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leste conjunto de ensaios, Fábío Lu-
cas oferece ao leitor uma visão critica e
atuaiizada sobre alguns autores e obras
fundamentais que contribuíram para a
formação e a transformação da nossa li-
teratura. Gregório de Matos, Gonçalves
pi- de Magalhães, Monteiro Lobato, Érico
Veríssimo, entre outras vozes importan-
te
tes, são aqui analisados a partir de um
F ponto de vista que privilegia as comple-
xas relações entre literatura e socieda-
de, sem deixar de lado a atenção à
interioridade linguística e estilística dos
textos. Do Barroco ao Moderno revela,
assim, a argúcia interpretativa de um crí-
tico atento à singularidade da criação,
manifestada diferentemente em cada pe-
ríodo literário,
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DO BARROCO
AO MODERNO
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Editor
Fernando Pai x Sa
Preparação da texto
Jos« Roberto M ine\
Produçáo grá-fica
René Eli ene Ardanuy
Capa
Ettore Bottini
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ISBN 85 08 03372 9
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1989
Todos os direitos reservados
Editora Ática S.A. - Rua Barão de Iguapé, 110 »m
Tel.: (PABX) 278-9322 - Caixa Postal.8656
End. Telegráfico "Bomlivro" - São Paulo
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SUMÁRIO
Apresentação >
2 . O R o m a n t i s m o e a f u n d a ç ã o da nacionalidade 28
3 . O Realismo-Naturalismo de J ú l i o Ribeiro 39
Antecedentes culturais 41
O ficcionista 44
Estética naturalista _ _ _ _ _ 49
O Naturalismo de Júlio Ribeiro 51
4 . A s p e c t o s literários de M o n t e i r o L o b a t o 58
A literatura das cartas 58
O estilo, a crítica e a estética 70
' )
APRESENTAÇÃO
li m m ^ m M m m . iiujiij ijigji,u.iiijji, I
esforço fez com que ainda hoje se repilam informações colhidas nos
românticos, embora já ultrapassadas pelas pesquisas e pela historio-
grafia literária posterior, através de novos estudos e revisões.
O Realismo se manifesta na leitura de Júlio Ribeiro, em que
se avivam as qualidades e os preconceitos da moda naturalista.
A literatura brasileira dos primórdios do século XX e do Mo-
dernismo é analisada em quatro estudos: um sobre a Pequena histó-
ria da literatura brasi' ira, de Ronald de Carvalho, que, encerrando
uma visão académica e parnasiana do fenómeno literário no Brasil,
atinge os limites da modernidade; outro sobre Monteiro Lobato, cu-
jas idéias culturais e cujo fascinio e inquietação se exprimem espe-
cialmente nas cartas a Godofredo Rangel; o terceiro constitui um tra-
balho que trata de autores que precederam o Modernismo e conside-
ra as principais figuras do movimento que se propôs uma atitude re-
volucionária em nossas letras; finalmente, o quarto dá um balanço
tão exaustivo quanto possível da prática do conto em sessenta anos
(1922-1982), procurando localizar as fontes da configuração do géne-
ro e as causas de seu êxito entre nós.
Para assinalar alguns tópicos da modernidade, em sincretismo
com manifestações herdadas de outras correntes vivas da nossa lite-
ratura, acrescentam-se estudos sobre dois autores característicos: Érico
Veríssimo, romancista dos mais populares no Brasil durante a vigên-
cia do Modernismo; e Henriqueta Lisboa, poeta que, isolada em Mi-
nas, tinha plena consciência dos avanços e das rupturas da poesia con-
temporânea, embora não descurasse de algumas pesquisas de que o
Modernismo se tornou continuador, como a de fluidez ou da justeza
da palavra poética. Por último, uma análise da ficção mineira pós-45,
apanhada sob o aspecto particular do depoimento da geração. Com
efeito, desde a década de 20 que as sucessivas gerações literárias de
Minas vêm sendo inscritas na história literária, graças ao memoria-
lismo ficcional.
8
A HIPÓTESE
GREGÓRIO DE MATOS
E O BARROCO1
1
Trabalho apresentado ao simpósio "Gregório de Matos e Guerra; o poeta da con-
trovérsia", no período de 8 a 12 de dezembro de 1986, em Salvador, Bahia, em co-
memoração dos 350 anos de nascimento do poeta, coordenado por Fernando da Ro-
cha Peres, diretor do Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia.
9
Sabemos quão espinhoso é o terreno das de marcações epocais,
principalmente quando a efusão de estudos sobre o Maneirismo e
o Barroco, a partir dos anos 20 e 30, não conseguiu estabilizar ain-
da conceitos e períodos aceitos pacificamente.
É que os critérios de rotular o passado são inúmeros e ora
apóiam-se em argumentos retóricos e estilísticos tão-somente, ora
baseiam-se em circunstâncias históricas, políticas, económicas e so-
ciais. E em todas as atualizações do passado, os horizontes ideoló-
gicos imprimem sua marca.
Preferimos acompanhar a evolução dos estilos na linha do es-
tudo de Wylie Sypher 2 .
Partindo do Renascimento, em que encontra a busca do ideal
de equilíbrio, harmonia e compostura, Wylie Sypher surpreende no
Maneirismo a expressão da crise espiritual que toma a Europa. O
rebuscamento, as contradições, a irregularidade do estilo maneiris-
ta seriam a projeção da crise espiritual que, com o Concílio de Tren-
to, procura, no esplendor e na manifestação de poder e grandeza,
superar a crise, conciliando as forças da espiritualidade com a in-
quietação temporal e profana. O Barroco, no caso, seria o estilo da
ostentação, do esplendor e da magnificência, efusivo de elementos
decorativos em que o apelo carnal se funde com a glorificação da
divindade. /
A senha para que os artistas liberassem os instintos na repre-
sentação das coisas sagradas estava na permissão que o Concílio con-
cedeu para que se pudesse projetar nos ícones as imagens dos santos.
Em consequência disso, graças â ação dos pintores e dos es-
cultores, instalam-se nas catedrais os corpos triunfantes, na sua des-
bordante sensualidade. Nas madonas se percebe a tentativa de apa-
ziguamento das tensões e ansiedades do Maneirismo, na concilia-
ção do corpo com a alma. A percepção física é também uma per-
cepção espiritual.
O próprio dogma da transubstanciação confirma o princípio.
Durante a missa, se ritualiza a transformação do pão e do vinho
em corpo e sangue de Cristo.
O certo é que a tolerância com as imagens e o dogma da tran-
substanciação favorecem o surto da manifestação dos sentidos nas
artes. Na verdade, a carne não se torna espiritual, mas a espirituali-
dade é que se torna carnal, conforme observa Wylie Sypher.
2
Fow stages of Renaissance style; transformation in art and literature 1400-1700,
New York, Doubleday & Company, Inc., 1955.
10
O quarto estádio do Renascimento será o Rococó, uma tenta-
tiva de retorno à serenidade e às proporções da fase renascentista.
Mas, agora, perdido o esplendor e o sentido apoteótico, as artes se
recolhem nas miniaturas, nos objetos domésticos, na decoração dos
interiores, na música de càmera, no minueto. É o tempo do neo-
classicismo.
Assim, para efeito meramente didático, será prudente fixar al-
gumas datas: o Concílio de Trento durou de 1543 a 1563; o Manei-
rismo, fenómeno de inicio tipicamente italiano, teve uma duração
de cem anos, de 1520 a 1620, na Itália; e pode-se apontar como apo-
geu do Barroco nos países europeus o período de 1660 a 1670.
Carl J. Friedrich 3 chama a atenção para o fato de que a lin-
guagem barroca era rica em símilés e metáforas, em adjetivos orna-
mentais e pomposas formalidades. Os nomes eram acumulados e
a exclamação ocupava um lugar central. Nos escritores mais radi-
cais, a língua literária se tornava um fim em si; o pensamento era
sacrificado à expressão, e o sentido, ao som.
Wylie Sypher, depois de caracterizar o Renascimento, o Ma-
neirismo, o Barroco e o Rococó, propõe os ciclos dos estilos renas-
centistas e, com eles, a "lei da primazia técnica nas artes", segundo
a qual todas as artes em certos períodos caem sob a dominação da
técnica de uma delas 4 .
Podemos dizer que as artes visuais predominavam.
No Brasil, um dos escritores mais próximos da doutrina barroca
foi o Pe. Antônio Vieira, de cujo "Sermão da Sexagésima" se extrai
o trecho seguinte, bastante ilustrativo da propensão ao apelo visual:
3
The age of the Baroque; 1610-1660, New York, Harper & Row, 1952.
4
Id., ibid., p. 30-1.
11
Homo visto; a relaçáo do pregador entrava pelos ouvidos, a repre-
sentação daquela figura entra pelos olhos 5 .
5
Obras escolhidas, Lisboa, Sá da Costa, v. 11, p. 220; cf. Antônio Dimas, Gregório
de Matos, São Paulo, Abril, 1981, p. 96-7. (Literatura Comentada.)
6
Four stages of Renaissance..., cit., p. 201.
12
lesca, na linha do Maneirismo do que na do Barroco, do mesmo
modo como os poetas da chamada Escola Mineira se avizinham mais
do Rococó do que do próprio Barroco. Daí seu neoclassicismo.
Pode-se encontrar outro elemento modificador do "Barroco
brasileiro": a classe dominante, letrada, que exprimia os interesses
da burguesia, do clero e da nobreza, encarnava o esquema cesarista-
fiscalista de exploração.
Nesse caso, a mais lídima representação do "Barroco" terá
sido o Pe. Antônio Vieira, em que a opulência, a ostentação e a pom-
pa tão características do estilo, na sua versão mais pura, eram con-
trabalançadas com a má consciência do regime colonialista e escra-
vocrata, presidido pelos horrores da Inquisição.
Luís Palacin 7 assinala em Vieira a consciência possível do co-
lonialismo, diante da angústia trágica de conciliar planos éticos e
políticos inconciliáveis. Eis o que diz:
Duas destas oposições irredutíveis, entre as exigências ideais
de uma ordem humana e a realidade histórica vivida. Vieira as expe-
rimentou dolorosamente no Brasil: a incompatibilidade entre o siste-
ma colonial e um governo justo, e entre a exigência de liberdade,
inerente à pessoa humana, e a existência legal da escravatura, im-
postas pelas determinações económicas da política colonial. O que
torna mais dramático o caso de Vieira é que, sem renunciar à incon-
dicionalidade dos princípios, sustenta ao mesmo tempo a necessi-
dade prática das instituições que, negando na prática esses princí-
pios, lhe pareciam necessárias para a estabilidade social 8 .
13
Podemos dizei que, aos poucos, a retórica jubilantc do triun-
falismo barroco converteu-se no estilo extravagante, a exprimir o
realismo grotesco da camada popular.
Trata-se de um "Barroco" tardio, folclórico, patético, teatral,
que vamos surpreender tanto em Gregório de Matos, quanto, um
século depois, no Aleijadinho, ambos ligados às deformações plás-
ticas, sonoras e imagéticas do estilo vigente.
Daí o cunho patético, tanto da celebração da alegria (a laeti-
tia, o júbilo), como da representação da dor, apontado por Moacyr
Laterza na qualificação do "Barroco" brasileiro.
Não é sem propósito invocar aqui as "caricaturas das mais hor-
rendas e monstruosas" observadas por J. M. Pereira da Silva na
obra de Gregório de Matos:
Pertence Gregório de Matos à classe, espécie ou escola de Lu-
cílio e Marcial, aos quais imitavann os trovadores e outros poetas da
Idade Média, e cuja escola Rabelais elevou ao maior aperfeiçoamento;
é o seu estilo popular; as suas frases na linguagem vulgar, obsce-
nas muitas vezes; as suas imagens exageradas sempre; os seus pen-
samentos tais, que o leitor conhece logo na extensão da sua enor-
midade; não há objeto nobre, elevado e santo, tudo pode ser mote-
jado, merece o ridículo tudo; são verdadeiras caricaturas os seus de-
senhos, e caricaturas das mais horrendas e monstruosas, que de-
nunciam, todavia, através das ridículas cores com que se ataviam,
o objeto que o poeta tenta pintar; são porém os seus versos can-
dentes às vezes sonoros, e outras vezes descuidados; é geralmente
agradável a sua metrificação 9 .
Do mesmo modo, Otto Maria Carpeaux, ao evocar a paisa-
gem ouropretana e a presença ali da obra oitocentista do Aleijadi-
nho, encontrou em tudo um pouco do déjà vu, pois aquilo fazia-lhe
recordar paisagens austríacas e pequenas cidades com reminiscên-
cias barrocas, "trabalhos de modesta gente do povo, de anónimos",
sem a grandeza do Aleijadinho.
Informa, então, o crítico que dois folcloristas austríacos, Ar-
thur e Michael Haberlandt, definiram o Barroco das pequenas ci-
dades como "Barroco atrasado", pois "nos países civilizados a ar-
te folclórica sempre repete os motivos que a arte 'oficial' ou 'de eli-
te' já abandonou". E lembra outro analista, Kurt Freyer, que, em
longo trabalho publicado em 1916 (nos "Monatshefte fuer Kunst-
wissenschaft", v. 9), definiu mais exatamente aquele "estilo folcló-
rico", "salientando o fato estranho de que os artistas anónimos sem-
pre revelam a tendência de 'deformar' os elementos recebidos" 10 .
14
Toca-nos, agora, falar da "hipótese Gregório de Matos", já
que a "hipótese do Barroco" fica relegada a segundo plano, em fa-
vor de uma hipótese maneirista.
A crítica literária e textual do poeta tem crescido em frequên-
cia e importância ao longo dos tempos, a partir de sua assimilação
á literatura brasileira a partir do Romantismo. Conforme assinala
Antonio Candido, "embora tenha permanecido na tradição local
da Bahia, ele não existiu literariamente (em perspectiva histórica)
até o Romantismo, quando foi redescoberto, sobretudo graças a Var-
ri hagen; e só depois de 1882 e da edição Vale Cabral pôde ser devi-
damente avaliado" 11 .
Há, pois, em relação ao poeta, um grande hiato informacio-
nal, que envolve a recomposição ambiental, a construção biográfi-
ca e o estabelecimento dos textos.
Gregório de Matos ainda hoje se apresenta, sob muitas face-
tas, como um artista sem rosto. Como se viu, começou a existir,
para a literatura, a partir de 1850, graças a Varnhagen, que o in-
cluiu no Florilégio da poesia brasileira.
Não foram ainda estabelecidos os seus textos mediante crité-
rios seguros da ecdótica, nem expurgada dos vários apógrafos a ma-
téria alheia, de outros poetas.
O acervo que dele ficou reúne temática variada, poemas de cu-
nho religioso e devocional, líricos, satíricos, eróticos e obscenos. Há
poemas que constituem meras paráfrases ou imitações de outros.
Enfim, temos uma pluralidade de temas e, talvez, de autores.
Mas a faixa de indefinição pertencente à obra de Gregório de
Matos não deve ser motivo para que se estacionem os estudos a res-
peito dela. A esse propósito, devemos render homenagem à contri-
buição baiana, capital para manter viva a "tradição gregoriana".
A começar dos famosos apontamentos de Manuel Pereira Rabelo,
vindos do século XVIII, "Vida do excelente poeta lírico, o doutor
Gregório de Matos Guerra".
Depois, tivemos a valiosa (e questionada) edição de Afrânio
Peixoto . A seguir, o interesse de Afrânio Coutinho em incluir em
A literatura no Brasil seu estudo " D o Barroco ao Rococó" e o ca-
pítulo "Gregório de Matos", assinado por Segismundo Spina 13 .
11
Formação da literatura brasileira; momentos decisivos, 2. ed. revista, São Paulo,
Martins, 1964, v. 1, p. 26.
12
Gregório de Mator, obras completas, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Le-
tras, 1923-33.
13
Afrânio Coutinho, Do Barroco ao Rococó, em A literatura no Brasil, Rio de Ja-
neiro, Sul-Americana, 1968, v. 1, cap. 8, p. 123-71; Segismundo Spina, "Gregório
de Matos", em Afrânio Coutinho, A literatura..., cit.
15
Enquanto isso, James Amado promovia a edição de um dos
apógrafos do poeta 14 , tão questionada quanto a de Afrânio Pei-
xoto.
Recentemente, Fernando da Rocha Peres tem-se empenhado
na tarefa de pesquisa biográfica do poeta' 5 , devendo-se a ele a fixa-
ção da data do nascimento do biografado. Aliás, seu interesse pela
investigação biográfica continua o trabalho de outro baiano, Pedro
Calmon 16 .
Por último, cabe mencionar o meticuloso estudo analítico de
João Carlos Teixeira Gomes 17 .
Há sérios obstáculos na determinação do corpus gregoriano.
A hipótese correta, a essa altura das investigações, enquanto se aguar-
da a constituição de um grupo de especialistas que se dediquem ao
estabelecimento do texto do poeta, será admitir como de autoria dele
tudo aquilo que comprovadamente não o for.
Em outros termos: a crítica, a ensaistica e a historiografia bra-
sileira devem adotar Gregório de Matos como um nome engloban-
te, de forma análoga ao que ocorre com Homero e Camões, entida-
des imprescindíveis aos estudos literários, não obstante não seja pos-
sível estabelecer todas as fronteiras de suas obras. Cumpre, desse
modo, manter a tradição gregoriana, sob pena de atrasar o conhe-
cimento e o estudo de uma das mais importantes manifestações poé-
ticas do período colonial de nossa história literária. Massaud Moi-
sés, em sua História..., enseja a mesma conclusão.
É claro que algumas correções devem ser feitas, no sentido de
se escoimar a sua lenda de acréscimos fantasiosos, principalmente
aqueles voltados para interesses circunstanciais. O próprio José Ve-
ríssimo, carregando os preconceitos de sua época e no seu cauteloso
jeito de afirmar, não deixa de assinalar a herança encomiástica com
que se modelou o perfil do poeta:
Fizeram dele um herói literário, um precursor do nosso naciona-
lismo, um antiescravagista, um génio poético, um repúblico auste-
ro, quiçá um patriota revoltado contra a miséria moral da colónia 18 .
14
Gregório de Matos. Obras completas; crónica do viver baiano seiscentista, Salva-
dor, Janaina, 1968.
15
Gregório de Matos-, uma re-visão biográfica, Salvador, Macunaíma, 1983.
16
A vida espantosa de Gregório de Matos, Rio de Janeiro, José Olympio, 1983. (Col.
Documentos Brasileiros, 194.)
17
Gregório de Matos-, o Boca de Brasa, cit.
18
História da literatura brasileira-, de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908),
4. ed., Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1981, p. 75.
16
Exposto às pesquisas de natureza textual, histórica e biográfi-
ca, cumpre à interpretação da obra de Gregório de Matos libertá-la
das versões, já desgastadas, que tendem a deformar o valor de sua
contribuição poética e a projeção desta na história da literatura bra-
sileira.
Com efeito, o primeiro Gregório de Matos de nossa tradição
é o traçado pelo Romantismo. Ora, esse estilo esteve, de certo mo-
do, ligado às fontes palacianas, o ficais, sob o influxo da Casa Bra-
gança, que assumiu o poder em nossa fase inicial de independência.
A geração romântica encarregou-se da tarefa honrosa e pacien-
te de estabelecer o nosso corpus literário, mas usando cautela para
não melindrar a Corte e sequazes. Além do mais, seguindo as incli-
nações típicas da época, viu-se preocupada em descobrir heróis e vi-
das notáveis em nosso passado, a fim de compor o panteão das gló-
rias legitimamente brasileiras.
Assim, o primeiro cuidado crítico haverá de ser impulsionado
no sentido de se expurgar a imagem do poeta das agregações fanta-
siosas que visaram a convertê-lo em símbolo da nacionalidade, do
nativismo e da luta emancipadora do nosso povo.
Isso foi sentido exemplarmente por João Carlos Teixeira Go-
mes, ao comentar, em seu livro de grande fôlego erudito e penetra-
ção crítica, a verve poética de Gregório de Matos:
Por mais estimulantes que sejam as colocações críticas feitas
com inteligência, devemos admitir que os textos satíricos de Gregó-
rio de Matos, quando retratam a vida baiana e o papel que nela exer-
ciam os seus vários segmentos sociais, não se encontram, em ge-
ral, carregados de potencialidades sibilinas ou de espertezas dissi-
muladas. Julgamos, pelo contrário, que eles sempre ressaltam a sua
clara intencionalidade política, embora seja fantasioso afirmar-se que
houvesse por detrás dela, necessariamente, um patriota convicto,
um idealista molestado e constrangido com a espoliação do Brasil
pelos interesses colonialistas. Na verdade, quando, em versos tão
citados, Gregório afirma que
[...] os brasileiros são bestas
e estarão a trabalhar
toda a vida por manter
maganos de Portugal,
não há maiores motivos para que vejamos aí latências revolucioná-
rias ou um grito guerrilheiro pela emancipação, mas, sim, a cons-
ciência de um proprietário rural brasileiro inconformado com um sis-
tema de trocas que espoliava o produto da terra no comércio draco-
niano imposto ao Brasil por Portugal. 0 homem que escrevia esses
versos era o mesmo que representara em Lisboa, perante as Cortes,
17
os interesses da economia açucareira da Bahia eque, na volta, con-
tinuava sendo um proprietário rural prejudicado. A visSo de uinaeco-
nomia lesada é, aliás, obsessiva na sátira gregoriana 19 .
18
Ficam esses depoimentos como ilustração de reparos à visão
romântica do poeta. Na verdade, mesmo abandonando-se o veio bio-
gráfico, sempre equívoco para a análise literária, fica difícil encon-
trar em Gregório de Matos uma crítica dos valores senhoriais ou bur-
gueses. Aliás, desnecessária para a caracterização de sua obra e, ade-
mais, inadmissível dentro dos horizontes económicos, sociais e po-
líticos em que militou. O mal da informação e da historiografia de-
savisadas consiste justamente em transplantar para o passado as exi-
gências ou conquistas dos tempos presentes, submetendo-se à ideo-
logia dos tempos do analista a escala de valores em que viveu o ana-
lisado.
Outra operação que urge realizar é desvestir a imagem de Gre-
gório de Matos de uma consciência literária inovadora, proposita-
damente assestada para proceder a uma ruptura com as convenções
vigentes. Trata-se de ranço da modernidade, que nos habituou a qua-
lificar positivamente tudo aquilo que seja diferente ou original, mes-
mo o grotesco.
A projeção do espírito moderno na tarefa de avaliação de obras
passadas corre o risco de realizar uma ablação perigosa dessas com-
posições literárias, ou seja, seu espírito de correspondência com a
época, sua eficácia verbal de acordo com os parâmetros do tempo,
sua observância do gosto prevalecente.
João Carlos Teixeira Gomes penetra admiravelmente no pro-
blema, ao apontar " o poder das convenções sobre o impulso indivi-
dual do século XVI ao XVIII, no curso dos quais a elaboração tex-
tual assumiu basicamente a feição de uma atividade interativa" 23 .
Sobre isto é enfático Massaud Moisés.
Deve-se, portanto, levar em conta a retórica da época, sua pre-
ceptística, para se dimensionar corretamente o esforço produtivo do
poeta, o que não significa que se abandonem as suas originalidades
e o surto espontâneo de sua criação, mormente no campo da sátira.
Mais adiante, na mesma obra, Teixeira Gomes reflete acerca
da mesma questão, acrescentando:
As convenções exprimem o primado do coletivo sobre o indi-
vidual, revestindo-se de natureza disciplinadora e pedagógica, além
de virem constituindo, há séculos, o grande agente mantenedor e
homogeneizador da literatura ocidental. Elas se retraem durante as
rupturas violentas, como as operadas pelas vanguardas, mas ainda
assim podem voltar a impor a sua primazia, pois a criação artística
articula-se sobre um jogo de convenções: as antigas cedem lugar
às novas, que terminam por institucionalizar-se 24 .
21
Gregório de Matos; o Boca de Brasa, cit., p. 48.
24
Id., ibid., p. 113.
19
Com isso, o autor de Gregório de Matos — o Boca de Brasa
contorna magistralmente o problema do plágio em que se tenta apri-
sionar o poeta, mediante um excesso de investigação de influências,
de fontes, de derivações, que vem desde Vamhagen e prossegue com
João Ribeiro e Sílvio Júlio, Paulo Rónai e alguns outros.
Aliás, o admirável intelectual baiano Eugênio Gomes, no es-
tudo "Sobre três sonetos de Gregório de Matos", com a sua costu-
meira acuidade, resumiu o assunto deste modo:
Em suma, quaisquer que tenham sido as suas escamoteações
literárias, Gregório de Matos não deve ser julgado pela norma co-
mum ou como um réu vulgar, atentando-se em que foi o primeiro
nativo a trazer um hausto de expressividade vital à linguagem poéti-
ca no Brasil, em contraste com os demais versejadores da ápoca
colonial 25 .
