a de Não se pretendeu fazer um trabalho aca-
um habitante da mata, que vive em bandos nô-
mades e anda nu, que possui uma tecnologia dêmico ou pericial, mas responder a in-
muito simples e tem uma religião própria (dis- dagações do tipo: são mesmo índios? Ou
tinta do cristianismo). Os elementos fixos que não seriam apenas mais um grupo de tra-
compõem tal representação propiciam tanto a balhadores rurais interessados em conse-
articulação de um discurso romântico, onde a
guir terra? O relatório teve como linha
natureza humana aflora com mais propriedade
no homem primitivo, quanto na visão do selva- mestra o objetivo de dar voz aos kaxixós,
gem como agressivo, cruel e repulsivo. (...) Os buscando compreender, conforme afirma
povos indígenas do nordeste não se encaixam Sampaio, “a coerência da narrativa dada
comodamente nas representações difusas sobre pelas próprias representações e categori-
os índios. (Oliveira, 1993, p. 5)
as em cujos termos o grupo indígena con-
Na tentativa de contribuir para a cons- temporâneo elabora e afirma sua identi-
trução de respostas sobre questões como dade”. (Caldeira et al, 1999, p. 74)
as elucidadas acima e de auxiliar na per- Fixado nos municípios de Martinho
cepção do dinamismo da história indíge- Campos e Pompéu, a aproximadamente
na no Brasil, este artigo aborda a luta de duzentos e oitenta quilômetros da capital
um povo pelo seu reconhecimento étnico mineira, o grupo kaxixó, hoje organizado
oficial em Minas Gerais. Contrariando a em torno da luta pelo reconhecimento
imagem arquetípica de índio e apresen- étnico oficial, ocupa quatro principais lo-
tando o que antropólogos têm definido calidades: Capão do Zezinho e Criciúma,
como processos de emergência étnica, os margem esquerda do rio Pará, município
kaxixós, bem como os povos indígenas do de Martinho Campos – Fazenda Criciú-
nordeste brasileiro, contradizem a ima- ma, e Fundinho e Pindaíba, margem di-
gem estática de índio congelada no tem- reita do mesmo rio, município de Pom-
po e no espaço – imagem de índio como péu – Fazenda São José.
pertencente apenas ao 22 de abril de 1500. Grupo de sessenta e três indivíduos,2
Este trabalho faz parte de uma pesqui- os kaxixós desenvolvem três principais ati-
sa realizada com o povo kaxixó através das vidades econômicas: prestação de servi-
organizações não governamentais Cede- ços para os fazendeiros da região, agricul-
fes (Centro de Documentação Eloy Ferrei- tura familiar e pesca.
ra da Silva – Minas Gerais) e Anai (Asso- A terra caracteriza-se, na memória so-
ciação Nacional de Ação Indigenista – Ba- cial desse povo, como a principal razão
hia), cujo principal objetivo foi atender à dos conflitos e do extermínio dos índios e
demanda do grupo pela realização de um de sua cultura desde o período dos pri-
apanhado de sua história. Indigenista do meiros contatos com os colonizadores.
Cedefes de 1996 a 1998, tive a oportuni- Segundo a narrativa kaxixó, teria sido
dade de coordenar este trabalho, que ainda no século XVII, através das bandei-
apresenta como um de seus resultados o ras – “picadas” – realizadas na região cen-

1 Autores: Alenice Baeta, Izabel Missagia, José Augusto Sampaio e Vanessa Caldeira.
2 Segundo eles, seu povo ultrapassa em muito esse número, espalhando-se por várias outras localidades,
como: Logradouro (área rural de Martinho Campos), Várzea do Galinheiro (bairro da cidade de Pom-
péu), Ibitira (distrito de Martinho Campos) e Belo Horizonte; alguns teriam migrado para Itaberaí, muni-
cípio do Estado de Goiás.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 5, n. 6, p. 23-30, jul. 2000


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HISTÓRIA KAXIXÓ: ASPECTOS ETNOGRÁFICOS

tral de Minas Gerais, que se estabelece- da história o desaparecimento do etnôni-


ram os primeiros conflitos de terra entre mo “kaxixó”. Segundo o senhor Djalma,3
kaxixós e aqueles que eles denominam co- quando o capitão Inácio chegou com “mil
mo “estrangeiros”; foi apenas no século negros” e os índios carijós e “esbagaçou”
XVIII, através das ações da histórica figu- o povo kaxixó, ele “tirou o nome do povo
ra do capitão Inácio de Oliveira Campos, fora” e inseriu os kaxixós entre seus es-
marido da notória matriarca local dona cravos carijós.
Joaquina de Pompéu, que os kaxixós não
mais teriam conseguido resistir ao povoa- Os carijó de São Paulo que têm nome. Porque
têm nome dentro da lei. Agora, os kaxixó não.
mento da região. (Djalma Kaxixó – depoimento não grava-
Segundo o atual cacique kaxixó, o ca- do – 17/01/1999)
pitão Inácio, antes de se casar com dona
Joaquina e tendo como base a já consoli- Esse foi, conforme informantes kaxixós
dada povoação colonial do Pitangui, ha- autorizados, o primeiro e grande conflito
via realizado algumas tentativas de po- com os “brancos”. Desse conflito teria re-
voamento da área em que hoje se locali- sultado o extermínio de grande parte do
zam os municípios de Pompéu e Marti- povo kaxixó. Os que sobreviveram teri-
nho Campos, encontrando forte resistên- am sido expropriados de suas terras e so-
cia dos índios. Contudo, após algumas frido o domínio do Capitão Inácio de Oli-
tentativas, o capitão Inácio teria consegui- veira Campos e de dona Joaquina de Pom-
do “esbagaçar ” o povo kaxixó. péu.
Identificado como “o governo”, o capi-
Quando ele esbagaçou os índios com os negros, tão Inácio sintetiza, na memória kaxixó, a
ele foi para Portugal e falou com o rei lá que po-
principal e decisiva tentativa de extermí-
dia mandar os fazendeiros para essa terra por-
que só existia bicho. Bicho era os kaxixó. Aí, eles nio desse povo.
veio para Pitangui e foi esparramando os fazen- De acordo com a memória social kaxi-
deiros... Nesse entremeio, o capitão casou com xó, dona Joaquina e o capitão Inácio teri-
dona Joaquina e fez casa para Pompeu Velho [pai am tentado, inicialmente, construir a sede
de dona Joaquina] no pé da serra, e depois cons-
truiu o sobrado. Fim de semana saía de Pitan-
de sua fazenda em uma das aldeias kaxi-
gui e vinha para cá... Aí ele entrou na parte sel- xós: Várzea do Galinheiro. Encontrando
vagem, que já estava tudo para o mato. Ele es- resistência indígena, eles a construíram no
bagaçou os que era ativo, da Várzea do Gali- local denominado Pompéu Velho.
nheiro e, os que ficou, a dona Joaquina combi-
Com a morte do Capitão Inácio, dona
nava. E ela pôs eles para trabalhar na terra e co-
mo jagunço. (Djalma Kaxixó – depoimento Joaquina assumiu a responsabilidade de
não gravado – 17/01/1999) manter seu domínio na região. Mulher e
É o governo [refere-se ao capitão Inácio]... viúva, rompendo com os padrões mascu-
Antes de casar, é ele que esbagaçou os kaxixó. linos vigentes de acesso ao poder, ela ali-
(...) Foi o governo com os bandeirantes. (Djal-
ciou os índios kaxixós da Várzea do Gali-
ma Kaxixó, Belo Horizonte, 14/12/1998)
nheiro para auxiliá-la na administração de
Os kaxixós atribuem a esse momento suas terras e escravos, treinando-os numa

3 A opção por depoimentos de Djalma neste artigo advém do fato de Djalma caracterizar-se como princi-
pal conhecedor e porta-voz kaxixó e seus depoimentos serem considerados fundamentais para a com-
preensão da história de seu povo. No relatório “Kaxixó: quem é esse povo?” outros depoimentos estão
disponíveis.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 5, n. 6, p. 23-30, jul. 2000


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Vanessa A. Caldeira

“escola para jagunços” por ela construída buída pelos kaxixós aos seus parentes que
na Fazenda Quati. Os kaxixós da Várzea ocupavam essa margem, enfrentou a fa-
do Galinheiro, ou “índios caboclos”, como mília portuguesa dos Costa Pinto, sendo
foram denominados, sofreram a imposi- também expulsa de suas terras, com exce-
ção da “lei de jagunço”. ção de Tonho Luiz Kaxixó, que se tornaria
Segundo Djalma, o capitão Inácio do- “cunhado da família dos estrangeiros” e
minou os índios e manteve seu poder na de dona Antonieta, filha da portuguesa
região “com a ajuda dos negros” e dona Francisca Costa Pinto e do índio Antônio
Joaquina “com a ajuda dos índios cabo- Pedro Kaxixó.
clos”. José Vítor constitui a principal referên-
Djalma narra também o que se pode- cia, para os kaxixós, da dominação sobre
ria considerar o segundo grande conflito a margem esquerda do rio. Proprietário
de terras do seu povo com os brancos, re- da fazenda Criciúma, ele teria usurpado
velando “o segredo kaxixó”: Cambino, um de sua irmã, avó de Antonieta, o que a ela
dos caciques, teria sido assassinado por pertencia por direito: metade das terras
um outro kaxixó, treinado para ser jagun- da fazenda.
ço de dona Joaquina, para que o capitão Segundo Djalma, Antonieta sofreu
Olímpio, seu genro, dominasse aquelas mais que os outros kaxixós as ameaças e
terras. Esse seria um segredo mantido du- perseguições dos fazendeiros, pois havia
rante anos, que somente pôde ser revela- sempre o medo de que ela viesse a conse-
do após a morte do índio aliciado para ja- guir legalizar sua situação de herdeira da
gunço.4 fazenda, apesar destes jamais assumirem
Em uma breve análise da narrativa, po- sua relação de parentesco com ela.
der-se-ia dizer que, se o primeiro grande Vinculada à imagem de uma das her-
conflito fora marcado pela oposição radi- deiras da fazenda Criciúma, Antonieta foi
cal entre os colonos, seus negros e carijós, discriminada também pelos kaxixós nes-
e índios ainda isolados, os kaxixós, nesse se período: para os fazendeiros, ela era
segundo conflito, cujo signo principal é o uma índia; para os kaxixós, ela era neta
assassinato de Cambino, a marca parece de fazendeiro. Contudo, após seu casa-
ser dada pela ruptura dos próprios kaxi- mento com Veríssimo Kaxixó, essa situa-
xós. Daí, certamente, o segredo... ção alterou-se.
Atualmente, após as histórias de con- Atualmente, Jerry Adriane, neto de An-
flito nas terras desses caciques, são os des- tonieta, é o vice-cacique kaxixó, uma das
cendentes do capitão Olímpio – família principais lideranças do grupo.
Cordeiro Afonso Menezes – que mantêm Também resistiram às ameaças e pres-
seu domínio na margem direita do rio Pa- sões dos fazendeiros fixados na margem
rá – Fazenda São José, município de Pom- esquerda do rio Pará os descendentes de
péu. Antônio Luiz Kaxixó. “Cunhado da famí-
A margem esquerda do rio – hoje mu- lia dos estrangeiros” e “aceitando ser man-
nicípio de Martinho Campos – também dado pelos fazendeiros”, Tonho Luiz, co-
teve sua história marcada por conflitos de mo era conhecido, ocupava uma peque-
terra. A família dos “Tio”, designação atri- na parte de terra na fazenda Criciúma,

4 Já no início do século XX, os kaxixós relatam o possível envolvimento desse mesmo índio jagunço, Tonho
Candinho, no assassinato de outro cacique.

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HISTÓRIA KAXIXÓ: ASPECTOS ETNOGRÁFICOS

com a permissão do fazendeiro. Seus fi- sião, os fazendeiros mantinham seu do-
lhos, não aceitando a relação de explora- mínio sobre aquele território através de
ção ali estabelecida, fixaram-se em outro ameaças de morte e expulsão. Os kaxixós
espaço de terra, pertencente também à fa- percebem esse momento da história como
zenda Criciúma: Capão do Zezinho. um tempo de escravidão, quando somen-
A pressão dos proprietários da fazen- te a completa sujeição poderia garantir-
da Criciúma para que os índios desocu- lhes a permanência na área. Entretanto,
passem aquela área implicou a morte de Pedro Luiz Gonzaga, ao assumir o poder
um dos filhos de Tonho Luiz, Zezinho Mu- na fazenda Criciúma, pressionou os kaxi-
do, e a saída dos outros que, em busca de xós para que saíssem daquelas terras, di-
novas terras, venderam sua casa para Pe- ficultando ao máximo a vida do grupo na
dro Ferreira, descendente da família por- fazenda:
tuguesa Costa Pinto.
Ainda na metade deste século, após se Nós plantava, Piduca punha porco para comer
tudo! Punha fogo! Isso o padrasto ainda estava
fixar no Capão do Zezinho, Pedro Ferrei- com nós. Tinha que pagar para criar porco. Nin-
ra, contradizendo a história de conflitos guém pagava, só nós. Vingança demais! Aí nós
entre kaxixós e fazendeiros, casou-se com atravessou o rio. Plantamos milho. Mas a moa-
Sérgia, mãe de Djalma, atual cacique. gem era aqui. Aí era escravidão!
Tonho Berto – Antônio Ribeiro da Silva – de
Morando em outra aldeia kaxixó, de-
Carmo da Mata, ele veio comprar terra na re-
nominada Logradouro, Vó Sérgia, como gião e comprou a fazenda Criciúma. Piduca pe-
é conhecida pelo grupo, mudou-se para diu seis meses para sair. E Tonho não sabia de
o Capão do Zezinho com seus três filhos: nada, achava que a terra estava limpa. Quando
Zezinho, Djalma e Valdertrudes – Nega, viu que tinha gente, Piduca disse que ele é que
tinha que tirar os índios. (Djalma Kaxixó –
para então se casar com Pedro Ferreira, depoimento não gravado – 17/01/1999)
com quem teve mais quatro filhos: Pedro,
Maria de Lurdes, Faustina e José Francis- Nesse depoimento, fica evidenciado
co – Marreco. que a tensão e os conflitos existentes no
Além do Capão do Zezinho, outras al- Baixo Vale do Rio Pará não se restringem
deias kaxixós, como Logradouro, locali- aos kaxixós. Os próprios fazendeiros dis-
zam-se na margem esquerda do rio Pará, putam o domínio daquelas terras. Segun-
na fazenda Criciúma.5 Segundo depoi- do Djalma, foi em decorrência dessa dis-
mento de Djalma, apenas os moradores puta que a Ruralminas, o órgão estadual
do Capão do Zezinho resistiram, então, de terras, realizou, na década de oitenta,
ao terceiro grande conflito de terras entre uma vistoria para verificar a situação fun-
os kaxixós e os “brancos”, tornando-se, diária da região.
atualmente, o grupo de referência na luta Os kaxixós conseguiram regularizar
pelo reconhecimento étnico oficial. parcela do Capão do Zezinho (2,28 hecta-
Segundo Djalma, foi por iniciativa de res), considerada como terra devoluta em
Pedro Luiz Gonzaga, o Piduca, quarta ge- 1985.
ração da família Costa Pinto, que os kaxi- A segurança e a estabilidade que o do-
xós sofreram mais uma tentativa de ex- cumento trouxe para o grupo são consi-
pulsão da área que ocupavam. Nessa oca- deradas um fato muito importante. De

6 Ponte Alta, Morada, Grota Funda, Bocaina, Riacho, Urubu, Grota d’Água, Ripa, Lapa, entre outras.

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Vanessa A. Caldeira

acordo com Djalma, “depois que a lei pas- umas coisas dele. E chegou lá e viu a cerca que
sou por aqui, tudo ficou diferente”. ele tinha desmanchado. Ele desmanchou bastan-
te. (Fundinho, 1986)6
A conquista, ainda que em extensão li-
mitada, de uma das áreas de referência na Nesse momento de resistência e con-
história do grupo foi fundamental para o fronto com o fazendeiro, os kaxixós fize-
fortalecimento da luta kaxixó. Foi após ram denúncias na delegacia de Pompéu e
esse processo que se intensificaram os con- solicitaram apoio de várias instituições:
flitos relacionados às ocupações na mar- STR (Sindicato dos Trabalhadores Rurais)
gem direita do rio. O conflito de 1986 nas de Pompéu, Incra (Instituto Nacional de
terras Pindaíba e Fundinho pode ser con- Colonização e Reforma Agrária), CPT (Co-
siderado o principal deles. José Francisco missão Pastoral da Terra) e Cedefes.
Kaxixó, ou Marreco, como é conhecido,
relata um dos momentos de conflito com Então eles [os fazendeiros] tentaram tirar eles
o capataz de um dos proprietários da fa- [os kaxixós] de qualquer jeito. É, o Jadir come-
zenda São José, margem direita do rio Pará: çou derrubando, cortando a cerca do Zé Candi-
nho (...). De primeiro eles começaram com o Zé
O Zé Galinha hoje teve aqui em casa, nós está- Candinho; mas já tinham falado com o Marreco
vamos fazendo o mutirão, fazendo a cerca, que que era para o Marreco sair. Aí, nessa época que
eles tinham desmanchado. E a hora que ele che- eles cortaram a cerca do Zé Candinho, nós fize-
gou aqui em casa, o povo tinha uma santa que é mos um mutirão do pessoal lá do Capão do Ze-
visitadeira. Então o Pedro começou a fazer a no- zinho e (...) levantamos a cerca. (...) Eu me lem-
vena. O povo que estava em mutirão começou a bro um dia que eles arrancaram, num dia só...
fazer a novena. Eu estava mexendo com a cria- arrancaram todas as cercas do Zé Candinho, que
ção. Aí na hora que eu acabei de arrumar a cria- é o Zé Cândido, e do Marreco, José Francisco. E
ção, esse Zé Galinha chegou lá na porta procu- do João Isabel eles não arrancaram não. (...) Nós
rando eu. Andando lá, beirando a porta. Aí eu fazia cerca, eles derrubavam. Nós fazia de novo,
agachei numa moita para ele não me ver. Aí os eles tornavam a derrubar. (Ivo Machado, pre-
meninos procuravam eu lá dentro; eu não esta- sidente do STR de Pompéu – Belo Horizon-
va. Aí eu saí ligeiro e vim para assistir a nove- te, 17/12/1998)
na. Aí os meninos topou comigo que lá ia che-
gando na porta! Falou: “o Zé tá te chamando, Em terras já dominadas por fazendei-
pai!” Eu falei com eles: “só na hora que acabar a ros, os kaxixós revertem uma situação his-
reza”. Aí, eu estou rezando lá junto com o povo,
tórica: de pressionados, eles passam a
fazendo a novena. Aí antes da novena acabar, o
meu menino chegou, falou: ‘Pai, anda depressa pressionar os fazendeiros com suas ocu-
que ele tá desmanchando a cerca’. Aí eu chamei pações. Com uma história de conflitos ini-
um cunhado meu, que chama Zé Florim, e nós ciada no século XVIII, o que estaria fazen-
fomos depressa mesmo! E ele já tinha arreben- do com que, em tais condições, esse pu-
tado a alça de arame e jogado para lá e nós vi-
mos ele montar a cavalo e sair correndo para a nhado de famílias aparentadas, com tan-
posse do Zé Candinho. Aí eu falei com o Zé Flo- ta determinação, insistisse em manter seus
rim: “Vamos falar com o Zé Candinho para pe- vínculos com essa terra e em estimular e
gar a charrete e ir depressa lá para ver, que ele fortalecer, cada vez mais, sua vida comu-
foi direto lá para a cerca”. Aí ele esperou a nove-
nitária? Essa é, certamente, uma das ques-
na acabar e entrou na charrete. Eles foram três
e levou o gravador. Topou com ele no caminho, tões que, para os kaxixós, pode ser respon-
antes de chegar na cerca, e deu conta de gravar dida se houver disposição para ouvi-los

6 Entrevista e transcrição de fita de Geralda Soares, indigenista do Cedefes, que desenvolveu o primeiro
trabalho de pesquisa com o povo kaxixó, ainda na década de 80.