25
Em Visões e revisões, Rio de Janeiro, INL, 1958, p. 19.
20
Se a poesia de conteúdo amoroso ou religioso pode ser enca-
rada como manifestação do convencionalismo barroco, dissolvendo-
se na produção da época pela sua impregnação gongórica, de cará-
ter padronizador, o mesmo não se pode dizer dos poemas satíricos,
burlescos, eróticos ou de circunstância, que trazem o carimbo de
uma fatura homogénea, até porque exprimem situações, fatos e ex-
periências vitais que articulam solidamente, com o que hoje sabe-
mos da vida do poeta 26 .
26
Gregório de Matos; o Boca de Brasa, cit., p. 20.
27
13 ed., Belo Horizonte, Itatiaia/INL, 1984.
28
Id. ibid. p. 99.
29
Gregório de Matos; o Boca de Brasa* cit., p. 21.
30
Id., ibid., p. 320.
21
Insistindo na "fatura aligeirada e ostensivamente desleixada
— sobretudo tendo em conta os rígidos padrões formais da época
— de muitos dos seus poemas burlescos ou satíricos" 31 , João Car-
los Teixeira Gomes contribui para desmistificar um pouco a sua in-
tencionalidade renovadora e de rompimento consciente com o siste-
ma literári<J*vigente, para fins de obtenção de resultados expressi-
vos mais intensos.
O que se há de pesquisar é a natureza da capacidade poética
de Gregório de Matos, tão superior à dos contemporâneos. E não
se pode, é claro, desprezar o lado informativo dos poemas, contri-
buição, que se haverá de creditar ao poeta, aos estudos de recom-
posição daquela fase de nossa vida colonial. No caso específico de
Gregório de Matos, biografia, História e interpretação literária ca-
minham juntas, em muitos passos.
A sátira tem, em suas mãos, um travo amargo, timbrado de
desforço pessoal, sem a alegria e a jocosidade lúdica, solta, das nar-
rativas picarescas espanholas. É que o satirista brasileiro apoderou-
se de uma visão corrosiva da sociedade e, com muito engenho, a
transportou para a criação literária. O envolvimento pessoal e a ne-
cessidade de retratar as circunstâncias vieram a favor do poeta que,
por essa via, se libertou dos cânones e pôde refletir o seu tempo com
maior claridade e exatidão.
Já na poesia erótica, José Miguel Wisnik, na introdução às Poe-
sias escolhidas*2, aponta, com inteira razão, a tendência de Gregó-
rio de Matos para fazer da mulher objeto de uma libido agressiva,
tanto mais sintomática e visível quanto a mulher seja negra ou
mulata.
A parte amorosa, no caso, se mescla ao aspecto burlesco da
obra em que o poeta deixa transparecer os seus condicionamentos
sociais, a sua visão de classe, de status, de papel na sociedade. Ele
não se desliga, nesse ponto, da sanha de amesquinhar os outros, pa-
tente nos seus versos satíricos.
Cumprirá à crítica vindoura, depois de expurgada a versão ro-
mântica, prosseguir os esforços de análise textual que têm sido fei-
tos em torno da notável contribuição de Gregório de Matos e des-
bastar a imagem do poeta da ideologia modernista, que, na verda-
de, a tem diminuído, a pretexto de exaltá-la.
É que, pela ideologia modernista (e modernosa), uma obra é
tão mais admirável e bela, quanto mais pareça atual e se assemelhe
11
Id., ibid., p. 322.
a
Gregório de Matos; poemas escolhidos, seleção, introdução e notas de José Mi-
guel Wisnik, São Paulo, Cultrix, 1976.
22
àquilo que hoje se faz, como se a propriedade de antecipação fun-
cionasse como índice de qualidade.
Assim, é comum encontrarmos intérpretes da obra de Gregó-
rio de Matos apontando sua excelência em razão da "atualidade"
de seus recursos lexicais ou sintéticos. Ocorrem, então, exóticas apro-
ximações dos seus poemas com as curiosidades verbais dos concre-
tistas, ou mesmo com as exp*eriências tropicalistas para letras de mú-
sicas populares.
A fortuna conotativa da boa poesia terá sempre o poder de
exprimir situações humanas em todas as épocas. Sua riqueza polis-
sêmica dá-Ihe o condão de procriar significados ao longo dos tem-
pos. Daí o renascimento de poetas em diferentes circunstâncias his-
tóricas. Frequentemente eles são convocados a prestar fiança a no-
vas situações históricas, a novos ambientes retóricos, trazendo o valor
de sua perenidade para abonar equivalências.
Trata-se de um fenómeno de interação dos textos literários atra-
vés do tempo. E não é somente na forma que se pode observar o
mito do eterno retorno. Também o conteúdo de situações históricas
pode favorecer ressurreições temáticas.
O tema do colonialismo, por exemplo, entre nós, sempre ha-
verá de suscitar abonações de períodos passados. Nos países perifé-
ricos, o entulho colonialista é realimentado na sucessão dos tempos.
Veja-se o Brasil: passa do jugo português ao britânico; deste ao norte-
americano. A leitura, hoje, de vários poemas de Gregório de Matos
pode alimentar a índole de protesto contra aspectos lesivos do po-
der já percebidos pelo poeta baiano. Por exemplo, a leitura das dé-
cimas que trazem como didascália o título " À fome, que houve na
Bahia no ano de 1691" é ilustrativa.
Aí poderíamos observar uma invariante na configuração da
dependência. Para se tornar "atual" o poema, bastaria que alguns
termos se adequassem ao mundo de nossos dias. Com alguns câm-
bios vocabulares a contemporaneidade do poema estaria garantida.
Mas devemos ter a prudência de fazer a redução que o fenó-
meno requer. Gregório de Matos, na verdade, não parece ser pro-
priamente um opositor das regras instituídas, um libertário como
alguns o supuseram. Não chegou a elaborar um pensamento políti-
co, sequer a manifestar opinião sobre a orientação governamental.
Simples diletante na questão, contentava-se com idéias gerais sobre
a ordem das coisas. Essas idéias se transformavam em julgamentos
morais.
Por outro lado, a Bahia não constituía um complexo governa-
mental a serviço de uma sociedade diversificada. Para bem com-
preender a situação vivida por Gregório de Matos, torna-se neces-
23
sário conceber o campo de at nação com que o poeta contara. Quan-
do se diz da sua popularidade e da divulgação, em cópias escritas
manualmente, de seus poemas, será bom ter em mente que Salva-
dor, com toda a reserva que devemos ter com as estatísticas, conta-
va com uma população aproximada de 8 000 habitantes em 1650,
chegando, em 1700, a 15 000. Lisboa, em 1626, apresentava uma
população de 126 OOO33. Imagine-se o que fosse a "popularidade"
do poeta, naquele ambiente em que o número de letrados era re-
duzido.
Vivia-se, na Europa, um momento de indecisão artística. Se
para alguns prevaleciam os ideais de compostura e equilíbrio do Re-
nascimento, para outros a busca do "estilo" alimentava experiên-
cias extravagantes, excessos maneiristas. Terceiros, na linha aristo-
télica, que autorizava que a palavra arte pudesse significar "regras'',
faziam a apologia do artifício e se entregavam a testes de invenção
e espírito. As graças ornamentais e complexidades coexistiam com
as regras do bom-gosto e do discernimento.
Tratando do Maneirismo, John Shearman assinala que " o
amor à complexidade em lugar do amor à economia era outra ca-
racterística do período " 3 4 .
O maneirismo de Gregório de Matos estampa-se em grande
quantidade de composições. Seria inócuo enfileirar exemplos de
quiasmos, oxímoros, paronomásias etc., para descrever o arsenal
retórico altamente comunicativo do poeta, na linha de observância
dos cânones da época, combinada com um irretorquível talento in-
dividual.
Mas será frutífero empregar as categorias antitéticas para em-
preender um vôo sobre a poesia de Gregório de Matos, pois o que
há de mais inédito na sua obra foi a tentativa de conciliação do uso
culto da língua com o popular. E daí obteve a conexão perfeita, não
lograda até ele, dos três linguajares que se entremesclavam no terri-
tório do país: o indigena, o europeu e o africano.
Com efeito, a obra de Gregório de Matos pode servir-nos pa-
ra detido estudo da fusão lingiiístico-cultural que se processou en-
tre nós no século XVII, sendo, de todos, o documento mais fas-
cinante.
Está na índole do Barroco a tentativa conciliatória de contra-
dições, dentro de um clima de espetáculo e jubilação. Mas, no caso
de Gregório de Matos, que respira o ar de um Barroco não-legítimo,
33
Cf. tabela 1, p. 6-7 de O livro no Brasil, de Laurence Hallewell, trad. Maria da
Penha Villalobos e Lólio Lourenço de Oliveira, Edusp/INL, 1985.
'4 O Maneirismo, trad. Octávio Mendes Cajado, São Paulo, Cultrix, 1978, p. 20.
24
já deteriorado num contexto de desilusão, problematizado pela im-
potência económica e pela exploração baseada no trabalho escravo,
o poeta afina o instrumento num tom menor de zombaria e descré-
dito. Mistura prazerosamente o culto ao popular, na propensão ao
rebaixamento de todos.
Realiza o jogo da igualdade e da diferença, propondo justa-
mente no plano da linguagem a insolubilidade da contradição,
deslizando-a no eixo da conduta, do compromisso ético, cuja esta-
bilidade seria, na verdade, incompatível com o regime e a situação
reinante.
Na verdade, o jogo retórico conserva e prestigia a ambivalên-
cia, como etapa de uma busca de plenitude. E o que se pode notar,
por exemplo, no poema "Reprovações", emblema, no recurso en-
genhoso de procura de antónimos, na pesquisa da simetria vocabu-
lar para conteúdos opostos, de uma situação antípoda: nem fecha-
da, nem aberta. Como se se dispusessem, em campo neutro, sen»
hostilidade, mas contrapostos, o nobre e o plebeu, o culto e o incul-
to, o rico e o pobre, o nome e o antônimo. O jogo de palavras suge-
re o estudo das polarizações da época, o modo como se distribuem
as virtudes e o decoro, de um lado, assim como a torpeza e a infâ-
mia, de outro. No aparato vocabular, positivamente opulento, se
denunciam os valores sociais que instigavam o poeta na sua dicção
ácida e mordaz. E assim novos recantos se abrem, na consideração
da poesia de Gregório de Matos, diante da coexistência da simplici-
dade com a estranheza, bem como da convivência do insólito com
o natural. Cumpre à crítica buscar significados que se ocultam nos
textos.
Algumas precauções devem ser tomadas. Mencionamos o goste
da alegoria difundido nos períodos Maneirista e Barroco. Do mes-
mo modo, chamamos a atenção para a tendência ao apelo visuaL
É sabido que a Idade Média utiliza a alegoria sob todas as es-
pécies, como forma de expressão do pensamento. Na fase da cultu-
ra cavalheiresca, desenvolveu-se a heráldica, mais um modo de re-
presentação de conceitos mediante figuras. E os "exemplos" foram
empregados para fins doutrinários e pedagógicos. Como informa
José Antonio Maravall, o exemplo tanto vale — sobretudo em épo-
cas imaginativas — se for um fato histórico, acontecido realmente,
como se for um fato convenientemente imaginado 35 .
— De certa forma, dá-se nos períodos Maneirista e Barroco uma
expansão da literatura emblemática como forma de ensino, uma es-
pécie de restauração de elementos medievais, uma refeudalização.
35
Teatro y literatura en la sociedad barroca, Madrid, Seminários y Ediciones, 1972,
p. 162.
25
Para fins de persuasão, empregava-se urna simbologia clara,
se possível conhecida por todos de antemão. Nos setores mais cul-
tos é que se introduzia certa obscuridade, certo mistério, tornando
a decifração um exercício mental.
Um estudo especial deve ser feito quanto à literatura emble-
mática de nosso Maneirismo literário. Deve-se investigar o visualis-
mo das descrições de Gregório de Matos e, especialmente, seu con-
ceptismoeseus "exemplos". A visão desi, dos outroseda socieda-
de estará subordinada às tendências deformadoras da emblemática,
em que o fato imaginado também serve às demonstrações de cunho
moral ou político. Afinal, era ponto de honra da preceptística in-
formar, mover e arrebatar. Ou seja, o texto era usado para provo-
car paixões e conduzir o leitor à ação.
O visual era o elemento estratégico. Entre o ouvido e o olho,
preferia-se estimular o último. Lope de Vega dizia:
" E n liegando
a la prueba de los ojos
cómo puede haber engano?" (Porfiando vence amor )
26
é suficiente para o desejo. O espaço visível atesta ao mesmo tempo
meu poder de descobrir e minha impotência de alcançar 37 ".
Alegoria, emblema, exemplos... A obra de Gregório de Ma-
tos fala de si e dos outros, é relação. Precisa ser reduzida a si mes-
ma, ao seu ponto ótimo.
37
Id., ibid., p. 13-4.
27
O ROMANTISMO
E A FUNDAÇÃO
DA NACIONALIDADE
IPor ocasião do sesquicenlendrio da publicação de
Suspiros poéticos e saudades, de Domingos Jose'
Gonçalves de Magalhães)
1
Vers un nouveau romantisme?, em Inlroduclion à la modernité. Paris, Les Édi-
tions de Minuit, 1962, p. 295.
31
Aliás, contemporaneamente a Suspiros poéticos e saudades,
Gonçalves de Magalhães lançou, com Araújo Porto-Alegre e Torres
Homem, a revista Niterói, cujo lenia era: "Tudo pelo Brasil e para
o Brasil".
A revista, como se sabe, só teve dois números. Gonçalves de
Magalhães apresentou, então, o seu "Discurso sobre a história da li-
teratura do Brasil", no qual externa o seguinte conceito: "Cada po-
vo tem sua literatura própria, como cada homem seu caráter par-
ticular".
Aí está um exemplo perfeito de particularização (Nação e Ho-
mem singular), tópico romântico que, conforme vimos, enquanto li-
bera a individualidade, exclui o ideal da comunhão e da comunida-
de, condenando a consciência à solidão e ao solipsismo.-
A visão romântica do Brasil incidiu sobre algumas de nossas
compartimentalizações. Como se sabe, a primeira simbolização da
pátria brasileira recaiu sobre o índio, por força de uma conjunção
de fatores.
Primeiro, logo após a nossa independência, prosperou entre nós
um forte sentimento antilusitano. Ficou, desse modo, excluída a con-
tribuição europeia e, portanto, branca, da simbologia da naciona-
lidade.
A contribuição africana apresentava, em termos de glorifica-
ção, aspectos negativos: os negros estavam escravizados e vinham de
fora.
Daí a ênfase no aspecto nativista e a valorização do indígena,
cujo aniquilamento se atribuía exclusivamente ao colonizador, o por-
tuguês. Ademais, vinha da França, especialmente, a busca do homem
natural, exemplificado com o nativo da América.
Gonçalves Dias e José de Alencar se destacaram no Romantis-
mo brasileiro como promotores da imagem idealizada de nosso índio.
A situação do negro, por sua vez, foi alvo do protesto e da co-
miseração de muitos de nossos autores românticos, a começar pelo
próprio Gonçalves de Magalhães, chegando a seu esplendor com a
militância abolicionista de Castro Alves. Todos desenvolveram, em
relação ao negro escravo e a outros problemas sociais brasileiros, uma
espécie de humanismo sentimental ou piedoso.
No caso de Gonçalves de Magalhães, é expressivo o primeiro
poema de "Saudades" (segunda pane do livro), com o título "Invo-
cação à saudade", conforme se vê nos trechos abaixo:
Oh terra do Bras terra querida.
Quantas vezes dc mísero Africano
Te regaram as lágrimas saudosas?
32
Quantas vezes teus bosques repetiram
Magoados acentos
Do cântico do escravo
Ao som dos duros golpes do machado!
Ou,
O presente te atende; e no futuro
35
Ternos vão soar os teus acentos!
Ou, ainda:
E vês nas águas, que a teus pés deslizam,
A imagem de teus dias fugitivos.
E, mais adiante:
Acima dele Deus — Deus tão somente.
Mais uma vez se concretiza, na obra do poeta brasileiro, a cele-
bração da História através de seus vultos marcantes, seguindo uma
tendência da poesia ocidental da época. Tal circunstância haverá de
multiplicar-se nos inúmeros poetas que se seguiram na esteira do pio-
neiro Gonçalves de Magalhães, cujos ideais liberais estão vivos no
livro de 1836.
38
O REALISMO-
NATURALISMO
DE JÚLIO RIBEIRO
1
Centenário de Júlio Ribeiro, em Poesia eprosa. Rio de Janeiro, José Aguillar, 1958,
v. 2, p. 987.
2
Romance histórico original, 1. ed.. Campinas, 1876-1877, 2 v., 243 e 192 p. Usa-
mos a terceira edição, São Paulo, Companhia Graphico-Editora Monteiro Lobato,
1925.
39
Foi diretor do periódico O Sorocabano, sufocado por dívidas
em 1872. No Fim do mesmo ano, editou O Sorocaba, nova tentativa
jornalística. Em 1874, ainda em Sorocaba, imprimia a Gazela Co-
mercial, periódico no qual publicou os folhetins que compõem a pri-
meira parte e o início da segunda parte do romance Padre Belchior
de Pontes. A partir de 1875, a Gazeta Comercial se tomara um diá-
rio, " o primeiro diário do interior da Província", no depoimento
de Aluísio de Almeida 3 .
Alguns episódios de sua vida dizem respeito à lealdade com
que abraçava as suas ideias e ao seu inquebrantável espírito comba-
tivo. Abolicionista, republicano, naturalista e, até, separatista, pu-
nha em tudo o fogo da decisão peremptória.
Abolicionista, sustentou, por quase dois anos, uma folha re-
publicana em Sorocaba, "com sacrifícios inauditos", no seu dizer,
"em cujas colunas, desde o dia 25 de janeiro de 1872, não se admi-
tiram anúncios sobre escravos fugidos".
Republicano, orgulhava-se de o Barão de Tremembé tê-lo con-
siderado " o primeiro republicano brasileiro". Condenava veemen-
temente as instituições monarquistas, do mesmo modo como recla-
mava da infidelidade republicana, do oportunismo de políticos do
porte de Campos Sales e Prudente de Morais 4 . Curioso é que o pro-
tótipo do homem prestante, na sua integridade, inclusive para o exer-
cício da política, dependia, para Júlio Ribeiro, do conhecimento da
ciência e da literatura. Daí o juízo desfavorável aos conhecidos po-
líticos paulistas:
Nenhum deles escreveu jamais obra de fôlego ou mesmo pas-
sageira; nenhum deles colaborou ainda em revista de ciência ou de
literatura. A sua bagagem de escritores limita-se a alguns artigos de
foro ou de política, esparsos nos jornais da província 5
J
Jcvio Dornas Filho, Júlio Ribeiro, Belo Horizonte, Cultura Brasileira, 1945, p. 12.
* A> informações acima, sobre o abolicionista e o republicano, encontram-se em Jú-
lio Ribeiro, Cartas sertanejas, ed. autorizada e revista, São Paulo, Brasil Ed., prólo-
go catado de Rio de Janeiro, 25 de junho de 1885. (Coleção Nacionalista.) O livro
reuae artigos do autor para o Diário Mercantil.
5
M . ibid., p. 19.
40
Naturalista, fez da doutrina literária uma religião e de Zola
um semideus.
Separatista, abraçou exótica idéia que fermentou em algumas
cabeças nos primórdios da República:
Nós, paulistas, bem como nossos irmãos mineiros e paranaen-
ses. somos gente muito diversa da gente do Norte que nos gover-
na. Temos tradições, temos hábitos, temos costumes — nossos só
— desconhecidos, incompreensíveis até no estrangeiro, ao nortis-
ta. Nosso sangue é outro — em nossa máxima parte descendemos
da colónia fidalga, que, em circunstâncias especialíssimas, fundou,
nesta capitania de S. Vicente, Martim Afonso de Sousa.
Antecedentes culturais
6
Id„ Ibid., p. 94.
41 4
ções que se anunciavam paia a vida política e paia a experimenta-
ção científica. E entregava-se às causas com paixão de neófito, ra-
dicalizando conceitos ainda não provados pela prática.
Mas apresentou algumas antecipações importantes. Nos estu-
dos da gramática, por exemplo, a sua contribuição foi pioneira em
alguns pontos. Nos Traços gerais de linguística' desenvolve uma te-
se evolucionista, cita Haeckel, e admite as línguas como organismos
sociológicos, sujeitos à lei geral da luta pela vida.
Publicando a Gramática portuguesa um ano após 8 , Júlio Ri-
beiro se avantaja a muitos gramáticos brasileiros e portugueses na
concepção mais moderna do fenómeno da língua.
A inspiração de dedicar-se à gramática veio-lhe da leitura do
livro Da educação9 de Almeida Garrett, que recomendava Lindlay
Murray (1745-1826), gramático americano que viveu na Inglaterra a
partir de 1784, conhecido pela sua Eng/ish grammarde 1795, revista
em 1818, que, até 1850, monopolizava o campo tanto nos Estados
Unidos quanto na Inglaterra.
Nos termos de Júlio Ribeiro, procurou, no que coube, "apli-
cação da gramatologia inglesa à língua portuguesa" 10 .
Provocado por um opositor que se assinava Demócrito, Júlio
Ribeiro dedica as cartas V e VI no Diário Mercanti! a refutar os ar-
gumentos do crítico que o acusava de copiar Pichard e Hovelacque
em Traços gerais de linguística e de usar exemplos e definições de
Holmes na Gramática portuguesa. Deixa claro que, no prefácio do
primeiro livro, assegura que a maior parte é de Pichard e Hovelac-
que. Quanto ao segundo, indica algumas fontes, como Holmes; o
filósofo belga Burgraff, quanto à lexiologia; Mason, na maneira de
analisar os elementos da sentença; a Lexiologie des écoles de Lar-
rousse, para a pontuação etc.
E invoca a repercussão de seu trabalho, elogiado por Lefeb-
vre, Barbosa, Capistrano de Abreu, por Conselheiro Viale e, espe-
cialmente, por Teófilo Braga, para quem a gramática de Júlio Ri-
beiro estava acima de todas as gramáticas portuguesas.
Manuel Bandeira, na conferência "Centenário de Júlio Ribei-
r o " , feita na Academia Brasileira de Letras, observou: " O roman-
cista, o jornalista, o polemista teve os seus admiradores e os seus
desafetos: o gramático, porém, impôs-se soberanamente" 11 .
7
S i o Paulo, Liv. Popular de Abílio S. Marques, 1880, v. 3, 117 p. (Biblioteca Útil.)
' São Paulo, Tip. de Jorge Sockler, 1881, 299 p.
* Londres, 1829.
Cartas sertanejas, cit., p. 69.
11
Em Poesia e prosa, Rio de Janeiro, José Aguillar, 1958, v. 2.
42
Com efeito, numa época do império da gramática normativa,
em que quase sempre a regra precedia o fato, Júlio Ribeiro já apre-
sentava abertura para a observação da língua no seu uso cotidiano.
Dele são estas palavras nas Cartas sertanejas:
O uso popular em matéria de linguagem é autoridade decisi-
va, /us et norma loquendi. quando a massa indouta e sensata do po-
vo, em obediência inconsciente às leis da glótica, que afinal são leis
fisiológicas, altera a forma das palavras matrizes 12 .
12
Cit., p. 12.
" Ibid., p. 51.
14
Ibid., p. 19-20.
43
É curioso como, nesse passo, tangencia logo o ridículo:
Oualquer dos dois deputados será capaz de resolver uma equa-
ção do segundo grau? I...1 de traçar a árvore genealógica da vida
animal, a partir dam onera e a terminar no homem ariano, passando
como por etapas, pelos gast/eades, pelos acranta. pelas p/oma/r-
maJra, pelos antropóides? — de reconstruir, ao menos em imagina-
ção, as formas esquisitas e gigantescas dos sáurios da época jurás-
sica? Conhecerão eles as afinidades glóticas, o parentesco das lín-
guas que é o das idéias, e por conseguinte dos homens? 15 .
O ficcionista
15
Ibid., p. 21.
16
São Paulo, Teixeira & Irmão, 1887, 67 p.
17
São Paulo, Carlos Zianchi, 1895.
18
São Paulo, Cultura Brasileira, 1935.
44
É um romance essencialmente histórico em sua máxima par-
te, acentua o A., tirados alguns anacronismos necessários ao enre-
do, algumas ficções e um ou outro personagem de imaginação, tu-
do o mais teve vida, passou-se mesmo.
19
Padre Belchior de Pontes, cit., p. 43-7.
45
Todos os varões são virtuosos, todas as mulheres sào castas e
nobres. Branca é "alva, loura" 20 , sonha com Belchior, "moço rui-
vo" 2 1 ; seu noivo, "apessoado fidalgo paulista" 22 , "era um moço rui-
vo de bonita presença"23. O Dr. Guilherme Pompeu de Almeida, com
renome de rico e culto2"4, tem, depois de uma caça, um sonho erótico
e encontia, quando se dá conta, "duas criancinhas louras" 25 numa
casinha rústica. Também o Pe. Belchior, antes da partida de Pirati-
ninga, tem um sonho em que, após uma cena.erótica, se vê pai de crian-
ças louras 26 .
No tecido romântico de Padre Belchior de Pontes infiltram-se
cenas realistas que já prenunciam o escritor de A carne. O tom discur-
sivo é assessorado pela fúria expositiva, de modo que tudo tem de ser
dito, nada fica insinuado. Tudo isso gera um estilo exibicionista, em
que o saber se expõe desnecessariamente em preleções, citações latinas
(há alguns títulos em latim), remissões a autores e episódios da Histó-
ria. Trata-se de um realismo livresco, baseado no argumento de auto-
ridade, como se a verdade última aí se encerrasse.
A disseminação de arrazoados acaba liberando informações pa-
raliterárias. Exemplo: ficamos sabendo que a expressão "ordem do
dia" se popularizou quando Júlio Ribeiro escrevia o romance27.
As escassas cenas "fortes" der romance aparecem nos sonhos das
personagens, sendo a mais característica a do Pe. Belchior, em que
surpreendemos o mesmo voyeurismo da personagem Barbosa do ro-
mance A carne, ou seja, a excitação baseada em estímulos visuais (em-
bora o apelo sensorial seja genérico, a seguir):
Via-se ao lado de uma mulher em todo o esplendor da mais bri-
lhante nudez, devorava-lhe com vistas cúpidas as formas lascivas,
palpava-lhe a carnadura cheia de vida e de fogo, sentia-lhe o arfar im-
paciente do seio, hauria-lhe o hálito perfumado em longos e famintos
beijos, estreitava-a ao seio em uma convulsão de prazer, murmurava
frases inconexas...28.
Na terceira parte, "Os emboabas", quando se narra o cerco que
os paulistas fizeram ao reduto emboaba, comandado pelo Ambrósio
Caldeira, surge a filha deste, Guiomar, que, do modo como acontece
com Lenita, em A carne, se imporá pela cultura. Curiosamente, Guio-
mar lê ao pai um poema que escrevera, sob a sugestão de uma "loa"
20
Ibid., p. 4.
"22 Ibid., p. 9.
Ibid., p. 66.
" Ibid., p. 67.
24
Ibid., p. 73.
25
Ibid., p. 80.
24
Ibid., p. 121.
r
Ibid., p. (p6. Na p. 130, da segunda parte, intitulada "O sertão", em nota de pé
de página o A. explica que o capítulo fora "escrito em 1875".
28
Ibid., p.^2S.
46
antiga, cantada pela velha Silvéria Moreira. O poema " O conde ne-
gro" é transcrito no romance e é discutido pelos dois protagonistas.
Forma um paralelo com o poema de Barbosa, transcrito pelo roman-
cista no capítulo 17 de A carne.
Não testa dúvida de que o poema narrativo de Padre Belchior
de Pontes é de muito melhor qualidade do que as quadras lírico-
naturalistas da personagem Barbosa.
Outra parte que aproxima os dois romances, que em muitos as-
pectos podem ser considerados romances-tese, consiste na crítica da
instituição do casamento. A diferença está em que em Padre Belchior
de Pontes apenas se desenha o questionamento, ainda revestido de di-
mensão religiosa:
Quem há que não tenha assistido a esse ato tão solene da vida,
ato que a Igreja de Roma qualifica de "sacramento" e que o apóstolo
Paulo chama mistério? Um não sei quê apodera-se do espírito do ho-
mem, e a cerimónia, que devia por sua natureza infundir júbilo, faz ma-
rejarem lágrimas... Dir-se-ia que a maldição do Éden, viva sempre,
materializa-se e constringe com férrea mão os corações dos filhos do
pecado, e entristece-os ao presenciarem os ritos que legalizam e santi-
ficam a propagação da humanidade, que sancionam-lhe a permanên-
cia da raca, que nobilitam-lhe a existência até a consumação dos
séculos...^.
N
Ibid., p. 68.
30
Ibid., p. 175.
31
Ibid., p. 179.
47
A cena descrita é de um sadismo inominável. Depois do açoi
te, fazem-se nas chagas escarificações longitudinais com a navalha,
que são irrigadas, a seguir, com salmoura. Em nota de pé de pági-
na, Júlio Ribeiro acrescenta à descrição:
Esta cena torpe é copiada à'ap/ès naiure. Ainda em 1864, na
cidade de """" teve o autora pouco invejável oportunidade de teste-
munhar, como pane componente de um público de mais de quatro-
centas pessoas, um ato de tal natureza: substituídas as estacas por
uma escada de má o, e ajuntados uns poucos de gracejos obscenos
por parte de algunscircunstantes, a cousa teria sido idêntica. As es-
carificações e a loção de água salgada têm por fim, dizem, prevenir
a gangrena e promover a supuração"52.
32
Ibid., p. 181.
33
A carne, São Paulo, Teixeira & Cia., 1888. Usamos: Salvador, Progresso, 1956,
acompanhado da polémica com o Pe. Sena Freitas (estranhamente consta do fron-
tispício, por duas vezes, Sena Madureira).
48
os paulistas são divididos por dissidência interna entre Luiz Pedro-
so, chefe duro e vingativo, e Amador Bueno, homem sensato. He-
róis perfeitos como Rui Gonçalo compõem o elenco paulista.
Em suma, não há praticamente vilões na história. Há capri-
chos do destino. O romancista explora os homens heróicos na sua
positividade: beleza, vigor, riqueza, inteligência, brilho. Ambrósio
Caldeira, que patrocinava o namoro da filha Guiomar com o em-
boaba Antônio Francisco, incumbe este de matá-la m. ma explosão
de pólvora, a fim de que não caísse virgem em mãos dos sitiantes
paulistas. O diálogo, na ocasião, é ilustrado com passagens históri-
cas da Antiguidade greco-latina. Tal é o tom do "romance históri-
co original".
Estética naturalista
14
Labirinto do espaço romanesco. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979,
p. 35.
50
de outro modo, se se pode traduzir uma imediatidade não-semio-
lógica por uma mediação semiológica. O divisor das duas realida-
s des, o mundo verbal dos signos, e o miindo extraverbal das coisas
ditas "reais", pode ser encontrado na velha observação do filósofo
grego: a palavra cão não morde.
A grande aporia do Naturalismo consistiu em transpor-se de
um universo a outro sem perceber-Ihes a diferença. Daí cair na ar-
madilha de querer realizar o impossível: copiar em palavras, de mo-
do transparente, o resultado da observação, como se fosse possível
"retratar" a realidade, traduzindo-a em palavras, como se, nestas,
a experiência pudesse se conter.
Ora, o próprio retrato somente reproduz certas impressões vi-
suais que, elas mesmas, são precárias captações de um segmento de
ondas luminosas. Além do mais, cada fenómeno se altera segundo
a escala de observação. Como então comportar o "real" numa tra-
dução, ou seja, transplantá-lo à esfera da articulação narrativa? Pode
a língua copiar o "real", exprimi-lo sem o criar?
Não alcançavam os adeptos do Naturalismo que o sistema mor-
fossintático, a serviço da linguagem literária, instaura uma realida-
de própria, independente do sistema referenciado, cria uma "alu-
são" que é igualmente uma "ilusão", veicula uma informação acerca
do mundo transbordante de fenómenos, rico, disperso e variado,
f "* A prática naturalista baseia-se noutra ilusão: a de que a ciên-
cia pode escancarar as portas do "real". E esse "real" verdadeira-
mente não passava de um arquétipo, de um valor institucionalizado
que o tempo rapidamente superou.
O fervor na ciência infestou a narrativa naturalista de cláusu-
las de desambiguização, para atingir a transparência, a "casa de vi-
dro" (maison de verre) de Zola. Desliza-se frequentemente, nesta
caminhada, das circunstâncias poéticas para o mais descolori " oro-
saísmo. O texto naturalista apresenta-se sempre sob a ditadura de
35
Temas literários e juízos críticos, Belo Horizonte, Tendência, 1963, p. 37-42.
52
bosa se dá o contrário: de um frio e calculista se transmuda num
apaixonado, para culminar numa auto-agressão suicida. De perso-
nagem ativa passa a personagem passiva. Há um cruzamento de ati-
tudes na tradicional caracterização do feminino e do masculino co-
mo, respectivamente, o elemento passivo e o elemento ativo. Mes-
mo na iniciação sexual, os passos decisivos são dados por Lenha.
Talvez haja ai, a uma investigação psicanalítica, uma ocultação in-
consciente de tendências transexuais.
O encontro dos dois parceiros da ação dramática foi selado,
como não poderia deixar de ser, pelas afinidades cientificas. Observe-
se a progressão do entendimento:
Passearam, conversaram muito. Falaram principalmente de bo-
tânica. Barbosa estabeleceu um confronto detalhado entre a flora
do velho mundo e a do novo; entrou em apreciações técnicas; des-
ceu a minudênciasde sua própria observação pessoal. [...] Citou Gar-
cia D'Qrta, Brotero e Martius, criticou Correia de Melo e Caminhoá,
confessou-se, em relação a espécie, sectário ardente de Darwin, cujas
opiniões radicou a estima entre ambos: quando entraram para al-
moçar estavam amigos velhos 36 .
36
A carne, p. 63.
37
Ibid., p. 79.
53
No capítulo L6, há toda uma descrição de um dos encontros
amorosos entre Manuel Barbosa e Helena Lopes Matoso, a Lenita,
em que o tópico do voyeurismo ressurge de modo algo caricatural.
O narrador fala sintomaticamente de uma fechadura, que é obstruída
para impedir olhares curiosos para a cena íntima:
Em liberdade absoluta, peHeita, nâo se contentava com o pra-
zer material de possuir Lenita. Queria o pecado mental inteligente,
os ma/a mentisgaudia de que fala Vergílio; queria contemplar, co-
mer com os olhos a plástica soberba do corpo da moça, ora em to-
do o esplendor da incandescente nudez, ora realçado pelos atavios,
pelas extravagâncias da moda 18 .
54
marfins, de bronzes artísticos, de moedas antigas. Tem, ao que me
dizem, uma qualidade adorável, um verdadeiro título de benemerência
— nunca fala, nunca disserta sobre coisas de gramático 40 .
Dá-se, ainda, demorada notícia da passagem de Ramalho Or-
tigão por São Paulo.
Nas duas cartas tão detestadas por alguns leitores podemos co-
lher a síntese das duas colunas básicas do saber de Júlio Ribeiro:
a de Barbosa representa a ciência; a de Lenita diz respeito às artes.
Na longa missiva de Barbosa há um trecho premonitório den-
tro do enredo, quando o missivista explica o viaduto da Grota Funda:
Ao contemplar-se do meio da ponte essa vacuidade assom-
brosa, os ouvidos zunem, a cabeça atordoa-se, a vertigem chega,
vem a nostalgia do aniquilamento, o antegosto do nirvana, o delírio
das alturas, e 1az-se mister ao homem uma concentração suprema
da vontade para fugir ao suicídio inconsciente 41 .
40
Ibid., p. 211.
41
Ibid., p. 107.
42
Ibid., p. 220.
55
Dezalay 43 , que aponta os mitos e os contos de fada no prógono na-
turalista.
A carne igualmente pode ser um conto de fada, uma realiza-
ção do desejo sem a presença da lei e das interdições. Os obstáculos
foram todos afastados para a concretização da vontade secreta do
par erotizado.
Romance de iniciação? Talvez, no sentido de que as experiên-
cias de vida da culta Lenita estavam nos livros e na ciência. A pro-
jeção de seus conhecimentos é livresca, fora da errância vivencial.
Em >4 carne, o escritor procura converter-se simultaneamente
em romancista e cientista: narra e tenta provar uma tese. Encarna
o intelectual da época, cujo ideal seria o monopólio da criação e
o poder da cultura. O romance se presta à circulação do saber (zona
privilegiada dos "informantes", na acepção de Roland Barthes), tra-
duz uma obsessão pelo referencial.
O narrador esquematiza as reações psicológicas a ponto de,
fornecendo a chave do diagnóstico, não caber dupla ou tripla inter-
pretação da personagem. Tal limitação, da propriedade multiplica-
dora de sentidos que a obra deve oferecer, degrada o texto, esvazia
o seu cunho poético.
A crise da união "natural" de Barbosa e Lenita contém uma
direta crítica ao casamento. O romance é o género de eleição da bur-
guesia. A crítica social que então se fazia visava principalmente a
família, célula privilegiada da sociedade burguesa. O ataque ao ca-
samento vinha a ser a primeira investida contra a organização social.
Antigamente, a aristocracia financiava a poesia. A economia
pré-capitalista gerou o ócio palaciano, a nobreza. Ao refinamento
desta, ao código de boas maneiras se agregavam os poetas, patroci-
nados por mecenas que, entre os seus vários exibicionismos, incluíam
a contratação de artistas para exaltar os seus feitos, ou o de seus
antepassados. Era uma das formas de afagar o ego engrandecido
perante outros tantos egos excitados e exuberantes.
Sendo o mercado o lugar privilegiado da prática burguesa, para
ali se transportou o criador demandado por aquela classe: o roman-
cista. O grupo "classe média", sociologicamente pouco definido,
mas de qualificação genérica (poder de compra, tendência à vida ur-
bana, concentração no setor de produção de serviços, consumo cons-
pícuo etc.) passou a ser o patrocinador do artista que o representa,
a ser o suporte dele. Assim, enquanto a aristocracia constituiu o
apoio dos poetas que, por sua vez, reforçavam o estatuto aristocrá-
43
Les mystères de Zola, Revue des Sciences Humaines, 15 (160), oct./dec. 1975.
56
tico, a classe média, na sociedade burguesa, passou a ser estipen-
diadora do romancista, que, por seu turno, reitera a estrutura so-
cial que tomou como referente. O romancista se encarregou de fa-
zer o relato da vida cotidiana do burguês.
As ásperas palavras contra o casamento em A carne talvez te-
nham concorrido para parte de seu sucesso durante tanto tempo,
pois simbolizavam uma crítica indireta à sociedade em crise.
57
ASPECTOS LITERÁRIOS
DE MONTEIRO LOBATO
1
Limitar-nos-emos à correspondência de Monteiro Lobato com Godofredo Rangel,
reunida em dois volumes sob o titulo geral de A barca de Gleyre, São Paulo, Brasi-
liense, 1968.
2
Ibid., v. 2, p! 198-9.
59
Sim, Lobato, encantado com a popularidade da própria obra,
já manifestava entusiasmo com o projeto da edição das cartas, "um
verdadeiro romance mental de duas formações literárias", confor-
me disse em 27/10/1943, quando conclui: "Outra coisa está me pa-
recendo: que na Literatura fiquei o que sou por causa dessa corres-
pondência""3.
As cartas a Godofredo Rangel iniciam-se em 1903 e vão até
a véspera de S. João de 1948. Preenchem as 752 páginas dos dois
volumes, encimadas pelo título A barca de Gleyre. Por que esse
título?
Trata-se de uma remissão ao assunto de uma carta de 1904,
portanto, quando Monteiro Lobato tinha apenas 22 anos. Mencio-
na, em 15 de novembro, o quadro de Gleyre, comentado nos En-
saios de crítica e História, de Taine: "Num cais melancólico barcos
saem; e um barco chega, trazendo à proa um velho com o braço
pendido largadamente sobre uma lira — uma figura que a gente vê
e nunca mais esquece" 4 .
Lobato, em nota de pé de página, corrige o texto da juventu-
de. O quadro de Charles Gleyre denominava-se Soir, "mas o públi-
co foi mudando esse nome para IUusionsperdues e assim ficou".
Além disso, informa: "Eu também mexi no quadro. Pus o velho
dentro da barca e fiz a barca vir entrando no porto, toda surrada.
Traí o pobre Gleyre. Sua barca não vai entrando, vai saindo, como
se deduz do enfunamento das velas..." 5 .
Bela e inspirada carta daquele dia longínquo da mocidade. Há
toda uma elaboração de algo que diríamos uma estética existencial.
Vejamos: "Somos vítimas de um destino, Rangel! Nascemos para
perseguir a borboleta de asas de fogo — se a não pegarmos, sere-
mos infelizes; e se a pegarmos, lá se nos queimam as mãos" 6 .
A carta irá dizer adiante a meta suprema do escritor, em pala-
vras de grande atualidade: "Cansado de desanimar, eu não desani-
mo mais, depois que apanhei a causa dos meus desânimos. Traba-
lho às ocultas lá no subconsciente. Em quê? na afinação da lira e
na fixação com palavras do que ela apanha. O sonho, sabes qual
é — o sonho supremo de todos os artistas. Reduzir o senso estético
a um sexto sentido. E, então, pegar a borboleta!" 7 .
3
Ibid., v. 2, p. 361.
* Ibid., v. 1, p. 80. Título do quadro: Ilusões perdidas.
5
Ibid., v. 1, p. 83.
6
Ibid., v. 1, p. 81.
7
Ibid., v. 1, p, 83. Grifo acrescentado.
60
Após, Monteiro Lobato irá caracterizar com precisão de mes-
tre o que consideraríamos hoje a ruptura, a busca da originalidade,
a própria literariedade, consciente de que o risco de qualquer poéti-
ca é desatualizar-se: " H á no mundo o ódio à exceção — e ser si mes-
mo é ser exceção. Ser exceção e defendê-la contra todos os assaltos
da uniformização: isto me parece a grande coisa" 8 .
É claro que, ao longo de mais de quarenta anos de correspon-
dência e discussão de problemas literários, haveremos de surpreen-
der oscilações conceituais. Só não decai o fervor de escrever cartas,
embora o contista tenha atravessado fases de descrença quanto à
literatura. Nota-se, em verdade, certo laconismo no final da longa
série de cartas, algumas queixas do tempo escasso: falta aquela am-
plitude de horizontes dos primeiros tempos.
Quer-nos parecer que nelas se encontra o refúgio do incoercí-
vel impulso à escrita de Monteiro Lobato. Sua vida se constitui ao
longo das cartas, como se a letra fosse a única forma de constitui-
ção do ser.
Há nele uma divisão profunda entre o homem de ação e o es-
critor. Ora um devora o outro, ora este oblitera o primeiro, num
interminável jogo de prioridade. O momento de síntese foi tentado
quando Lobato se tornou editor: poderia ser escritor e empresário
ao mesmo tempo. Pura ilusão. A atividade industrial e comercial
se revelou cheia de ciladas, plena de altos e baixos. E naquela orgia
de interesses o escritor se perdia. Somente o epistológrafo, todavia,
estava isento de eclipses. Era a razão de vida do escritor.
No prefácio que Monteiro Lobato fez para o livro de contos
de Godofredo Rangel, Os humildes9, fica bem claro que o exercício
de amizade entre ambos, praticado por mais de quarenta anos, se
restringiu às cartas. Nem sequer sabiam ser naturais um com o ou-
tro, em caso de presença física. "Só sabemos conversar por carta",
confessa Lobato. E acrescenta:
Nas raras vezes em que nos encontramos no decurso de trin-
ta anos sentimo-nos constrangidos um diante do outro, sem facili-
dade no dizer — e com uma grande vontade de separar-nos nova-
mente e novamente retornarmos à correspondência. Não somos ami-
gos falados, somos amigos escritos (grifo acrescentado).
8
Ibid., V. 1, p. 83.
' São Paulo, Universitária, 1944.
61
não nos gostamos em carne e osso e sim só epistolarmente? Come-
ço a desconfiar..." 1 0 .
A noção de vida que Lobato desenvolveu continha o processo
de se fazer ininterruptamente, uma projeção dinâmica: "Continue-
mos, Rangel. A grande coisa duma viagem não é o chegar — é o
ir"".
Tal conceito irá voltar sob nova forma, muitos anos depois,
quando a correspondência entre ambos vai-se tornando mais espa-
çada: "Nós nos procuramos, Rangel. E tanto nos procuramos que
nos achamos. Nós nos construímos lentamente. Não nascemos fei-
tos. E a nossa longa troca de cartas foi uma coisa linda" 1 2 .
Quando Godofredo Rangel tinha 25 anos (a correspondência
iniciara-se quando ele tinha 19 anos), enviou a coleção de cartas a
Lobato, que fez o seguinte comentário:
Tive, Rangel, com a leitura de tais cartas, a sensação de que
somos como uma roseira — que, sempre a mesma do nascedouro
à morte, varia sempre, varia incessantemente, e nunca dá duas ro-
sas iguais13.
10
A barca..., cit., v. 2, p. 256.
11
Ibid., v. 1, p. 362, longa carta de 7/6/1914.
u
Ibid., v. 2, p. 337, carta de 17/9/1943.
u
Ibid., v. 1, p. 190.
14
Ibid., v. 2, p. 54, carta de 30/9/1915.
" Ibid., v. 2, p. 118.
Ibid., v. 2, p. 311.
62
Em dois momentos distanciados, Monteiro Lobato opera a di-
visão de ambos. Primeiro, diz de Godofredo Rangel, em 1906:
É que este hábito de escrever-nosdesdobrou-te em dois Ran-
géis: o de carne, professor, marido e lá sei que mais; e o Rangel
epistológrafo. Este é que é o meu. Deste é que conheço as idéias
e as manhas. Que fique com dona Bárbara o primeiro. Eu só quero
o segundo. Este é o Rangel longe — e bem sabes como o longe em-
beleza as coisas; faz a montanha, que é verde, parecer-nos azul; e
torna também azul um céu de ar incolor 17 .
17
Ibid., v. 1, p. 125.
18
Ibid., v. 1, p. 308, carta de 7/9/1911.
19
Ibid., v. 2, p. 218.
20
Ibid., v. 2, p. 358, carta de 28/9/1943.
63
Continuará a avaliar a própria correspondência, "verdadei-
ras memórias dum novo género". Então, revela a Godofredo Ran-
gel a sua estratégia literária: publicar as cartas de ambos separada-
mente, deixando espaço à imaginação do leitor. Uma visão antina-
turalista do efeito artístico, portanto:
Minha idéia no começo era dar as tuas e as minhas junias,
articuladas, mas vi que isso iria estragar tudo. Para quem está de
fora, tem muito mais interesse uma conversa telefónica da qual só
ouve um lado; o lato de não ouvir o outro lado força mais a imagina-
ção. Fica um imenso campo de colaboração aberto à imaginativa
do auditor 21 .
21
Ibid., v. 2, p. 361, carta de 27/10/1943.
22
Ibid., v. 1, p. 47.
23
Em 2/2/1905 refugava a "arte científica": "Ciência — conjunto de conhecimen-
tos sobre a lei dos fenómenos; arte — concretização de emoções". Ibid., v. 1, p. 92.
64
perada luta contra a Fatalidade A ane nasce da dor, como a perofa
Sabe que a pért>la é o produto duma doença da ostra? Onde há doen
ça há dor — logo a pérola vem da dor 24 .
24
Ibid., v. í, p. 174-5.
25
Ibid., v. 1, p. 220-21.
26
Ibid., v. 1, p. 74.
27
Ibid., v. 1, p. 47.
28
" A grande coisa não é possuir montes de palavras; se assim fosse, um dicionarista
batia Machado de Assis. É saber combinar bem as palavras, como o pintor combina
as tintas e o músico o faz às notas. Beethoven só dispunha de sete notas — e com
elas abalou o mundo. Corot só jogava com as sete cores do arco-íris, que aljás são
três." Ibid., v. 1, p. 273, carta de 15/9/1909.
65
Na juventude, tem esta reflexão: "Sabe o que é o belo, Ran-
gel? £ o que alcança uma harmonia de formas absolutamente de I
acordo com o nosso desejo" 2 *. O apreço pelo acabamento formal
vai-se manifestar inúmeras vezes. Assim, em 1 /11/ 1908, dirá ao ami-
go: " A forma perfeita é magna pars numa literatura" 30 .
Ao formular um plano de livro de contos a dois, em 27/6/1909,
propõe, entre as condições: "Apurarmos a forma, de modo que os
críticos exigentes não descubram nem uma lêndea de pronome mal
colocado". A " f o r m a " , no caso, confundia-se com o acerto gra- i
matical, repressivamente garantido pela crítica literária da época.