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HISTÓRIA KAXIXÓ: ASPECTOS ETNOGRÁFICOS

contar a sua história... Para o povo kaxi- governo. (...) Primeiro neto do governo, índio
xó, são as relações de parentesco que nor- kaxixó. (...) Aí, já tem as histórias nossas agora
dentro da lei de kaxixó... É que vem a complica-
teiam e proporcionam lógica à vida cole- ção: nós‚ kaxixó já desse cruzamento no [inau-
tiva do grupo. Conscientes de uma ances- dível] com... já é com... com o povo mesmo da
tralidade comum, os kaxixós comparti- dona Joaquina com o governo. (Djalma Kaxi-
lham o forte sentimento de pertencerem xó, Belo Horizonte, 14/12/1998)
a uma “família só”.
Para os kaxixós, o momento de conta-
Presente na memória coletiva, Mãe Jo-
to e dominação da família de dona Joa-
ana caracteriza-se como a ancestral de
quina de Pompéu sobre o povo kaxixó,
maior referência para o grupo, sendo Tia
que habitava a região antes de 1500, cons-
Vovó a antepassada mais antiga. Anteri-
titui o marco original da história de for-
ormente à individualização destas, os ka-
mação do grupo que atualmente luta pelo
xixós referem-se ao seu povo como des-
reconhecimento étnico e se afirma como
cendente do Povo do Mato. Termo gené-
“neto do governo”, como fruto do “cru-
rico, Povo do Mato sintetiza o período da
zamento” dos “brancos” com aqueles ín-
história kaxixó anterior ao contato e à do-
dios kaxixós.
minação “dos brancos”, definindo uma
Dessa forma, na memória kaxixó, capi-
origem comum ao grupo que ocupava a
tão Inácio e sua esposa não se relacionam
margem direita do rio Pará: descenden-
ao passado do grupo apenas como sím-
tes do povo da Mãe Joana, povo xavante,
bolos de poder e dominação, mas também
povo bicho ou povo selvagem, enquanto
como importantes ancestrais na constitui-
aqueles que ocupavam a margem esquer-
ção de sua genealogia.
da seriam descendentes do povo Tio. O
O nascimento de um filho de Tia Vovó
Povo do Mato, pertencente ao período an-
– Povo do Mato – com o povo do governo
terior ao descobrimento do Brasil, repre-
constitui o início da miscigenação, da “lei
senta, então, a origem comum dos dois
de kaxixó”, dos índios kaxixós aldeados,7
principais grupos de referência na histó-
índios trabalhadores, empregados, “do-
ria de formação da “nação kaxixó”, como
mesticados”. Fabrício, ou Fabrisco, consi-
eles mesmos definem. Todavia, não me-
derado o “primeiro neto do governo”, ín-
nos importante que esses dois grupos de
dio caboclo da Várzea do Galinheiro – atu-
índios kaxixós, apresenta-se a figura de
al bairro de Pompéu e antigo aldeamento
dona Joaquina de Pompéu, pois é através
dos índios kaxixós – casou-se com Mãe
da miscigenação e da submissão que sur-
Joana, do Povo Selvagem, “povo bicho”,
ge a “lei de kaxixó”:
que teria sido raptada de um lugar ainda
Ó! cês quer saber? O primeiro filho do governo isolado.
– que é o capitão Inácio de Oliveira Campos – Essa distinção entre índios caboclos e
com a dona Joaquina adquiriu um filho lá com índios selvagens, ambos habitantes da
os índios kaxixós da Vargem do Galinheiro... margem direita do rio Pará, teria sido for-
Que a mulher chamava Tia Vovó, criou um fi-
malizada por dona Joaquina de Pompéu,
lho com nome de Fabrisco. É o primeiro neto do

7 Entende-se por índio aldeado aquele que estabelece um convívio com o povo branco, em oposição ao ín-
dio que se mantém fixado no mato.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 5, n. 6, p. 23-30, jul. 2000


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Vanessa A. Caldeira

que teria registrado os primeiros como Todavia, no passado recente, a união


Barbosa da Cruz e os outros como Bar- entre os dois grupos kaxixós apresenta-se
bosa de Amorim.8 consubstanciada no casamento de Antô-
De acordo com o registro dos kaxixós nio Pio com Amélia. Veríssimo, filho des-
da margem direita do rio Pará, Fabrício se casal, manteve a união entre os grupos
Barbosa da Cruz casou-se então com Joa- ao se casar com dona Antonieta, descen-
na Barbosa de Amorim – Mãe Joana – e ti- dente dos “índios da Criciúma” e da fa-
veram quatro filhos, um dos quais se ca- mília portuguesa Costa Pinto.
sou com uma índia carijó e outro, “tirado Assim, a ocupação kaxixó em ambas as
para jagunço”, casou-se com uma índia margens do rio distribui-se da seguinte
kaxixó descendente do povo Tio – mar- forma: descendentes dos índios caboclos
gem esquerda do rio Pará. da Várzea do Galinheiro e povo selvagem:
Entretanto, o elo que manteve e ainda margem direita; descendentes dos índios
mantém unido o grupo fixado à margem Tio ou índios da Criciúma: margem es-
direita do rio e o fixado à margem esquer- querda.
da estaria vinculado à existência de um Na margem esquerda, além dos des-
terceiro grupo: o dos “caboclos d’água”. cendentes dos índios Tio, há ainda outro
Seres fantásticos, os caboclos d’água re- grupo kaxixó: o do índio Antônio Luiz,
presentam a total rejeição ao contato com “gentio”.
os “brancos”. Refugiando-se nas águas do
rio Pará, eles são descritos como homens E essa turma que ficou é os que aceitou os fa-
zendeiros mandar. Então, o Tonho Luiz era cha-
de estatura muito baixa, corpo coberto de mado de gentio porque ele aceitou os fazendeiro
pêlos e braços muito fortes. Habitando al- da Criciúma mandar para ele. Mas a família dele
gumas locas às margens do rio, eles teri- não aceitou. (...) Os que aceitou chama gentio.
am aprendido a sobreviver tanto na terra É o mesmo índio. Que é um pouco ... eles eram
tratados como gente, já não era índio, para o
quanto embaixo d’água.
fazendeiro falar para os outros: ‘cês é gente, gen-
Símbolos da máxima resistência kaxi- tio’. (Djalma Kaxixó, Belo Horizonte, 14/12/
xó aos colonizadores, os “caboclos d’água” 1998)
teriam estabelecido a união e a integra-
ção territorial entre os descendentes do
Referências bibliográficas
“povo Tio”, ou “índios da Criciúma”, e os
descendentes do “povo da Mãe Joana”, CALDEIRA, V. et al. Kaxixó: quem é este povo.
Belo Horizonte: Cedefes/Anai, 1999.
que resultam da união dos “índios cabo-
clos” com o “povo selvagem”. Ambos os OLIVEIRA, João P. de. A viagem da volta: ree-
laboração cultural e horizonte político dos
grupos teriam “cruzado” com esses seres
povos indígenas no nordeste. Rio de Janei-
fantásticos nas águas do rio Pará, compon- ro: Peti (Programa de Estudos sobre Terras
do um grupo desconhecido. Indígenas, UFRJ), 1993.

8 Segundo Djalma, os Barbosa de Amorim – povo da Mãe Joana – habitavam a região do rio do Peixe, al-
deias Barrocão, Barreiro Branco, Espoção, Salgado, Logradouro, Buritizinho, Pompéu Velho, Capivara,
Pindaíba, Fundinho, Pitangui, Papagaio e as áreas de negros fugidos e/ou alforriados: Veloso, Açude
Ruim e Saco Barreiro. Os Barbosa da Cruz habitavam aldeias dos rios Pará, São Francisco e Paraopeba:
Passo Grande, Fazenda Quati, Pesqueiro, Olho d’Água, Barroca, Capãozinho, Caititu, Ponte Nova, Cabe-
ceira, Cabeceira de Fora, Mucambo, Buriti Comprido, Diamante 1, Diamante 2, Diamante 3, Santa Hele-
na, Grotão, Santa Rosa, Queimado, Baú, Terrado, Silva Campos e Pedro Moreira.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 5, n. 6, p. 23-30, jul. 2000


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BREVE HISTÓRIA DA PRESENÇA INDÍGENA NO EXTREMO SUL BAIANO E A ...

BREVE HISTÓRIA DA PRESENÇA INDÍGENA


NO EXTREMO SUL BAIANO E A QUESTÃO DO
TERRITÓRIO PATAXÓ DO MONTE PASCOAL

José Augusto Laranjeiras Sampaio*

RESUMO
O artigo descreve a relação histórica dos Pataxós da aldeia de Barra
Velha com a região do Monte Pascoal, objetivando compreender o
panorama indígena atual em seus aspectos sociais, econômicos e am-
bientais. Essa relação culmina com a ocupação pacífica do Parque Na-
cional do Monte Pascoal por centenas de índios em 19 de agosto de
1999, que passam a controlar a área, designando-a “Terra Pataxó do
Monte Pascoal”.
Palavras-chave: Direito territorial; Preservação ambiental; Mobiliza-
ção política.

A
implantação, pela União, em 1961, ção. Esse ato, contudo, seria apenas um
do Parque Nacional de Monte Pas- momento destacável de uma longa série
coal, produziu o exemplarmente de desmandos governamentais sobre a
trágico fato de, já na segunda metade do população indígena do extremo sul baia-
século XX, expropriar-se uma população no, iniciada mais de quatrocentos anos an-
indígena em nome da defesa de um pa- tes e continuada, após 1961, em outra se-
trimônio ambiental que, até então, ela pró- qüência de episódios de descaso e negli-
pria tinha se encarregado de preservar; e, gência para com a população pataxó da
mais que isto, de o fazer em nome tam- aldeia de Barra Velha, e para com a sua
bém da preservação de um importante sí- diáspora, após aquele ano.
tio histórico nacional – o Monte Pascoal – O presente trabalho pretende, através
signo em relevo de um alardeadamente de um sucinto relato dessa história e dos
feliz encontro entre portugueses e ame- seus desdobramentos contemporâneos,
ríndios, que fundaria esta “pacífica” na- estimular a reflexão e o empenho pela

* Professor de Antropologia da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Diretor da Associação Nacional


de Ação Indigenista (ANAI-Bahia) e Membro da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasi-
leira de Antropologia (ABA).

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José Augusto Laranjeiras Sampaio

produção do conhecimento histórico e et- do Brasil, dela desalojando diversas ou-


nológico necessário e qualificado a con- tras etnias, em geral dadas como afiliadas
tribuir em processos sociais capazes de ao tronco Macro-Jê (Urban, 1992), apenas
promover a prevenção ou a revisão dos no máximo alguns poucos séculos antes
efeitos das práticas absolutamente injus- da intrusão européia (Métraux, 1933) e
tas, autoritárias e deformadas, relativas ao que, apesar de terem consolidado seu do-
reconhecimento de direitos territoriais de mínio sobre o litoral, incursões belicosas
povos indígenas. dos povos do interior eram ainda freqüen-
tes no limiar do século XVI, o que nos aju-
da a compreender os desdobramentos do
QUADRO HISTÓRICO DAS ETNIAS processo de colonização nos três séculos
INDÍGENAS E DA OCUPAÇÃO seguintes. Antes, porém, é necessário ca-
COLONIAL NO SUL DA BAHIA racterizar um pouco melhor esses dois
grandes conjuntos sociais indígenas.
Os povos indígenas do atual extremo Não se trata aqui, evidentemente, de
sul baiano são personagens marcantes já dar conta das formas múltiplas e freqüen-
do primeiro documento da história do temente complexas da sua organização so-
Brasil, a notória carta de Vaz de Caminha cial e econômica, mas tão-somente assi-
(1500). A aguçada descrição etnográfica aí nalar alguns aspectos que me parecem im-
contida não deixa dúvidas quanto a se- portantes para a compreensão do proces-
rem Tupis esses índios, ou mais precisa- so colonial. Assim, enquanto os Tupis ten-
mente Tupiniquins, como se tornariam co- diam a se concentrar em aldeias estáveis,
nhecidos em toda a documentação colo- relativamente grandes, onde poderiam vi-
nial subseqüente para a região, especial- ver de mil a três mil indivíduos e, em al-
mente aquela produzida por missionári- guns casos, até muito mais, os povos do
os jesuítas que entre eles se estabeleceram interior organizavam-se em pequenos
já nas décadas iniciais do período coloni- bandos de apenas algumas famílias, algo
al (por exemplo, Nóbrega, 1549-70). Por em torno de dezenas ou, no máximo, não
outro lado, se esses Tupis, até então senho- muito mais que uma centena de indiví-
res de todo o litoral dos atuais municípios duos, o que lhes facultava uma grande
de Belmonte, Porto Seguro e Santa Cruz mobilidade, raramente adotando um mes-
Cabrália e de muitas outras porções da mo local de moradia por mais que uma
costa, tornaram-se de pronto não só bem estação agrícola e, ainda durante tal pe-
conhecidos como subjugados ao coloni- ríodo, com grande movimentação ao der-
zador, ficaria também logo patente que redor.
não estendiam seus domínios muito para Com tais características, a caça e a cole-
o interior, território de outras etnias que à ta tinham, proporcionalmente, mais des-
época os portugueses identificavam ape- taque na economia desses grupos que a
nas pela designação tupi genérica de Ay- agricultura; e que o oposto se dava no caso
morés e sobre os quais o poder colonial dos Tupis costeiros, mais sedentários e ca-
levaria ainda mais de um par de séculos pazes de exercer um domínio mais está-
para estabelecer o seu domínio. vel sobre um território específico, onde
Sabe-se hoje que os Tupis avançaram, plantavam suas grandes roças de mandio-
vindos do sul, pela costa leste e nordeste ca e milho, intercaladas por extensões de

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BREVE HISTÓRIA DA PRESENÇA INDÍGENA NO EXTREMO SUL BAIANO E A ...

mata – áreas de caça e coleta – e sobre im- tentes, provavelmente capazes de ilumi-
portantíssimos ecossistemas costeiros, es- nar importantes capítulos da nossa Etno-
pecialmente estuários, restingas e man- logia e Pré-História.
guezais, ricos em proteína animal, além Voltando à história colonial, creio po-
do acesso ao próprio oceano. der-se agora compreender como as gran-
Enquanto os Tupis constituíam um des aldeias dos Tupiniquins se tornaram
conjunto cultural e lingüístico bastante presas fáceis da conquista lusitana, inicia-
homogêneo ao longo de toda a costa, ain- da por métodos “pacíficos” e completada
da que fracionado em muitas unidades militarmente, quando já não era possível
políticas locais de relativa flexibilidade, os a resistência. Nesse processo, as grandes
grupos do interior só podem ser tomados concentrações indígenas, intensificadas
como uma unidade por características pelo trabalho catequético dos jesuítas, fo-
bem genéricas, como as referidas acima, ram amplamente dizimadas pelas epide-
ou por mero contraste ao conjunto tupi e, mias européias, rapidamente alastradas,
ainda assim, corre-se o risco de distorções. de modo tal que, ao se encerrar o século
A grande diversidade cultural e lingüísti- XVI, praticamente já não havia tupini-
ca desses grupos está ainda por ser devi- quins livres na atual costa baiana. Com
damente dimensionada à luz do escasso efeito, das próprias aldeias missionárias
material etnográfico hoje disponível. As que, nas cercanias de Porto Seguro, che-
tentativas de descobrir alguma unidade garam a mais de uma dezena em meados
entre eles são profundamente incipientes daquele século, apenas duas sobrevive-
(Paraíso, 1992). Mais esclarecedora pare- ram, bastante depopuladas (Leite, 1945):
ce ser a hipótese sustentada por lingüis- as de São João Batista e Patatiba, respecti-
tas como Urban (1992) de que a região vamente a cerca de quatro ou cinco léguas
compreendida hoje pelo sul da Bahia, les- a sul e a oeste da sede da capitania, tor-
te e nordeste de Minas Gerais e o Espírito nando-se vilas com a expulsão dos jesuí-
Santo – dominada pelas grandes bacias tas no século XVIII, quando adotaram as
dos rios Doce, Mucuri, Jequitinhonha, Par- denominações de Trancoso e Vila Verde,
do e de Contas – tenha sido a região ori- sobrevivendo aí uma precária sustentação
ginal de concentração dos grupos do tron- da condição indígena de parcela dos seus
co Macro-Jê. Isso explicaria a sua grande habitantes, o que, pelo menos no caso do
diversidade lingüística, que compreende atual Vale Verde, perdura até o presente.
as famílias Botocudos, Maxakalí, Puri, Ka- (Mascarenhas, 1998)
makã, possivelmente Pataxó – não sufici- Por outro lado, uma vez subjugados –
entemente conhecida para uma classifica- ou mais propriamente exterminados – os
ção precisa – e talvez outras, além de lín- Tupiniquins, as incipientes povoações cos-
guas isoladas, cujos escassos registros hoje teiras dos colonos se tornariam, por sua
disponíveis também não permitem maio- vez, alvos quase indefesos para os impre-
res discernimentos. De qualquer modo, visíveis ataques dos bandos indígenas in-
tais formulações me levam a ressaltar a re- terioranos. Verdadeiros precursores da
levância da região para próximas pesqui- técnica das guerrilhas, os então chamados
sas históricas, etnológicas e, sobretudo, ar- Aymorés eram capazes de surgir repenti-
queológicas, bem como a necessidade de namente naquelas povoações, pilhando e
preservação dos testemunhos ainda exis- devastando suas moradias e plantações,

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desaparecendo com a mesma rapidez nas Santa Cruz – João de Tiba – com os Pata-
matas interiores, onde sua mobilidade e xós, e concentravam-se principalmente ao
dispersão, além de prevenir uma propa- longo do Jequitinhonha. Limitavam-se, ao
gação rápida das epidemias mortíferas, norte, na altura do Rio Pardo, com outros
desencorajavam plenamente as tentativas bandos pataxós e, mais para o interior,
de reação dos colonos. Tal estado de coi- com kamakãs. Esses últimos mantinham,
sas dominou a cena das capitanias de Ilhé- já desde o século anterior, uma povoação
us e Porto Seguro durante os séculos XVII na foz do Jequitinhonha, junto à vila de
e XVIII, período em que as acanhadas po- Belmonte, onde eram conhecidos por Me-
voações costeiras pouco mais que vegeta- niã. Os Botocudos, mais uma vez, em di-
ram, situação que ainda perdurava no iní- versos bandos e sob diversas denomina-
cio do século XIX (veja-se, por exemplo, ções, voltavam a dominar as proximida-
Aires do Casal, 1817) e que, certamente, des da costa ao sul do rio de São Mateus –
explica a extinção dessas capitanias. Cricaré –, mantendo concentração ao lon-
Nessa época, porém, o combate aos go do rio Doce e estabelecendo contato
“bandos selvagens” da região deixa de ser pelo interior com os bandos ao norte, na
empresa apenas dos colonos locais e pas- área do Jequitinhonha. Essa porção mais
sa a interessar o próprio governo real que, interior, correspondente ao atual nordes-
preocupado com questões geopolíticas te do Estado de Minas Gerais, era com-
transcontinentais e com a abertura de ro- partida por Botocudos e etnias outras –
tas terrestres entre a capital e as minas e o que não mencionarei aqui – em sua maio-
isolado Nordeste, determina o estabeleci- ria identificáveis lingüisticamente às famí-
mento de fortificações – “quartéis” – nos lias Maxakalí ou Kamakã.
cursos médios de todos os rios principais A faixa correspondente ao atual extre-
entre o Doce e o Pardo – origem de cida- mo sul baiano era, pois, dominada pelos
des como Linhares e Salto da Divisa –, a Pataxós, como ficou dito, e também por
partir dos quais se dirigem, desde então, grupos Maxakalí que as fontes da época
ataques sistemáticos aos povos indígenas referem lhes serem assemelhados, inclu-
da região. sive lingüisticamente, embora não forne-
Na mesma época, a região passa a ser çam bons registros disso. Esses Pataxós e
percorrida com regularidade por prepos- Maxakalís parecem ter compartilhado o
tos governamentais e, principalmente, por mesmo território, entre o João de Tiba e o
pesquisadores estrangeiros, cujos relatos, São Mateus. É também referido que cons-
notadamente o do príncipe alemão de tituíam alianças temporárias para debelar
Wied-Neuwied (1817), permitem-nos hoje investidas dos Botocudos. Porém, parece
um bom conhecimento etnológico daque- ser possível discernir que os Pataxós man-
les povos indígenas, em sua maior parte tinham maiores concentrações na área
ainda autônomos, e, no que interessa aqui mais próxima à costa, enquanto os Ma-
mais diretamente, fornecem uma boa xakalís teriam seu pólo de dispersão nas
idéia da sua distribuição territorial. cercanias da serra dos Aimorés – atual di-
É seguro que, nas vizinhanças do lito- visa entre Bahia e Minas Gerais –, dispo-
ral, os Botocudos – localmente auto-de- sição que, de resto, conservam ambos no
signados Gren – limitavam-se e manti- presente. (Carvalho e Sampaio, 1992)
nham disputas, ao sul, à altura do rio de A conquista desses povos indígenas do

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sul da Bahia é uma longa história de mais monte. Sobre essa muito provável diver-
de cem anos, que só atingiria seu ápice sidade original, o etnônimo Pataxó pre-
nas décadas iniciais do século XX, quan- valeceu provavelmente por ter sido des-
do as roupas infectadas por lepra e varío- tes o maior contingente, além de estar a
la que plantadores de cacau da região en- aldeia situada em território tradicional-
tre o Contas e o Pardo espalharam pela mente reconhecido como pataxó.
mata deram cabo dos últimos bandos ain- Fato é que esses Pataxós de Barra Ve-
da isolados e vivendo de modo autôno- lha romperam o século XX, muito certa-
mo (Ribeiro, 1970). No que diz respeito ao mente, como a única comunidade indíge-
extremo sul, porém, tudo indica que, já na na região e aí viveram isolados de qual-
em meados do século XIX, a maioria da quer contato mais regular com a popula-
população indígena sobrevivente vivia ção envolvente, além da dos diminutos
junto às vilas coloniais costeiras – de San- povoados que lhe são vizinhos. Com efei-
ta Cruz Cabrália a Porto Alegre, atual Mu- to, entre 1861 e 1951, são escassíssimas as
curi –, para onde fora trazida na tentativa referências existentes sobre essa aldeia
de ser submetida ao trabalho a serviço dos perdida numa das regiões então mais iso-
regionais. Em 1861, contudo, preocupado ladas do Estado. (Carvalho, 1977)
com os constantes conflitos entre estes e Tal isolamento seria dramaticamente
os índios e, provavelmente, também com rompido em 1951, em um episódio farta-
a possibilidade legal de os últimos reivin- mente noticiado pela imprensa de Salva-
dicarem as terras que ocupavam, o Presi- dor à época, que provavelmente tem sua
dente da Província da Bahia determinou origem alguns anos antes, quando, por
a concentração compulsória de toda a po- ocasião da criação do Parque Nacional de
pulação indígena da região numa única Monte Pascoal pelo Decreto 12.729 de 19
aldeia, a ser estabelecida no ponto médio de abril de 1943, as primeiras equipes téc-
daquela costa, junto à embocadura do rio nicas visitaram a área, estabelecendo con-
Corumbau. Esta é, seguramente, a origem tato, direto ou indireto, com os Pataxós. A
da atual aldeia de Barra Velha. (Carvalho, notícia da criação do parque é o provável
1977) motivo que levou líderes pataxós a em-
preenderem uma inédita viagem ao Rio
de Janeiro, na expectativa de obter do Ma-
OS PATAXÓS: DA CRIAÇÃO DA ALDEIA DE rechal Rondon o direito a suas terras. Re-
BARRA VELHA À DO PARQUE NACIONAL tornaram da capital sem êxito aparente
DE MONTE PASCOAL junto ao então Serviço de Proteção ao Ín-
dio (SPI), mas acompanhados por dois in-
Pelo exposto acima, parece legítimo de- divíduos de identidade misteriosa – so-
duzir-se que a aldeia de Barra Velha abri- bre os quais se conjecturou serem ligados
gou, em sua origem, não apenas índios ao Partido Comunista – que, a pretexto de
pataxós, mas também maxakalís há pou- demarcar os limites das suas terras, esti-
cos anos trazidos do interior da região e, mularam-nos a saquear o pequeno comér-
possivelmente, botocudos das vizinhan- cio do vizinho povoado do Corumbau, o
ças, subjugados na mesma época, “des- que desencadeou uma violenta reação po-
cendentes” dos tupiniquins de Trancoso licial a partir das cidades de Porto Seguro
e Vila Verde e kamakãs – Meniã – de Bel- e Prado, dando origem a uma série de per-

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seguições aos Pataxós e ao início da sua o minucioso estudo de Carvalho, ao terri-


dispersão pela região. Os dois forasteiros tório tradicionalmente utilizado pelos Pa-
foram mortos na primeira investida poli- taxós de Barra Velha.
cial. (Carvalho, 1977) Desconhecidos ou ignorados pelo ór-
Esse trágico episódio, até hoje muito gão indigenista nacional, que vivia então
marcado na memória dos Pataxós, é fre- a fase final de uma longa crise que levaria
qüentemente percebido por muitos deles à sua extinção em 1967 (Davis, 1977), e tra-
como um mal-entendido que causaria a tados pelo órgão encarregado do “desen-
perda de suas terras. Nessa versão nati- volvimento florestal” como simples pos-
va, o Parque de Monte Pascoal seria origi- seiros, os Pataxós de Barra Velha foram en-
nalmente destinado aos índios, para que tão compungidos a receber indenizações
estes, com suas terras asseguradas, pudes- por suas parcas “benfeitorias” e deixar sua
sem “viver como antigamente, nus, caçan- aldeia, agora inserida no Parque Nacio-
do e tirando mel pelas matas”. O “fogo de nal. A maioria dos índios resistiu a isso,
1951” teria fornecido o pretexto para que sendo porém impedida de plantar suas
governantes inescrupulosos, após as mor- roças na área, situação que perdurou por
tes de Rondon e Getúlio Vargas, “prote- dez anos até que, no início dos anos se-
tores dos índios”, distorcessem o objetivo tenta, o novo órgão indigenista, Funai
original, entregando o Parque para um ór- (Fundação Nacional do Índio) finalmen-
gão, o atual Ibama (Instituto Brasileiro do te implantasse sua assistência e tutela de
Meio Ambiente e Recursos Naturais Re- direitos sobre esses Pataxós.
nováveis) que, a partir dos anos sessenta, Esse período foi marcado pelo grande
e após as arbitrariedades policiais sofridas surto madeireiro que atingiu a região na
pelos Pataxós nos anos cinqüenta, assumi- esteira da construção da rodovia BR-101,
ria a tarefa de “perseguir os índios e tomar inaugurada em 1973, e pela implantação
suas terras, como vem fazendo até hoje”. de um crescente mercado de turismo que
De fato, após mais de uma década em se lhe seguiu. Nesse contexto, impedidos
que existiu apenas “no papel”, o Parque de utilizar suas terras tradicionais, os Pa-
Nacional de Monte Pascoal foi finalmen- taxós são levados a se engajar como mão-
te implantado em 1961. Os estudos técni- de-obra nas novas atividades econômicas
cos que orientaram sua delimitação argu- que se implantam na região, sendo tam-
mentam com competência pela necessi- bém estimulados, a partir dos anos seten-
dade, apesar da redução da área original- ta, por pesquisadores, funcionários e co-
mente prevista, de proteção ao sítio his- merciantes, a desenvolver sua produção
tórico do Monte Pascoal e de preservação de artesanato, o que se revelaria uma al-
de uma faixa quase intocada da Mata ternativa interessante, capaz de preservar-
Atlântica que se estende desde as bases lhes, em função do fluxo turístico, algu-
da famosa montanha até a costa, onde se ma autonomia econômica.
encontram, igualmente dignos de preser- Ao implantar sua assistência sobre os
vação, alguns dos mais extensos e ricos Pataxós de Barra Velha, a Funai estabele-
manguezais de todo aquele litoral (Car- ceu um acordo pouco mais que tácito com
valho, 1977). Coincidência ou não, porém, o então Instituto Brasileiro de Desenvol-
a área então delimitada correspondia, vimento Florestal (IBDF), que passou a
quase exatamente, como bem demonstra facultar aos índios o direito de plantio nas

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capoeiras já existentes na área do Parque território contínuo, designado pela Funai


(Carvalho, 1977) e, embora tal não fosse “Terra Indígena Barra Velha”, com 8.627
suficiente para atender às demandas pro- hectares, situada no extremo sul do mu-
dutivas dos Pataxós, manteve-se intoca- nicípio de Porto Seguro e junto, ou den-
da, assim, a crucial questão da legitimida- tro (vide adiante), do Parque de Monte
de de domínio sobre as terras. Àquela al- Pascoal.
tura era já irreversível o processo de dis- Imbiriba: pequeno núcleo originado, já
persão dos Pataxós de Barra Velha, mui- nos anos vinte (Furtado, 1986), por uma
tos dos quais, após perambular por locais única família extensa, foi alimentado por
e atividades diversos na região, voltariam novas levas de migrantes de Barra Velha
a se concentrar em novos núcleos indíge- após os episódios de 1951 e 1961. Deu ori-
nas, alguns incipientemente brotados já gem ao povoado regional de Itaporanga,
antes dos anos sessenta. Relacionarei aqui, que lhe é vizinho. Tinha, em 1998, popu-
brevemente, as atuais comunidades pata- lação de 99 índios (Furtado, 1986) e está
xós no extremo sul baiano, voltando em próximo à margem direita do rio do Fra-
seguida ao caso do território do Monte de, a seis quilômetros da costa e cerca de
Pascoal, com especial atenção à sua situa- cinco léguas ao norte de Barra Velha, mu-
ção fundiária e econômico-social. nicípio de Porto Seguro.
Barra Velha: considerada por todos os Aldeia Velha: é o núcleo Pataxó mais
Pataxós contemporâneos no extremo sul recentemente consolidado. Trata-se de um
como sua “aldeia-mãe”, era ainda, em antigo assentamento indígena do qual as
1998, uma das maiores delas, com uma famílias residentes foram expulsas nos
população de 965 habitantes (ANAI, 1998). anos sessenta e setenta. Após algumas ten-
Está situada a um quilômetro da praia, a tativas para reocupar o local, já nos anos
meio caminho das embocaduras dos rios noventa, que não lograram êxito, pela re-
Caraíva e Corumbau e cerca de uma lé- ação de um pretenso proprietário, essas
gua de cada um dos povoados homôni- famílias conseguiram, finalmente, no iní-
mos aí situados. cio de 1998, fixarem-se no local, que pas-
Boca da Mata: foi criada em 1981, após sou a aglutinar várias outras famílias pa-
novo acordo entre a Funai e o IBDF, que taxós até então dispersas pelos núcleos ur-
destinou aos Pataxós uma faixa exclusiva banos costeiros do município de Porto Se-
no Parque de Monte Pascoal. Situa-se na guro (Arraial d’Ajuda, Trancoso, Caraíva
margem direita do córrego Cemitério, etc.), reunindo, então, 199 habitantes
pouco acima de sua confluência com o Ca- (ANAI, 1998). Situa-se à margem esquer-
raíva. Contava, em 1998, com 556 mora- da do estuário do rio Buranhém, em fren-
dores. (ib) te à cidade de Porto Seguro e imediata-
Meio da Mata: desdobrada da anteri- mente a montante da povoação de Arrai-
or, da qual dista cerca de seis quilômetros, al d’Ajuda.
a leste, em 1987, situa-se na margem di- Coroa Vermelha: aldeia surgida em
reita do rio Caraíva, pouco abaixo de sua 1972 e, originalmente, totalmente orien-
confluência com o Cemitério. Meio da Ma- tada para a comercialização de artesana-
ta tinha, em 1998, uma população de 162 to, ainda hoje sua principal atividade; é o
habitantes. (ib) núcleo pataxó que mais cresce. Um levan-
Essas três aldeias ocupam um mesmo tamento feito em 1998 registrou uma po-

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pulação de 1546 moradores (Espírito San- Trevo do Parque: outro núcleo surgido
to, 1998), não incluído o contingente flu- da necessidade de comercializar artesana-
tuante de pataxós de outras aldeias – ou to, ocupa uma estreita faixa doada por um
de nenhuma – que aí permanece, tempo- fazendeiro, em 1988, junto ao entronca-
rariamente, em especial nos meses de mento das rodovias BR-101 e BR-498, esta
maior fluxo turístico. Está localizada jun- última a via de acesso à sede do Parque
to ao sítio histórico da Coroa Vermelha, de Monte Pascoal e ao próprio monte.
entre a praia e a pista da BR-367, oito qui- Conta com razoável população flutuante
lômetros ao sul da sede do município de e, em 1998, com 71 residentes em caráter
Santa Cruz Cabrália e quinze quilômetros permanente (ANAI, 1998). Está no muni-
ao norte de Porto Seguro. A Terra Indíge- cípio de Itamaraju, quinze quilômetros ao
na Coroa Vermelha compreende ainda norte da sua sede.
uma gleba de mata a cerca de seis quilô- Assim, havia, em 1998, uma população
metros a oeste da aldeia, na qual a comu- de quase quatro mil pataxós vivendo nas
nidade desenvolve, desde 1972, ativida- aldeias do extremo sul baiano, quase toda
des de coleta e, desde 1990, alguma agri- ela em uma faixa de cerca de trinta quilô-
cultura. metros de largura desde ao norte do rio
Mata Medonha: foi implantada em Caí, no município do Prado, e ao longo
1951 em uma região até então completa- de todo o litoral dos municípios de Porto
mente isolada, por uma família de refugi- Seguro e Santa Cruz Cabrália. Esses da-
ados de Barra Velha. Outros grupos fami- dos de população não incluem uma popu-
liares, também oriundos de Barra Velha, lação dificilmente calculável de pataxós
viriam a instalar-se aí já nos anos oitenta que vivem na região, fora das aldeias, ou
(Furtado, 1986), compondo uma popula- mesmo fora da região, mas que mantêm
ção, em 1998, de 143 indivíduos (ANAI, contato regular e vínculos diversos com
1998). Situa-se à margem esquerda do bai- as aldeias e integram uma certa unidade
xo curso do rio Santo Antônio, pouco mais social pataxó que extrapola os limites dos
de uma légua a montante do povoado ho- seus territórios.
mônimo e cerca de 12 km da embocadura
do rio, na região norte do município de
Santa Cruz Cabrália. O TERRITÓRIO INDÍGENA DO
Águas Belas: consolidada na década de MONTE PASCOAL
setenta por migrantes de Barra Velha, ti-
nha população de 100 habitantes (ANAI, Processo de regularização ou a
1998) e está localizada no norte do muni- formalização do esbulho
cípio do Prado, a cerca de seis quilôme- Como ficou dito, quando a Funai im-
tros do limite sul do Parque de Monte Pas- plantou sua administração tutelar sobre
coal e a cinco léguas da costa. os Pataxós de Barra Velha, manteve into-
Corumbauzinho: ocupa a faixa entre a cada a questão da legitimidade de domí-
anterior e a margem direita do rio Corum- nio sobre as terras então do Parque Na-
bau, limite sul do Parque. Assistida pela cional de Monte Pascoal, ou melhor, tra-
Funai apenas a partir de 1998. Tinha, en- tou de ignorá-la, investindo em um pre-
tão, população de 120 indivíduos. (ANAI, cário acordo com o então IBDF, para que
1998). os índios pudessem plantar nas “capoei-

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ras” do Parque, o que, evidentemente, não No contexto de tais negociações, evi-


foi suficiente nem para atender às deman- denciava-se e ganhava relevo uma cente-
das produtivas dos índios, nem para ex- nária disputa simbólica pela posse do pró-
tinguir os já então crônicos conflitos en- prio Monte Pascoal. Lembro-me que,
tre estes e a guarda do IBDF. Apenas a par- acompanhando uma das sessões de dis-
tir de 1977, quando já vigia um convênio cussão, em 1979, ouvi de um líder pataxó,
entre a Funai e a Universidade Federal da quando se lhe expunha o “princípio” da
Bahia para estudo e assessoria aos povos partilha, acordado entre os órgãos fede-
indígenas no Estado, foi tomada a inicia- rais, a afirmação de que “se é para dividir
tiva, orientada por professores pesquisa- a área do Parque, então que se divida o
dores do Departamento de Antropologia monte também”, o que estava a demons-
daquela Universidade, já trabalhando en- trar também a clareza de percepção do seu
tre os Pataxós, de se desenvolver estudos tradicional limite ocidental.
para definição e regularização do “terri- Logo ficaria claro que uma real recons-
tório tradicionalmente ocupado” pelos Pa- tituição do território dos Pataxós que lhes
taxós, na forma da lei. Resultados preli- permitisse retomar seus tradicionais pro-
minares desses estudos estão contidos nos cessos produtivos, isto é, aqueles vigen-
excelentes trabalhos de Agostinho (1980 e tes até 1961, implicaria subtrair ao Parque
1981) e no já citado de Carvalho (1977). cerca de 16.000 a 18.000 dos seus 22.500
Esses, contudo, jamais seriam oficialmen- hectares, reduzindo-o a apenas as áreas
te assumidos, ou sequer tomados em con- imediatamente em torno e a oeste do
ta, pela direção da Funai, o que resultaria, Monte Pascoal, possibilidade explicita-
em 1981, na denúncia do convênio pela mente colocada como inaceitável pelo
Universidade. IBDF, tanto pela redução drástica da área
A direção da Funai, à época, optou por sob sua administração, quanto pela per-
não questionar a legitimidade do Parque da da faixa costeira do Parque, valorizada
Nacional e propor uma “negociação” com pela presença do que seria o único ecos-
o IBDF para partilha da sua área, alterna- sistema de manguezais associados à Mata
tiva evidentemente interessante para o ór- Atlântica incluído em uma unidade de
gão florestal. Da parte dos Pataxós, con- conservação ambiental no país.
tudo, tais estudos e negociações foram, Inviabilizada a “via negociada”, pelo
muito legitimamente, percebidos como a menos no que dizia respeito à participa-
oportunidade de recuperar o seu tradicio- ção dos interessados diretos, a direção da
nal território, isto é, aquele que vinham Funai optou por afastar índios e pesqui-
ocupando por cem anos, da implantação sadores da questão, chegando, em 1980, a
da aldeia, em 1861, à do Parque, em 1961, um acordo com o IBDF, pelo qual este “ce-
e que, tanto na concepção e na memória dia” à administração da Funai apenas o
dos índios quanto no que os estudos esta- correspondente ao que seria a metade nor-
vam a indicar, tinha limites muito bem de- te do tradicional território indígena, jun-
finidos e facilmente reconhecíveis: os cur- to ao rio Caraíva, estendendo-se para oes-
sos dos rios Caraíva e seu afluente Cemi- te apenas até as proximidades da base do
tério, ao norte, e Corumbau e seu afluen- Monte Pascoal, uma área com a já referi-
te Jibura, ao sul, a costa, a leste, e o Monte da extensão total de 8.627 hectares. À altu-
Pascoal, a oeste. ra da costa, o IBDF preservava, assim, o

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José Augusto Laranjeiras Sampaio

domínio dos ricos manguezais junto ao ria tomada em conta – nem contestada,
estuário do rio Corumbau, deixando livres diga-se – pelo Grupo de Trabalho Inter-
à exploração indígena apenas os pobres ministerial, do qual o Mirad era membro,
brejos arenosos junto ao estuário do Ca- quando da sua supracitada Resolução.
raíva. Outro membro discordante do Grupo, o
A perda desses manguezais, até então Instituto de Terras da Bahia (Interba), re-
sua quase única fonte de proteína animal, cusou-se, na pessoa do seu Presidente,
aliada à redução do que esperavam ver Eduardo Almeida, a firmar a dita Resolu-
reconhecido como seu território, foi um ção.
dos principais pontos de descontenta- Por outro lado, o Decreto de homolo-
mento da maioria dos Pataxós de Barra Ve- gação, embora mencione, em sua descri-
lha com relação ao “acordo”. Apesar dis- ção de limites, o Parque Nacional de Mon-
so, a área “cedida” foi rapidamente demar- te Pascoal como confrontante da Terra In-
cada, ainda em 1980, e reconhecida pela dígena, não faz qualquer referência a
Funai como “área indígena”, através da eventuais alterações nos limites originais
Portaria 1393/E, de 1º de setembro de 1982. deste, para deles excluir a dita Terra. Isso
A área assim “identificada” seria, em configura, de fato, do ponto de vista le-
seguida, submetida à apreciação do Gru- gal, uma situação de superposição de ter-
po de Trabalho Interministerial criado pe- ritórios da União, já que a área em ques-
lo Decreto 94.945/87 que, em sua Resolu- tão permanece, formalmente, integrante
ção 02, de 20 de julho de 1988, resolveu do Parque, uma vez que o decreto presi-
“reconhecer” a área como “de posse ime- dencial que o delimitou não pode estar
morial indígena”, recomendando sua re- revogado pelo mero “termo de acordo”
gularização com a designação “Colônia In- de 1980 entre IBDF e Funai.
dígena Barra Velha”. Por fim, a área seria Em 1997, atendendo a questionamen-
homologada pelo Decreto 396 (24/12/91), to do Ministério Público Federal através
da Presidência da República. da Procuradoria da República, a Funai
Deve-se sublinhar aqui que todos os reconheceu, por fim, em Informação Téc-
instrumentos administrativos referidos nica de seu Departamento de Identifica-
acima não se baseiam em nenhum estu- ção e Delimitação de Terras (Santos, 1997),
do ou parecer técnico – e que, via de re- as irregularidades administrativas e téc-
gra, incluiriam um “laudo antropológico” nicas havidas no processo de definição e
– que respalde os limites adotados, con- regularização da Terra Indígena Barra Ve-
forme determinado em toda a legislação lha, bem como a legitimidade do pleito
referente à matéria, em suas diversas fa- dos Pataxós pelo direito ao seu tradicio-
ses, tendo-se orientado apenas pelo pre- nal território.
cário e legalmente insustentável “acordo” Em seguida, a Procuradoria da Repú-
firmado entre a Funai e o IBDF em 1980. blica em Ilhéus dirigiu, em junho de 1999,
Tal circunstância ficou, de resto, claramen- recomendação legal para que a Funai
te demonstrada em “Informação Técnica” “promova (...), em regime de urgência, os
do Ministério da Reforma e Desenvolvi- estudos de identificação e delimitação da
mento Agrários (Mirad), por Simonian Terra Indígena Barra Velha, para fins de
(1986), antropóloga e assessora desse Mi- revisão dos seus atuais limites e da sua de-
nistério. Tal informação, contudo, não se- marcação e regularização conforme dis-