. Mas Lobato tinha velha implicância com a gramática. Daí di-
zer em 30/9/1915: " a gramática faz letrudos, não faz escritores" 31 .
Chegara mesmo a imaginar-se escrevendo uma gramática histórica
filosófica, " q u e me vingue da bomba que tomei no meu exame ini-
cial. Comecei minha vida de estudos, como sabes, com uma inabili-
tação em português" 3 2 . t
Sua intuição estilística o foi levando a apurar o texto, desbas-
tando-o de "literatura", cortando demasias: "Mangueiras maninhas
— machado nelas! No romance também é assim. Tudo que for inú-
til ao progressivo efeito central pede foice e machado. Podar, po-
dar! Eis o grande segredo. Desbastar. O que fica eleva-se, ganha
realce" Í J .
Na verdade, Monteiro Lobato foi um grande estilista em lín- ,
gua portuguesa. Seu grande mestre foi Camilo, a quem endeusou
a vida inteira. Mas havia outros modelos: Machado de Assis, Eucli-
des da Cunha, Rui Barbosa e Fialho, com quem aprendeu a usar
uma linguagem solta, o "truculento Fialho", conforme dizia Lobato.
O vigor de sua frase, sua objetividade, seu estilo enérgico, cro-
mático, a visualidade que punha nas cenas descritas, fizeram de Lo-
bato um escritor festejado pela crítica e, ao mesmo tempo, popu-
lar. Certa vez, ao entrevistarmos Rodrigues Lapa, ouvimos dele pre-
ferir, na literatura brasileira, o estilo de Monteiro Lobato.
Muitas vezes, o escritor paulista teve dúvidas quanto à sua vo-
cação literária. Julgava-se mais vocacionado para a pintura do que
para as letras: "Sou incapaz de literatura; convenci-me disso em
Areias, onde tinha todo o lazer possível e não produzi nada. Minha
literatura não é de imaginação — é pensamento descritivo; não cria,
M
Ibid., V. 1 , P- 80.
30
Ibid., V. 1 . P- 222.
i«*U s f c 31
Ibid., V. 2. P- 49.
32
Ibid., V. 1, P- 292, c a n a de 30/8/1910.
33
Ibid., V. 1 . P- 304, carta de 6/5/1911.
66
Mi 1 ' " J l l W l l i p i p p f ^
copia do natural. Em suma, sou pintor; nasci pintor e pintor mor-
rerei — e mau pintor! Nunca pintei nada que me agradasse. Quan-
do escrevo, pinto — pinto menos mal do que com o pincel. Copista
portanto, e só"3"'.
Quem se der ao trabalho, poderá recolher das cartas de Mon-
teiro Lobato uma boa coletânea de análises estilísticas, a começar
pela que faz de Euclides da Cunha 35 . Há mesmo elementos para es-
tudo de literatura comparada, quando sonda as peculiaridades das
literaturas francesa, alemã, inglesa, russa, brasileira e portuguesa.
Quanto à nossa, chega mesmo a formular uma visão satírica de es-
critores como Alencar, Macedo, Bernardo Guimarães, Coelho
Neto ,& .
Tinha consciência da literatura como um julgamento, algo sub-
metido a uma ética:
Toda !;teratura, tocto romance, todo poema, por mais impes-
soal que procure ser, não passa de um julgamento. A idéia moral,
que domina mesmo o autor mais liberto de tudo, não permite a sim-
ples pintura objetiva37
67
i*iiitiiii«ir*ii»«-ftí itfrwawaft
J9
Ibid., v. 2, p. 234.
40
Ibid., v. 1, p. 252-3, carta de 6/7/1909.
41
Ibid., v. 2, p. 104.
42
Ibid., v. 2, p. 322.
68
pondência, inúmeras indicações daquela atividade, em que Lobato
experimentou tanto a glória quanto o fracasso.
Houve um momento na vida do escritor em que ele se deixou
obcecar pelo avanço da capacidade industrial do Brasil. Tendo co-
nhecido os Estados Unidos e observado as instituições americanas,
encantou-se com o progresso daquela nação e sonhava mudar os há-
bitos brasileiros. Tem uma página entusiasta acerca da televisão, vista
por ele pela primeira vez. Em carta de Nova York, em 17/8/1928,
proclama: "Meu plano agora é um só: dar ferro e petróleo ao
Brasil" 43 .
Naquela ocasião, Lobato abandonou momentaneamente a li-
teratura, sentindo-se transformado em outra pessoa:
Aquela minha fúria literária de Areias e da fazenda: quem vis-
se aquilo proclamava-me visceral e irredutivelmente "homem de le-
tras". E errava, porque o Lobato que fazia contos e os discutia com
você está mortíssimo, enterradíssimo e com pesada pedra sem epi-
táfio em cima. O epitáfio poderia ser: " A q u i jaz um que se julgou
literato e era metalurgista". Porque a minha vocação pela metalur-
gia é muito maior que a literária 44 .
43
Ibid., v. 2, p. 302.
44
Ibid., v. 2, p. 312, carta de 28/11/1928.
45
Ibid., v. 2, p. 320, carta de 26/6/1930.
46
Ibid., v. 2, p. 341.
47
Ibid., v. 2, p. 194.
69
E Lobato, ao criticar a Academia de Letras, de certa forma
previa o ingresso nela de algum presidente da República, conforme
escreveu em 1 9/9/1912: " O resultado vai vei, cá na nossa, que aca-
barão entrando até presidentes da República, porque não há razão
para que a um general Dantas Barreto não se siga um marechal Her-
mes da Fonseca"" 8 .
Há julgamento de dezenas de escritores, nacionais e estrangei-
ros. Apreciava Camilo entre todos e gostava de Nietzsche, Lima Bar-
reto, Maupassant, Balzac, Anatole France, Machado, Tolstoi, Eu-
clides da Cunha, Rui Barbosa, Macauly, Conan Doyle, Bilac, KL-
pling, Stendhal etc. Mas implicava com certos autores, como, por
exemplo, Flaubert, os Goncourt, Coelho Neto, Eça de Queirós, Osó-
rio Duque Estrada. Tem uma entusiástica página acerca de D. Gui-
dinha do Poço de Oliveira Paiva, chegando a pensar em escrever
um estudo sobre a novela.
Eis uma pálida informação acerca de A barca de Çleyre e a
correspondência de Monteiro Lobato com Godofredo Rangel. Trata-
se de leitura fascinante, de absorvente interesse. O roteiro intelec-
tual e afetivo de Lobato tem ali um retrato vivido. Serve de docu-
mento e, mais ainda, de literatura, pois a literatura brasileira esta-
ria diminuída se aquelas cartas não se dessem a conhecer. Pois, afi-
nal, Lobato concretizara o seu sonho, alcançara a borboleta de asas
de fogo: reduzir o senso estético a um sexto sentido. Senso estético
que o irá orientar na crítica aos nossos historiadores encomiásticos,
a descobrir o Jeca-Tatu na sua desventura sanitária e económica,
que o ajudará na busca da essência nacional:
gesto uma obra literária, Rangel, que, realizada, será algo ntievo neste
país vitima de uma coisa: entre os olhos dos homens cu/tos e as coi-
sas da terra há um maldito prisma que desnatura as realidades. E
há o francês, o maldito macaqueamento do francês 49 .
** Ibid., v. 1, p. 331.
* Ibid., v. I, p. 362, carta de 20/10/1914.
50
Palestra proferida na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, no
encoTametito do "Encontro Nacional de Literatura Brasileira: Centenário de Mon-
teiro Lobato", no dia 8 de outubro de 1982.
70
O caso de Monteiro Lobato é bastante ilustrativo, pois, atra-
vés de sua correspondência, podemos sentir a evolução de seu espí-
rito durante algumas décadas.
Mas é possível colher-se, na sua vívida expressão epistolográ-
fica, a formação de uma consciência acerca da literatura, da escrita
e das preferências estéticas.
Monteiro Lobato foi um homem extremamente dual, pois, de
um lado, revelou-se homem de ação, verdadeiro "empresário dinâ-
mico", segundo a conhecida conceituação de J. Schumpeter, ou se-
ja, um empresário capaz de inovação, ao adotar combinações iné-
ditas dos fatores de produção; de outro lado, sua grande preocupa-
ção foram as artes e a literatura. Esta, aliás, é que deu sentido à
grande deambulação existencial do escritor.
Sempre nos preocupou, na personalidade de Monteiro Loba-
to, a sua situação histórica. Em dado momento, ele perdeu a sinto-
nia com a verdade histórica, por um motivo simples: Monteiro Lo-
bato já era um escritor consagrado quando o Brasil começou a re-
ceber os influxos das vanguardas européias. A ansiedade da coisa
nova começou a brotar entre nós numa era de mistura de concep-
ções literárias, de confusão de sentimentos e de modificações técni-
cas e artísticas, como foi a década de 20.
Naquele momento, Monteiro Lobato, nome respeitado, espan-
tou-se com a algazarra que se fazia em torno da novidade literária
pelos jovens que pregavam a revolução literária no Brasil.
E, tendo-se assustado, ele, que já tinha feito, em 1917, uma
crítica devastadora à pintura de Anita Malfatti, sentiu-se ofendido
por aquelas ideias novas. Houve aí, então, uma polarização: Mon-
teiro Lobato ficou de um lado e o Modernismo de outro.
Após tornar-se a estética dominante, o Modernismo vingou-
se de Monteiro Lobato, omitindo-o sempre. Ele foi ficando margi-
nalizado na literatura brasileira pelo princípio da estética da exclu-
são praticado pelo Modernismo. Modernismo que castrou nossa li-
teratura de vários nomes e até de certa pesquisa que vinha sendo
feita dentro do contexto brasileiro, a pesquisa da nacionalidade, a
busca da identidade nacional.
Aquele tipo de pesquisa foi interrompido em razão do inter-
nacionalismo assumido pelo movimento modernista. Movimento,
aliás, que não começou com aquele título. Recebíamos, através de
cintilantes escritores, como Oswald de Andrade e Mário de Andra-
— de, a influência das vanguardas européias. E a vanguarda mais em
evidência naquele instante era o Futurismo. Então, a imprensa e o
público achavam que aqueles escritores barulhentos eram futuris-
tas, por causa de ser este o rótulo mais presente nas informações
que então se davam a respeito da vanguarda.
71
«4
51
Ex.: primeira carta de 1904, "4 de Bruno, de 1904". Cf. A barca de Gleyre , São
Paulo, Brasiliense, 1968, v. 1, p. 45-7.
52
A barca..., cit'., v. 1, p. 60.
53
Ibid., p. 259.
54
Ibid., p. 273.
76
Quer criticando autores, quer realizando a própria obra, ele
foi elaborando uma espécie de estilística que, por sua vez, alimenta-
va sua propensão à crítica literária.
Podemos, então, mencionar uma crítica estilística de Montei-
ro Lobato, antes de a estilística ter assumido os foros de uma dou-
trina influente; antes, portanto, de a estilística ter-se tomado tão
importante na história da teoria da literatura neste século.
Vou citar alguns exemplos. Primeiro, vou prosseguir com o
problema do estilo e depois com a prática de comentários a obras
alheias, quase que aplicando as noções de estilística como nós as co-
nhecemos hoje.
Vimos como, inicialmente, ele batalha pelo que chamei a des-
literatização da obra literária. Então, ao fazer isso, ele compara Flau-
bert com Balzac, dando preferência a este. Em carta de 15/5/1914
— ele estava em plena juventude, observe-se —, vamos ler o seguinte:
Ontem perdi o sono e concluí a leitura do Cousine Bene. Ran-
gel, Rangel! Balzac me assombra. É génio dos absolutos, lembro-
me duma imagem de Zola, comparando a obra de Balzac a um co-
lossal edifício inacabado — tijolos nus, andaimes, só o arcabouço
externo. Não é nada disso. Não tem nada de inacabado — mas Bal-
zac não é homem que desça a truques, remates, ornatos secundá-
rios. Pinta a largas espatuladas. Diz o essencial, cria blocos apenas,
formidáveis blocos, mas não alisa a pedra, não usa lixa, não lhes
enfraquece a grandeza. Que tipos! Que prodígios! Que coerência!
Que fertilidade! Que mina! Que celeiro de idéias e imagens! Que mul-
tidão de gente viva estua dentro de seus romances! Como perto de-
le é pálido e artificial Zola, com sua arte mecânica, sua lógica inva-
riável, seu romantismo despido das belezas heróicas do romantis-
mo! Balzac nem em capítulos divide a narrativa. Aquilo rompe e ras-
ga, e vai numa catadupa tumultuosa, numa avalanche, até o fim
Quel/epuissance ! Já li Cesar Birotteau e a Cousine e afundo-me agora
em toda a sua obra, como num mar. Já não dispenso todo Bazac! 5 '.
55
Ibid., v. 1, p. 354-5.
77
O estilo, que é uma obsessão dele, é visto como algo que se
atinge na maturidade. É o que exprime numa carta de 15/7/1905:
Estilos, estilos... Eu só conneço uma centena na literatura uni-
versal eentre nós só um, o do Machadão. E, ademais, estilo é a últi-
ma coisa que nasça num literato — ê o dente do siso. Quando já
está quarentâo e já cristalizou urna filosofia própria, quando possui
uma luneta só dele e para ele fabricada sob medida, quando já não
é suscetivel da influenciação por mais ninguém, quando alcança a
perfeita maturidade da inteligência, então, sim, aparece o estilo Co-
mo a cor, q sabor e o perfume duma fruta só aparecem na piena
maturidade 36 .
54
Ibid., v. 1, p. IOI.
57
Ibid., v. 1, p. 10J-6.
78
Uma das técnicas de estimativa do estilo que ele às vezes ado-
tavaera uma espécie de intertextualidade comparativa. Quando pe-
gava um autor e pretendia exaltá-lo ou simplesmente menosprezá-
lo, comparava com outro, fosse brasileiro, fosse estrangeiro.
Tal comparativismo encontra-se com frequência nas cartas de
Lobato. Compara, por exemplo, Camilo com Eça de Queirós, para
dar, é claro, preeminência a Camilo.
Apesar de ser infenso à gramatiquice e de achar que a literatu-
ra não devesse estar sob controle de uma linguagem purista, sob es-
trita observância do vernáculo, defendia certo apuro da linguagem,
que era o aperfeiçoamento do estilo. Julgava, por exemplo, Sílvio
Romero extremamente desleixado no estilo, em contraposição a Ma-
chado de Assis. O jogo de comparações é permanente em Lobato.
Vê-se o trecho seguinte, de uma carta de 1Í711/1908:
Ando a remoer uma observação que fiz há tempos e insiste.
A forma perfe:ta é magna pars numa literatura. Não basta a ideia,
como a reação contra o romantismo nos fez crer — a nós naturalis-
tas. Há erro em querer que predomine uma ou outra. É mister que
venham de braço dado e em perfeito pé de perfectibilidade. Há pelo
Nlorte uns escritores de talento que só querem saber da idéia e dei-
xam a forma p'fali. Eu também já pensei assim — que a idéia era
tudo e a forma um pedacinho. Mas apesar de pensar assim, não con-
seguia ler os de belas idéias embrulhadas em pano sujo. Por fim me
convenci do meu erro e estou a penitenciar-me. Impossível boa ex-
pressão duma idéia se não com ótima forma. Sem limpidez, sem as-
seio de forma, a idéia vem embaciada, como copo mal lavado. E
o pobre leitor vai tropeçando — vai dando topadas na má sintaxe,
extraviando-se nas obscuridades e impropriedades. E se é um leitor
decente, revolta-se com os relaxamentos à Sílvio Romero, os peque-
ninos atentados ao pudor da língua — e com todas essas revoltas
e extravios e topadas perde o fio da idéia e acaba com a sensação
do caótico. Acho a língua uma coisa muito séria, Rangel. Como a
nossa mãe mental.
A forma de Sílvio Romero e outros nortistas, Rodolfo Teófilo,
Manuel Bonfim etc., lembra-me uma estrada de rodagem sem pavi-
mentação, toda cheia de buracos e pedras, e difícil de caminhar a
cavalo — porque ler é ir o pensamento a cavalo na impressão visual
e outras. Machado de Assis me dá a idéia duma estrada de maca-
dam onde o nosso cavalo galopa tão maciamente que nem mais aten-
tamos na estrada. Nos outros não tiramos os olhos da estrada, tais
os perigos e a buraqueira — e como há de ver a paisagem marginal
quem vai de olhos pregados no chão? O mau português mata a maior
idéia, e a boa forma até duma imbecilidade faz uma jóia58.
58
Ibid., v. 1, p. 222-3.
79
Nada mais cJaro do que essa longa citação. Lobato fala do es-
tilo e põe autores cm confronto. Ma perseguição do pensamento es-
tético, sempre encontramos nele o comparativismo. E, quando al-
meja apontar as excelências de um escritor, vale-se do cotejo com
outro, de que extrai conclusões valorativas. Mesmo quando comete
audácias e temeridades: "Estou agora às voltas com a Eneida — mas,
pelo que já li, Virgilio está para Homero como o jornalista está pa-
ra o escritor" 5 '.
Em determinado momento, já era 1910, 30 de julho, ele
empolgou-se com o Brás Cubas de Machado de Assis e, em respos-
ta a uma carta de Godofredo Rangel, fala:
Achei heresia a comparação do Braz Cubas com as Memórias
de um sargento . Conquanto estas memórias sejam um dos pouquís-
simos livros bons da nossa literatura inicial, •falta- he a ironia e o pes-
simismo sibarita e anatoleano de Machado. E falta estilo. Tenho a im-
pressão de que as Memórias Póstumas de Braz Cubas foram escritas
por um conjunto de mestres: Sterne. Anatole, Xavier de Maistre e
Stendhal. Não sei á conta do que levar, mas livro -enhum, daqui ou
de fora, jamais me sojbe tanto ás minhas mais íntimas e misteriosas
visceras estéticas Parece um livro ateniense, anacrc camente reben-
tado no Rio de Janeiro — essa coisa berrantemente tropical! As Me-
mórias de um sargento tèm contra si, no confronto a vulgaridade ple-
béia das coisas ditas, e nem podia deixe- de ser assim, pois que es-
perar dum sargento ae milícias? Já o doutor Braz C^bas é fina flora-
ção de fim de raça, um faméante como aoueles a=s cortes luizescas
de França. Flor de firr, de Ordem Sociai Ao prime i sopro das Revo-
luções, os Braz Cubas morrem como passarinhos60
59
Ibid., v. 1, p. 209, carta de 25/2/1908.
60
Ibid., v. 1, p. 292-3.
80
linguagem psicanalítica, chamaríamos àquela crosta de superego;
descascá-la seria liberar o inconsciente, quando, então, se manifes-
ta o essencial da pessoa.
Lobato começou a trabalhar aquela idéia na juventude e de-
pois abandonou-a aparentemente. Isso está numa carta de 2/6/1904,
quando o homem andava pelos 22 anos de idade, imaginem:
Nietzsche me desenvolveu um velho feto de idéia. Veja se en-
tendo. O aperfeiçoamento intelectual, que na aparência é um fenó-
meno de agregação consciente, é no fundo o contrário disso: é de-
sagregação inconsciente. Um homem aperfeiçoa-se descascando-
se das milenárias gafeirasque a tradição lhe foi acumulando nalma.
0 homem aperfeiçoado é um homem descascado, ou que se despe
Idaí o horror que causam os grandes homens — os loucos — as ex-
ceções: é que eles se apresentam às massas em trajes menores, co-
mo Galileu, ou nus, como Byron, isto é, despidos das idéias univer-
salmente aceitas como verdadeiras numa época). "Desagregação
inconsciente", eu disse, porque é inconscientemente que vamos,
no decurso de nossa vida, adquirindo, ou, antes, colhendo as coi-
sas novas — idéias e sensações — que o estudo ou a observação
nos deparam. Essas observações, caindo nalma, lavam-na, raspam-
na da camada de preconceitos e absurdos que a envolvem — a ca-
mada de antinaturalismos, enfim.
É assim, meu Range que eu explico o fenómeno da incon-
fundibilidade dos grandes altistas, e o fenómeno aa pasmosa con-
fundibilidade da caravana "nensa dos Goularts e Macucos. E foi as-
sim que cheguei à minha ice a de aperfeiçoamento humano, a cons-
cientização do inconsciente na qual medito . Penso nela como New-
ton — só isso. Senti a macá cair e penso no que fez cair 61 .
61
Ibid., v. 1, p. 57.
42
Ibid., v. 1, p. 66.
43
Ibid., v. 1, p. 92, carta dé 2/2/1905.
44
Ibid., v. 1, p. 174, carta de 7/7/1907.
81
sitnos fazedores de arte pela arte que hoje ninguém mais atuía"*".
Usava de uma ironia próxima do sarcasmo: "Um homem evoLui in-
definidamente, e se se julga chegado ao máximo é que parou de pro-
gredir, virou Coelho Neto" 6 6 .
Além da camada estilística, uma preocupação permanentepa-
ra Lobato, ele incursionava numa espécie de sociologia da literatu-
ra. Eis curioso trecho de comentário a Canaã:
Canaã será um grande tivro enquanto perdurarem os nossos
problemas imigratórios; depois irá morrendo — e os futuros leitores
pularão os pedaços de Lentz e Milkau. Já o Braz Cubas é eterno,
pois enquanto o mundo for mundo haverá Virgílias e Brazes; mas
Milkau é um metafísico de hoje, tem idéias de hoje e filosofa hoje-
mente; amanhã só será lido pelos futuros Meios Morais t,r .
45
Ibid., v. 1, p. 173.
** Ibid., v. 1, p. 175.
Ibid., v. 1, p. 46.
"Ibid., v. 1, p. 52-4
82
Se tirai ao crítico a liberdade de criticar, matas a critica, Flávio. Fa-
ço votos para que a Censura impeça a saída do teu artigo no Cas-
murro - Fica feio pata você danar com um cabra criticante só por-
que ele não gostou do teu livro da maneira pela qual querias que
ele gostasse.
Mário ê um grande crítico. Mário é notabilíssimo. Mário, pelo
seu talento sem par no analismo criticista, tem direito a tudo, até
de meter o pau e m você e em mim. Eu tenho levado pancadinhas
dele. Certa feita chegou a publicar o meu necrológio. Matou-me e
enterrou-me. Em vez de revidar, conformei-me e sem mudar a mi-
nha opinião sobre ele. Inda esta semana cortei um pedaço de artigo
dele sobre a nossa língua, átimo. Mário é grande. Tem direito até
de nos matar à moda dele M .
49
Apud Cassiano Nunes, A correspondência de Monteiro Lobato , São Paulo, 1982,
p. 28.
70
Ibid., v. 2, p. 108.
83
5
A PEQUENA HISTÓRIA DA
LITERATURA BRASILEIRA,
DE RONALD DE CARVALHO
1
Cf. Manuel Bandeira, Itinerário de Pasárgada, 3. ed., Rio de Janeiro, Ed. do Au-
tor, 1966, p. 61.
86
verténcia", em que claramente se consigna a oposição entre a Euro-
pa e a América, fazendo-se a apologia da última, onde bóia a luz
selvagem do dia americano.
A tonalidade de Toda a América, vibrátil, campanuda, sono-
ra, entusiástica, ajuda a compreender o sentido que Ronald de Car-
valho quis imprimir à Pequena história da literatura brasileira.
A linguagem polida e académica desta, vazada num estilo ora
de serenidade helénica, ora num diapasão encomiástico, é, sem dú-
vida, a do "príncipe dos prosadores brasileiros", sucessor de Coe-
lho Neto. É preciso entender Ronald de Carvalho na oscilação en-
tre o "clássico" e o "revolucionário". A formação culta e tradicio-
nal não se desgarrará dele, mesmo na prática vanguardista.
O outro aspecto importante para a devida compreensão da Pe-
quena história... é que ela acentua um jogo opositivo muito corren-
te na produção intelectual brasileira até a década de 20: Europa ver-
sus América, caminho através do qual se tentava investigar as mar-
cas de nossa nacionalidade.
A frase final da Pequena história... é sintomática:
O erro primordial das nossas elites, até agora, foi aplicar ao
Brasil,, artificialmente, a lição europeia. Estamos no momento da li-
ção americana. Chegamos, afinal, ao nosso momento.
2
Rio de Janeiro, J. Olympio, 1977.
90
É sabido que a Pequena história... tem como seu último gran
de vulto Cruz e Souza. Não chega a alcançar o Pré-Modemismo,
nem menciona autores como Lima Barreto e Monteiro Lobato. Na
prosa de ficção, chega até Afonso Arinos, Coelho Neto, Graça Ara-
nha, Euclides da Cunha e Afrânio Peixoto, contemplando nesses
autores o que tinham em comum, isto é, a exploração do "senti-
mento de brasilida de''.