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BREVE HISTÓRIA DA PRESENÇA INDÍGENA NO EXTREMO SUL BAIANO E A ...

posto no Artigo 231 da Constituição Fede- fazendo com que a nova comunidade logo
ral”. (Leão Jr., 1999) contasse com uma população de algumas
Enfim, a Funai, através de sua Portaria centenas de indivíduos. As condições de
685, de 18 de agosto de 1999 (publicada produção não eram, contudo, de modo al-
no Diário Oficial da União a 20/08), resol- gum semelhantes àquelas vividas pelos
veu “constituir Grupo Técnico para reali- Pataxós no passado.
zar estudos de (...) revisão de limites da Em primeiro lugar, a “partilha” do Par-
Terra Indígena Barra Velha”. (Lacerda, que deixou aos índios, no local, apenas os
1999) terrenos de encosta entre os contrafortes
do Monte Pascoal e o estreito vale do Ce-
mitério e do Caraíva, subtraindo-lhes os
AS COMUNIDADES PATAXÓS DO terrenos planos, mais propícios à agricul-
MONTE PASCOAL HOJE tura tradicional, mantidos no interior do
Parque.
Se discorri um tanto longamente sobre Em segundo lugar, a economia regio-
a história do tradicional território dos Pa- nal vivia ainda o auge da exploração pre-
taxós da aldeia de Barra Velha e da sua datória de madeira que a atingira desde
expropriação pela União sob a forma do os anos sessenta e os Pataxós de Boca da
Parque Nacional de Monte Pascoal, é que Mata, que implantaram sua nova aldeia
tais dados me parecem imprescindíveis a sem nenhum apoio governamental, ne-
uma boa compreensão da sua atual cena cessitavam de capital para tanto e para a
socioeconômica, marcada por uma quase retomada de suas atividades produtivas,
total falência dos processos produtivos para o que, evidentemente, lançaram mão
indígenas tradicionais – o que tem gera- do mercado madeireiro que, de resto, já
do uma situação de miséria e de depen- os assediava desde a notícia do “acordo”
dência – e pela permanência de conflitos Funai-IBDF.
com os prepostos regionais do Ibama, apa- Totalmente retirada a cobertura de ma-
rentemente insolúveis no atual quadro ta da encosta de Boca da Mata, foi aí im-
institucional e administrativo. plantada uma agricultura em moldes téc-
Após o “acordo” de 1980 e a demarca- nicos tradicionais mas intensiva, pela pró-
ção de 1981, que “transferiram” aos Pata- pria escassez de terras e pela presença, an-
xós de Barra Velha a fatia de 8.627 hecta- tes irrisória, de um mercado consumidor
res desmembrados do Parque, parte da co- regional. Desse modo, sem assessoria téc-
munidade, sob a liderança do grupo fami- nica que permitisse aos Pataxós uma pos-
liar de Firmo e Manuel Santana, decidiu sível melhor adequação produtiva às no-
retomar o trabalho numa localidade onde vas condições e inviabilizados os recursos
anteriormente mantinham roçados, ago- tradicionais de conservação e revitaliza-
ra situada no extremo oeste da área “cedi- ção de solos pela rotatividade e presença
da”, para aí deslocando-se e dando ori- da mata, os terrenos de encosta da Boca
gem, à margem direita do córrego Cemi- da Mata, tendo ainda que suportar um in-
tério, à nova aldeia de Boca da Mata. cremento populacional acelerado, muito
A implantação da nova aldeia propi- previsivelmente se exauriram em cerca de
ciou também o retorno de famílias pata- cinco anos.
xós dispersas há algumas décadas antes, Assim, entre 1986 e 1987, os Pataxós

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abriram uma nova frente de ocupação in- como sempre fizeram há pelo menos mais
tensiva, cerca de uma légua a leste da ante- de cem anos, continuam coletando, para
rior e em condições em tudo semelhantes sua subsistência, os crustáceos e molus-
àquela. Nessa localidade, onde se conso- cos do mangue, ainda muito importantes
lidou uma terceira aldeia, a de Meio da em sua dieta, em geral pobre em proteína
Mata, as condições de produção parecem animal.
ser análogas às da Boca da Mata. Em am- Muito mais preocupante, do ponto de
bas, os índios se queixam de que os terre- vista ambiental, que a ação indígena so-
nos “só dão mandioca e abacaxi” e depen- bre o manguezal, é a que vem sendo feita
dem do fornecimento, sempre irregular, a partir do povoado de Corumbau, ime-
por parte de órgãos governamentais, de diatamente ao sul do mesmo, onde se tem
caros insumos que possibilitem a tentati- implantado uma promissora infra-estru-
va de outros cultivos. Enquanto isso, a po- tura hoteleira, com um crescente afluxo
pulação que permaneceu em Barra Velha de turistas na alta estação. A presença de
manteve o cultivo nos antigos roçados um voraz mercado consumidor tem esti-
mais próximos à aldeia que, na verdade, mulado a coleta comercial que, esta sim,
apenas no período crítico dos anos sessen- pode comprometer seriamente a preser-
ta, deixaram de ser explorados mais regu- vação da vida no manguezal do Parque
larmente (Carvalho, 1977). Aí, os terrenos, Nacional.
mais próximos à praia, são, contudo, con- Os problemas mais sérios dos Pataxós
sideravelmente mais pobres que os da do Monte Pascoal com o Ibama, contudo,
mata que domina o alto do tabuleiro que envolvem mais diretamente as comuni-
principia a oeste da aldeia e se estende pe- dades de Boca da Mata e Meio da Mata,
lo interior do Parque até a base do Monte alvos de seguidas acusações – de resto,
Pascoal. nunca comprovadas – por parte da admi-
Logo após o “acordo” de 1980, os con- nistração local do órgão, de intermedia-
flitos entre os Pataxós de Barra Velha e pre- rem a retirada de madeira do Parque.
postos do IBDF, longe de cessarem, inten- Nos últimos anos, o Ibama alardeou
sificaram-se, tendo por objeto, principal- pela imprensa regional (“A Tarde”, de 12/
mente, a utilização dos manguezais ao sul 10/93 e 15/04/94) ter flagrado índios reti-
da aldeia que, como dito, foram mantidos rando madeira do Parque. A leitura aten-
fora do território indígena. Em seguida à ta desse noticiário revela, entretanto, que
demarcação de 1980, o IBDF chegou a ins- a apreensão recolheu, basicamente, peças
talar um posto de vigilância sobre o limi- da matéria-prima que os Pataxós costu-
te estabelecido, entre a aldeia e o mangue- mam utilizar na confecção de artesanato
zal, que teria também a função de contro- – pequenos troncos de arruda – e não ma-
lar o acesso de “outros estranhos” pelo la- deiras de interesse das serrarias locais que,
do da praia. Por diversas vezes, desde en- como é sabido, também “desaparecem” do
tão, os Pataxós expulsaram daí o encarre- Parque.
gado da vigilância, terminando por des- Da parte dos Pataxós, que evidente-
truir a guarita. Nos últimos anos, o Ibama mente negam qualquer envolvimento
local parece conformado à inviabilidade com o roubo de madeira do Parque por
desse posto de vigilância, que permanece empresas madeireiras, a coleta de maté-
abandonado, e os Pataxós de Barra Velha, ria-prima para artesanato é assumida e

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BREVE HISTÓRIA DA PRESENÇA INDÍGENA NO EXTREMO SUL BAIANO E A ...

justificada por estarem lançando mão dos Apenas em 1993, durante uma reunião
recursos naturais do seu tradicional terri- de lideranças indígenas em Salvador, os
tório que, como vimos, consideram usur- Pataxós de Monte Pascoal ousaram, dian-
pado pelo órgão ambiental. te da imprensa (“A Tarde”, 17/11/93) e de
Nas atuais condições de vida dos Pata- Procuradores da República na Bahia,
xós, a comercialização de artesanato, ain- enunciar formalmente tais denúncias, o
da que dependente de consumidores sa- que gerou a imediata determinação, por
zonais, aparece como uma indispensável parte do Ministério Público, de instaura-
via de acesso ao mercado, mesmo para os ção de inquérito policial. Independente-
índios das comunidades do Monte Pascoal mente, porém, da difícil comprovação dos
que, distantes dos principais pontos de fatos denunciados, tal atitude parece de-
comércio, têm que se submeter a interme- monstrar que, se os Pataxós vêm sendo
diários ou se ausentar dos seus locais de vítimas da imputação de estereótipos ne-
moradia na alta estação, com prejuízos pa- gativos disseminados na consciência re-
ra o trabalho agrícola. gional, eles parecem ter percebido que
Nesse contexto, o possível esgotamen- servidores públicos não são nem um pou-
to de suas fontes de matéria-prima natu- co imunes à imputação de tal tipo de es-
ralmente não interessa aos Pataxós e, cla- tereótipo e, mais do que isto, que podem
ramente, seria melhor tratada no âmbito contar hoje com sérias disposições a seu
do planejamento ecônomico-social que no respeito por parte de autoridades encar-
das penalidades legais. regadas da salvaguarda dos seus direitos.
As disputas entre pataxós e prepostos De qualquer modo, o cerne da ques-
florestais parecem, porém, encontrar suas tão, no que interessa aos índios, reside na
razões políticas, e mesmo emocionais, busca de alternativas para sua auto-sus-
mais profundas, no próprio contexto em tentação, claramente inviável nas atuais
que se deu a criação do Parque de Monte condições. Até 1995, organismos diversos
Pascoal e mesmo nas rivalidades étnicas se interessaram, embora apenas tangen-
que opõem aos Pataxós segmentos da po- cialmente, pela questão, acenando sem-
pulação regional, no interior da qual, de pre com a possibilidade de proposição de
resto, são recrutados aqueles prepostos. “projetos de desenvolvimento”, em geral
Para alguns deles, a demarcação de uma envolvendo a adoção de cultivos comer-
área indígena e a implantação das aldeias ciais – seringueira, por exemplo. Dentre
de Boca da Mata e Meio da Mata são vis- tais organismos, o Interba, em 1988-1989,
tas como “mutilações” do “seu” Parque. a Fundação Mata Virgem, em 1991, e a
Por outro lado, sob a ótica dos índios, a própria Funai, em 1992-1993. Mais vaga-
impiedosa campanha difamatória de que mente, em 1994, também as diversas orga-
são alvo se explicaria por serem eles a “ar- nizações ambientalistas preocupadas com
raia miúda” dentre os que se valem inde- a situação do extremo sul baiano, lidera-
vidamente dos recursos do Parque, por- das pelo Greenpeace, o meta-privado pro-
tanto, os únicos que não dão propina aos jeto do “Quadrilátero do Descobrimento”
servidores do Ibama, tornando-se assim e a “Petrobrás”, empresa que firmou, na-
objeto das acusações daqueles que estari- quele ano, convênio com o Ibama para
am, desse modo, apenas acobertando a preservação do Parque de Monte Pascoal.
própria corrupção. Infelizmente, nenhuma dessas disposi-

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José Augusto Laranjeiras Sampaio

ções passou de “conversas preliminares” seminário promovido por organizações


ou de “esboços de projetos”. Algumas de- não-governamentais em Itamaraju colo-
las consideravam claramente a inviabili- cou, pela primeira vez, frente a frente, pa-
dade econômica dos Pataxós sobre sua ra um diálogo formal, representantes pa-
atual base territorial e propunham, como taxós e a direção do Parque Nacional, pô-
alternativa, a compra, pela União, de no- de-se identificar alguma disposição da au-
vas terras ao norte do Parque e da atual toridade ambiental do governo federal no
Terra Indígena, ao longo da margem es- sentido de tratar, de um outro modo que
querda do Caraíva. Assim se evitaria, tal- não o da pura e ineficaz repressão, a rela-
vez em definitivo, a incômoda questão da ção entre os Pataxós e a fatia do tradicio-
legitimidade de domínio sobre as terras nal território destes ora sob sua adminis-
entre o Caraíva e o Corumbau, onde hoje tração. Tal disposição tem se manifestado
se espremem o Parque Nacional e a Terra sob a forma de propostas que variam des-
Indígena Barra Velha. de a do simples engajamento de alguns
Na mesma ocasião em que dirigiram índios no serviço do Ibama, como “fiscais”
suas denúncias de corrupção, os Pataxós, do Parque, até proposições, ainda muito
que sempre reclamaram solitariamente pouco elaboradas, que acenam com o
contra a usurpação do seu tradicional ter- apoio do Ministério do Meio Ambiente a
ritório – à espera de uma improvável mai- projetos de “desenvolvimento sustentá-
or atenção formal do órgão indigenista ao vel” nas atuais áreas de ocupação indíge-
caso –, pela primeira vez manifestaram, na no entorno do Parque.
informalmente, diante da Procuradoria da Enquanto isso intensifica-se, desde
República, o desejo de que a questão seja 1997, entre os Pataxós, a mobilização em
considerada judiciosamente por quem de torno da reconquista de seu território tra-
direito. É incompreensível para os Pata- dicional, agora fortalecida pela crescente
xós que todos os seus antigos vizinhos te- organização social e política do grupo, à
nham enriquecido impunemente com a medida que se consolidam as novas comu-
devastação das matas ao redor do Parque nidades de após diáspora, e pela também
Nacional e que apenas eles, privados do crescente visibilidade, no cenário político
devido uso do seu tradicional território, nacional, dos grandes problemas sociais
aquele que foi explorado e conservado por e ambientais na chamada “costa do des-
seus pais e avós até 1961, sejam hoje exe- cobrimento”, ao aproximar-se o quinto
crados como “inimigos da natureza”. centenário do evento histórico, no ano
A devastação da Mata Atlântica em to- 2000. Nesse novo contexto, em que a ine-
do o extremo sul nos últimos trinta anos ficácia do aparelho de estado na garantia
transformou o inadequado Parque Nacio- de uma real preservação do patrimônio
nal de Monte Pascoal num precioso redu- de Mata Atlântica no interior do Parque
to de conservação do ecossistema na re- já é plenamente patente, preocupando
gião; contudo, a situação pataxó e sua pró- ambientalistas e outros segmentos orga-
pria inconformação demonstram que a nizados da sociedade nacional, os Pataxós
questão da sua ilegitimidade não poderá incorporam ao seu pleito pelo direito ter-
ser indefinidamente omitida ou escamo- ritorial um discurso conservacionista, tor-
teada. nando claro que somente eles poderão
Apenas a partir de 1997, quando um efetivamente proteger a “sua” mata.

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BREVE HISTÓRIA DA PRESENÇA INDÍGENA NO EXTREMO SUL BAIANO E A ...

Acompanhando-me em uma recente atuais limites da Terra Indígena Barra Ve-


visita à aldeia de Corumbauzinho, um im- lha, iniciando, formalmente, o processo
portante líder pataxó de Barra Velha teve administrativo para a regularização de
oportunidade de examinar o flanco sul da todo o território tradicionalmente ocupa-
faixa sob domínio do Parque, junto ao rio do pelos Pataxós no Monte Pascoal, os ín-
Corumbau – uma área que lhes é pouco dios, em centenas de pessoas, homens,
acessível a partir das três aldeias no vale mulheres, velhos e crianças de todas as
do Caraíva –, constatando a visível devas- suas dez aldeias e de três das aldeias dos
tação provocada pela ação ilegal de ma- Pataxós Hãhãhãi no sul do Estado, ocu-
deireiros que encontram aí o flanco mais param a sede do Ibama no Parque Nacio-
vulnerável da reserva de mata. Ele comen- nal, daí removendo, pacificamente, seus
tou: quatro escassos funcionários e assumin-
do o controle da área, que passaram a
Olhe só para isto! Veja o que eles estão fazendo
denominar “Terra Pataxó do Monte Pas-
com a mata! Está tudo brocado! Ou a gente [os
Pataxós] toma logo conta disto [da área do Par- coal”.
que] ou eles [o Ibama] vão acabar deixando des- Em comunicado emitido em seguida,
truírem tudo! (Joel Brás, Corumbauzinho, a 27 de agosto, pelos seus caciques, os Pa-
14/12/98; em Sampaio, 1999) taxós fornecem à nação brasileira a indi-
Na proposição dos líderes pataxós, a cação precisa, sintetizada em três pontos
área ora sob domínio formal do Parque, exemplares, do quanto cabe a esta com-
uma vez devidamente regularizada como preender e fazer, no caso, em resgate de
Terra Indígena, será gerida como um “Par- sua própria dignidade:
que Indígena”, conceito que resgatam do 1. Os caciques reafirmam que as terras
disposto no Estatuto do Índio, Lei 6.001, tradicionalmente ocupadas e reivin-
de 1973, e consoante o já recomendado dicadas são inegociáveis.
na referida Informação Técnica de Simo- 2. Fica também o compromisso de que
nian (1986). Pela alternativa indígena, a a terra Pataxó do Monte Pascoal é de
garantia de seus inquestionáveis direitos plena preservação, não tendo ne-
à posse e usufruto exclusivos do seu terri- nhuma possibilidade de desmate ou
tório de ocupação tradicional se faria degradação ambiental de sua flores-
acompanhar, com apoio de instituições ta, ao contrário, devemos iniciar a
governamentais e não-governamentais, recuperação das nossas aldeias em
de medidas efetivas para a garantia da volta do Monte Pascoal.
preservação da Mata Atlântica no Monte 3. Pretendemos envolver todos os ór-
Pascoal e para a recuperação econômica gãos responsáveis, entidades ambi-
de suas aldeias, com base nos projetos de entalistas interessadas em nossas
“desenvolvimento sustentável” propos- propostas, indigenistas e setores do
tos, que se dispõem a discutir e implemen- governo verdadeiramente dispostos
tar. a nos ajudar, na preservação do meio
Em 19 de agosto de 1999, dia seguinte ambiente e na auto-sustentação do
ao da assinatura da citada Portaria 685 da povo Pataxó. (Pataxó et al, 1999)
Funai, que possibilita a redefinição dos

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José Augusto Laranjeiras Sampaio

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ASPECTOS DO PROCESSO DE CONTATO ENTRE COLONIZADORES E GRUPOS INDÍGENAS NO ...

ASPECTOS DO PROCESSO DE CONTATO ENTRE


COLONIZADORES E GRUPOS INDÍGENAS NO
NORTE DE MINAS GERAIS – REGIÃO
DO VALE DO RIO PERUAÇU*

Alenice Motta Baeta**

RESUMO
O artigo visa a elucidar alguns aspectos do processo de contato entre
os primeiros colonizadores do Médio Vale do São Francisco com os
grupos indígenas que ali habitavam ao longo dos séculos XVI, XVII e
XVIII, focalizando em especial a região norte do Estado de Minas
Gerais, que abrange os municípios de Januária, Itacarambi e São João
das Missões.
Palavras-chave: Ocupação territorial; Colonização.

A
s primeiras expedições portugue- cidas no interior, que se encontravam “in-
sas na região do Médio São Fran- festadas de silvícolas”.
cisco ocorreram ainda na segun- Em 1554, foi organizada uma entrada
da metade do século XVI, incentivadas sob o comando de Francisco Bruzza de Es-
pela coroa portuguesa por intermédio da pinosa, que tinha por objetivo percorrer
recente instituição do governo geral que territórios no vale do rio São Francisco. Na
visava, dentre outros fins, a organizar a qualidade de capelão e missionário dessa
administração das capitanias e a estabele- entrada, foi designado o padre jesuíta João
cer comunicação entre as mesmas. O ob- Aspicuelta Navarro, que percorreu 350
jetivo principal era descobrir minas de me- léguas por regiões interioranas correspon-
tais e pedras preciosas, garantindo tam- dentes, hoje, ao sul do Estado da Bahia e
bém a posse territorial de terras desconhe- norte do Estado de Minas Gerais.

* Este texto compôs o “Laudo Técnico Arqueológico sobre o Vale do Rio Peruaçu” realizado para o Minis-
tério Público-PRMG/FIAT Automóveis, julho de 1999. (Prous, A; Moura, M. T. & Baeta, A.)
** Arqueóloga e historiadora. Diretora do Setor Indígena do CEDEFES – Centro de Documentação Eloi

Ferreira da Silva.

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Alenice Motta Baeta

Em seu relato dessa viagem, datado de Macro-Jê (os Tapuyos) e Tupi-Guarani (os
1555, Aspicuelta descreve o percurso, bem Tamoyos) na região norte de Minas, às
como a resistência dos indígenas que ha- margens do rio São Francisco.3
bitavam o vale do São Francisco nas pro- Contudo, a primeira tentativa de colo-
ximidades da barra do rio Verde em reali- nização do norte mineiro ocorreu somen-
zar contato com a comitiva: te a partir da segunda metade do século
XVII, quando a metrópole decidiu doar
No outro dia nos fomos e passamos muitos des- grandes porções territoriais das capitani-
povoados especialmente um de vinte e três jor- as a determinadas famílias, “cujos chefes
nadas por entre uns índios que chamavam ta- são elevados à condição de potentados;
puyas, que é uma geração de índios bestiaes e
feros; por que andam pelos bosques como mana-
representavam a força do rei no sertão
das de veados, nús, com os cabelos compridos sem lei, sem policiamento e sem outra au-
como mulheres: a sua fala é mui bárbara e elles toridade”. (Braz, 1977, p. 39)
mui carniceiros; trazem flechas ervadas e dão Em 1663, foi doado a Antônio Guedes
cabo de um homem num momento. Para passar de Brito o vasto território de 160 léguas
por entre elles juntamos muitos dos que estão
em paz conosco, e passamos com espias adiante ao longo da margem direita do rio São
com grande perigo. Um índio que vinha conos- Francisco, delimitado ao norte pelo Mor-
co e era para muito, passou adiante um tiro de ro do Chapéu, nascentes do rio Salitre e
besta dos brancos e de súbito veio uma manada Jacaré, e, ao sul, pelas nascentes do rio das
dos tapuyas, que despedaçando-o o levaram em
Velhas. Foi fundado o morgado denomi-
quartos... Neste ermo passamos uma serra mui
grande que corre do norte para o meio dia e ne- nado “Casa da Ponte”. Posteriormente,
lla, achamos rochas mui altas de pedra mármo- Guedes de Brito recebeu a patente de
re. Desta serra, nascem muitos rios caudais: dois Mestre de Campo e Regente do São Fran-
delles passamos que vão sair ao mar entre Porto cisco, possuindo um séquito de 200 ho-
Seguro e Ilhéus; chama-se um Rio Grande,1 e
outro Rio das Orinas.2 Daqui fomos dar com mens, que pretendia estabelecer a “or-
uma nação de gentios que se chama “Catigu- dem” e implantar currais de gado e povo-
çu”. Daqui partimos e fomos até um rio mui ados nos sertões baianos e mineiros. (Braz,
caudal por nome “Pará”, que segundo os índios 1977, p. 39)
nos informaram é o rio de São Francisco e é mui
Naquele momento, a margem esquer-
largo. Da parte donde estavam são os índios que
deixei; da outra se chama Tamoyos, inimigos da do São Francisco (onde se situam atu-
deles; e por todas as outras partes Tapuyas. (Na- almente os municípios de Januária e Ita-
varro apud José, 1965, p. 48) carambi) era parcialmente ocupada por in-
dígenas, porém a colonização da margem
Esse relato transmite informações im- oposta acarretou-lhe reflexos diretos, oca-
portantes, embora genéricas, sobre a ocu- sionando migração de outros grupos indí-
pação indígena, ainda no século XVI, de genas, quilombolas, bandidos, dentre ou-
grupos atribuídos aos troncos lingüísticos tros.4

1 Atualmente, a designação deste rio é Jequitinhonha.


2 Atualmente, a designação deste rio é Pardo.
3 O Padre Aspicuelta de Navarro também cita em seu relato a presença de uma aldeia indígena entre as
barras dos rios Mangaí e Pandeiros, atual região de Januária. (Vasconcelos, 1948, p.11)
4 A margem esquerda do São Francisco, até a descoberta de ouro em Paracatu, foi alvo de disputas de
fronteiras políticas incessantes entre a Capitania de São Paulo e das Minas Gerais (posteriormente Capi-
tania das Minas Gerais) e a Capitania de Pernambuco. Segundo Vasconcelos, “a Capitania de Pernambu-
co a esse tempo estendia-se do mar, até as margens ainda brumosas do nosso Paracatu, ocupando os ter-
ritórios todos à esquerda do rio São Francisco”. (Braz, 1977, p. 29)

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ASPECTOS DO PROCESSO DE CONTATO ENTRE COLONIZADORES E GRUPOS INDÍGENAS NO ...

Com o falecimento do potentado Gue- ce o São Francisco com um exército de 600


des de Brito, na última década do século homens. Na confluência com o rio Verde,
XVII, essa sesmaria e outras propriedades funda um arraial, onde foram encontra-
foram herdadas por sua única filha, Ma- dos indígenas denominados Caiapós
ria Isabel Guedes de Brito, que constituiu (Braz, 1977; Vasconcelos, 1974). Posterior-
como seu procurador o Capitão-mor e mente, alguns desses grupos receberam
Mestre de Campo, Manuel Nunes Viana, a designação de Chacriabás ou Xicriabás.5
grande perseguidor de índios. Posterior- (Saint-Hilaire, 1975, p. 340)
mente, a neta de Guedes de Brito consor- Segundo Saint-Hilaire (1975), Matias
ciou-se a um marquês, Saldanha de Melo Cardoso e Manuel Toledo, ao se depara-
e Gama, unindo a sua fortuna a um título rem com grupos de Xicriabás,
de nobreza. (Pires, 1979, p. 57)
Com o incremento da exploração aurí- fizeram-lhes a princípio guerra; em seguida,
fera nas regiões de Vila Rica, Sabarabuçu porém, trataram com eles e firmaram pazes. O
Rei concedeu aos dois primos a posse de uma e
e Diamantina, aumentam as rotas de con- outra margem do rio São Francisco em toda a
trabando no norte e noroeste mineiro. extensão que pudessem percorrer num dia, em-
barcando-se no rio (...)
Mas a maior preocupação do Governo-geral se
voltava agora para a situação do baixo São Fran- Com a patente de Tenente-General,
cisco. Além dos índios rebelados, estava lá nas Matias Cardoso, juntamente com João
Alagoas aquele espantalho dos Palmares, o céle-
Amaro Maciel Parente, Antônio Gonçal-
bre quilombo onde os negros fugidos, por amor
à liberdade, lutaram 72 anos derrotando as mais ves Figueira, Januário Cardoso (seu filho)
poderosas expedições. (Braz, 1977, p. 41) e outros, chegou a estender os seus domí-
nios até o Ceará, tendo destroçado Caia-
Preocupado com a insegurança dos pós às margens do rio Jaguaribe. (Vascon-
sertões no norte, o Arcebispo do Brasil, celos, 1974, p. 29-30; Braz, 1977, p. 42)
que havia assumido o Governo Geral em A partir de então, intensifica-se o esco-
substituição a Matias da Cunha, autorizou amento de mercadorias pelo São Francis-
o Mestre de Campo Matias Cardoso de co, interligando os centros auríferos à en-
Almeida, por intermédio do Cel. João tão capital da colônia. Nesse momento, o
Amaro Maciel Parente, a organizar uma principal objetivo era abrir fazendas de ga-
campanha de exploração e ocupação des- do e escravizar os indígenas, visando ao
ses territórios. trabalho compulsório nas propriedades
rurais, bem como na construção de arrai-
Levou a garantia de que poderiam ser escravi- ais.6
zados os índios aprisionados em combate, in- Antônio Gonçalves Figueira, tendo fei-
centivo poderosíssimo naqueles tempos em que
a venda de escravos era um dos maiores negóci-
to mais de 700 prisioneiros nessa verda-
os. (Braz, 1977, p. 41) deira guerra de caça e extermínio aos indí-
genas, avança seus domínios para as ban-
A partir de 1690, Matias Cardoso des- das do rio Pardo, implantando, possivel-

5 Saint-Hilaire, em Viagem às nascentes do rio São Francisco, também cita a presença de índios Chicria-
bás na povoação de Sant’Ana, nas proximidades da bela cascata de Furnas, oeste mineiro.
6 Segundo Santos, que se baseou em Pizarro (1909, p. 603) e Vasconcelos (op. cit.), “a mão-de-obra indíge-
na seria também utilizada na edificação de Morrinhos e na construção de uma igreja sob a invocação de
Nossa Senhora da Conceição...”. (1997, p. 19)

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Alenice Motta Baeta

mente, o primeiro engenho de cana que por aldeias de índios Caiapós,8 sendo as
houve no sertão. principais: a das Guaíbas e a de Tapiraça-
ba (localidade onde atualmente se situa o
Neste lugar era um dos proprietários mais pre- município de Januária). Januário Cardo-
judicados pela correria dos índios do rio Pardo so, com o apoio de outros bandeirantes e
e, por isso, tratou de organizar uma expedição
legal com provisões do vice-rei e partiu à frente aventureiros, planeja o ataque a essas
de seu corpo de armas, protestando debelar os duas aldeias, tendo sido confiada a Ma-
selvagens e dar sossego ao país. (...) Enchendo- noel Pires Maciel, fugitivo das justiças do
se de terror, os selvagens fugiram em debanda norte, a responsabilidade de destruí-las.
para as matas do Jequitinhonha e dali se desta-
Também é citada por esse autor a existên-
caram os aimorés, que se espalharam pela serra
do mar e plagas do rio Doce.7 (Vasconcelos, cia, nessa região, de tribos denominadas
1948, p. 54-55) “mansuetas”. Segundo Santos (1997, p.
220), um dos significados da palavra
“mansueto” (latim mansuetus) é “domes-
Posteriormente, Figueira ocupa territó- ticado”, podendo se tratar, na verdade, de
rio na Serra de Jaíba, no Rio Verde e Go- grupos “mansos” que tenham tido um
rotuba, fundando ainda, na região do São maior contato com os colonizadores do
Francisco, as fazendas Itaí, Olhos d’água que os demais.
e Montes Claros. (Vasconcelos, 1948, p. 55)
Após a morte de Matias Cardoso de As aldeias mansuetas já se achavam converti-
Almeida, seu filho assume a chefia de sua das sem grande esforço, e com a boa vontade dos
poderosa família, herdando também a íncolas, que viram nos senhores o poder de con-
servá-los em paz e segurança. O mesmo, po-
incumbência de continuar o projeto “co- rém, não se conseguiu, do gentio caiapó, que
lonizador” dessa região. Fixou o posto de mais sobressaltava em pontos culminantes a li-
comando em Morrinhos (núcleo perten- vre navegação do rio. (Santos, 1977, p. 220)
cente ao município de Matias Cardoso).
A aldeia dos Guaíbas, localizada em
(...) Convém recordar que o antigo arraial de uma ilha, foi atacada de forma estratégi-
Matias Cardoso já estava em decadência e em ca, massacrando-se os seus habitantes. Na
má posição, sujeito às enchentes. Procurou margem ocidental desse local, foi funda-
transferir a sede para um sítio a pouca distân-
do um arraial denominado Santo Antô-
cia mas, verificando que este também ficava em
má posição em relação ao rio, resolveu construir nio da Manga, posteriormente São Ro-
o seu próprio arraial na encosta de três colinas mão. Algum tempo depois, atacaram a
(...). ( Braz, 1977, p. 45) aldeia de Tapiraçaba, ateando fogo nas
ocaras,9 assassinando o cacique e inúme-
Segundo Vasconcelos (1948, p. 39), os ras pessoas. Alguns indígenas consegui-
melhores trechos do rio São Francisco ain- ram fugir para as serras, canyons e abrigos
da estavam, naquela ocasião, ocupados rochosos da região, locais estratégicos de

7 Naquela época, a região leste da capitania foi considerada “área proibida” (contígua à área de minera-
ção, visando a conter o contrabando) pela coroa portuguesa. Muitos grupos indígenas fugiram para es-
sas matas ainda pouco invadidas pelos colonizadores.
8 Vasconcelos (1948, p. 39) cita também a existência de grupos goiá, que ele denominou de “boa raça” e
“benévola” nas regiões adjacentes ao rio das Velhas.
9 Segundo Vasconcelos (1948, p. 46), ocara era a designação das moradias dos índios daquela aldeia; ocara-
ocara era a residência do cacique: “casa das casas ou casa grande”.

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ASPECTOS DO PROCESSO DE CONTATO ENTRE COLONIZADORES E GRUPOS INDÍGENAS NO ...

defesa em períodos de confronto étnico e sobressai a Missão de São João dos Índios. (San-
resistência, visando sobretudo à sua so- tos, 1997, p. 23)
brevivência física. Para Januário e seus ho-
Em 1728, Januário Cardoso doa terra
mens,
aos índios já aldeados, incentivando os
que ainda estivessem nas fazendas das
era preciso criar um povoado novo; mas, neste
caso, fundá-lo em sítio mais conveniente e pou- adjacências a se recolherem nesse territó-
co distante da extinta aldeia, em local menos rio. Ainda segundo Santos (1997, p. 23), o
exposto às inundações, e portanto mais salubre. ato de doação deve ser compreendido
O local escolhido foi uma légua acima, em terra como um procedimento referendador da
mais enxuta, quase no sopé da serra (...). (Vas-
concelos, 1948, p. 49)
autoridade local imposta aos índios, pro-
duto de um compromisso com o poder
Esse arraial foi denominado Nossa Se- eclesiástico. Contudo, não se sabe preci-
nhora do Amparo, posteriormente Brejo sar as etnias que ali foram agrupadas, da-
do Salgado, “derivado da qualidade da da a inexistência de registros ou fontes et-
água e pântanos que até hoje são salo- nográficas sobre esse aldeamento nos seus
bros”. (Revista do Arquivo Público Mi- primórdios.
neiro, 1906, p. 378) As fazendas abertas nessa região dedi-
Nas adjacências desse arraial foram cavam-se quase que exclusivamente à ati-
abertas outras localidades, arraiais e fazen- vidade agropastoril, engordando o gado
das, dentre os quais Pedras de Baixo, Ar- proveniente principalmente do Mara-
raial do Meio, Japoré, Retiro, Mocambo, nhão e Pernambuco, inaugurando em Mi-
Agreste, Jacaré, posteriormente Itacaram- nas o denominado ciclo do “couro”, épo-
bi,10 Capão do Cleto, Sobradinho, Tabua. ca em que Brejo do Salgado se torna um
Dada a existência de indígenas ainda importante empório, comercializando e
“ferozes” na região, o Bispo de Pernam- escoando mercadorias ao longo do São
buco enviou para Manga do Armador o Francisco. Essa região torna-se, então, um
Padre Antônio Mendes Santiago, prova- entreposto oficial de ligação não só entre
velmente para fundar a Missão do Sr. São os distritos mineradores e o nordeste, mas
João do Riacho do Itacarambi (Santos, também com as minas de Goiás, através
1997, p. 23). Posteriormente, essa missão da região do Urucuia e Paracatu.
ficou conhecida como São João das Mis- Com a morte do Cel. Januário Cardo-
sões. so, dá-se a partilha do poder, fragilizando
a unidade e hegemonia política da famí-
De fato, em contraste com o que ocorreu ao lon- lia Cardoso. Os grandes proprietários do
go do sub-médio e baixo São Francisco, não há
norte tornaram-se régulos autônomos e
registros de que ordens religiosas tenham atua-
do no alto-médio curso deste rio. Região fron- só se uniam em ocasiões repentinas, cada
teiriça das capitanias do norte com a recém-cria- qual sempre bem armado com seus res-
da Capitania de Minas e São Paulo, provavel- pectivos séquitos. Até então, do ponto de
mente não teria sido atingida pelo movimento vista tributário, a máquina administrati-
de expansão das Ordens devido à sua longín-
qua localização, relativamente aos centros pro-
va limitava-se às áreas em que os interes-
pulsores do norte e sul. Daí a significativa au- ses metropolitanos eram essenciais para
sência de missões de índios na região, em que proporcionar uma acumulação de capitais

10 Itá-carambuí: pedra redondinha ou miúda, pedra ou penedo curto. (Costa, 1997, p. 236)

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nos padrões mercantilistas. povoamento de diversas regiões, ainda incultas.


No início da terceira década do século (Revista do Arquivo Público Mineiro,
1906, p. 398)
XVIII, o governador Antônio de Albu-
querque determinou que se cobrasse o Contudo, segundo afirma Braz (1977),
quinto por bateias na razão de 10 oitavas essa descoberta atraiu inúmeros aventu-
cada uma, adotando-se a cobrança por reiros da região do Brejo do Amparo, co-
ajuste. Essa medida deflagrou o descon- laborando para o colapso dos florescen-
tentamento dos fazendeiros do norte, que tes Arraiais Morrinhos e Pedra de Baixo
se organizaram, planejando uma revolta (Pedras de Maria da Cruz).
que ficou conhecida como Sedição de 1736
ou Motim do São Francisco.11 Os princi- Aos males da guerra vieram juntar-se os da peste
pais líderes desse movimento, Dona Ma- e da fome e, não bastassem tantas calamidades,
ainda o São Franciso, na estação chuvosa de
ria da Cruz, Pedro Cardoso, Domingos do
1736/37 despencou-se das nascentes com uma
Prado e o Padre Antônio Mendes Santia- das mais pavorosas enchentes de sua história.
go, tinham como objetivo impedir a co- As lavouras foram inundadas e destruídas, en-
brança dos impostos atrasados. O movi- quanto morria a criação em quantidades colos-
mento dominou posteriormente toda a sais, já que as grandes fazendas se achavam pra-
ticamente abandonadas e com seus proprietári-
área do norte de Minas, a sede da comar- os perseguidos pelos dragões da Metrópole.
ca, Sabarabuçu, conquistando a partir daí (Braz, 1977, p. 63)
toda a Geraes, inclusive com a tomada de
Vila Rica, depondo o governador interi- Após a decadência do ciclo aurífero, as
no, Martinho de Mendonça de Pina e Pro- fazendas existentes continuam, algumas
ença. (c.f. Anastasia, 1983) de forma incipiente, a praticar atividades
Houve, certamente, participação das agropastoris, plantação de subsistência,
camadas baixas nesse movimento, prin- com pequenas lavouras, além da cana-de-
cipalmente de negros forros, mulatos e ín- açúcar, produzindo também rapadura e
dios, que compunham uma tropa deno- aguardentes. No fim do século XIX,
minada “exército libertador”. Essa parti-
(...) com a instalação da fábrica de tecidos Cedro
cipação apresentou um caráter banditis-
e Cachoeira, em Paraopeba, o sertão sanfrancis-
ta, desfigurando a proposta inicial da sedi- cano experimentaria um crescimento na produ-
ção. A falta de liderança e de coesão ideo- ção de algodão, tornando-se o principal forne-
lógica entre as classes participantes foi fa- cedor de matéria-prima à nascente indústria
tor determinante do fracasso desse mo- têxtil do Estado; teria também início, no final
do século XIX, o boom da borracha, transfor-
tim, dentre outros motivos. mando a extração do látex da maniçoba e da
Nessa época, José Rodrigues Fróes des- mangabeira, nativas na região, em uma impor-
cobre minas de ouro em Paracatu (que ain- tante atividade econômica da área, mesmo que
da pertencia à Capitania de Pernambuco). por um curto período de tempo. (Santos, 1997,
p. 33)
(...) Durante o governo de Bobadella as desco-
bertas das minas de Paracatu gosam de extraor- Segundo moradores locais, na região
dinária influência, ateia-se mais ao progresso do Peruaçu, das Peuras e do riacho Mo-
de S. Francisco e em geral, do alto sertão pelo cambo era mais explorado o látex da ma-

11 Houve outros motins promovidos por André Gonçalves Figueira e Matias Cardoso de Oliveira (irmão
de Domingos do Prado) no sertão do São Francisco, em Montes Claros e no Urucuia.

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ASPECTOS DO PROCESSO DE CONTATO ENTRE COLONIZADORES E GRUPOS INDÍGENAS NO ...

niçoba do que o da mangueira.


Essa atividade teve uma gran-
de importância no início do sé-
culo. Com os desmatamentos
ocorridos a partir de então, e a
falta de mercado, os maniçobei-
ros passam a se dedicar a ou-
tras atividades agrícolas.
Richard Burton, explorador
e orientalista britânico, percor-
reu o rio São Francisco a partir
de 1867, tendo visitado as pa-
ragens do Brejo do Salgado,
então denominada Vila de Ja-
nuária (c.f. Fig. 1). Em seu rela-
to, descreve a constituição ad-
ministrativa da localidade:

O município é grande, e abrange


grande extensão de terras incultas,
conta com cinco distritos, a saber:
o da cidade e os de Brejo, Mocam-
bo, Morrinhos, São João da Mis-
são e Japoré, o último distante cer-
ca de 20 léguas da sede.