Tal a visão literária de Ronald de Carvalho. Preferia, de acor-
do com a época, um juízo conteudístico da obra literária. Os aspec-
tos formais, em grande parte, cingiam-se às categorias de vernaculi-
dade e às aproximações comparativas com os autores europeus mais
em evidência. Gostava, como já informamos, de estabelecer um jo-
go opositivo entre a Europa e a América. É o que faz ao apresentar
Canaã de Graça Aranha, assinalando, talvez pela primeira vez, ser
aquele livro " o precursor do romance de idéias, no Brasil". Coinci-
dentemente, o último compèndio-síntese de nossa história literária,
De Anchieta a Euclides, de José Guilherme Merquior, chama Ca-
naã de "nosso primeiro romance ideológico". E Lúcia Miguel Pe-
reira denomina-o "nosso primeiro romance social" 3 .
O esquematismo impressionista da Pequena história... está su-
perado. Como obra de consulta falta à de Ronald de Carvalho ri-
gor documental na apresentação dos escritores. Mas, como docu-
mento de época, continua a ser do maior interesse.
3
Cinquenta anos de literatura. Rio de Janeiro, MEC, 1952, p. 111.
91
AS TRANSFORMAÇÕES
DA LITERATURA BRASILEIRA
NO SÉCULO XX
Período sincrético. Tempos modernos: a década de
20. O romance social e urbano. A poesia de 45.
O experimentalismo de 60. O romance e o conto
de após-gverra. Clarice Lispector e Guimarães Ro-
sa. As minorias literárias. O avanço feminisia
107
O CONTO NO BRASIL
MODERNO: 1922-1982
1
4. ed.. Rio de Janeiro, Leite Ribeiro, s. d.
A barca de Gleyre, São Paulo, Brasiliense, 1968, t. 1, p. 243.
109
o romance constitui uma fica experiência, que abre várias questões
e as deixa por solucionar. Já o c o n t o é muito diferente. Cons:dero-o
uma espécie de esfera na qual procuramos incluir algumas percep-
ções, alguns sentimentos. Deve completar-se breve para ter forma
concisa. Ás vezes, quando estou escrevendo um romance, penso
em alguma coisa que não lhe pertence, mas que tem vida própria.
Então, paro e faço um conto, se for possível. Oconto se parece mars
com um poema do que com um romance2.
1
Documento e sutil ironia na arte de escrever em Cortázar, O Estado de S. Paulo.
7 maio 1978, p. 34.
4
Introduction, em Discussions of the short story, Boston, Heath and Company, 1963.
s
Maio de 1842.
* Poesia e prosa no Brasil: Clarice Lispector, Tomás Antônio Gonzaga, Machado
de Assis e Murilo Mendes, Belo Horizonte, Interlivros, 1976, p. 20-1.
110
temáticos, ocasião em que se desfazem as ligações contraditórias e
se efetiva o que B. Tomachevski chama de desfecho regressivo.
Bóris Eichenbaum parece derivar a sua distinção entre romance
e conto do conceito de Edgar Allan Poe. A seu ver, "constrói-se
a novela (o conto) sobre a base de uma contradição, de uma falta
de coincidência, de um erro, de um contraste etc. Mas isso não é
suficiente. Tudo na novela (no conto), assim como na anedota, ten-
de para a conclusão" . Adiante, Eichenbaum lembra a técnica de
retardamento da açào e a ramificação de intrigas paralelas que ca-
racterizam o romance, enquanto a novela "lembra o problema que
consiste em colocar uma equação a uma incógnita .
Assim, a disposição das palavras e cenas anteriores estaria com-
prometida com a resolução final. Daí a funcionalidade de todos
os pormenores, já antevista por Edgar Allan Poe: " N a composi-
ção inteira, não deveria haver palavra alguma cuja tendência, di-
reta ou indireta, não estivesse em função de um plano preestabe-
lecido".
Em outras palavras é o que propõe A. L. Bader:
A estrutura de tradicionais histórias de enredo é essencialmente
drarnétca: mais ou menos junto do início da história é dada ao leitor
uma lirsna progressiva para seguir — uma clara declaração de con-
flito, ou uma sugestão deste, ou às vezes mero senso de mistério,
de tensão, ou a percepção de que um conflito existe, embora sua
natureza não seja conhecida — e deste ponto em diante, ele, leitor,
segue a ação até a crise e resolução final'
7
Sobre a teoria da prosa, em Teoria da literatura /formalistas russos, trad. de Dio-
nísio Toledo, Porto Alegre, Globo, 1970, p. 162.
8
Ibid., p. 161-2.
' The structure of the modern short story, em Discussions of lhe short story, Bos-
ton, Heath and Company, 1963, p. 40.
111
Diremos assim do contode atmosfera, mais adequado ao "he-
rói da consciência" do que à personagem de ação. A situação dra-
mática requer, quase sempre, ambientes íntimos, espaços circuns-
critos — uma alcova, um terraço, um restaurante, um vagão de trem,
por exemplo —, dentro dos quais se pode penetrar na intimidade
psicológica da personagem.
Tal conto prescinde de exórdios, circunlóquios, etapas prepa-
ratórias da ação narrativa, contenta-se com a exiguidade de pala-
vras, embora nele, frequentemente, proliferem observações lírico-
filosóftcas, jogos verbais e sutilezas psicológicas.
Julio Cortázar defende a esfericidade do conto, pois a ima-
gem da esfera lhe dá a idéia de perfeição e autarquia. O conto seria
realizado num ambiente de intimidade e, de preferência, relatado
em primeira pessoa, de tal forma que ação e narração sejam a mes-
ma coisa, se confundam ao se passar de uma situação a outra. Rela-
tado em terceira pessoa, deve sê-lo de modo que o narrador se sinta
uma das personagens. Daí Cortázar aderir com entusiasmo ao con-
selho de Horácio Quiroga: "Cuenta como si el relato no tuviera in-
terés más que para el pequeno ambiente de tus personajes, de los
que pudiste haber sido uno" 1 0 .
Para Cortázar, a narrativa se compara melhor a um lago do
que a um rio: é que na face parada se pode mais atentamente esqua-
drinhar os pormenores. Tal zelo pela miniatura, de tradição roco-
có, foi-se extremando na prática da história curta, a ponto de atin-
gir o "miniconto", instantâneo dramático de reduzida dimensão (Ru-
bem Fonseca exercitou alguns exemplos em Lúcia McCartney; Wan-
der Piroli em A mãe e o filho da mãe, conto "As regras do jogo";
Moacyr Scliar em O carnaval dos animais, conto "Comunicação",
por exemplo; Péricles Prade em Alçapão para gigantes).
Em muitos casos, a atmosfera poética sobrepassa a armadura
causal-temporal do conto. Em outros, com a subversão dos meios
de coerência, o sentido deixa de reivindicar qualquer verismo, amplia-
se a liberdade analógica dos surrealistas. A diluição da estrutuía fac-
tual e o adensamento lírico do texto autorizam a aproximação do
conto moderno ao poema, como já o fez Julio Cortázar.
Como vivemos uma era de entropia, de confusão dos géneros
(seria o caso de lembrar o fato de Benedetto Croce negar qualquer
valor científico às classificações dos géneros literários), muitos con-
tos se apresentam hoje sob a Figura do que Oswaldino Marques cha-
mou de "prosoemas", entidades textuais híbridas, a medrar na zo-
na fronteiriça entre a poesia e a prosa. Dai termos chamado de conto-
poema "Os inocentes", de Rubem Fonseca (em Lúcia McCartney).
10
Último round, México, Siglo Veintiuno, 1970.
112
- - - • -
11
Rio de Janeiro, Laemmert, 1855.
113
pretes, " a própria orientação do seu espírito afastava-o do verso,
levava-o para o ensaio, para o romance e, sobretudo, paia o tea-
tro". Tão bem se houve Álvares de Azevedo nas suas ficções, que
seu analista literário não deixou de prognosticar quanto a seu hipo-
tético futuro: "Não será audácia afirmar que Álvares de Azevedo
deixaria a poesia pela prosa, tornar-se-ia um dos nossos mais admi-
ráveis prosadores" 12 .
Pode-se considerar A noite na taverna tanto como uma nove-
la de sete episódios, quanto como uma coletânea de sete contos. Na
verdade, inaugura uma tradição em nossa literatura, conforme ve-
remos adiante (o último "modelo" desse jogo sequenciai vem a ser
Animal dos motéis, de Mársia Denser), ao estabelecer uma unidade
de personagens, de tema ou de atmosfera, formada por agregados
narrativos de relativa autonomia.
Temos um conjunto de episódios marcados pela orgia, pelo
vício, pelo crime e pelo deboche, regidos pela obsessão da morte,
a doce namorada dos românticos, que a idealizaram como saída do
seu impasse existencial, assediado pelo tédio.
Os cenários de A noite na taverna são imaginários, não se pren-
dem à vida do poeta, à sua pátria, à História. Escapam-lhes o chão
contextual e a superfície vivencial. As personagens estão em estado
de embriaguez e, por isso, depõem sobre situações desvairadas, cu-
jo foco temático é a paixão carnal, criminosa ou incestuosa, sempre
pervertida.
O tema do prazer ali está irremediavelmente ligado à morte,
como se o erotismo fosse função da perpetuação da espécie tão-
somente, ficando a morte como consequência natural do êxtase amo-
roso. O amor, assim, torna-se afirmação da morte, representa um
elo por onde passa a corrente da vida. Mas seu destino é perecer,
uma vez realizado.
No estado inconsciente é que afloram as sugestões profundas
da aliança vida-morte. A noite na taverna encarna bem o espírito
romântico.
O segundo marco da história do conto no Brasil foi Machado
de Assis, em cujas mãos o género atingiu a máxima perfeição.
Estima-se que tenha produzido duzentas peças a que se possa atri-
buir o nome de conto. Nas cinco coleções que publicou em vida,
de Contos fluminenses (1870) a Relíquias de casa velha (1906), o au-
tor selecionou 68 contos. A edição Aguilar das Obras completas13
12
Edgard Cavalheiro, Introdução, em Álvares de Azevedo, Noite na taverna — Ma-
cário, São Paulo, Martins, s. d., p. 18.
13
Rio de Janeiro, 1959.
114
apresenta 123. Raimundo Magalhães Jr. e Jean-Michel Massa an-
daram recolhendo vários textos dispersos na imprensa, reunindo mais
amostras machadianas.
Eugênio Gomes, no volume Machado deAssis\ contos 14 , ob-
serva que o contista, contemporâneo do Simbolismo em voga, ca-
minhava pai*a as perspectivas do impreciso impressionista, alinhando-
se ao lado de Tchekhov e Henry James.
O crítico baiano teve a justa intuição do elemento transfor-
mador do conto que se operava com Machado de Assis, ao apontar
o seu "hibridismo formal" quando utilizava as tradicionais "for-
mas fixas" da prosa:
0 apólogo, a alegoria, a metáfora, ò simbolismo filosófico,
seduziam-no extraordinariamente nessa altura, induzindo-o a retro-
ceder a um estágio do ensaio em que esse incorporava a narrativa
didática a seus desígnios. Esse hibridismo formal produziu efeito cho-
cante em nosso meio, ocasionando um ou outro reparo hostil da crí-
tica naturalista a tais audácias 15 .
14
Rio de Janeiro, Agir, 1963.
15
Machado de Assis; contos, cit., p. 10.
115
mmmmim
jpsamente sugere. No encurtamento da distância entre o emissor e
o destinatário da mensagem narrativa, portanto, entre a narrativa
e a leitura, é que situamos o traço de modernidade no grande
contista.
O género terá em Monteiro Lobato outro marco pré-rnoderno.
Também o seu conto, igual a muitos de Machado de Assis, se rege
por uma cadeia lógica de ações, uma causalidade que se define no
fluxo temporal. Lobato estimava a técnica de preparar o efeito e
a surpresa, como se o conto fosse um mecanismo disparado pela
frase inicial da narração. Tinha consciência desse procedimento. É
o que observamos em carta sua, de 10/2/1923, a Godofredo Ran-
gel: " O curioso é que quando produzo um conto, de forma nenhu-
ma o tenho completo na cabeça; tenho lá dentro uma só coisa: a
idéia central do conto. Tudo mais se afirma no ato de escrever. A
primeira frase que lanço determina todas as mais" 1 6 .
O êxito extraordinário de Urupês tornou-o o livro de contos
mais lido em nossa história literária. O conto, por assim dizer, ga-
nhou status publicitário. Isso terá consequências na formação da
massa ledora entre nós: o género se populariza. Lobato, no seu pro-
cesso narrativo, apelava para truques de fácil efeito, como a carica-
tura, o gracejo e o patético de cenas melodramáticas. Mas já apre-
senta uma linguagem menos rígida e convencional, uma consciên-
cia da palavra como autêntico veículo de comunicação, ao invés de
mera exibição de louçanias e artifícios verbais. Homem moderno,
sôfrego pela renovação dos costumes passadistas, dinâmico, não sou-
be captar, entretanto, o surto de modernidade que apanhava a nos-
sa literatura estagnada, embora indiretamente tenha estimulado as
mudanças que se processavam no País. A sua atividade editorial,
por exemplo, alargou enormemente a capacidade consumidora em
todo o território nacional, restrita, até então, pela atividade comer-
cial de pouco mais de trinta livrarias. Lobato, ao criar o sistema de
consignação, elevou para mais de três mil os pontos-de-venda de
livros.
Depois de Urupês (1918), os contos de Monteiro Lobato apa-
receram em Cidades mortas (1919), Negrinha (1920) e O macaco que
se fez homem (1923).
Justamente naquele período infiltrava-se no Brasil o espírito
moderno, que irá marcar sobremaneira a produção do conto entre
nós.
Precursores do conto moderno apontam-se vários nomes de
transição. Mário de Andrade é indiscutivelmente o grande contista
16
A barca..., cit., t. 2, p. 254.
116
^p .A-a»-:..., .. —, . |t iftfllin
!
O empaihador de passarinho, 2. ed.. São Paulo. Martins, 1955, p. 5.
15
H. E. Bates, The modern short story, a criticai survey, Boston, The Writer,
1949, p. 15.
117
tos de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Autran Dourado,
Murilo Rubiâo.
A anedota literária perde o seu mero propósito recreativo pa-
ra ganhar espessura poética. Desse modo, vão-se diminuindo os cir-
cunlóquios expositivos acerca das personagens, as descrições pito-
rescas do ambiente para se dar ênfase ao drama existencial, Veja-
se, por exemplo, a distância dos contos regionalistas de Coelho Ne-
to, Afonso Arinos e Valdomiro Silveira em relação às histórias ser-
tanejas de Guimarães Rosa.
Mesmo numa "obra imatura" de Mário de Andrade, o conto
"Caso Pansudo" de Primeiro andar, datado de 1918, já se notam
cortes, armação, conteúdo psicológico, que indicam nova orienta-
ção da temática rural.
As preocupações de Mário de Andrade eram fartamente psi-
cológicas, dominam os seus contos a presença da infância e a cena
familiar. Os recursos de liberação da linguagem são às vezes leva-
dos ao exagero, a ponto de o autor ser mencionado nominalmente
pelo narrador como no caso de "Vestido de preto" {Contos novos).
Conto, aliás, em que se insinua, logo no início, a dúvida acerca da
-natureza do género: "Tanto andam agora preocupados em definir
o conto que não sei bem si o que vou contar é conto ou não, sei
que é verdade" 1 9 .
Pelas datas de "Contos e contistas" e de "Vestido de preto",
nota-se que a intelectualidade brasileira estava engolfada na defini-
ção da história curta ali por 1938 e 1939.
Apontamos, no início, a correlação entre o conto e os veícu-
los da imprensa periódica. A estrutura daquele, completa, de for-
ma narrativa mais condensada e, por isso, de comunicação mais rá-
pida, casa-se bem com a natureza das publicações efémeras. Mon-
teiro Lobato, como editor, chegara a ver vantagem comercial na edi-
ção de livros de contos, atribuindo o fato à preguiça nacional: "Es-
tou editando um livro à Machado de Assis, de um novo, Leo Vaz.
Creio que já o conheces da Revista. Tenho mais fé em contos do
que em romance, porque a preguiça nacional aumenta e o conto é
mais curto" 2 0 . Hoje (1982), sente-se a reversão de expectativa: os
livreiros estão preferindo abertamente a edição de romances.
Em 1931, Marques Rebelo publicou Oscarina e João Alphon-
sus, Galinha cega11, dois acontecimentos na história do conto mo-
derno do Brasil. No primeiro, guardando a plasticidade e a Finura
de observação de Machado de Assis, o contista reincide várias vezes
" Datas de feitura da obra: Rio de Janeiro, 1939; São Paulo, 17/2/1943.
29
C a r t a a Godofredo Rangel, em 5/11/1919. Cf. A barca..., cit., v. I, p. 206.
21
Belo Horizonte, Os Amigos do Livro, 1931.
118
no memorialismo implícito na obra de Mário de Andrade. Entre os
seus melhores trabalhos, predominam aqueles que têm as crianças
como personagens, tendência que se manifestará em Stela me abriu
a poria12.
Marques Rebelo sabe dosar seu leve sentimentalismo com uma
camada de ironia. E revela ampla sedução pela visualidade do espa-
ço. Miniaturista, centra-se nos pormenores, traz o Rio de Janeiro
para a ficção, compreendendo os segmentos mais humildes da po-
pulação. A linguagem irreverente e ágil serve bem à crónica dos cos-
tumes que empreende, à sua intimidade com as cenas menos herói-
cas do cotidiano.
João Alphonsus exprimirá uma visão mais trágica da vida no
seu Galinha cega. Prosa densa que terá seguimento em Pesca da
baleia23 e Eis a noite1*-, o contista explora um zoomorfismo trágico,
em que a violência e a frustração dos homens se projetam nos
animais.
Ambos os contistas privilegiam as relações urbanas. Em am-
bos a linguagem está mais próxima do leitor. Este, como ocorre na
ficção moderna, é por vezes incluído nos arredores temáticos do tex-
to, apela-se para a sua co-participação nas situações dramáticas cons-
truídas.
Anteriormente, o conto se apresentava como uma peça aca-
bada, exposta à avaliação do leitor, a conduzir uma anedota, um
mistério a ser resolvido e liquidado. Este se punha mais como um
espectador, sem envolvimento pessoal no fluxo do relato. Prolife-
ravam recursos retóricos que mantinham o leitor a distância.
Mas não encontramos nem em Marques Rebelo, nem em João
Alphonsus aquela "exagerada latitude conceptualista de Mário de
Andrade", conforme a considerou, um tanto sem- razão, a nosso
ver, o ensaísta Armindo Pereira 25 . Basicamente os contos se con-
têm na sua estatura formal, criam suas expectativas de desenlace,
não se ramificam como o romance, nem se despojam de tensões co-
mo a crónica.
Como se sabe, a crónica é um género que teve largo desenvol-
vimento no Brasil, a ponto de haver, durante algum tempo, publi-
cações que sobreviviam graças à qualidade de seus cronistas. Há,
em nossa literatura, um grande nome que se projetou tão-somente
12
Porto Alegre, Globo, 1942.
21
Belo Horizonte, Paulo Bluhm, 1942.
24
Sào Paulo, Martins, 1943.
25
Estética do conto, em A es/era iluminada; ensaios. Rio de Janeiro, Elos, 1966,
p. 45.
119
com suas crónicas: Rubem Braga. Ao lado dele, alinham-secom igual
destaque no género: Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sa-
bino, Paulo Mendes Campos, Raquel de Queirós e Sérgio Porto (Sta-
nislaw Ponte Preta).
A autonomia da crónica libertou o conto de constituir-se em
simples Telato colorido do cotidiano. Falta à crónica a intenção do
efeito, a preparação da surpresa dramática, o jogo de vontades e
aptidões em conflito, a intencionalidade do episódio inventado, o
sensacionalismo ensaiado, propriedades do conto-estopim, na ex-
pressão de Monteiro Lobato, ou seja, aquele texto deflagrador de
idéias, imagens e desejos, "de tudo quanto exista informe e sem ex-
pressão dentro do leitor" 26 . A crónica permanece como um subgê-
nero do jornal, um mosaico do cotidiano evocado literariamente.
Enquanto o romance se define como a epopeia burguesa, o
conto, dada a necessidade de unidade de tempo, o corte da realida-
de, pode estar ligado ao drama, principalmente pelo uso de uma faixa
da vida diária, intensificada pelo efeito armado.
O romance pode distribuir-se em contos. Teremos uma estru-
tura englobante, totalizadora, formada de unidades com relativa au-
tonomia narrativa. Há, na literatura brasileira, uma tentação por
esse tipo híbrido de montagem do relato ficcional. Assim, tivemos,
na década de 30, o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos 27 ,
constituído de capítulos inteiriços e autónomos, alguns dos quais
fortemente assemelhados a um conto. "Baleia", por exemplo, pri-
meiro capítulo escrito do livro, denominado inicialmente " O mun-
do coberto de penas", e que será o nono de Vidas secas, teve gran-
de êxito como conto. Somente depois veio a integrar o romance. Em
carta de 7/5/1937 a Heloísa de Medeiros Ramos, Graciliano infor-
mava: "Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço
difícil como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma du-
ma cachorra" 29 .
Vidas secas dá sequência ao mesmo espírito que preside A Noite
na taverna, já por nós apontado: ambos se compõem de blocos nar-
rativos completos, conjugados numa estrutura maior, novelesca. O
entrelaçamento dos episódios e a rede de remissões são bem meno-
res do que num romance de variados acidentes, por exemplo, em-
bora o continuum da estrutura maior seja garantido por determina-
das personagens ou determinado ambiente ou situação humana. Até
mesmo certos ganchos circunstanciais desempenham a função uni-
ficadora das peças relativamente autónomas.
120
Graciliano Ramos, em Vidas secas, faz da Natureza, das
personagens-coadjuvantcs, da trama, dos animais e da mudança,
considerados isoladamente, arredores temáticos do processo psíquico
da personagem Fabiano, incapacitado de verbalizar suas perplexi-
dades e, portanto, necessitado de porta-voz, função delegada ora
ao narrador, ora aos comparsas, especialmente Sinha Vitória.
A tradição que se forma com A noite na taverna e Vidas secas
terá curioso desdobramento com O risco do bordudo1^. Temos um
agrupamento de casos, de eventos mitológicos, que envolvem a
personagem-chave. O relato global, por sua vez, aproveita-se da mi-
tologia proveniente de outras obras do autor, tornando-se um elo
da grande cadeia narrativa que Autran Dourado vem elaborando.
Em O risco do bordado encontramos uma narrativa multinu-
cleada, em que cada episódio aparenta uma autonomia dramática,
sem, entretanto, afastar-se da força aglutinante da personagem-guia.
Reconstitui-se poeticamente a constelação de mitos que sub-
metem a personagem João a um mundo do qual não pode ter um
juízo crítico, pois o percorre sem culpa, como se num romance de
formação. Mantida a estrutura de parentesco e durando a memória
dos acontecimentos que afetaram a sua sensibilidade, a personagem
tenta recontar o vivido numa confissão libertadora.
Parte dos capítulos ("Viagem à casa da ponte", "Valente Va-
lentina" e " O salto do touro") ocupa-se da vida erótica da perso-
nagem, com suas marcas de interdição, faixas pecaminosas, tudo
o que desafia a sociedade altamente repressiva. Daí todo o livro es-
tar subordinado às forças do medo e da punição. O conflito funda-
mental sempre se estabelece entre o instinto e a regra, a esperança
e o desespero, a aventura e o castigo, a liberdade e o sofrimento.
Para compor O risco do bordado, Autran Dourado tomou se-
te episódios dramáticos e com eles formou uma constelação, um hep-
tateuco, como o fez Álvares de Azevedo. Talvez implique uma só
metáfora, desmembrada num manancial setênfluo.
" A gente nunca sabe a voz que tem na garganta, por isso gos-
to de brincar com o eco" 3 0 , reflexiona a personagem. A obra toda
não serão muitos ecos encadeados?
Predomina hoje a tese da descontinuidade do discurso huma-
no (a continuidade estaria gravada no inconsciente). Assim como
Autran Dourado pôde armar arbitrariamente o seu conjunto, cada
leitor poderá criar o que a obra não contém.
lq
Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1970.
30
O risco do bordado, cit., p. 155.
121
Uma das facetas da. modernidade"da ficção consiste exatamente
na delegação que se dá ao leitoi de arbitrar o sentido da obra, ope-
rando com o autor o andamento da narrativa por domínios psicos-
sociais de onde a significância é extraída.