Segundo Burton, grande


parte das terras do Mocambo,
que se chamava originariamen-
te Nossa Senhora do Rosário do
Mocambo, não tinha dono, e
sua admirável fertilidade acon- Figura 1
selhava a colonização. (Santos,
1997, p. 208-216) Um importante documento sobre a
Nesse mesmo relato, Burton descreve história da região foi elaborado pelo Cô-
a região do Mocambo: nego Maurício Gaspar em 1912. Trata-se
do relato sobre a sua visita pastoral na re-
O mau tempo nos levou a partir às cinco horas gião de Januária e do Carinhanha, onde
da manhã. Depois de passarmos por alguns lu-
foram descritas as paisagens e áreas culti-
gares sem interesse, vimo-nos paralelamente a
Mocambo, que já foi mencionado, como um dos vadas na região do Fabião e do Mocam-
distritos de Januária. Para lá do arraial, eleva- bo, pertencentes à Vila de Januária:
se à margem esquerda do rio o Morro do Angu
e sua comprida ilha arenosa e parcialmente cul- No dia 14 de agosto, seguimos para o pequeno
tivada; as elevações são aparentemente contra- mas pitoresco arraial de Mocambo, antiga sede
fortes da Serra do Brejo, uma montanha coberta de freguesia. São oito léguas de viagem. Porém
de arbustos, com paredes escarpadas de pedra o caminho é bastante divertido, podendo viajar-
calcária cinzenta e manchada de vermelho. (San- se a fresco na floresta, sem receio dos raios abra-
tos, 1997, p. 219) sadores do sol tropical.

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Alenice Motta Baeta

Antes de atingir a povoaçãosinha de Fabião, atra- propriedade do Cel. Otávio de Brito,


vessamos no caminho a linha telegráfica de Ja- oriundo de Morrinhos. Segundo informa-
nuária a Carinhanha. A estrada é boa, bem con-
servada, devido ao trânsito dos fazendeiros ções obtidas no Cartório do 1º e 2º Ofício,
d’estas paragens, que vão levar os seos produ- boa parte dos moradores de Levinópolis
tos ao porto Jacaré. (denominação do Mocambo a partir de
Perto do arraial do Fabião, a terra acha-se des- 1926) é descendente dessa família. Outra
cortinada pelas novas plantações de algodão, ma-
fazenda importante na região do Agreste
niçoba, manaybas (mandioca) e canna. O prin-
cipal produto que pouco a pouco impõe-se à at- foi a das Pedras (também denominada
tenção dos lavradores é a maniçoba, que vae sen- Lagoa do Peixe), de propriedade do Ma-
do cultivada em grande escala. Assim, perto de jor Benedito de Souza Brito. Na região do
Jacaré, na margem direita do rio, conhecemos Fabião, destacou-se no início deste século
um fazendeiro, o Sr. Salathiel Ferreira de Sou-
za, que possue uma plantação de 55 mil pés de
a grande propriedade do Sr. João Alkmim,
maniçoba. No Fabião, atravessamos o rio citada no relato do Cônego Gaspar. (Gas-
Perú-Assú e ali descançamos na fazenda do par apud Senna, 1912)
Sr. João Alkimim. O proprietário mais poderoso e conhe-
A medida que nos aproximamos de Mocambo, a cido dessas paragens no fim do século XIX
paisagem vae se tornando mais e mais pitores-
ca. Montanhas de rochedo calcáreos, de aspec- e início do século XX foi o Cel. Henrique
tos fantásticos, formam um valle bastante alar- Gonçalves Lima, o “Coronel Ioiô”.12 Nas-
gado e próprio para a cultura em grande escala ceu em Estiva, pertencente a Januária,
de canna de assucar. provavelmente em 1845, segundo seus
Numa extensão de duas léguas, o olhar do via-
familiares. Inicialmente proprietário de
jante descança sobre vastíssimas plantações de
canna. Assessaram no distrito de Mocambo, algumas glebas de terra, chegou a possuir
existem 34 engenhos de canna, justificando por 12.000 alqueires, incluindo os domínios da
isso mesmo juiso que estávamos fazendo do pro- Fazenda Pitanga (mais conhecida como
gresso do distrito. O assucar de Mocambo é de Fazenda Terra Brava), porções das locali-
qualidade superior. (...) (Gaspar apud Senna,
1912, p. 486. O grifo é meu) dades denominadas Boqueirão, Fabião
(também denominada Galheirão), Var-
Por informações orais, além de estudos gem Grande e Rio do Peixe, além do local
sobre a toponímia local, sabe-se que a ori- onde se situa o canyon principal do rio
gem da localidade Mocambo pode estar Peruaçu, denominado Lapa do Janelão.
vinculada à existência de um quilombo Sua terceira esposa, Clotilde Martins Ál-
(“esconderijo” de escravos). Moradores varo, Dona “Coló”, contou que o Janelão
mais antigos afirmam que havia, até pou- já era conhecido naquela época por esse
co tempo, famílias descendentes de escra- mesmo nome. Em sua imensa proprieda-
vos fugidos no Agreste, localidade que faz de, eram cultivados feijão, arroz, milho,
parte do atual distrito Mocambo, atual- cana, além de pastos para boi de corte.
mente atravessada pela rodovia que in- Muitas vezes, parte da terra era arrenda-
terliga Januária a Itacarambi. da para plantio de manaíbas, algodão e
Uma das fazendas mais antigas do milho. Há também indícios de que hou-
Mocambo parece ser a Santo Antônio, ve, em determinada época, exploração de

12 Segundo seus familiares, o Coronel Ioiô, falecido aos 116 anos, casou-se oficialmente três vezes, tendo
tido inúmeros filhos. A fragmentação da herança após a sua morte fez com que a propriedade original
fosse em parte vendida para terceiros. Filhos e netos oriundos do terceiro casamento ainda possuem
glebas de terra na região do Boqueirão (margem direita do rio Peruaçu).

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ASPECTOS DO PROCESSO DE CONTATO ENTRE COLONIZADORES E GRUPOS INDÍGENAS NO ...

salitre nas grutas calcárias, matéria-prima O Cel. Henrique Lima também possuía
na produção de pólvora. O sítio arqueo- uma antiga sede de fazenda no “Boquei-
lógico Lapa do Rezar, por exemplo, apre- rão”, que se situa na drenagem afluente
senta antigos vestígios dessa atividade. da margem direita do rio Peruaçu, próxi-
Ainda segundo Dona Coló, o Cel. Hen- mo do atual caminho para o canyon Jane-
rique, que pertenceu à Guarda Nacional lão. Há alguns anos, essa sede foi destru-
de D. Pedro II, conseguiu em parte reunir ída. É bem provável que seus vestígios
tantas propriedades devido ao seu primei- ainda possam ser identificados.
ro casamento, quando recebeu de seu so- Velhos moradores da região relatam
gro Marcelino Ferreira Lopes um dote que caboclos e antigos escravos eram vis-
1.600 escravos, “que ele alforriou imedia- tos, na época dessas fazendas, passando
tamente”, fundando também as Fazendas pelas matas e brenhas do Peruaçu. Dona
da Moita e Riacho da Cruz.13 Coló afirma que, “antigamente, havia
Possuía uma residência (que até hoje muitos Xacriabás morenos andando pe-
existe) na área urbana de Levinópolis, pró- las locas de pedra”.
ximo da atual matriz, onde também po- Até hoje, é possível identificar abrigos
dem ser observados testemunhos de ali- rochosos que vêm sendo ou foram ocu-
cerces de rocha calcária e lajotas do piso pados há bem pouco tempo por famílias
interno da capela primitiva desse lugare- ou pessoas da região, denominadas “ca-
jo, datada do século XVIII.14 Essa ruína foi boclas” ou “bugres” pela população local.
citada pelo Cônego Maurício Gaspar em Esse tipo de sítio merece a devida aten-
sua visita ao arraial do Mocambo no iní- ção, bem como todos os lugares de inte-
cio deste século resse histórico aparentemente abandona-
dos, onde, no passado, foram erguidas
A igreja actual de Mocambo data de 1851. Po- antigas taperas, cemitérios, muros de pe-
rém, antes desta existia outra egrejinha, que dra, sedes antigas de fazendas, dentre
cahio em ruínas, a poucos metros adeante da
matriz de hoje. Vêem-se perfeitamente os vestí- outros tipos de estruturas e vestígios.
gios do primeiro templo daquela região. (Gas-
par, apud Senna, 1912, p. 482)

13 James Wells, viajante de origem alemã que, em 1875, percorreu paragens no rio São Francisco, narra em
sua obra Três mil milhas através do Brasil uma visita à Fazenda do Mocambo, onde é acolhido por um
proprietário chamado Marcelino. Levanta-se, nesta pesquisa, a possibilidade de se tratar do mesmo Sr.
Marcelino Ferreira Lopes, primeiro sogro do Cel. Henrique Lima: “Nosso bondoso anfitrião era um se-
nhor Marcelino, sinto ter esquecido o resto do seu nome (...) contou-nos em uma conversa que sua fa-
mília tinha ocupado terras em Januária e nas cercanias, durante muitas gerações, e tinham sido agricul-
tores nos bons tempos coloniais da mineração, quando a produção agrícola era escassa e muito valiosa”.
(Wells, 1995, p. 12)
14 Segundo moradores do local, é comum encontrar ossos humanos nas adjacências da área externa da
atual matriz. Possivelmente, trata-se de testemunhos do primeiro cemitério do arraial do Mocambo.

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Alenice Motta Baeta

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TERRITÓRIOS INDÍGENAS: MATERIAIS, EXISTENCIAIS

TERRITÓRIOS INDÍGENAS:
MATERIAIS, EXISTENCIAIS*

Rinaldo Arruda**

RESUMO
Este artigo pretende estabelecer uma visão panorâmica do universo
de sociedades e terras indígenas no Brasil para, em seguida, abordar
alguns aspectos da questão da terra indicativos de obstáculos a serem
superados e, finalmente, tecer algumas considerações visando à com-
preensão de desafios para o próximo milênio.
Palavras-chave: Política integracionista; Ecodesenvolvimento; Etno-
desenvolvimento; Autogestão.

À minha volta cada qual estava entregue às suas próprias ocupações, num concerto aprazí-
vel de tarefas que eram as de uma vida submetida aos ritmos primordiais. Aqueles índios
que eu sempre vira através de relatos mais ou menos fantasiosos, considerando-os como
seres situados à margem da existência real do homem, me pareciam, em seu espaço, em seu
meio, absolutamente donos de sua cultura. Nada era “selvagem”. A evidência de que desco-
nheciam coisas que para mim eram essenciais e necessárias estava muito longe de vesti-los
de primitivismo. A precisão soberana com que este flechava peixes no remanso, a presteza de
coreógrafo com que o outro embocava a zarabatana, a técnica harmônica daquele grupo que
ia recobrindo de fibras o madeirame de uma casa comum, revelavam-me a presença de um
ser humano mestre na totalidade de ofícios propiciados pelo teatro de sua existência. (Alejo
Carpentier, em Os passos perdidos)

R
ecentemente participei de um pro- lidade trazida tanto pelo ascenso dos mo-
grama de debates na TV Senac, or- vimentos indígenas e étnicos, como pelo
ganizado em torno de dois temas uso de sua imagem como exemplo ambi-
aparentemente disparatados: um era o da entalista; e o outro era o andamento das
“Redescoberta do índio”, sua nova visibi- negociações internacionais em torno da

* Este artigo foi escrito com base em duas palestras proferidas em eventos relativos aos 500 anos da chega-
da dos europeus no Brasil. A primeira palestra foi “Aspectos da História Indígena no Brasil”, proferida
em 17/5/99 no Seminário “500 anos – Reflexões sobre a História Indígena”, na PUC Minas, em Belo Ho-
rizonte. A segunda foi a “Questão da Terra e Desafio Indígena Hoje”, proferida em 25/8/99 no Seminário
“Brasil – 500 anos: Desafios para o próximo milênio”, promovido na PUC-SP, entre 24 e 26 de agosto de
1999.
** Professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências So-

ciais da PUC-SP.

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57
Rinaldo Arruda

elaboração de uma legislação para definir os de antanho, os índios, entretanto, eram


os direitos de posse e uso da Lua. ainda pagãos, devendo qualificar-se para
A conjunção dos temas me espantou ascender à humanidade plena pela acei-
pela evidência repentina da persistência tação do Verbo divino e, claro, dos pode-
dessa abordagem que define o universo res terrenos que definiam a vontade de
como uma infinidade de “coisas” e pela Deus e a colocavam a serviço dos interes-
continuidade de um contexto de poder es- ses coloniais. À resistência respondia-se
truturalmente (ou arquetipicamente) si- com a “guerra justa” e o genocídio, à su-
milar para a definição de direitos de uso e jeição se instaurava o etnocídio como sis-
posse dessas coisas. Malgrado todas as di- tema de “integração” à civilização. Com
ferenças, 500 anos atrás definiam-se, atra- variações apenas de superfície, o esque-
vés do Tratado de Tordesilhas, os direitos ma continuou o mesmo ao longo dos sécu-
de posse e uso de territórios ainda desco- los. Se a humanidade indígena, tida como
nhecidos, mas, por princípio, terras sem inferior, não se definia mais pelo paganis-
donos e sem direitos até que estabeleci- mo, passou a definir-se pelo “atraso”, pelo
dos pelos poderosos de momento, numa “primitivismo”, pela “selvageria” e por ad-
divisão conflituosa entre os maiores den- jetivos que se alternaram ao sabor das mo-
tre eles. das intelectuais do Ocidente, sem que
Há 500 anos, segundo estimativas dos nunca fosse atribuído o estatuto de huma-
estudiosos do assunto, havia nas Améri- nidade plena às suas especificidades cul-
cas uma população calculada entre 80 e turais e civilizatórias.
100 milhões de pessoas, um quarto da po- É essa abordagem que ainda baliza, na
pulação mundial da época, que era de cer- prática, a questão indígena no Brasil e con-
ca de 400 milhões de habitantes (Clastres, textualiza o desafio indígena hoje.
1978; Todorov, 1999, Telles, 1984). Apesar Digo “na prática” porque houve avan-
disso, o “Novo Mundo” foi pensado e di- ços no discurso institucional e na legisla-
vidido como um território vazio. Sobre os ção, abrindo-se espaços novos para o reco-
habitantes originais, houve mesmo nos nhecimento de sua humanidade plena.
primeiros tempos de conquista acerbos Entretanto, ainda vigora um conjunto de
debates entre os teólogos europeus, os in- fatores que impede o reconhecimento de
telectuais da época, para que se decidisse seus direitos coletivos como sociedades di-
se os índios tinham “alma” ou não. Se ferenciadas, conforme veremos mais adi-
eram humanos ou animais, se deviam ser ante.
mortos e sujeitados ou catequizados e “sal-
vos”. A Lua, nesse aspecto, é diferente: até
onde sabemos, não há habitantes, por ora SOCIEDADES E TERRAS
os “lunáticos” estão apenas aqui mesmo. INDÍGENAS NO BRASIL
Mas a abordagem é a mesma: o universo
é nosso para fazer o que bem entender- As estimativas sobre população indíge-
mos e somos também nós que decidimos na no Brasil na época da conquista osci-
sobre o estatuto humano dos “outros”, de- lam entre dois a oito milhões de habitan-
finindo o alcance de seus direitos e seu tes (Monteiro, 1992), correspondentes a
lugar na “sociedade civilizada”. cerca de mil etnias diferenciadas. Hoje a
Aceitos na espécie humana pelos sábi- imprecisão sobre o total da população in-

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TERRITÓRIOS INDÍGENAS: MATERIAIS, EXISTENCIAIS

dígena brasileira permanece: os dados de- Amazônia; não inclui tampouco vários
mográficos existentes originam-se de le- grupos de contato mais recente nem gru-
vantamentos diretos mas pouco freqüen- pos indígenas emergentes, dos quais se
tes ou, mais comumente, de estimativas desconhece a população total.
ocasionais realizadas por funcionários da De qualquer forma, tremenda dispari-
Funai (Fundação Nacional do Índio), mis- dade entre o montante populacional do
sionários, antropólogos e indigenistas nas momento de ocupação européia da Amé-
áreas indígenas em que trabalham. É essa rica e a atualidade, promovida ao longo
a qualidade dos dados – fragmentados, ir- do processo histórico de ocupação do con-
regulares e, muitas vezes, desatualizados tinente através da disseminação de epi-
– que têm servido para as estimativas so- demias, apropriação de territórios e sub-
bre a população indígena atual no Brasil. missão genocida e etnocida das popula-
A listagem de povos e terras indígenas no ções originais,2 alimentou até a década de
Brasil fornecida pela Funai (de 25/08/98) 1970 a crença no desaparecimento irresis-
apresenta uma população total de 318.233 tível desses povos.
(trezentos e dezoito mil e duzentos e trin- Entretanto, os povos indígenas que so-
ta e três) índios no Brasil. O Cimi (Conse- breviveram ao genocídio iniciado com a
lho Indigenista Missionário) estima a po- invasão européia na América, e mesmo os
pulação indígena em 325.652 índios (tre- povos de contato mais recente que supe-
zentos e vinte e cinco mil e seiscentos e raram os choques dos primeiros anos de
cinqüenta e dois), baseado em informa- envolvimento com o “mundo do branco”,
ção da própria Funai, de 1997, e a Coiab têm apresentado nas últimas décadas um
(Confederação das Organizações Indíge- crescimento a taxas maiores do que as da
nas da Amazônia Brasileira) os estima em população brasileira (Gomes, 1988; Mon-
334.000 (trezentos e trinta e quatro mil). teiro, 1992; Ricardo, 1995), perfazendo no
Por sua vez, o levantamento do Instituto geral uma curva demográfica ascenden-
Socioambiental (1995, com revisões par- te. Por outro lado, povos tidos como ex-
ciais até 1998), o único que apresenta as tintos reaparecem, como os Arara do rio
fontes e datas dos levantamentos parciais Ji-Paraná em Rondônia na década de 70
nos quais se baseia, estima a população ou os vários grupos indígenas emergen-
indígena brasileira em cerca de 280.000 tes de Estados do Nordeste e de Minas Ge-
(duzentos e oitenta mil) índios. Esses nú- rais, “redescobertos” nas últimas décadas,
meros não incluem os cerca de 30 mil ín- abandonando o disfarce caboclo e assu-
dios desaldeados que vivem em cidades,1 mindo sua face indígena, sempre que con-
nem os cerca de 53 grupos indígenas ain- dições mais favoráveis se configuram. Dé-
da isolados dos quais se têm indícios na cadas (às vezes séculos, como foi o caso

1 Um levantamento do IBGE realizado em 1995 estimou a existência de cerca de 30 mil índios desaldea-
dos, vivendo nas cidades e periferias da capital. Mas esse levantamento também é muito impreciso: não
discrimina as etnias presentes e não apresenta metodologia adequada para abarcar a totalidade do uni-
verso pesquisado. Da mesma forma, os dados do Censo demográfico do IBGE sobre as populações indí-
genas localizadas nas “Áreas Especiais”, coletados em 1991, são apresentados como estimativas relaciona-
das às terras indígenas, mas sem a discriminação de etnias, mostrando-se também inadequados para
uma quantificação precisa da população indígena. Ver Anuário Estatístico do Brasil, IBGE, 1992, págs.
176-178.
2 De acordo com Todorov (1999), no século XVI foram exterminados 70 milhões da população pré-con-
quista. Ver também Ribeiro (1977) sobre o destino das populações indígenas no Brasil.