No caso-de Autran Dourado, a evanescência e o mistério con-
feridos às personagens <numa linha que vem de Murilo Rubião, Cla-
rice Lispector e Lygia Fagundes Telles e se extrema em Hilda Hilst)
e o vago tom de melancolia agregado à narrativa indiciam um esta-
do de poesia. Não é à toa que as histórias convidam a uma volta
aos mitos da infância. E a mitopéia constitui um campo de eleição
dos poetas. E, por detrás da infância, da juventude e do relato das
coisas passadas, o que vamos encontrar, oferecidas sob a forma de
paixão e urdidas para despertar espanto, é a noção revigorada da
irreversibilidade da vida e a consciência dramática da morte. Como
lembra a personagem vovô Thomé, " o mundo é muito desigual nos
seus caminhos, o risco não é a gente que traça" 3 1 . Tudo isso nada
mais é do que o peso metafísico da ficção moderna.
O espírito de aglutinação temática em Autran Dourado vem
desde Três histórias na praia*2, posteriormente incluídas em Nove
histórias em grupos de três33, obra que, por sua vez, irá integrar So-
lidão, solilude34.
O mesmo espírito de relato tribal irá presidir Armas & cora-
ções3S, em que especialmente o último conto " A extraordinária se-
nhorita do país do sonho" revive o clima, as personagens, os mitos
e valores das outras ficções de Autran Dourado.
O fenómeno vem-se repetindo desde Três histórias na praia e
se fortifica em As imaginações pecaminosas36, como se o ficcionis-
ta estivesse assentando os ladrilhos de uma história infinita.
Observe-se nele, em Clarice Lispector ou em Lygia Fagundes
Telles o primado do narrador em primeira pessoa ou a maestria com
que normalizaram o estilo indireto livre, achegando-se a consciên-
cia da personagem, a vivência interior, à percepção do leitor. Esse
tom confidencial, tornado segunda natureza, sem os traços rudes
das primeiras experiências, sem a agressão do insólito, é conquista
da modernidade.
31
Ibid., p. 170.
31
Rio de Janeiro, MEC, 1955.
33
Rio de Janeiro, José Olympiò, 1957.
34
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972.
35
Rio de Janeiro, Difd, 1978.
36
Rio de Janeiro, Record, 1981.
122
O estilo indlreto livre, é verdade, vem-se infiltrando na ficção
brasileira desde Manuel Antônio de Almeida nas Memórias de um
sargento de milícias31, matéria sobre a qual já realizamos uma pes-
quisa. E também desponta em alguns trechos de Machado de Assis,
especialmente em Quincas Borba. Mas se torna domínio público,
por assim dizer, após a dominação do espírito moderno na literatu-
ra brasileira.
Ainda na linha dos contos comboiados dentro da mesma com-
posição, autónomos como um vagão, mas puxados por uma força
externa que une as parcelas, deve-se assinalar a experiência de Ri-
cardo Ramos em Circuito fechado2*.
É que atravessa o livro, como um rio subterrâneo, uma cole-
ção de contos-quadros que levam o título de "Circuito fechado",
enumerados de 1 a 5. Parte-se de uma enumeração de objetos que
exprimem as dependências de um consumista. A seguir, numa es-
trutura paratática vai-se elaborando o colar de sintagmas que retra-
tam a "felicidade" a que transporta a crença nos signos da propa-
ganda comercial, até que o segmento final do "circuito" se modela
em negativas, como se, num jogo dialético, a antítese brotasse es-
pontaneamente no interior da tese consumista.
E os outros contos, de " O terceiro irmão" ao último, signifi-
cativamente "Os passos da paixão", exprimem a mesma atmosfera
de "Circuito fechado". Curiosamente, o conto "Sequência" se or-
ganiza numa estrutura anafórica, constante de cinco cenas enume-
radas. E "Os passos da paixão" são também numerados, ao todo
quatorze. Todos visam a transmitir o ar de saturação de uma socie-
dade capitalista industrializada, sob o bombardeio das técnicas de
comunicação.
Mas, em Circuito fechado não acontece propriamente uma no-
vela desmontável em contos. Um esboço de novela iremos encon-
trar em A casa de vidro39, de Ivan Ângelo. O subtítulo indica: "Cinco
histórias do Brasil". Temos, inicialmente, a utilização de matéria
narrativa como ponto de apoio para uma reflexão sobre a realidade
nacional.
Dá-se, então, o primado da funcionalidade sobre a esponta-
neidade, a literatura como uma construção longamente elaborada.
Tal consciência formal advém, em parte, do espírito de pesquisa ad-
vogado por Mário de Andrade nos albores da modernização de nossa
literatura. Coincide, conforme veremos adiante, com o advento da
"tecnocracia esclarecida" no governo da ordem política, quando a
37
Rio de Janeiro, Tipogr. Brasiliense, 1854-1855.
38
São Paulo, Martins, 1972; 2. ed., Rio de Janeiro, Record, 1978.
39
São Paulo, Cultura, 1979.
123
razão procura dar a diretiva da emoção. A noção do planejamento
subjaz à realização de todas as obras.
Cumpre lembrar, entretanto, que na obra de Ivan Ângelo a
crítica social se mescla à sátira formal, desde que seus contos são
governados por um agudo senso parodístico.
Mencionemos, ainda, dentro do espírito da unidade temática,
não mais em meio à reunião de contos com propósito noveiesco,
o livro Maracanã; adeus; onze histórias de futebol 40 de Edilberto
Coutinho, que mereceu o prémio Casa de las Américas. Mais uma
vez se estuda a transformação de uma atividade lúdica, espontânea
e criativa num espetáculo orientado, a serviço da repressão. A ética
que o texto explora vem a ser um corolário de conhecida lição de
Marx: se o homem é formado pelas circunstâncias, é preciso huma-
nizar as circunstâncias.
Edilberto Coutinho fraciona suas histórias e, no conto "Mu-
lher na jogada", contrapõe duas musas de grandes esportistas, opon-
do épocas, estilos, raças e posições sociais, retratando a dualidade
brasileira. Adota, então, uma técnica de histórias paralelas, em co-
lunas justapostas. Explora com propriedade o coloquialismo do fu-
tebol, os bastidores do esporte dominado pela indústria cultural, não
sem tratar satiricamente o lado cómico das situações, como no con-
to " A celebração dos pés".
Penúltimo exemplo dessa sequência de obras regidas pela pes-
quisa de unidade temática é Maivadeza Durão41 de Flávio Moreira
da Costa: "contos malandros", segundo informa o autor. Organiza-
se o volume em quatro partes: contos cariocas, contos fluminenses,
contos paulistas e contos gaúchos. Mais característicos os contos ca-
riocas: o autor estuda não só a gíria marginal, mas igualmente os
valores, o horizonte mental da malandragem. Na linha de João
António 42 e de Wander Piroli 43 , na medida em que os três elegem
como personagens os marginalizados da economia, as populações
mais humildes, os semi-empregados, aproveitando os signos mais
característicos daquelas comunidades linguísticas. Geralmente, a for-
ma do conto obedece a um modelo realista, em que a denúncia fun-
ciona como valor subtextual.
Finalmente, temos Animal dos motéis44, que se autoproclama
"novela de episódios",
É que os "episódios", apresentados como peças independen-
tes, articulam-se ao redor da mesma personagem, Diana, e carregam-
40
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.
41
Rio de Janeiro, Record, 1981.
42
Malagueta, Perus e Bacanaço, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963.
43
A mãe e o filho da mãe, 2. ed., Belo Horizonte, Interlivros, 1974.
44
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira/Massao Ohno, 1981.
124
sc de um significado comum, a busca e a perda do prazer, numa
sociedade dividida pelas relações mecânicas. O cenário e o agrupa-
mento social não variam. Trata-se de umia descrição critica da so-
ciedade em mudança, transportada aos valores da terceira revolu-
ção industrial, sob o comando do capitalismo selvagem.
Os episódios-contos têm o motel como signo típico, pois de-
signa um ponto de encontro para relações efémeras, em que duas
solidões se superpõem. Naquele ambiente é nue se vislumbra a gló-
ria e o calvário de Diana, a intelectual liberada. Proliferam ali obje-
tos e utensílios de gosto duvidoso, espelhos, luzes indiretas, toalhas
e sabonetes plastificados, som, interfone, TV, enfim, uma parafer-
nália de falso luxo, que não aproxima as pessoas, antes as afasta,
sublinhando a vacuidade e o mercantilismo de tudo aquilo.
Os episódios são narrados em primeira pessoa, apresentam diá-
logos seguros e crispantes e a linguagem é hábil na transmissão de
estados psicológicos em mutação, apanhando hesitações sutis do mo-
mento, decisões inesperadas, particularidades das zonas fronteiri-
ças do espírito. Continuação, por assim dizer, de uma conquista que
vem sendo lograda por escritores como Clarice Lispector, Lygia Fa-
gundes Telles, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Luís Vilela e Gar-
cia de Paiva.
Marques Rebelo e João Alphonsus, conforme vimos, abrem
a década de 30 para a nova linguagem do conto. Graciliano Ramos,
em Vidas secas, deu-nos um exemplo de romance desmontável em
contos. Sinais de modernidade estão na sua prosa, embora se decla-
rasse um antimodernista. Os contos de Insónia45 confirmam a ha-
bilidade e o interesse do grande escritor pela história curta.
O género, na sua nova feição, vinha sendo praticado por es-
critores marcantes, como Antônio Alcântara Machado 46 , que ex-
plora a sensibilidade e o linguajar do imigrante nalguns bairros pau-
listas; Rodrigo M. F. Andrade 47 , com trabalhos de inspiração mor-
tuária, talvez um reflexo retardado do Simbolismo; Ribeiro do
Couto 48 , que ainda se atém à tradição da crónica de costumes.
Em 1941, Mário Neme 49 já tenta comunicar novo estilo, reali-
zando uma ficção anedótica, engenhosa, bastante coloquial. Deu um
segundo volume, Mulher que sabe latim...so, propondo-se "uma
45
Rio de Janeiro, José Olympio, 1947.
46
Brás. Bexiga e Barra Funda, São Paulo, Hélio, 1927 e Laranja-da-china, São Paulo,
Gráfica Editora, 1928.
4
Velórios, Belo Horizonte, Os Amigos do Livro, 1936.
48
Largo da Matriz e outras histórias, Rio de Janeiro, G. Costa, 1940.
49
Donana sofredora, Curitiba, Guaíra Editora, 1941.
50
São Paulo, Flama, 1944.
125
tentativa de estilização da sintaxe popular do Brasil, estilização no
sentido de aplicação da sintaxe popular a uma linguagem literária".
Oferece, em apêndice do segundo livro, uma paráfrase do es-
tilo arcaico, "A. muy infeliz senhora Amélia ou Aquella q morreo
de amor". O trabalho tem um carátermais jocoso, visa a despertar
o riso. Algo diferente veio a ser realizado por Ivan Ângelo, cujo re-
lato final de A casa de vidro — "Achado" — tem um propósito
mimético-satírico, é indicador da violência que foi empregada na
conquista e no domínio da terra e de suas riquezas no Brasil colo-
nial. Além disso, forma-se uma rede texto-contextual, simbolizan-
do o escritor enquanto produtor e o seu país como tesouro sempre
buscado e jamais descoberto. Do relato "Achado" Ivan Ângelo ex-
trai as epígrafes dos outros contos, para designar a imutabilidade
das relações na História do Brasil, uma vez que a atmosfera da "ca-
sa de vidro" é a dos executivos e a do governo organizado para a
repressão.
Data de 1944 a estréia de Breno Accioly, com João Urso. Es-
critor alagoano, diplomado em medicina, estreou aos 23 anos com
um livro que surpreendeu a crítica pelo impressionismo da lingua-
gem, pela criação de personagens excepcionais, de atormentada vi-
da interior, tangentes à loucura. Entretanto, a qualidade literária
dos volumes seguintes não se manteve no mesmo nível.
Também de 1944 é Vida feliz de Aníbal Machado, contista im-
portante de escassa produção, que irá publicar posteriormente His-
tórias reunidas51. O que caracteriza a produção de Aníbal Macha-
do é a alternância do mundo real com o mundo supra-real, a explo-
ração do realismo mitológico ao lado do realismo ontológico.
A década de 40 trará ao conto brasileiro contribuições definiti-
vas, pois foram-se estabilizando práticas que, até então, Ficavam no
terreno da experimentação. Assim, Lygia Fagundes Telles aparece com
Praia v/va52, mas se define com O cacto vermelho53, e se consagra
com Histórias do desencontroS4. Daí por diante, irá preparando uma
dicção muito própria e original, como se vê na coleção Antes do bai-
le verde5S, em Seminário dos ratos5b e em Mistérios'.
Lygia Fagundes Telles constrói enredos em que o natural se
entrelaça ao sobrenatural, agrega aos núcleos temáticos subenredos
51
Rio de Janeiro, José Olympio, 1959.
52
São Paulo, Martins, 1944.
" São Paulo, Mérito, 1949.
54
Rio de Janeiro, José Olympio, 1958.
55
Rio de Janeiro, Bloch, 1970, e posteriormente com várias edições pela José Olympio.
54
Rio de Janeiro, José Olympio, 1977.
57
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.
126
que se ramificam, a propor ambiguidades, estados sutis da psicolo-
gia, surpresas de atos falhos, abismos de dúvidas etc. Ioga de pre-
ferência com a corrente do pensamento, a rotação do drama da cons-
ciência, colocando a personagem em confidência com o leitor, num
fluxo de confissão no qual se imprimem, no discurso consciente, tra-
ços impressivos do inconsciente.
O que se tem, como produto, é enorme autonomia da perso-
nagem, a individualidade em choque com as relações sociais e com
o mistério do mundo. Em Seminário dos ratos pode-se estudar, com
bastante proveito, os casos de ambivalência afetiva (observe-se o
complexo monólogo de "Senhor diretor", interpolado pela vivên-
cia de uma caminhada). No conto " A sauna", a personagem tem
esta reflexão: "Não posso ser nítido como pede que eu seja, é possí-
vel contar um fato com nitidez? As coisas devem ser contadas com
aparato para que não fiquem mesquinhas" 58 . O relato é simulta-
neamente narrado em dois planos e a personagem vivência ao mes-
mo tempo seu passado amoroso e seu banho de sauna. Sintomati-
camente é vítima de um lapso, vai arrastando os pés descalços, "es-
queceu os chinelos" 59 .
Na ficção de Lygia Fagundes Telles, observa-se frequente in-
terferência dos sonhos no fluxo narrativo. Sabe-se que os sonhos
representam quase sempre situações não-resolvidas. Constituem si-
mulacro da própria narrativa, na medida em que caminham no sen-
tido da solução de um problema, mas são interrompidos. Apenas
apresentam uma conformação surreal e não são acumulativos. Ne-
nhum deles serve de experiência para o seguinte. São formas soltas,
desprogramadas ao nível do fazer.
Temos em 1947 a estréia de Murilo Rubião com O ex-mágico60,
experiência isolada, uma das mais bem-sucedidas manifestações do
realismo mágico em nossa prosa de ficção, um universo enigmático
que irá projetar-se nas obras subsequentes, como O pirotécnico Za-
carias61, O convidado62 e A casa do girassol vermelho63.
Murilo Rubião apóia seu processo narrativo todo ele numa lin-
guagem alegórica, fora do tempo profano, mas gravado num tem-
po e num espaço qualitativamente diferentes, sacralizados pela me-
mória arquétipa. Compõe contos junguianos, cujos heróis operam
no insólito, lutando contra um mundo não-humanizado, heróis do
58
Seminário dos ratos, cit., p. 46.
59
Ibid., p. 63.
40
Rio de Janeiro, Universal, 1947.
" São Paulo, Ática, 1974.
62
São Paulo, Quíron, 1974.
" £áo Paulo, Ática, 1978.
127
malogro. Sua ficção se íaz em grande parte com a matéria dos so-
nhos, embora contenha uma rebeldia contra a predeterminação, prin-
cipalmente aquela regida pela doutrina católica. Daí, sintomatica-
mente, cada um de seus contos ser presidido por um versículo bíbli-
co, fazendo o leitor reportar-se à formação ocidental, com as pro-
fecias ameaçadoras a governar as consciências.
A história curta de Murilo Rubião constitui um desvio na sequên-
cia do realismo ontológico e existencial que se vai formando no Brasil
de após-guerra. Seus antecedentes poderiam ser os sonhos de embria-
guez dos românticos e o fabulário exemplar de Machado de Assis.
Na mesma década, tivemos a estréia de Guimarães Rosa, com
Sagarana6*. O que inicialmente parecia a continuidade de uma temáti-
ca regionalista, de forte tradição no País (no caso presente, o conto
de fundo rural e folclórico), constituiu na verdade o marco de uma
revolução literária, a elaboração de novo discurso poético, baseado na
criação verbal em torno da mitologia interiorana.
Guimarães Rosa promove a difícil aliança do relato popular com
a mais refinada tradição literária, num jogo permanente de criação,
de variedade linguística e semântica, de rebarbarização da linguagem
e de exploração de resíduos ancestrais da mente humana no seu rela-
cionamento com as entidades naturais.
O conto regional trilhava um caminho do exótico ou do grotes-
co, pelo contraste com a realidade "civilizada" infundida na ficção
urbana. A herança do século XIX apreendia ambas as circunstâncias
na crónica de costumes. Assim, a ficção de Guimarães Rosa trará o
selo da novidade pela modernidade do seu lado experimental, pela rup-
tura com o tom de ingenuidade com que se gravava o conto sertanejo.
Ao mesmo tempo, o envolvimento temático e filosófico não se
compactua com a modernidade, pois o ficcionista aprofunda-se no ter-
ritório do mito, distanciando-se das ideologias que caracterizam as com-
posições da era industrial, as contradições da escala burguesa.
Os contos de Guimarães Rosa, que têm como ponto de parti-
da Sagarana (o título já denuncia a propensão ao neologismo do
escritor), constituem a transformação de um passado que se apoia-
va em obras como: Lendas e romances65, de Bernardo Guimarães;
Sertão66, de Coelho Neto; Pelo sertão67, de Afonso Arinos; Tape-
ra66, de Alcides Maia; Contos gauchescos69, de Simões Lopes Ne-
64
Rio de Janeiro, Universal, 1946.
65
Rio de Janeiro, Garnier, 1871.
66
Rio de Janeiro, Leuzinger, 1896.
67
Rio de Janeiro, Laemmert, 1898.
68
Rio de Janeiro, Garnier, 1911.
69
Pelotas, Echenique, 1912.
128
to; Tropas e boiadas19, de Hugo de Carvalho Ramos e Nas serras
e nas fumas'1, de Valdomiro Silveira. .
Coincidentemente, quando saíram Corpo de baile71, e Gran-
de sertão: veredas7\ Wilson Martins tachou Guimarães Rosa de
"Uni novo Valdomiro Silveira" 74 . O fato vale apenas como sinto-
ma, pois o crítico reformulou seu juízo posteriormente e concedeu
ao ficcionista os créditos de inovador de nossa prosa de ficção.
O universo interiorano terá na década seguinte outra experiên-
cia bem lograda com os contos de José J. Veiga em Os cavalinhos
de Platipianto1 *, a que se seguirá A máquina extraviada7b. Já então
as lendas rurais entram em choque com a invasão da máquina,
realizando-se o estranhamento cultural, a aparição do inusitado. A
ficção de José J. Veiga tem o sabor da fábula, com sua tendência
costumbrista, seu propósito de apresentar a verdade coberta pela
fantasia, com sua sátira disfarçada, sua técnica da alusão.
Temos, com o contista goiano, o meio rural revolucionado,
a ruína de uma instância mitológica contaminada pela mitologia da
era moderna. Já não se trata do regionalismo atualizado de Bernar-
do Élis, por exemplo.
Também são da década de 40 as primeiras manifestações de
um contista que virá a ser um renovador do género no Brasil: Dal-
ton Trevisan. Sonata ao luar (Curitiba, 1945) , Sete anos de pas-
tor18 e Crónicas da província de Curitiba79 são as primeiras tentati-
vas do autor, que será nacionalmente conhecido a partir das Nove-
las nada exemplares*0.
Escritor prolífero, Dalton Trevisan conta, com Chorinho
brejeiroS1, dezoito títulos. Várias edições têm consagrado o contis-
ta, que apura uma consciência literária cada vez mais exigente.
A elipse, a arte de ocultar palavras e idéias, tem sido uma das
marcas da narrativa de Dalton Trevisan. A colaboração do leitor
para completar o significado de suas inúmeras situações é inevitável.
A cada nova edição, a cada nova coleção de contos, Dalton
Trevisan vai-se concentrando em núcleos ficcionais, entrechos e diá-
0
Rio de Janeiro. Revista dos Tribunais, 1917.
' ' São Paulo, Nacional, 1931.
2
Rio de Janeiro, José Olympio, 1956.
3
Rio de Janeiro, José Olympio, 1956.
74
O Estado de S. Paulo, 23 e 30 ago. 1956.
1S
Rio de Janeiro, Nítida, 1959.
76
Rio de Janeiro, Prelo, 1968.
7
" Curitiba, 1945.
78
Curitiba, Joaquim, 1948.
7
" Curitiba. 1954.
so
Rio de Janeiro, José Olympio, 1959.
81
Rio de Janeiro, Record, 1981.
129
logosde escolhido efeito literário, para retrataras miudezas abjetas
carregadas de sentido.
A estrutura do conto em Trevisan se organiza em torno de um
eixo paradigmático, as revelações dos impulsos incontroláveis do de-
sejo e das fantasias humanas, eixo aquele cortado pela fragmenta-
ção cénica, a variedade infinita das situações humanas construídas
ao acaso das circunstâncias externas do relacionamento em so-
ciedade.
O particular na investigação do conteúdo dos contos de Dal-
ton Trevisan é a obsessão do escatológico. E a forma de realização
do acabamento literário é altamente intelectual, na medida em que
o ficcionista se mostra senhor de variada técnica de provocar o es-
panto, o esplendor e a riqueza do ato de narrar.
Assim, as frequentes remissões ao grande repertório da litera-
tura universal, a escolha reiterada de bordões da literatura nacio-
nal, o uso eficaz de citações com objetivo de paródia, fazem do tex-
to um painel de sortilégios retóricos, no meio do qual o leitor argu-
to pode captar extensa gama de referências e de significados.
Na verdade, o submundo de Dalton Trevisan não passa de uma
organizada tentativa de apoderar-se dos impulsos mais fortes, mais
determinantes da conduta humana, vistos sob o ponto de vista da
destruição e da morte. Com isso, a ficção do contista curitibano se
aproxima da ' 'literatura do mal", em que o êxtase da vida se entro-
sa, por um determinismo da perpetuação da espécie, com o aniqui-
lamento do agente do prazer, já que, cumprida a função fecundan-
te, cumpre decretar a morte do interveniente, que atuou tão-somente
como elo de passagem da corrente da vida.
O que separa Dalton Trevisan de muitos outros contistas que
se enfi|uam pela porta do chiste e do anedótico, é que o grotesco
naquele aparece elaboradamente como "cultura popular do riso",
para adotar a expressão de Mikhail Bakhtine. É que as situações de
Dalton Trevisan são sérias, mas, ao mesmo tempo, irredutíveis à se-
riedade. Cumprem a negação da ordem existente, testemunham a
desordem dos sentimentos e das relações, dão conta de uma reali-
dade inamoldável a qualquer verdade acabada.
As pequenas imperfeições humanas são conduzidas triunfal-
mente pelas personagens. Formam uma galeria de horrores. O uso
reiterado de diminutivos como forma de tratamento, quer nos diá-
logos, quer na apresentação das personagens, serve para completar
o clima de intimidade naquelas relações degradadas. O efeito de es-
tranhamento e de humor é evidente. Contrariamente a Wander Pi-
roli, que explora a dignidade do pobre, Dalton Trevisan revolve as
entranhas da indignidade humana nos segmentos mais desprotegi-
dos da sociedade.
130
A década de 50 produz as primeiras manifestações no género
de Clarice Lispector, Alguns contos?2. Em 1960, viriam os Laços
de família**. A ficção de Clarice Lispector é primordialmente um
modo de narrar. O enredo se agasalha numa proliferação de moti-
vos livres, de comentários existenciais, de filosofemas, que dão a
cada composição uma dramática espessura filosófica. É no interstí-
cio das palavras que a contista investiga o espaço do inefável, a per-
cepção sutilíssima de imperceptíveis movimentos psicológicos.
A tónica existencialista alimenta a progressão das personagens
em seu drama particular, as maquinações ontológicas geram o labi-
rinto da condição humana, perpassado de contradições e incerte-
zas. Clarice Lispector explora a fragilidade do ser diante do com-
promisso inevitável com a vida.
A contista parece realizar aquilo que Autran Dourado coloca
no pórtico do conto " A extraordinária senhorita do país do sonho":
"a tragédia e o imprevisto penetram é pelas menores portas...".
Laços de família está impregnado de intenção crítica, na me-
dida em que a contista arma seu jogo narrativo no interior da célula
familiar burguesa, cuja insatisfatória rede de relações subjuga o ser
humano, condiciona-o e limita sua liberdade, em troca de valores
ilusórios. Sobrenada a tensa visão do mundo a flor amarela da náu-
sea. A busca da felicidade no quadro familiar resulta em fracasso.
Como o valor mais alto da família burguesa é a estabilidade,
este se mostra precário, inteiramente circunstancial, os laços que ela
estabelece constituem uma prisão dourada, dentro da qual os meca-
nismos do cotidiano condenam a pessoa ao tédio e ao nojo. A mar-
ca existencialista nos contos de Clarice Lispector é nítida.
Em "Feliz aniversário", título irónico, a octogenária, home-
nageada pelos descendentes, se aborrece ao extremo e "incoercível,
virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão". Uma das
primeiras pessoas a chegar à festa convencional, a nora de Olaria,
manifesta-se deste modo: "Vim para não deixar de vir", o que bem
define o traço compulsório e desagradável dos "Laços de família".
No conto que dá título ao livro, o marido, diante da mulher que
sai com o filho, "sentira-se frustrado porque há muito não poderia
viver com ela".
Como se sente a mulher casada? — "desiludida, resignada,
casada, contente, a vaga náusea". ("Devaneio e embriaguez duma
rapariga", conto em que Clarice Lispector parodia a dicção por-
tuguesa.)
131
No conto " A m o r " acompanhamos o dia de uma mulher ca
sada que, indo às compras, defrontou-se com um cego a mascar chi-
cles, "mascava goma na escuridão". Para ela, " o mundo se torna-
va de novo um mal-estar". Na voz do narrador, "através da pieda-
de aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até à boca". E
em estranheza, entre fascinação e nojo, a personagem diz baixo, fa-
minta, ao filho: " A vida é horrível". O seu dia era um campo de
horror e angústia.
O ponto extremo da náusea pode ser buscado no conto " O
jantar", narrado em primeira pessoa masculina, em que o narrador
observa, repugnado e com angústia, a refeição de um velho num
restaurante. Como ele próprio diz: "Estou tomado pelo êxtase ar-
fante da náusea. Tudo me parece grande e perigoso".
A mesma aura de perquirição, a mesma ironia ferina, o mes-
mo espanto ante a revelação do mundo, a mesma linguagem densa
irão dominar outros livros de contos, que se misturam a crónicas,
impressões, reflexões e apontamentos, como A legião estrangeira8\
que irá reproduzir-se, com modificações e acréscimos em Felicida-
de clandestina**; e Onde estivestes de noite66. A viacrucisdo corpo*
se compõe de treze histórias curtas, das quais, confessa a autora,
três foram escritas por sugestão do editor. Mas ela acrescenta: "Que-
ro apenas avisar que não escrevo por dinheiro e sim por impulso".
E no fecho da "explicação" deixa o toque dramático de sua infin-
dável indagação do ser humano: "A outra pessoa é um enigma. E
seus olhos são de estátua: cegos".
A década de 60 parece a do esplendor do conto no Brasil. Mar-
ca o sucesso de Rubem Fonseca, com A coleira do cão88, o surgi-
mento de Nove, novena*9, de Osman Lins, que se iniciara no géne-
ro com Os gestos90 e as estréias de Luís Vilela, com Tremor de terra'1,
de Wander Piroli com A mãe e o filho da mãe92, e de Moacyr Scliar,
cujo livro consagrador foi O carnaval dos animais93.
Ao mesmo tempo, outras vocações se afirmavam, o público
e as instituições se mostravam receptivos para com o género. Àque-
la altura, poder-se-ia enumerar uma legião de contistas no Brasil.
8J
Rio de Janeiro, Ed. do Autor, 1964
85
Rio de Janeiro, Sabiá, 1974.
86
Rio de Janeiro, Artenova, 1974.
8
Rio de Janeiro, Artenova, 1974.
88
Rio de Janeiro, GRO, 1965.
89
Sâo Paulo, Martins, 1966.
90
Rio de Janeiro, José Olympio, 1958.
91
Belo Horizonte, Ed. do Autor, 1967.
92
Cit., v. nota 43.
93
Porto Alegre, Movimento, 1968.
132
Rubem Fonseca, que aparecera com Os prisioneiros'4, traz con-
sigo novo vigor à prosa de ficção brasileira. Revelou-se um mestre
na arte de armar o enredo, no jogo da veloz comunicação de situa-
ções tensas, na exploração da violência generalizada da sociedade,
quer em nível linguístico, quer em nível temático.
Há, nas suas personagems maus marcantes, um estudado des-
compromisso com a ordem burguesa e uma elevada disponibilida-
de, uma erráncia existencial que as faz repentinamente prisioneiras
do sistema.
A linguagem, para transmitir a velocidade actancial com que
os episódios se sucedem, se distribui no uso intensivo do falar ca-
rioca, nas breves citações da cultura dos povos, na arregimentação
dos sinais da era eletrônica, de que a matriz, os Estados Unidos,
oferece os exemplos pioneiros ou os mais significativos. Os diálo-
gos transmitem com ajustada equivalência o nível de excitação e pre-
mência da vida urbana moderna.
A ficção de Rubem Fonseca exprime, desse modo, o desloca-
mento do ser humano de suas relações essenciais. Realiza a crónica
da violência elevada ao paroxismo da brutalidade.
Lúcia McCartney95 vem a ser a depuração das experiências ten-
tadas nos primeiros livros. Em muitos casos, a dimensão dos textos
se reduz, dando a impressão de que o contista houvesse chegado a
um impasse narrativo ou que buscasse a mínima forma de efetivar
seu relato.
A seguir vem Feliz Ano Novo96, de extremação de certas ten-
dências de captar as decisões mais cegas e violentas do ser humano.
Rubem Fonseca se permite, por igual, questionar problemas literá-
rios que o afetam, criando a personagem de um escritor irónico e
descontente com as críticas.
A literatura do contista, de certa forma, legitimou o uso do
palavrão como forma de exprimir o inconformismo com as regras,
assim como o uso da obscenidade indica a exaustão do impulso
erótico.
Em "Intestino grosso" há falas de efeito datado, uma defesa
de posição: "A maioria dos livros considerados pornográficos se ca-
racteriza por uma série sucessiva de cenas eróticas cujo objetivo é
estimular psicologicamente o leitor — um afrodisíaco retórico".
Por que o horror moralista à descrição de funções sexuais e ex-
cretoras? "O ser humano, alguém já disse, ainda é afetado por tudo
aquilo que o relembra inequivocamente de sua natureza animal."
94
Rio de Janeiro. Olivé, 1963.
" s Rio de Janeiro, Olivé, 1969.
96
Rio de Janeiro, Artenova, 1975.
133
Como encarar o tabu verbal, refúgio do moralismo escrito?
Os filósofos dizem que o que perturba e = arma o homem não
sáo as corsas em si, mas suas opiniões e fantasias a respeito delas,
poiso homem vive num universo simbólico, ç iguagem mito, ar-
te, religião são partes desse universo, são as var:adas linhas que te-
cem a rede entrançada da experiência humana.
97
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979.
134
curso, gerando unidades narrativas densas de informação, de alta
concentração estética e intelectual. Razão e emoção ali aparecem em
equilíbrio, como se os seus trabalhos já nascessem clássicos.
Luís Vilela alcançou a fortuna de projetar-se com o primeiro
livro. E manteve, nos demais livros de contos, o mesmo alcance li-
terário, como em No bar98, Tarde da noite", O fim de tudo100. Há
um traço forte de memorialismo nos melhores trabalhos de Luís Vi-
lela, especialmente as histórias curtas em que as personagems são
crianças ou adolescentes. O autor cria um sentimento generalizado
de frustração entre a generosidade dos projetos e as limitações (quan-
do não as perfídias) do mundo real.
O contista é seguro na arte do essencial. Por isso, dá a impres-
são de ser um contista nato, extremamente talentoso para o género.
Wander Piroli 101 ingressa na linha da literatura de conteúdo
insurrecional, de denúncia implícita como valor subtextual. Seu rea-
lismo é mais direto, embora tenha a intuição da cena instantânea,
do flagrante dramático. Tende a prosa despojada para uma ação
viril, como se tivesse a franqueza de Graciliano Ramos e a objetivi-
dade de Hemingway.
Diferente é o modo de Moacyr Scliar, mais alegórico, mais poe-
tizado, na linha de Murilo Rubião, embora o conteúdo de seus con-
tos seja mais secularizado, portador de uma tendência mais direta
de politização do texto.
Já Manoel Lobato irá cristalizar uma temática e um linguajar
característicos ao longo de anos de aprendizado. Começou com Gar-
rucha 44102, de traços regionalistas, apoiados numa intriga simples,
para a realização de Contos de agora103, Os outros são diferentes104
— significativamente apontando a mudança da natureza dos con-
tos no próprio título — e Flecha em repouso10S.
A propensão ao maniqueísmo é notória em Manoel Lobato,
o choque, ora visível, ora invisível, entre o bem e o mal, entre o sa-
grado e o profano. Denuncia-se nele o gosto da exploração erótica,
embora o seu erotismo seja carregado de sentimento de culpa e de
libertação, algo senil, como força de resistência à morte. Seus me-
lhores conto?pedem uma reflexão sobre o envelhecimento. O estilo
,8
Rio de Janeiro, Bloch, 1968.
" São Paulo, Vertente, 1970.
100
Belo Horizonte, Liberdade, 1973.
101
A mãe..., cit. e A máquina de fazer amor. São Paulo, Ática, 1980.
102
Rio de Janeiro, Simões, 1961.
105
Belo Horizonte, Oficina, 1970.
104
Rio de Janeiro, Artenova, 1971.
105
São Paulo, Ática, 1977.
135
de Lobaio é cristalino, depurado, deslizante, numa pauta de meio-
tom, afeito ao jogo da malícia.
Mais variadas são as experiências de Garcia de Paira. Os con-
tos de Festa10* impregnam-se de conteúdo existencial, reúnem per-
sonagens numa busca interminável. Os planelúpedes101 transportam
a açào para a atmosfera da ficção científica. A tradição da narrati-
va de visão prospectiva tem um marco em A desintegração da
morte108, de Orígenes Lessa. Garcia de Paiva realizará um dos me-
lhores textos de ficção experimental em Dois cavalos num fuscazul199,
pleno de inovações formais. O contista funde recursos voco-visuais
nalguns contos, de modo que a exposição verbal cruza com a dispo-
sição visual. O subtítulo "Em tecnicolor" contém duas composi-
ções — "Cinema" e "Afrodite na tela panorâmica" — que se asse-
melham a um script para filme.
O futuro prefigurado na ficção de Garcia de Paiva é apocalíp-
tico. A aglutinação temática de Dois cavalos num fuscazul porta o
mesmo sentido de Os planelúpedes, na medida em que se dá realce
à violência como estrutura nuclear da conduta das personagens.
Tanto a montagem fílmica quanto as licenças ortográficas do
contista carregam-se de funcionalidade. No primeiro caso, cria-se
uma visualidade mais nítida; no segundo, revelam-se intenções mais
profundas; por exemplo, a grafia "ornem" serve tanto para dar con-
temporaneidade ao futuro, presumindo-se uma simplificação orto-
gráfica e conferindo um ar de modernidade ao texto, quanto para
lembrar o estado de mutilação do ente designado, "ornem". Vale
dizer: estamos criando um porvir restritivo da integridade do ser.
Talvez aí encontremos uma crítica implícita ao sistema, sem a expli-
citude e a evidência comuns à literatura de cunho social.
Na ficção de Garcia de Paiva, além de surpreendermos a pro-
cura da informação nova, quer em nível do veículo, quer em nível
da mensagem, podemos igualmente situar o artista, que desafia o
impasse em que muitos estão caindo, de escrever só para tentar de-
monstrar a desrazão da escrita. O tema do contista não é o próprio
processo narrativo, como tantas vezes tem ocorrido ultimamente.
O ficcionista insiste na propriedade fabuladora, crê nos prazeres do
imaginário, que articula uma história digna de ser contada e de ser
ouvida, embora fugindo ao referencial direto, panfletário ou apo-
logético.
106
Rio de Janeiro, Artenova, 1970.
107
Rio de Janeiro, Brasília, 1975.
108
Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1948.
109
Belo Horizonte, Comunicação, 1976.
136
O simbolismo de Dois cavalos num fuscazul é patente no pla-
no meramente lexical e sintático: os homens são trocados por ani-
mais, os animais são convertidos em seres humanos, todos utiliza-
dos para acentuar a selvageria e a bestialidade. O lado natural que
os reúne são os instintos, mas, na ficção, são ressaltadas as suas fun-
ções capitais: a reprodução (o sexo) e a morte (a violência). Todas
as instituições civilizadoras, todo o instrumental técnico, todas as
conquistas do processo cumulativo ficam a serviço exclusivamente
da destruição do espaço humano.
Ao fim do conto "Pantomima", que historia a luta entre dois
homens, há um truque literário: muda-se a pessoa do titular da nar-
rativa. Parece que o autor quis demonstrar que todos somos inter-
cambiáveis, o que, de certa forma, está implícito no conto "Pará-
bola", de Festa.
Experiência isolada na história do conto brasileiro é a de Ro-
berto Drummond, com A morte de D. J. em Parisu0. Diríamos que
temos uma ficção pós-moderna. O propósito de criar uma narrati-
va pop é visível em Roberto Drummond. Mas há outros ingredien-
tes, certo bovarismo crítico, por assim dizer, pois as personagens
não são determinadas pelo ambiente, antes há uma transposição das
personagens para o paraíso mental gestado pela propaganda. Ro-
berto Drummond é um entusiasta do moderno, embora veja o ser
humano transitar com dificuldade por entre os múltiplos objetos da
criatividade industrial.
Quais os traços mais salientes do conto moderno, além dos que
já apontamos?
O conto, entre nós, se oficializou como género literário. Al-
guns contistas vão-se alinhando entre os autores de maior prestigio
em nossa literatura; certas coletâneas se puseram entre os títulos de
maior vendagem no País; várias publicações especializadas na his-
tória curta foram surgindo; incontáveis prémios foram instituídos
para consagrar o trabalho dos contistas.
O conto, desse modo, foi alçado ao horizonte da expectativa
reinante e, para mencionar uma idéia cara a Hans Robert Jauss, a
relação de cada texto particular com a série de textos, que formam
o género, surge como um processo de criação e de modificação con-
tínua da expectativa.
Um fator sociológico incidiu sobre a natureza da temática,
abrandando a tendência regionalista em favor da ampliação da pro-
blemática urbana. Relaciona-se isso à forte concentração urbana que
se verificou no País. Tal fato irá ter consequências estéticas. Basta
110
Sào Paulo, Ática, 1975.
137
que comparemos o realismo do conto regionalista, na sua transpa-
rência, preocupado em transcrever o ambiente, físico e social, com
o realismo do período predominantemente urbano do conto, volta-
do para uma atividade esquadrinhadora e descobridora do ambien-
te, liberto da obrigação documental e denotativa, com que se de-
nunciava o horror da ambiguidade na ficção realista-naturalista do
século passado.
Na linha da dispersão da matriz realista, confinada ã geome-
tria da anedota escrita como equação a uma só incógnita, vamos
encontrar, muito forte no cenário brasileiro, o conto mais de esta-
do de alma, menos de enredo. Então, a articulação temática se tor-
na escassa, o texto chega ás vezes a aproximar-se de um género an-
cilar do jornalismo, a crónica, de larga aceitação no País. Para re-
tomar a lição de Roland Barthes, digamos do recuo ou do quase
desaparecimento das "funções", em favor dos "índices" e dos "in-
formantes", núcleos narrativos em que se concentram comentários
livres destinados ora a conferir espessura psicológica ou filosófica
ao texto, ora a amparar a circulação da sabedoria dos povos.
Assim, num conto como "Onde estiveste de noite", de Clari-
ce Lispector, nota-se a ruptura com a cena final, ponto de apoio
da ação dramática ou da pilhéria. O espírito da obra se contém na
epígrafe retirada de um texto de Alberto Dines: "As histórias não
têm desfecho".
Temos, no caso do livro Onde estivestes de noite (mero exem-
plo de outros de nossa literatura), uma coleção de segmentos narra-
tivos, regidos por um hibridismo ideológico e moral, permeados de
sátira e alegoria.
Com efeito, na alegoria oculta-se uma abstração por detrás das
imagens concretas. Os caracteres são personificações de qualidades
ideais, enquanto a ação narrativa que forma a alegoria projeta as
relações entre as qualidades personificadas. Assim, a narrativa ale-
górica remete para um significado subjacente, por vezes uma cons-
tante da espécie humana, uma abstração universal, uma idéia. A ale-
goria realiza no plano estrutural aquilo que o símbolo opera no âm-
bito lexical ou frásico. Etimologicamente ela equivale ao discurso
que faz entender outro. Nas palavras trasladadas, pode-se ler um
sentido literal e outro subjacente, evocador de outra verdade mais
profunda ou intencional.
Verifica-se, no texto moderno brasileiro, uma revolução do
conto, revelada na organização dos motivos livres, nos índices, nos
filosofemas, nos dizeres poéticos, com que a prosa se despede do
corte realista da tradição, abandonando a documentação do refe-
138
rencial para atei-se ao realismo do discuiso. Não raro, as persona-
gens se tornam anónimas (ou simplesmente exemplares como João
e Maria nos contos de Dalton Trevisan), importa a fala, mesmo que
seu titular seja indeterminado. Observe-se, por exemplo, o livro Pe-
quenos discursos. E um grande, de Hilda Hilst, constante do volu-
me Ficções111: minicontos, textos confessionais, sátira, reflexões, ma-
gia. A forte alegoria oculta o chão histórico, decreta a futilidade
da representação, oscila entre o mistério e a parábola.
Uma alternativa do conto brasileiro, a fim de evitar a canoni-
zação de modelos que, à força de repetição, acabam criando auto-
matismo , foi a prática bem-sucedida do experimentalismo, uma das
muitas formas de busca da diferença. Na verdade, a sedução pelo
modelo anterior leva a uma reiteração epigônica, à repetição este-
reotipada. É quando se esgota a capacidade criadora do artista, sua
propriedade inovadora do género, de ampliação deste, de seus ele-
mentos típicos, ajustados a horizontes expectacionais novos. Daí o
acerto da proposição de Hans Robert Jauss: "Um texto é tanto mais
a reprodução estereotipada das características de um género quanto
mais ele perder em valor artístico e em historicidade" 112 .
Ora, o objetivo da experiência vem a ser justamente a recupe-
ração do valor artístico, esgotado na prática de qualidades já este-
reotipadas. No dizer de M. Viétor, citado por Jauss, " o género não
tem em vista imobilizar-se num estado de perfeição, mas estar pre-
sente numa realização sempre renovada" 1 1 3 . Quanto à recuperação
da historicidade, implica tanto a abertura formal, como a atualiza-
ção substantiva. A substância do conto tem de ser, de preferência,
a da época.
O ponto de gravidade do género continua sendo, em muitos
casos, a anedota, mas com uma dimensão metafísica mais acentua-
da, principalmente por influência do Existencialismo no após-guerra.
Ao mesmo tempo, assiste-se a um deslocamento do ponto de gravi-
dade, que vai saltando da anedota para a própria palavra.
Guimarães Rosa tem reflexões originais sobre o conto, na li-
nha de admitir que a história curta se organiza em torno de uma
anedota. Mas propõe gradações à anedota. Primeiro, diz:
A estóría não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser
" c o n t r a " a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco pareci-
da à anedota.
1,1
Sâo Paulo, Quíron, 1977.
112
Em História literária como desafio à ciência literária-, literatura medieval e teoria
dos géneros, trad. Ferreira Brito, Porto, Ed. José Soares Martins, 1974, p. 98-9.
" J Ibid., p. 107.
139
A anedota — contrnua — pela etimologia e para a finalidade,
requer fechado ineditismo. Uma anedota é como u m fósforo: risca-
do, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro em-
prego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento
de análise, nos tratos da poesia e da transcendência.
4
Aletria e hermenêutica, em Tutaméia, Rio de Janeiro, José Olympio, 1967.
113
Rio de Janeiro, José Álvaro, 1966.
Uo
Rio de Janeiro, Sabiá, 1973.
11
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
140
são d o grotesco como fatoi de crítica ao poder, a tendência ao esti-
lo coloquial. Todos esses valores penetraram na literatura brasileira
e Ficaram sedimentados na prática da história curta.
Nos últimos tempos, tornou-se frequente a exploração da vio-
lência repressiva como núcleo temático.
Segundo Freud não existe civilização sem repressão, especial-
mente a repressão sexual. Há uma violência em toda sociedade or-
ganizada. A "ordem" é já a manifestação de uma violência. Con-
sequentemente, a hierarquia, inerente à ordem, também o é, pois
opera um intervalo real entre a decisão e a execução, operadas por
agentes diferentes.
No relato mítico, da epopéia, encontramos um tipo de violên-
cia, que se abriga no anonimato e se coloca acima do bem e do mal,
dispondo da vida e da morte dos protagonistas. Àquele poder cego,
inexorável, diante do qual todos curvavam a cabeça, inclusive Zeus,
os g T e g o s deram o nome de Moira, que vem a ser a necessidade imu-
tável das leis eternas da Natureza. A ela Zeus se submetia, pois não
poderia admitir a desordem no universo.
Para a civilização judaico-cristã, mediada pela temporalidade
e pela religião, a tentativa de conciliação entre a ordem cósmica e
a vida social realiza-se pela adoção da violência divina, utilizada em
favor dos interesses do Estado.
A violência explícita se manifesta quando se faz necessário ba-
lizar as fronteiras do poder. Digamos que a violência se torna física
quando a psicológica não basta. Thomas Szasz assinala que as pes-
soas podem ser restringidas de dois modos básicos: fisicamente,
quando confinadas em celas e hospitais psiquiátricos, por exemplo;
e simbolicamente, quando confinadas em ocupações sociais11 .
Michel Maffesoli distingue a "violência social", de certa for-
ma positiva, indicadora da "dominação sem farda", da "violência
sanguinária", que se manifesta quando há impossibilidade de sim-
bolização, ou quando esta é imperfeita 119 .
A aspiração do planejamento do Estado contemporâneo pro-
põe uma uniformização das condutas, a indiferenciação generaliza-
da entre homens e coisas, a naturalidade das relações, o descom-
promisso total. A solidariedade mecânica substitui a organicidade
social. Tudo isso irá afetar as relações de trocas espontâneas numa
sociedade livre, em que se poderia vivenciar uma pluralidade de si-
tuações, numa deambulação existencial diante da circulação dos
bens, do sexo e da fala. Na procura da felicidade berrantemente gri-
118
Ideologia e doença mental, trad. José Sanz, Rio de Janeiro, Zahar, 1980.
1,9
A violência lotalilária. trad. Nathanael C. Caixeiro, Rio de Janeiro, Zahar.
1981, p. 22.
141
tada nos meios de comunicação de massa, o Estado, cada vez mais
onipotente, interfere mais e mais nas decisões individuais, reduzin-
do o espaço livre do cidadão.
É patente que o Estado-segurança retira o indivíduo de sua dis-
ponibilidade, de sua precária e intensa possibilidade humana, pro-
curando nivelar a espécie, domesticá-la. Troca a liberdade pela pre-
visibilidade das condutas. Loucos, delinquentes e dissidentes políti-
cos passam pela "terapia" social do confinamento e do extermínio.
Tal realidade de nossos dias tem-se projetado no conteúdo de
nossa Ficção, sem uma correspondência linear, é verdade, sem uma
transcrição literal, mas segundo um jogo de correspondências bem
sintomático.
Da leitura dos contos da repressão pode verificar-se outro as-
pecto: a orgia, o sexo e o riso são brechas que aparecem nas socie-
dades por demais direcionadas.
No Brasil, a violência indisciplinada a que se entregou o apa-
relho estatal valeu como agente desinibidor do comportamento agres-
sivo no trabalho policial. Daí, a literatura que se vem fazendo pós-64
estar pontilhada de cenas que se passam nas celas das prisões. Exem-
plos: o conto "Os camaradas", de Wander Piroli, "Saindo de den-
tro do corpo", de Flávio Moreira da Costa, "Comunicação" de Gar-
cia de Paiva e " O subversivo", de Manoel Lobato.