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Rinaldo Arruda

dos Guarani e muitos outros) de proseli- têm registros esparsos. A língua indígena
tismo religioso e outras pressões de cunho mais conhecida dos brasileiros e a que
material e ideológico deixam suas marcas, mais palavras teve incorporadas na língua
mas não chegaram a anular a especifici- portuguesa foi o Tupinambá, idioma usa-
dade histórica e sociocultural de povos ti- do extensamente nos séculos XVI e XVII
dos até então como “deculturados”, víti- nos contatos entre portugueses e índios e
mas irreversíveis de um etnocídio que se que hoje nomeia um sem-número de lu-
pensava absoluto. gares, acidentes geográficos, até em regiõ-
Os atuais cerca de 300 mil índios cor- es onde nunca viveram os Tupinambás.
respondem a apenas 0,2% da população De uma amostra de 1000 nomes popula-
brasileira, porém representam uma enor- res de aves brasileiras, 350 são nomes Tu-
me sociodiversidade. São 206 povos indí- pinambá e, de uma amostra de 500 no-
genas com cerca de 180 línguas e socieda- mes populares de peixes, cerca de meta-
des diferenciadas, vivendo em milhares de são da mesma origem.
de aldeias espalhadas de norte a sul do A diversidade lingüística atual dos po-
país, presentes em todos os Estados, com vos indígenas do Brasil constitui quase 3%
exceção do Rio Grande do Norte e Piauí. das 6.000 línguas existentes no planeta. As
De acordo com o levantamento do Insti- línguas indígenas diferem entre si, das lín-
tuto Socioambiental (1995), a maioria des- guas européias e demais línguas do mun-
ses povos é formada por microssocieda- do no conjunto de sons utilizados e nas
des: 73% têm uma população de até 1.000 suas regras de combinação, isto é, na sua
indivíduos (71 têm uma população de até fonética e fonologia. Distinguem-se tam-
200 pessoas). Há 40 com população entre bém na morfologia, na sintaxe e “na ma-
201 e 500 indivíduos e 27 povos entre 501 neira como refletem em seu vocabulário
e 1.000). Há 44 povos na faixa de 1.000 a e em suas categorias gramaticais um re-
5.000 índios; quatro povos somam entre corte do mundo real e imaginário (semân-
5.000 e 10.000 (Sateré-Mawé, Potiguara, tica)” (Rodrigues, 1986). Isto é, elas repre-
Xavante e Yanomami); quatro povos so- sentam a experiência e o conhecimento de
mam entre 10.000 e 20.000 (Guajajara, mundo acumulados por povos específi-
Kaingang, Terena e Makuxi); e dois po- cos, corporificados em culturas e fluxos ci-
vos têm população entre 20.000 a 30.000 vilizatórios particulares.
pessoas (Ticuna e Guarani). Do total da
população indígena brasileira, 60% vivem
na região da Amazônia legal. A SITUAÇÃO JURÍDICA DAS
As projeções realizadas pelo lingüista TERRAS INDÍGENAS
Aryon Dall’Igna Rodrigues (1986), um dos
maiores estudiosos das línguas indígenas Os dados atuais (Isa/Funai/Cimi) indi-
do Brasil, indicam que na época da che- cam um total de 100.503.327 ha. (cem mi-
gada dos primeiros europeus no Brasil, o lhões, quinhentos e três mil e trezentos e
número das línguas indígenas era de cer- vinte e sete ha., pouco mais de um mi-
ca de 1.300, o que significa que já houve lhão de km2) correspondentes a 11,80%
uma perda de cerca de 85% delas até hoje. das terras do país reservadas aos povos
Muitas delas foram bem documentadas indígenas. Com relação à sua extensão,
antes de desaparecerem e de outras só se cerca de 98,75 % das terras indígenas do

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TERRITÓRIOS INDÍGENAS: MATERIAIS, EXISTENCIAIS

Brasil localizam-se na Amazônia legal, em posição de outros interesses mais priori-


regiões de ocupação brasileira mais recen- tários para o Estado e a sociedade brasi-
te, onde se registram os menores índices leira, cuja política global em relação aos
de ocupação de terra por imóveis rurais: povos indígenas se orientava pelo objeti-
são 372 áreas, com 99.256.011 ha. de ex- vo de integração por assimilação à socie-
tensão. O restante, 1,25%, espalha-se ao dade envolvente e conseqüente dissolu-
longo do território nacional. A tabela a se- ção das especificidades culturais. De fato,
guir sumariza a situação jurídica atual as condições práticas para o reconheci-
(maio/1999) dessas terras. mento total das terras indígenas nunca
existiram, já que os planos de desenvolvi-
Situação jurídica das áreas mento do governo federal e dos poderes
indígenas no Brasil regionais sempre se sobrepuseram aos in-
teresses e direitos indígenas. Da mesma
Situação Quantidade
forma, a iniciativa privada sempre encon-
A identificar 138 trou canais de pressão e influência sufici-
Identificadas 59 entes que permitiram ignorar esses direi-
Delimitada 69 tos.
Reservadas 12 Nos últimos anos, a crescente visibili-
Homologadas 72 dade dos movimentos étnicos e das mi-
Registradas 215 norias, as crescentes críticas às concepções
Total 565 e políticas integracionistas, principalmen-
te dos povos indígenas que consolidaram
250 suas próprias organizações, no plano na-
cional e internacional, criaram um contex-
200 to sociopolítico diverso, engendrando al-
terações na letra dessa política. No plano
150
internacional foi feita uma revisão do
100
Convênio 107 sobre populações indígenas
e tribais, aprovado pela Conferência In-
50 ternacional do Trabalho – OIT, realizada
em Genebra em 1957, cujos conceitos bási-
0
cos eram ainda fortemente assimilacionis-
A IDENTIFICAR

IDENTIFICADAS

DELIMITADA

RESERVADAS

HOMOLOGADAS

REGISTRADAS

tas, inspirando e legitimando legislações


e políticas integracionistas entre os países
signatários (entre eles o Brasil) que, arti-
culadas a projetos de desenvolvimento
QUANTIDADE
nacionais e regionais, colocaram em últi-
mo plano os direitos e interesses das po-
pulações que se propunham a defender.
Se nos lembrarmos que, embora sob es- Em 1989 a Conferência Internacional
tatuto legal e orientações diversas, a de- da OIT concluiu uma discussão de três
marcação das terras indígenas é uma meta anos, com a participação de inúmeros re-
institucional pelo menos desde a funda- presentantes de organizações indígenas e
ção do SPI em 1910, fica evidente a sobre- governamentais, aprovando o Convênio

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61
Rinaldo Arruda

169 sobre Povos Indígenas e Tribais, que ternacionais, o Convênio 169 procura de-
representou um enorme avanço no reco- finir com um certo detalhe, além dos di-
nhecimento desses povos como sujeitos reitos dos povos indígenas, os deveres e
coletivos, com identidade étnica específi- as responsabilidades dos Estados na sua
ca e direitos históricos imprescritíveis. salvaguarda. O Estado tem o dever de de-
No artigo 1º, o Convênio adota o ter- sencadear medidas especiais para salva-
mo povos em vez de populações, formali- guardar as pessoas, instituições, bens, o
zando o reconhecimento de sua identida- trabalho, as culturas e o meio ambiente
de étnica e histórica. No artigo 6º define desses povos. Mas tais medidas jamais de-
como um dever do Estado a consulta pré- verão ser contrárias aos desejos expressos
via aos povos interessados, de boa fé e livremente por eles e muito menos atin-
maneira apropriada e, em particular, atra- gir seus direitos de cidadania e os direitos
vés de suas instituições representativas, específicos como povos.
sempre que se prevejam medidas legisla- A merecida revisão das normas inter-
tivas ou administrativas capazes de afetá- nacionais sobre os povos indígenas coin-
los diretamente. No artigo 7º afirma o di- cidiu com o processo de revisão da legis-
reito dos povos interessados de decidir lação constitucional brasileira que, de uma
suas próprias prioridades em relação ao forma geral, adota algumas dessas preo-
processo de “desenvolvimento”, na me- cupações.
dida em que este afete suas vidas, cren- O direito a essa especificidade passou
ças, instituições, bem- estar espiritual e as a ser reconhecido pela Constituição Fede-
terras que ocupam ou utilizam de algu- ral de 1998 que, no tocante às terras indí-
ma maneira. Afirma ainda o direito de par- genas, assim se expressa:
ticipação nos processos de decisão, de for- Em seu Art. 231 reconhece “aos índios
mulação, aplicação e avaliação dos planos sua organização social, costumes, línguas,
e programas de desenvolvimento nacio- crenças e tradições e os direitos originári-
nal ou regional suscetíveis de afetá-los di- os sobre as terras que tradicionalmente
retamente. ocupam, competindo à União demarcá-
O importante é que, de uma maneira las, proteger e fazer respeitar todos os seus
global ao longo de seus 44 artigos, o novo bens”.
Convênio estabelece um enfoque que re- As terras tradicionalmente ocupadas
conhece as aspirações e o direito desses são definidas em seu § 1º:
povos a assumir o controle de suas pró-
prias instituições e formas de vida, de um § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pe-
los índios as por eles habitadas em caráter per-
desenvolvimento econômico e de um sis- manente, as utilizadas para suas atividades pro-
tema educacional concebido em seus pró- dutivas, as imprescindíveis à preservação dos
prios termos, de manter e fortalecer suas recursos ambientais necessários ao seu bem-es-
identidades particulares, suas línguas e re- tar e as necessárias à sua preservação física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradi-
ligiões, procurando eliminar a orientação
ções.
assimilacionista das normas anteriores.
Recordando a contribuição dos povos in- Os direitos indígenas sobre tais terras
dígenas e tribais à diversidade cultural, à são definidos no § 2º:
harmonia social e ecológica da humani-
dade e à cooperação e compreensão in-

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TERRITÓRIOS INDÍGENAS: MATERIAIS, EXISTENCIAIS

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos d)as necessárias à sua reprodução físi-


índios destinam-se à sua posse permanente, ca- ca e cultural.
bendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. De tal forma que o conjunto destas seja
capaz de ser considerado como a “terra
No § 4º define-se o alcance de tais di- tradicionalmente ocupada”.
reitos: Assim, pela legislação brasileira atual,
as terras indígenas são propriedade da
§ 4º As terras de que trata este artigo são inali- União, de posse coletiva dos povos que
enáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas, as ocupam, os quais detêm legalmente o
imprescritíveis.
direito a seu usufruto exclusivo, e que se
O § 6º refere-se à validade jurídica dos encontram em graus variados de reconhe-
atos de ocupação, posse, domínio e explo- cimento pelo Estado. Mas, apesar dos rei-
ração dos recursos naturais do solo de tais terados prazos legais, o Estado até hoje só
áreas, por outros que não os índios que finalizou o processo de reconhecimento
tradicionalmente a ocupam: jurídico de cerca de 40% das terras indí-
genas do Brasil.3 Algumas estão demar-
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efei- cadas e contam com registros em cartóri-
tos jurídicos, os atos que tenham por objeto a os. Outras estão em fase de reconhecimen-
ocupação, o domínio e a posse das terras a que to e há, também, áreas indígenas sem ne-
se refere este artigo, ou a exploração das rique-
zas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas
nhuma regularização. O Estado não tem
existentes, ressalvado relevante interesse público garantido também seu papel legal de pro-
da União, segundo o que dispuser lei comple- teção às áreas indígenas: a maior parte de-
mentar, não gerando a nulidade e a extinção las, mesmo as totalmente regularizadas,
direito a indenização ou a ações contra a União,
sofre invasões de garimpeiros, minerado-
salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias
derivadas da ocupação de boa fé. ras, madeireiras e posseiros; são cortadas
por estradas, ferrovias, linhas de transmis-
Conforme explicitado na Constituição, são, áreas inundadas por usinas hidrelé-
é reconhecido o direito originário do ín- tricas e outros impactos de projetos eco-
dio à terra que tradicionalmente ocupa. nômicos da iniciativa privada e projetos
A expressão “terra tradicionalmente ocu- desenvolvimentistas governamentais.
pada” é um conceito jurídico que tem sido Os preceitos constitucionais, no entan-
lido como tendo quatro situações comple- to, têm formulações de cunho geral que
mentares, que deverão ser tomadas “se- comportam vários aspectos a serem regu-
gundo seus usos, costumes e tradições”: lamentados pela legislação ordinária, para
a) as ocupadas em caráter permanen- que se tornem totalmente operacionais. A
te, tentativa de regulamentar esses preceitos
b) as utilizadas para suas atividades tem esbarrado na firme oposição da maio-
produtivas, ria dos parlamentares brasileiros e na
c) as imprescindíveis à preservação dos omissão política do poder executivo: até
recursos ambientais necessários a hoje, 11 anos depois de promulgada a no-
seu bem-estar e va Constituição Federal, tanto a Conven-

3 O Estatuto do Índio (Lei 6001) de 1967 estabeleceu o prazo máximo de cinco anos para a demarcação de
todas as terras indígenas. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu novo prazo de cinco anos, ambos
não cumpridos.

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Rinaldo Arruda

ção 169 quanto o novo Estatuto do Índio, diária das terras indígenas, criou-se em
consoante com as normas constitucionais 1996 o PPTAL – Projeto Integrado de Pro-
vigentes, esperam a aprovação do Con- teção às Terras e Populações Indígenas da
gresso Nacional. Pior ainda, um retroces- Amazônia Legal, no interior do Programa
so anticonstitucional passou a impor obs- Piloto para a Conservação das Florestas
táculos ao reconhecimento dos territórios Tropicais do Brasil, financiado pelo Ban-
indígenas pelo Estado, a partir do Decre- co Mundial e pelo Banco alemão KFW –
to 1.775 de 8/1/1996 que, com a alegação Kreditanstalt fur Wiederaufbau, com
do direito ao “contraditório”, possibilita a acompanhamento local da GTZ – Socie-
reclamação de qualquer interessado para dade Alemã de Cooperação Técnica. Tal
revisar, retroativamente, as terras indíge- projeto busca apoiar as ações de proteção
nas já consolidadas com decreto presiden- às terras brasileiras habitadas pelas popu-
cial. lações indígenas, que por imperativo le-
Nesse sentido é fundamental que o go- gal cabem ao Estado brasileiro. O projeto
verno brasileiro assuma um compromis- visa também à implantação de um proje-
so nacional e internacional de adoção de to-piloto de assistência médica, qualifica-
uma política indigenista mais consoante ção técnica de pessoal e instrumentaliza-
com os direitos dessas sociedades, expli- ção cartográfica da Funai e prevê ações de
citando essa postura, entre outras medi- apoio às formas tradicionais de aprovei-
das necessárias, através da ratificação da tamento sustentável dos recursos naturais
atual Convenção de Genebra e da apro- pelas populações indígenas.
vação do novo Estatuto do Índio. Não cabe aqui fazer uma análise do
PPTAL, mas apenas ressaltar que, formu-
lado no contexto semântico do etnodesen-
A PALAVRA E O ATO volvimento, a demarcação física e jurídi-
ca das terras indígenas seria apenas um
No contexto mundial atual, no qual se aspecto preliminar da implantação de
tornaram importantes as questões refe- uma sistemática de proteção às terras in-
rentes ao meio ambiente equilibrado, à de- dígenas, com a participação prioritária dos
fesa da biodiversidade, aos direitos das índios em todas as fases de sua implanta-
minorias e das sociedades etnicamente ção, culminando com o estabelecimento
diferenciadas, tanto o governo brasileiro de uma autogestão territorial indígena,
quanto as organizações internacionais de que preservasse não apenas o território fí-
auxílio aos países “em desenvolvimento” sico, mas também suas qualidades ambi-
adotaram certos conceitos “politicamente entais e o conjunto de relações sociais que
corretos” na formulação de seus objetivos, caracterizam cada uma das diversas socie-
entre eles o de ecodesenvolvimento (Sa- dades indígenas abrangidas por tal pro-
chs, 1986) e de etnodesenvolvimento (Sta- jeto.
venhagen, 1984) e seus projetos passaram Por um lado, embora seus resultados
a ser definidos em consonância com essa sejam restritos em relação à demanda exis-
linguagem, submetidos ao eixo prioritá- tente, o desenvolvimento do PPTAL vem
rio das políticas de conservação ambien- significando mudanças positivas na siste-
tal. mática de regularização fundiária das ter-
Assim, no tocante à regularização fun- ras indígenas e apresentando alguns re-

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TERRITÓRIOS INDÍGENAS: MATERIAIS, EXISTENCIAIS

sultados importantes: em dois anos e meio controle territorial mais autônomo por
de atuação, promoveu a identificação de parte dos índios. (Arruda, 1998)
cerca de 30 áreas indígenas e a demarca- Um avanço no interior do PPTAL foi
ção de cerca de outras 30. Sua atuação tem possibilitado pelas demarcações acompa-
melhorado a qualidade e intensidade da nhadas pela UNI-Acre (Batista, 1997) e
atuação da Funai no âmbito de sua influ- pela OPIMP, no Acre e no sul do Amazo-
ência. O projeto tem desenvolvido estu- nas, sinalizando um caminho a ser aper-
dos de boa qualidade técnica e científica, feiçoado, mas mostrando ainda a precari-
indispensáveis para o aperfeiçoamento edade das formas de participação indíge-
das ações de defesa dos direitos territori- na possibilitadas no PPTAL-Funai.
ais indígenas e de fomento de sua auto- A experiência de autodemarcação
nomia sociocultural. Tem também fomen- Waiãpi (Gallois, 1996), projeto-piloto an-
tado a participação indígena e das Ongs terior ao PPTAL, deveria ter servido de
nos procedimentos de regularização fun- modelo de referência já para as primeiras
diária. demarcações do PPTAL. Entretanto, ain-
Por outro lado, sua eficácia é prejudi- da pouco foi aproveitado dessa experiên-
cada pelos problemas congênitos do ór- cia no interior do projeto.
gão indigenista (técnicos, organizacionais, Na opinião das organizações indíge-
políticos), pela falta de vontade política do nas, além da autodemarcação Waiãpi, o
governo em contrapor-se aos lobbies regi- modelo que deveria inspirar futuras de-
onais e nacionais antiindígenas e pela con- marcações deveria ser o da autodemarca-
cepção tecnocrática impressa aos marcos ção das terras indígenas Kulina do médio
conceituais de etnodesenvolvimento e de Juruá, dos povos Madijá/Kulina (Merz,
desenvolvimento sustentável, eixos de 1997), com financiamento da entidade
formulação do projeto. A questão da par- “Pão para o Mundo”, sob o convênio n.
ticipação indígena é indicadora dessa li- 004/93, entre a Funai, a UNI-Acre e a Co-
mitação: nas primeiras demarcações rea- munidade Indígena Kulina do Médio Ju-
lizadas, a participação indígena era enten- ruá, e com o apoio das entidades Opan
dida apenas como mão-de-obra barata. Os (Operação Amazônia Nativa) e Comin
índios eram convidados a participar só (Conselho de Missão entre Índios). A de-
como picadeiros ou cozinheiros, receben- marcação foi completada em setembro de
do menos do que os trabalhadores não- 1998, depois de seis anos do início do pro-
índios. Houve casos documentados de jeto.
índios recebendo a metade do pagamen- Segundo os índios, os primeiros qua-
to dado aos picadeiros não-índios ou mes- tro anos foram de preparação: conscienti-
mo não recebendo nada pelo trabalho, já zação e desenvolvimento de uma aproxi-
que se presumia ser de seu interesse pes- mação entre a noção de território Madijá
soal e de seu povo. Essas distorções inici- e a noção de território na legislação; defi-
ais foram sendo corrigidas no desenvol- nição e conscientização das responsabili-
vimento do projeto, melhorando-se a qua- dades de cada participante (índios, Funai,
lidade da participação indígena mas, de entidades, UNI); planejamento das ativi-
qualquer forma, o padrão tem sido ainda dades de acordo com o ciclo anual de ati-
o de uma participação periférica, contri- vidades produtivas e cerimoniais indíge-
buindo pouco para a construção de um nas; capacitação dos índios para o desen-

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Rinaldo Arruda

volvimento das tarefas requeridas. Segun- do como membros fixos representantes


do os depoimentos indígenas, esse pro- das maiores organizações indígenas da
cesso todo, incluindo a demarcação pro- Amazônia Legal,4 do Ministério do Meio
priamente dita, promoveu um grande sal- Ambiente, da Diretoria de Assuntos Fun-
to de conscientização e aprendizado téc- diários da Funai, do Departamento de Pa-
nico e político. Promoveu um conheci- trimônio Indígena da Funai, do Ministé-
mento e valorização de todo o território rio da Justiça, da Secretaria Técnica do
Kulina, um senso de responsabilidade e PPTAL e de um consultor da GTZ/KFW
co-participação inclusive das mulheres (Cooperação técnica alemã). Essa comis-
que, na ausência dos homens, assumiram são reúne-se a cada seis meses em regiões
novas tarefas e sustentaram a casa. Pro- diversas da Amazônia legal e incorpora
moveu grande intercâmbio transcultural em suas reuniões representantes de orga-
entre os índios e a dignificação dos Kuli- nizações locais, indígenas, Ongs e gover-
na, anteriormente com auto-imagem mui- namentais, com o objetivo de analisar os
to negativa. problemas regionais e direcionar as ações
Em sua perspectiva, mostraram-se ca- do PPTAL. Essa inovação representa um
pazes e responsáveis na realização de um avanço no plano do diálogo e do trabalho
trabalho para o qual sempre foram julga- conjunto com os povos indígenas e mos-
dos incompetentes e o fizeram melhor do trou alguns resultados práticos para cor-
que o realizado por administração direta reções de percurso do PPTAL e para a ade-
da Funai, através de empresas contrata- quação construtiva das atividades do pro-
das. Comparam a demarcação Kulina fei- jeto aos contextos microrregionais.
ta por eles – cerca de 360 mil ha de linha Entretanto, um problema fundamen-
seca – com a demarcação das dez áreas tal se mantém: a participação indígena só
do médio Purus feita por empresas – cer- se dá num espaço predefinido pelo pro-
ca de 303 mil ha de linha seca –, ressaltan- jeto, de cuja elaboração os índios não par-
do a melhor qualidade técnica e os resul- ticiparam e a cujo formato, que estabele-
tados sociopolíticos superiores do proces- ce em detalhes todos os seus objetivos,
so de demarcação que levaram a efeito. metodologia, rotinas financeiras, contá-
No geral, todas as organizações indí- beis, avaliativas e os limites de suas ações,
genas consultadas consideraram muito devem adequar-se. Dessa forma, sem o
precárias as condições acordadas para sua domínio da “máquina projeto”, ainda que
participação nos processos de regulariza- sua participação possibilite alguma inter-
ção fundiária. Reivindicam o estabeleci- ferência positiva na direção de seus inte-
mento de um modelo de autodemarcação resses, fica muito aquém do sentido ex-
ditado pelas especificidades da vida das presso pela noção de parceria, palavra “co-
comunidades. ringa” indicativa do caráter participativo
O PPTAL contou, desde o início, com dos atuais projetos institucionais.
uma Comissão Paritária Consultiva, ten-

4 São elas: Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Legal – COIAB; Conselho Indígena de
Roraima – CIR; União das Nações Indígenas do Acre e Sul do Amazonas – UNI-Acre e Federação das Or-
ganizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN.

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TERRITÓRIOS INDÍGENAS: MATERIAIS, EXISTENCIAIS

TERRITÓRIOS: RES EXTENSA OU REDE DE regra, mesmo depois de totalmente regu-


RELAÇÕES SOCIOCULTURAIS E AMBIENTAIS? larizadas, as áreas indígenas continuam
sendo pressionadas, invadidas e renego-
A crescente participação indígena, ins- ciadas, implicando novas e sucessivas alte-
titucional e política, nos processos de re- rações de limites, tendentes a diminuir seu
gularização fundiária vem apontando tamanho.
para um público mais extenso (mas ainda O estabelecimento de limites deve pro-
restrito), o que já era indicado desde mui- vir da observação de campo dos antropó-
to pelos antropólogos: a incomensurabi- logos que, por sua vez, coletam as infor-
lidade entre sua visão de território (e de mações dos índios. Para estes, entretanto,
mundo) e a da nossa sociedade. a definição de limites fixos, precisos e abs-
Obviamente, é fundamental a garan- tratamente mensuráveis é sempre proble-
tia de um espaço físico territorial às socie- mática. Território não é algo externo a ser
dades indígenas do Brasil, como elemen- possuído: é expressão de sua localização
to básico para possibilitar sua reprodução relacional na teia geral das formas de vida.
sociocultural. Entretanto, é também fun- Poderíamos dizer que, de modo geral, as
damental que se amplie esse campo de sociedades indígenas não concebem a
discussão. Como disse uma vez Ailton posse da terra, mas se reconhecem como
Krenak, “índio não é tatu”, isto é, a ques- uma das expressões das formas de vida
tão não se resume à terra. que a formam, cujo conjunto, em contra-
A discussão sobre as terras indígenas posição, nossa sociedade chama de natu-
apenas em termos de extensão, sob a óti- reza, opondo-o a um outro gênero – a hu-
ca das “coisas” mensuráveis e de frontei- manidade – que dele se destaca, objeti-
ras geodésicas, omite o conflito que se pro- vando-o.
cessa na dimensão mais essencial, políti- Ao se verem com a tarefa de indicar ao
ca e existencial das possibilidades de re- antropólogo seus limites territoriais, os ín-
produção de relações socioculturais dife- dios sempre encontram grande dificulda-
renciadas. de, já que o território, palco de todas as
O reconhecimento dessa dimensão suas relações sociais, históricas e míticas,
está presente na definição constitucional é um espaço vivo e concreto. Nesse pro-
de terras tradicionalmente ocupadas (“as cesso, quando os índios adquirem a com-
necessárias à sua reprodução física e cul- preensão do território finito delimitado
tural” ... “segundo seus usos, costumes e por uma linha imaginária, isto é, incorpo-
tradições”) e constitui o critério e o hori- ram esse aspecto de nosso sistema cultu-
zonte para a identificação de limites e sua ral, o seu território, simultaneamente na-
regularização legal. Mas, no plano práti- tural e social, já não é mais o mesmo. E a
co, sabe-se que esse critério é sempre limi- definição de seus limites se dá então no
tado pelas imposições da sociedade brasi- campo relacional impositivo de nossa so-
leira, negociado em cada caso na arena das ciedade e das possibilidades políticas de
forças políticas e econômicas atuantes em se reivindicar tal ou qual extensão de terra.
torno de cada área indígena, cujo resulta- Para os Rikbaktsa, povo indígena da
do é finalmente imposto às sociedades in- bacia do rio Juruena, no Estado do Mato
dígenas como o melhor que elas podem Grosso, com o qual tive o privilégio de
conseguir frente às circunstâncias. Via de conviver mais tempo, a terra é wytyk, a

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Rinaldo Arruda

mesma palavra que designa a mulher e, Profundos conhecedores dos ciclos


como ela, tem o poder da fertilidade, de na-turais, das espécies vegetais e animais
abrigar e criar a vida. e da trama de relações que se estabele-
Na perspectiva cultural desenvolvida cem entre elas, durante todo o ano os Ri-
pelo capitalismo, tudo o que não foi cria- kbaktsa aproveitam uma série de recur-
do pelo trabalho humano, os elementos sos sazo-nais que a natureza lhes oferece
da natureza “em estado bruto”, nos quais alternativa ou conjuntamente.
se incluem todas as formas de vida, são Alimentam-se de dezenas de frutas sil-
considerados como “objetos” a serviço do vestres, conhecendo os locais onde se con-
homem, passíveis de manipulação arbitrá- centram e os animais que delas se alimen-
ria, reduzidos à sua função social de valor tam.
de troca, cuja apropriação individual ou Movimentam-se pelas trilhas que re-
coletiva agrega poder e riquezas privati- cortam seu território em todas as direções,
vas, atributos simbólicos hierarquizado- umas mais “batidas” (de uso mais freqüen-
res, decorrentes de sua posse, aos indiví- te) que outras. Algumas ligam as aldeias
duos ou grupos que as detêm. Na melhor entre si, outras são trilhas de caça cujo tra-
das hipóteses, a natureza pode constituir- çado obedece à localização de fruteiras,
se esteticamente como uma paisagem, barreiros (locais onde os animais vão lam-
mas‚ fundamentalmente, é mercadoria ou ber o barro para ingerir sais minerais ne-
meio de produção. cessários a seu metabolismo), trilhas de
Nas práticas cotidianas e na sua pers- anta, de veados ou outros animais, cabe-
pectiva cultural, os Rikbaktsa se relacio- ceiras de córregos (onde na seca as antas
nam basicamente com uma infinidade de se refugiam das mutucas, que só apare-
seres vivos, animais e vegetais, inseridos cem em quantidade nessa estação) e inú-
num contexto de relações que abrange meros outros recursos exploráveis pelos
toda a natureza, que forma sua tessitura Rikbaktsa.
e movimento. Aí os Rikbaktsa também se Há as trilhas que levam às roças, as que
inserem, se diferenciam e se assemelham, levam a bons pontos de pescaria (frutei-
criando os emblemas de sua auto-imagem ras na margem dos cursos d’água) e as tri-
e identidade por referência às outras for- lhas para tirar borracha (indo de uma se-
mas de vida, não só humana, mas também ringueira a outra). Elas se entrelaçam mui-
animais e vegetais. A natureza não é exte- tas vezes e seu uso é sempre múltiplo, isto
rior a eles, não é “objeto”: é um conjunto é, levam de um lugar a outro, mas todo o
de formas de vida que se inter-relacionam, seu trajeto guarda importância localizada,
dependentes e integradas no movimen- seja para a caça, pesca ou coleta; como
to e ritmo mais amplo dos ciclos naturais pontos de referência geográficos para a
(chuvas/seca, cheias e vazantes, fases da memorização de acontecimentos marcan-
lua etc.). Imersos no grande círculo de tes, históricos ou míticos, quase sempre
produção e reprodução das formas de vi- lembrados na passagem; ou como referên-
da, os Rikbaktsa devem manter-se em har- cia para indicar aos outros a localização
monia com elas e conhecer com precisão de acontecimentos recentes.
suas peculiaridades e ritmos, sob pena de As trilhas são sempre estreitas, tortuo-
passar dificuldades intransponíveis, per- sas, com desvios abruptos para evitar ga-
der prazeres e vantagens e atrair o caos. lhos ou árvores tombadas, contornando

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TERRITÓRIOS INDÍGENAS: MATERIAIS, EXISTENCIAIS

um brejo ou pontos alagados na época ficando fora das áreas demarcadas. A ta-
da chuva, bifurcando-se em caminhos quara fina, da qual fazem as hastes das
que acabam logo à frente, ao pé de uma flechas, só é encontrada, com as qualida-
castanheira ou numa fruteira. Se não são des adequadas, nas cabeceiras do rio Pre-
usadas com freqüência, desaparecem no to, atravessando as matas do rio Juína
ma-to rasteiro que cresce, sendo arrisca- Mirim, fora de seu território legalizado.
do an-dar por elas sem a companhia de O mesmo ocorre com a taquara adequa-
quem as conheça. da para se fazer as pontas de flecha (juru-
Em cada aldeamento (há cerca de 33 pará) usadas para matar animais terres-
aldeias), há trilhas que cortam em todas tres (anta, veado, caititu, porco do mato e
as direções, com bifurcações mais no inte- outros) ou na guerra. Só são encontradas
rior da mata, que multiplicam as possibi- bem mais ao norte, nas cabeceiras do cór-
lidades de trajeto. Boa parte dessas trilhas rego do Escondido, em área tradicional
é mais ou menos estável. Mas a descober- que só em 1998, depois de mais de 15 anos
ta de um novo “barreiro” ou de um bebe- de luta, conseguiram, em parte, reaver. O
douro de arara (árvores que conservam local onde se encontram as pedras de fa-
água de chuva em concavidades de suas zer beijú fica onde hoje é a fazenda Tuca-
forquilhas), de fruteiras ou castanheiras, nã, também fora de seu território oficial.
faz com que se criem permanentemente O caramujo do qual aproveitam a concha
novas trilhas, menos usadas ou de pouca para fazer adereços só existe no rio Ari-
duração. nos.
As inúmeras trilhas traçadas pelos ín- Há os locais onde vivem o mutum, o
dios são atravessadas por outras, que eles gavião carijó e o gavião real, como na área
sabem reconhecer, feitas por vários ani- do Japuíra e também na do Escondido,
mais. Podem ser trilhas terrestres, como mas que não existem ou são raros ao sul
as da anta, das formigas, do veado, dos de seu território.
porcos do mato, ou aladas como as dos Os animais, por sua vez, não são en-
macacos (cujos bandos têm rotas regula- contrados o ano inteiro e há certas épo-
res dentro da mata e territórios mais ou cas, principalmente nos meses de chuva,
menos delimitados), das araras e papagai- em que não se costuma caçar certos ani-
os etc. Todas essas trilhas têm seu traçado mais, que estão magros pela carência de
balizado por fruteiras e espécies vegetais seus alimentos preferidos. Há locais de
úteis a cada espécie, pela rede hidrográfi- maior concentração de araras vermelhas,
ca capilar do interior da área (pequenas ou de araras cabeçudas, de porco do mato,
lagoas, brejos, córregos, nascentes), pelos de caititu etc. As araras amarelas só apa-
barreiros etc., formando uma rede fantás- recem em sua rota migratória, seguindo a
tica de comunicação e interação das for- maturação das frutas, a partir do mês de
mas de vida locais, entre as quais os seres abril, começando pelas aldeias do sul e in-
humanos. do gradativamente para o norte, até desa-
Essa formação fisiográfica, porém, não parecerem totalmente, só voltando no ano
é homogênea e certas coisas só são encon- seguinte.
tradas em alguns lugares ou em épocas As trilhas, os locais, os acidentes geo-
específicas do ano. gráficos são “personalizados” em detalhe,
Muitos recursos localizados acabaram referidos pelos recursos específicos que

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Rinaldo Arruda

concentram ou por acontecimentos no- Descolla (1997) ressalta que as cosmo-


tórios ali ocorridos no passado histórico logias indígenas amazônicas não fazem
ou mítico. Os nomes de localidades não distinções ontológicas entre humanos e
são necessariamente fixos, permanentes, animais. O autor enfatiza a idéia de inter-
mas são necessariamente “vivos”, isto é, ligação entre todas as espécies, incluindo
utilizam uma referência que faz sentido a humana, ligadas por um vasto continuum
para a população atual, que não se aca- governado pelo princípio da sociabilida-
nha em passar a atribuir outro nome, mais de, em que a identidade dos humanos, vi-
significativo do que o anterior. vos ou mortos, das plantas, dos animais e
Assim como os Rikbaktsa, os povos in- dos espíritos é completamente relacional
dígenas do Brasil, a despeito das cente- e, portanto, sujeita a mutações.
nas de variantes culturais, compartilham Por outro lado, embora mantendo esse
certos padrões de ocupação e uso do ter- tipo de “eixo” cultural, as sociedades in-
ritório: praticam uma agricultura itineran- dígenas submetidas às pressões da expan-
te, mudando os locais de plantio sempre são capitalista sofrem mudanças radicais,
que a fertilidade decresce; com espécies induzidas por forças externas, mas sem-
consorciadas; usam a técnica de coivara, pre orquestradas de modo nativo. As di-
com aberturas de pequeno porte, em ge- nâmicas internas de produção e reprodu-
ral roças familiares de cerca de meio a cin- ção da vida social sofrem adequações gra-
co ha cada, no máximo. As roças abando- dativas, em grande parte não planejadas,
nadas continuam servindo de fonte ali- mas sempre criativas, às imposições de-
mentar, seja em forma de tubérculos e ár- correntes dos laços com o mercado e à
vores frutíferas que se mantêm produzin- ininterrupta luta política para a preserva-
do por muitos anos, seja em forma de um ção do território tribal, de seus recursos
acréscimo da presença de animais terres- naturais e do padrão de suas relações so-
tres e alados atraídos por seus cultivares, ciais.
que constituem uma “reserva” de caça. Os povos indígenas, à medida que
Nesses locais, a floresta cresce novamen- aprofundam as relações com a sociedade
te, reconstituindo e ampliando a diversi- nacional, têm passado a interferir mais
dade anterior,5 acrescida de novas espéci- ativamente na dinâmica sociopolítica do
es ou do adensamento daquelas de uso campo de intermediação. Num movimen-
indígena. Essas sociedades se apóiam tam- to que se expande e se adensa, alguns
bém amplamente na caça, pesca e coleta, povos indígenas vêm fundando entida-
associadas às quais desenvolveram siste- des e associações, elaborando projetos
mas de manejo, conhecimentos, técnicas, (econômicos, educacionais, políticos), par-
instrumentos, rituais e cosmologias os ticipando do mercado como produtores e
mais variados, integrados em visões de consumidores, tornando-se eleitores e
mundo “holísticas” que, via de regra, não políticos, ocupando cargos públicos, par-
estabelecem as distinções marcadas por ticipando da máquina estatal. Portanto,
nossa sociedade entre natureza e cultura, assim como todas as sociedades, as indí-
sociedade e ambiente, natural e sobrena- genas também são mutantes e se, socio-
tural. logicamente, suas dinâmicas sociais inter-

5 Ver, entre muitos outros trabalhos: Ballée, 1989, 1993; Prance, 1984.

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TERRITÓRIOS INDÍGENAS: MATERIAIS, EXISTENCIAIS

nas só se reproduzem como parte de um mente, também como “máquinas adap-


campo social mais amplo, o da situação tativas equilibradas”. A mudança cultu-
de contato, as diferenças se mantêm no ral, a recriação da tradição só são aceitas
terreno da história cultural, manifestadas em relação à corrente civilizatória ociden-
politicamente como identidade étnica. tal. Quando ocorre com outras socieda-
Porém, suas características diferenciais des, aparece sob o signo de sua não legi-
em relação à corrente civilizatória predo- timidade identitária. Nesse campo de sig-
minante é que têm permitido sua utiliza- nificados socialmente construído, o dile-
ção emblemática no campo do ambienta- ma indígena atual se eterniza: se conti-
lismo como povos “tradicionais e ecológi- nuam “autênticos”, são vistos (com sim-
cos” e, em seguida, subordinado cada vez patia ou não) como “selvagens”, sem con-
mais a ação indigenista do Estado, no pla- dições de autodeterminação. Se incorpo-
no das políticas públicas, à lógica das po- ram em sua constelação cultural elemen-
líticas de conservação do meio ambiente. tos da modernidade, passam a perder le-
Seria longo demais estender-me sobre esse gitimidade como índios e seus direitos
aspecto da questão indígena, mas basta passam a ser contestados. Parece que
lembrar que o PPTAL foi criado no interi- hoje, num mundo politicamente laico, a
or do Programa Piloto para a Conserva- “alma” que define a pertinência à huma-
ção das Florestas Tropicais do Brasil e que nidade é a adoção do modelo da “civili-
as decisões sobre a prioridade de áreas a zação ocidental”, mas, para os povos in-
serem demarcadas são em grande parte dígenas, essa adoção significa a perda de
influenciadas pelo grau de “pureza” da sua legitimidade como povo e sociedade
cobertura vegetal, pela proximidade das diferenciada.
Unidades de Conservação e pela baixa Penso que os cientistas sociais (em es-
densidade de invasores não-índios, visan- pecial os antropólogos) deveriam dedicar-
do a criar “corredores ecológicos” de pro- se mais ao esclarecimento dessas questões
teção da biodiversidade. E, por conseguin- no interior de suas disciplinas, e à disse-
te, tendendo a impor novamente outros minação de um verdadeiro diálogo inter-
limites ao exercício do controle territorial cultural, em que as perspectivas indíge-
indígena e à sua autonomia como povos nas possam ser apresentadas no mesmo
com capacidade de autogoverno. plano de validade do discurso “ocidental”.
A legislação constitucional brasileira de No plano político e legal, por exemplo, é
1988, assim como a de vários países de necessária a normatização dos mecanis-
formação pluriétnica, reconhecendo o di- mos de consulta às sociedades indígenas,
reito à diferença cultural, já estipula como com a formação e o credenciamento de
“direitos coletivos” o direito a seu territó- tradutores versados na língua de cada
rio tradicional, o direito à sociodiversida- povo; as sociedades indígenas deveriam
de, ao patrimônio cultural, ao meio ambi- ter o direito de falar suas próprias línguas
ente ecologicamente equilibrado e à bio- nos meios de comunicação; é preciso re-
diversidade. Entretanto, o “tradicional” gulamentar contratos de pesquisa ou tra-
continua sendo definido a partir de crité- balho entre comunidades indígenas e pes-
rios ocidentais de uma antropologia ina- quisadores e, finalmente, no plano jurídi-
dequada, na qual os índios aparecem, co, urge reconhecer os direitos intelectu-
além das imagens já evocadas anterior- ais coletivos dessas comunidades.

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Como expressou muito bem Marawê, aqui para vocês, que são todos doutores,
líder Kayabi e Presidente da Associação estudados, qual é a solução para esses pro-
Terra Indígena Xingu – ATIX, por ocasião blemas? Ninguém sabe. Eu digo a meu
do Seminário “Bases para uma nova polí- povo: os brancos também não sabem!
tica indigenista”, realizado no Rio de Ja- Então eu acho que nós temos é que pro-
neiro, no Museu Nacional – UFRJ, em ju- curar juntos. O problema não é do índio,
nho de 1999: é dos brancos também, o problema é nos-
“Vocês ficam falando do problema do so”. (transcrito de memória)
índio. Eu não sei, acho que o problema é Considero, junto com Marawê, que
nosso, de todo mundo. Meu povo pergun- este é o nosso desafio para o século XXI,
ta, quando eu chego de fora, qual a solu- conseguir estabelecer bases mais igualitá-
ção que os brancos têm para os proble- rias de convivência entre as coletividades
mas da destruição das florestas, da polui- humanas, compreendidas como compo-
ção das águas, da violência, das guerras, nentes da rede da vida que constitui nos-
das doenças, da corrupção, da pobreza, so planeta.
das drogas etc. E eu também pergunto

Referências bibliográficas
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TERRITÓRIOS INDÍGENAS: MATERIAIS, EXISTENCIAIS

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