O interior da prisão se tornou, por assim dizer, o lugar ciber-
nético da ficção brasileira contemporânea 120 . Os lugares cibernéti-
cos são aqueles em que se elaboram, transmitem ou trocam infor-
mações, onde as personagens se reúnem. Na metáfora de Ivan Ân-
gelo, a prisão seria o Brasil inteiro, a grande casa de vidro.
A partir de certo momento, a repressão nacional dispensou seu
arcabouço ideológico: instituiu-se a simples violência gratuita. Os
contos de Rubem Fonseca e de Júlio Gomide 121 refletem o clima
de violência como exacerbação do instinto destruidor. Arma e ba-
gagem121 , de Mafra Carbonieri, reúne exemplos a serem sempre lem-
brados.
Os inúmeros contos que põem em presença o opressor e o opri-
mido, ou que se ajustam à linha de literatura de protesto, não apon-
tam, no caso, para a utopia, não se têm transformado em armas ideo-
lógicas para se lograr uma revolução social ou uma sociedade perfei-
120
A temática cibernética foi desenvolvida por J. P. Richard, em Proust et le monde
sensible, Paris, Seuil, 1974 e utilizada por Philippe Ramon em Du savoir dans le tex-
te, Revue de Sciences Humaines, 40 (160), oct./dec. 1975.
121
Um tiro na melancia e Outra vez a mesma história, em Liberdade para os piri-
lampos, Rio de Janeiro, Codecri, 1980.
122
Sào Paulo, Martins, 1973.
142
ta. O seu conteúdo é crítico, milita mais na área da negatividade
e da desesperança do que na idealização de um mundo corrigido.
Somente por linha reflexa é que sugerem a emancipação humana.
Seria o seu lado ético, mais do que o estético.
A opressão também se espraia pelas relações amorosas. É jus-
to lembrar a novela de Raduan Nassar, Um copo de cólera 123 , pa-
radigmática a muitos respeitos. Diríamos: perfeita no plano do enun-
ciado, empolgante no âmbito da enunciação.
E a disputa do poder no jogo amoroso, hetero ou homosse-
xual, encontrará abrigo em destacadas experiências da moderna fic-
ção brasileira. Alguns contos de Edla Van Steen apontam para esse
rumo, embora visualize uma burguesia cínica, inconsciente de suas
prerrogativas de classe124.
Como se deu a invasão do subconsciente em nossa narrativa e
o gosto de explorar os movimentos da mente em excitação crescente,
muitos autores se tornaram mestres da análise do desejo interditado.
E o caso de João Gilberto Noli 12 ', cujos contos de estreia o elevaram
entre os melhores contistas brasileiros. O fluxo da memória de suas
personagens tem a velocidade cinematográfica, a descontinuidade sur-
real, a enumeração caótica, ao modo das de Roberto Drummond.
"Conversações de amor", por exemplo, ilustra a progressão do dese-
jo. Tal como o movimento perturbador da consciência em "Lição par-
ticular" de Aércio Consolin126, em que um professor vai aos poucos
caindo na armadilha do desejo. Sob esse aspecto, uma particularidade
governa as narrativas de Modesto Carone : a visualização metódica,
o corte profundo do cenário, de modo que a intensidade dramática
cresça de quadro em quadro. As pessoas procuram as outras com as
cautelas e o aparato de um caçador: de armas nas mãos. A arma em
Modesto Carone, como em Mafra Carbonieri, tem a função de ins-
trumento cibernético: condensa um estado de espírito, uma inclinação
ao sadismo. No plano da crítica social, os sintomas de agressividade
se transmitem, em Julieta de Godoy Ladeira, a partir do título, o pri-
meiro índice do conteúdo: Dia de malar patrão12 . Diversamente, Deo-
nísio da Silva incorporou à sua narrativa o grotesco, como ponto de
partida ara a sátira às instituições129. Os "inocentes" que estão no
título de um dos seus livros ali estão para indicar o inverso. A "expo-
sição de motivos" é ideológica. As "cenas indecorosas" estão próxi-
:2J
São Paulo, Cultura, 1978.
n i
Antes do amanhecer, São Paulo, Moderna, 1977.
12
' O cego e a dançarina. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.
A dança das auras. São Paulo, Moderna, 1980.
127
Aos pés de Matilde, São Paulo, Summus, 1980.
128
São Paulo, Summus, 1978.
129
A mesa dos inocentes. Rio de Janeiro, Artenova, 1978; Exposição de motivos.
Rio de Janeiro, Artenova, 1977; Cenas indecorosas. Rio de Janeiro, Artenova, 1976.
143
mas das liberações verbais e cénicas de Rubem Fonseca e Dalton Tre-
visan, dessacralização de tabus linguísticos ancestrais, na linha fes-
cenina, pretextada verba.
Há contistas que trouxeram a sintomatologia (a semiótica) da
modernidade para textos ultracurtos, minicontos. É o caso de Eric
Nepomuceno" 0 , ficcionista de hábil inventividade, construtor de
densos episódios. Diferentemente, Flávio Aguiar expande-se no texto
maior, como " O ô n i b u s " m , embora seja capaz de uma dicção ex-
perimental, como "Os caninos do vampiro", uma paródia de Cla-
rice Lispector, misto de poema e drama, uma reflexão existencial,
um trânsito ao zoomorfismo, uma confissão de amor, de curta di-
mensão.
Da década de 60 em diante, o número de contistas se tornou
uma legião. Francamente, torna-se impossível realizar uma enume-
ração exaustiva. Neste estudo, contentamo-nos em apontar tendên-
cias e ilustrá-las com exemplos à mão. Apenas para mencionar au-
tores com os quais, direta ou indiretamente, já trabalhamos, lem-
braríamos, em ordem alfabética do prenome literário: Adonias Fi-
lho, Alan Viggiani, Bernardo Élis, Caio Fernando Abreu, Domin-
gos Pellegrini Jr., Duílio Gomes, Eduardo Campos, Elias José, Ema-
nuel Medeiros Vieira, Fernando Sabino, Fran Martins, Guido Wil-
mar Sassi, Hélio Pólvora, Herberto Sales, Herman Reipert, Hermi-
lo Borba Filho, Ignácio de Loyola Brandão, Ildeu Brandão, Jeffer-
son Ribeiro de Andrade, José Edson Gomes, Josué Montello, Luís
Fernando Emediato, Marcos Rey, Miguel Jorge, Oto Lara Resen-
de, Péricles Prade, Regina Célia Colónia, Salim Miguel, Samuel Ra-
wet, Sérgio Faraco, Sérgio Sant'Anna, Sílvio Fiorani. Sônia Couti-
nho, Tânia Faillace e Zulmira Ribeiro Tavares.
Falta mencionar uma extremaçào da metalinguagem: o conto-
ensaio, algo já prenunciado em Lima Barreto, mas realizado, com
plenitude de recursos, por Silviano Santiago 132 , que institui uma ca-
deia intertextual interminável.
Os contos "Traição" e "Labor Dei" contêm uma arte poéti-
ca implícita, assim como "Futebol americano". Outros imitam o
ensaio: "Perigo no uso de recursos não-científicos na labiologia"
e "Banquete". Mais uma vez, o grotesco é capturado para condu-
zir a crítica social. Tal efeito metalingúístico advém dos primórdios
do Modernismo.
130
Contradança, Rio de Janeiro, Folhetim, 1976.
131
Os caninos do vampiro, São Paulo, Ática, 1979.
132
O banquete. São Paulo, Ática, 1977.
144
A violência como reflexo temático
133
A violência totalitária, cit., p. 22
145
conferir papéis às diferentes individualidades, procura justamente
tornar previsíveis as condutâs. Pedreiro, militar, juiz, professor, ope-
rário ou esportista, de cada um se espera o cumprimento de um pa-
pel determinado, muito embora a potencialidade do ser humano se-
ja múltipla e variada. "As tentativas de predizei o comportamento
humano" — diz Thomas Szasz — "são, pois, prováveis de resultar
de esforços para restringi-lo" 154 . Para o psiquiatra da Universida-
de de Nova York, uma das funções da cultura e da tradição é estrei-
tar a plasticidade infinita, a liberdade potencial do homem13". A ciên-
cia, ao classificar os fenómenos, oferecendo-lhes certa regularida-
de, vem a ser um fator auxiliar da cultura e da tradição no cercea-
mento da liberdade primordial do homem.
O confinamento profissional, assim como a ordem legal fa-
zem parte do que chamamos violência implícita, pois de natureza
consensual, consciente e autolimitadora. Thomaz Szasz assinala que
as pessoas podem ser restringidas de dois modos básicos: fisica
mente, confinando-as em celas, hospitais psiquiátricos e assim por
diante; e simbolicamente, confinando-as em ocupações sociais e as-
sim por diante Na realidade, o confinamento do segundo tipoé ma:s
comum e difundido na conduta social diária; via de regra, só quan-
do o confinamento de conduta simbólica ou socialmente informa;
fracassa, ou prova ser inadequado, recorre-se ao confinamento físi-
co, ou socialmente formal 136
134
Ideologia e doença mental, cit., p. 192.
135
Ibid., p. 195.
13<
; Ibid., p. 96.
117
A violência..., cit., p. li.
146
É que os regimes políticos buscain sua legitimidade, quando
a violência é exercida em nome da lei, ou seja, da razão humana.
Mas há uma gradação a considerar: a ordem simplesmente legítima
não tem sido bastante diante das tarefas e dos privilégios que o Es-
tado se reserva; torna-se necessário um simulacro da legitimidade,
que é a mera legalidade. Inventam-se leis tão-somente para sancio-
nar o arbítrio. No Brasil, por exemplo, criaram-se a partir de 1964
os decretos secretos, símbolos da violência não-disciplinada, arbi-
trária. A violência praticada em nome da razão humana fica fora
de questionamento: outta coisa é a violência legalizada, diferente
da legitimada. Esta e feita em nome da maioria, aquela é praticada
em nome de determinada minoria.
Para os objetivos deste estudo, devemos considerar, no Esta-
do contemporâneo, sua face providencial, em busca do progresso
da comunidade, e =ua face defensiva, em oposição às mudanças.
A aspiração do planejamento propõe uma uniformização das
condutas, a indiferenciação generalizada entre homens e coisas, a
neutralidade das relações, o descompromisso total. A solidariedade
mecânica substitui a organicidade social. Tudo isso irá afetar o ní-
vel das relações de trocas espontâneas numa sociedade livre, em que
se poderia vivenciar uma pluralidade de situações, numa deambula-
ção existencial diante da circulação dos bens, do sexo e da fala. Na
procura da felicidade berrantemente gritada nos meios de comuni-
cação de massa, o Estado, cada vez mais onipotente, interfere mais
e mais nas decisões individuais, reduzindo o espaço livre do cidadão.
Mas o Estado é uma organização do poder, do poder de uma
classe ou de um grupo. Daí tornar-se um Estado conservador, de-
fensivo. Pratica uma violência preventiva contra qualquer tipo de
modificação que afete a titularidade do poder. A essa força genera-
lizada de defesa chamamos repressão. Na repressão se dá a utiliza-
ção da violência física e psicológica de modo sistemático, não-
legitimada e consensual, para a interdição de determinada faixa do
poder. Numa microanálise, diríamos que são práticas que vedam
o acesso ao desejo. Daí o sentido dos contos da repressão, coletâ-
nea de histórias curtas, surgidas após 1964, narrativas dos proces-
sos violentos de tomada ou de negação do poder.
É patente que o Estado-segurança retira o indivíduo de sur
deambulação existencial, de sua precária e intensa possibilidade hu-
mana, procurando nivelar a espécie, domesticá-la, robotizá-la. Troca
a liberdade pela previsibilidade das condutas. Loucos, delinquentes
e dissidentes políticos passam pela "terapia" social do confinamen-
to e do extermínio.
O Estado-segurança se torna uma entidade sem rosto, mais ou
menos irresponsável, dado à violência não-disciplinada e arbitrária,
147
mas sempre presente no trabalho, nos mejos de comunicação de mas-
sa, na vida familiar, nos escritórios, no comércio, no trânsito, nas
ruas, nos estádios, nas escolas, nas fábricas, onde quer que se vá,
pois corporificado em mandatários interpostos. Estes se tornarão
personagens típicas: porteiro de boate, militar, funcionário, chefe
de seção, fiscal, zelador, síndico, corretor, médico, magistrado, gi-
golô, delegado de policia, líder político etc.
Da leitura dos contos da repressão pode verificar-se outro as-
pecto: a orgia, o sexo e o riso são brechas que aparecem nas socie-
dades demasiadamente direcionadas.
Pode-se dizer que no Brasil, a partir de 1964, verificou-se a
passagem da violência social para a violência sanguinária, como as
define Michel Maffesoli. As forças conservadoras, da cidade e do
campo, tiveram consolidado o seu poder, livrando-se das ameaças
de mudança que estavam no ar; as elites militar e empresária (tais
como as reunidas em torno do Ipes — Instituto de Pesquisas e Estu-
dos Sociais) puderam dar curso ao seu projeto de "modernização"
do Brasil, articulando um largo processo de poupança forçada e in-
gresso do capital estrangeiro, representado, em grande parte, pelos
conglomerados multinacionais; a Embaixada Americana orquestrou
o golpe militar, dentro da estratégia estadunidense de reserva de área
de influência (como se revelou dos papéis arquivados na Biblioteca
Lyndon Johnson). Em suma: poderosas forças de dominação se ar-
regimentaram para evitar um câmbio no exercício do poder. O grande
fator dissuasório foi a repressão. Além da violência física, repre-
sentada por prisões, torturas, assassinatos, confinamentos e exílio,
praticou-se sistematicamente a violência ideológica, consistente na
censura, na ocupação dos canais de informação, na direção do en-
sino, na manipulação da opinião pública, enfim, em todos os artifí-
cios que forçam ao silêncio as vozes discordantes.
A partir de certo momento, a repressão nacional dispensou seu
arcabouço ideológico: institui-se em simples violência gratuita. A
rotina virou pura demonstração de força.
O projeto económico em andamento, com o fito de aumentar
a poupança e o investimento nacional, acentuou o distanciamento
histórico entre ricos e pobres, agravando a violência económica que,
por sua vez, tem realimentado a violência dos ricos, a instituciona-
lizada (representada pelo aparelho estatal) e a dos pobres, encar-
nada nos marginais e assaltantes. Daí a sequência de militares e
de bandidos como personagens privilegiadas138 nos contos da re-
pressão.
148
. • A i ^ A b - i -fãffArJ
139
Poder e inocência; uma análise das fontes de violência, trad. Álvaro Cabral, Rio
de Janeiro, Zahar, 1981
140
Ibid., p. 83.
UI
Vioient men; an inquiry into the psychology of violence, Chicago, Aldine, 1969.
142
Poder e inocência, cit., p. 27.
A mãe.... cit.
144
Poder e inocência, cit., p. 26.
145
Em O calor das coisas, cit.
149
deixa a fala de primeira pessoa para exprimir um pensamento gené-
rico, englobante: " O poder não fragiliza apenas a quem domina.
O poder educa para que não esqueçamos as suas lições".
E assim se tece um discurso de uma opção entre resistir e mor-
rei, de um lado, e não resistir, acomodar-se, e viver, de outro lado.
A submissão é uma virtude social sem a qual, ao menor con-
flito, enfiaríamos a faca no coração desprevenido do vizinno. Aprendo
depressa a acomodar-me entre os tijolos da vida, estas quatro pare-
des sinistras.
146
Os agricultores arrancam paralelepípedos. São Paulo, Ática, 1977.
147
Malvadeza Durão, cit.
150
Restabelecida a ordem, a verdade volta a ser o que sempre
foi — uma escolha permitida A permissão quer dizer que a orderr
afirmada já escolheu alguma coisa por mim, por nós, pelos homens.
Diante disso eu carrego as minhas armas.
148
Feliz Ano Novo, cit. e O cobrador, cit.
149
Liberdade para os pirilampos, cit.
151
aos miseráveis. Já no conto "Intransitivo" de Mafra Carbonieri dá-se
uma inversão da força propulsora: o que aparece é a classe domi-
nante no seu exercício de violência, seja económica, seja física, tan-
to implícita quanto explícita.
Algumas justaposições se afiguram inevitáveis. Há uma estra-
tégia própria de apresentação de opressor e oprimido, calcada espe-
cialmente nas ambiguidades do diálogo, quando os interesses inqui-
sitoriais se tornam presentes. As ciladas do questionário e das con-
clusões soezes do inquisidor destacam-se na arte narrativa de Wan-
der Piroli, cujo conto "Os camaradas" é exemplar, e de Deonísio
da Silva, em "Investigações sem nenhuma suspeita".
Há, nesses contos, um duplo jogo de palavras para se captar
o cerne do real: a astúcia da enunciação do contista, repousada nos
•v alores literários e o calor conclusivo do enunciado, apoiado na imi-
tação da vida permeada de repressões.
Aí, o núcleo temático estaria centrado no campo da "infor-
mação", forma de controle e império do discurso alheio. Os danos
psicológicos da restrição da liberdade na personagem presa de sus-
peição projetam-se sutilmente no conto " M e d o " , de Manoel
Lobato 150 .
Nem só do discurso diretamente referencial se alimenta a fic-
ção pós-64. Muitas vezes as formas repressivas se sublimaram em
parábolas, de alcance didático, digamos assim, muito superior. É
o caso de "A casa de vidro" de Ivan Ângelo. O contista narra o
avanço gradual da interiorização da violência, a rotina da repressão
gerando um hábito, uma segunda natureza, um " d a d o " do proble-
ma social.
Da mesma forma, a ladainha da violência em " O cobrador"
logra efeito simbólico e pedagógico. É como se fosse o discurso da
carência revertido em castigo do corpo social.
Garcia de Paiva irá gravar com os mesmos estigmas de violên-
cia indisciplinada a sua narrativa de antecipação, o conto " A gente
vai caçar o quê, pacopai?", lembrando mais uma vez que a ficção
científica, mesmo no exercício do pleno imaginário, não se descola
Ja motivação ambiental, historicamente datada, que envolve o es-
critor 151 .
Moacyr Scliar vai mais longe: alegoriza a violência indirecio-
ttada, cega, em " C ã o " , assim como reporta-se à relação natural en-
:re a lei da selva e a lei dos homens em "Os leões" 152 . O mundo
152
fictício se encaixa diretaniente no inundo dos fatos, num lance rápi-
do de contraste em que o contista é mestre.
O grotesco do assalto ao poder em 1964, e o inesperado do
ascenso às áreas dominantes de personalidades não-escaladas na
consciência pública por uma prática política, despertaram, princi-
palmente nos primeiros tempos pós-64, uma descarga humorística
entre alguns escritores. Diante do monopólio da força de um lado,
a vingança do riso do outro. Daquela atmosfera participa o conto
de Flávio Moreira da Costa, "Manobras de um soldado". Da mes-
ma forma, Ricardo Ramos, experimentado contista, aprofunda-se
no conteúdo jogo-satírico da emergência de figuras surpreendentes
no cenário nacional, em "Um guaraná para o general" 153 . Enquanto
Flávio Moreira da Costa explora o absurdo dos momentos de incer-
teza do golpe, Ricardo Ramos contempla o poder militar estabiliza-
do, fora de suas funções tradicionais. Seu conto possui incontáveis
designativos da fase consumista que o País atravessa, subproduto
do modelo económico ascendente em 1964.
Os dois autores acima enfileiram-se entre aqueles que contra-
põem a conduta do civil, considerada "normal", à do militar, su-
bordinada a hábitos mecânicos, consequentemente desencadeado-
res de reações cómicas. Não escapou ao filósofo Henri Bergson 1M
o potencial de riso existente no encontro de duas situações tão dís-
pares: a natural e a mecânica. Talvez não seja mero acaso serem
humorísticos justamente os dois contos que trazem no título os léxi-
cos soldado e general. Possivelmente uma intenção subconsciente
tenha comandado a agressão do riso contra o monopólio da força.
A sátira, na lição de André Jolies, em Formas simples, diferente-
mente da ironia, utiliza-se por exclusão do outro que nos desagrada.
Assim, os contos da repressão ajudam-nos a aprofundar o es-
tudo da violência, sua tipologia, seu exercício, assim como as for-
mas de que se reveste, incluindo-se aí sua utilização no discurso lite-
rário, no interminável jogo de relações entre o texto e o contexto.
Tão compressivas têm sido a defesa e o exercício do poder na
sociedade brasileira que as reações temáticas afloram ao espírito cria-
dor com ênfase oposta. Temos aqui um substrato moral, uma de-
núncia da sociedade enferma.
Esses contos curiosamente não apontam para a utopia, não
se transformaram em armas ideológicas para se lograr uma revolu-
ção social ou uma sociedade perfeita. O seu conteúdo é crítico, mi-
153
lita mais na área da negatividade e da desesperança do que na idea-
lização de um mundo corrigido. Somente por linha reflexa é que di-
zem da emancipação humana.
Fora os casos de chiste e de alegoria, predomina na coletânea
a visão do lado trágico da vida, o enfrentamento de forças inexpug-
náveis através do livre-arbítrio permissivo, quase licencioso. O es-
pírito da tragédia se entremostra no ardor das paixões humanas per-
meadas peia piedade ou pelo terror, pontos básicos da caracteriza-
ção aristotélica. O envolvimento pessoal no ciclo trágico geralmen-
te advém da hamarlia, o "grande erro ou fraqueza" em que a sorte
do protagonista é envolvida, na sua deambulação existencial.
154
ASPECTO DA FICCÃO
MINEIRA PÓS-4'5:
ROMANCE DE GERAÇÃO
Tradiçao introspectiva
1
romance, Belo Horizonte, Pindorama, 1927.
155
E m d a d o instante, a personagem P o r f í r i o Neiva fornece u m a
visão d o gosto da época e u m j u í z o de valor:
2
romance, Belo Horizonte, 1930.
3
Belo Horizonte, Itatiaia, 1981.
4
romance, Belo Horizonte, Os Amigos do Livro. 19"?.
" romance. Rio de Janeiro. José Olympio, 194?.
0
Rio de Janeiro, José Olympio, 1978.
Rio de Janeiro, José Olympio, 1968; incluído err. Sova reunião. Rio de Janeiro,
José Olympio/INL, 1983, 2. v.
156
máticas baseadas em íntimas dilacerações, em substituição aos he-
róis de ação, cujos projetos e malogros se operam no confronto com
a realidade exterior.
Com efeito, a literatura predominante em Minas, durante lar-
go período de prevalência do Modernismo, carrega-se de matizes con-
fessionais, como se a literatura fosse não só o refúgio do memoria-
lismo, mas também o exercício da autoconstrução pela palavra ou
a tentação inelutável de auto-análise.
É torno se grassasse uma crise de autenticidade no tecido so-
cial mineiro, a ponto de impregnar cada escritor de questionamen-
tos lírico-sentimentais ou filosófico-existenciais que cumprissem a
função motivadora, eternamente renovada, da prática literária.
Enquanto isso, o cenário internacional, de expansão indus-
trial, operária e urbana, mostrava-se agitado pelos debates políti-
cos; as transformações do capitalismo geraram idéias e ações inquie-
tantes, que conduziram ao nazifascismo, consolidado pelo temor da
propagação da doutrina socialista.
As polarizações político-sociais acabaram por influir na con-
duta e na expressão dos artistas. Daí, a abundância de uso da ex-
pressão como apelo, tendente a emocionar e a mover as massas de
leitores ao engajamento nas lutas sociais.
A literatura de apelo privilegia o lado ético da manifestação,
toma feição didática.
Enquanto a prosa subjetiva e intimista retrata, quase sempre,
um engajamento existencial, uma dolorosa procura da verdade ou
de valores, uma catarse exibicionista ou confessional, a ficção de
cunho social frequentemente baseia-se na verdade já encontrada ou
instituída e relata os insucessos dos inadaptados à ordem social, quer
por oposição (daí o protesto...), quer pela revolta ou mesmo a ma-
nifestação da consciência problematizada.
Quando, no curso da narrativa, quer na arte da intriga, quer
na interlocução das personagens, se dá a intromissão autobiográfi-
ca, ocorre o fluxo confessional; e quando, em ambos os casos, se
manifesta a intenção de influenciar, dá-se o apelo, a função apelati-
va que visa a mover o leitor e incitá-lo a sair do estado de inércia
para a esfera da participação. A trilha confessional leva à opinião
do grupo e esta conduz à visão do mundo, na qual se introduz o
questionamento político.
Em ambos os casos — confissão e apelo —, a grande tarefa
do escritor consiste em manter o nível estético na sua máxima eleva-
ção, a fim de que as obras não se degenerem no sentimentalismo
oco ou no panfleto político.
157
Por falar em romance-ensaio, lembrado com O clube dos gra-
fómanosde Eduardo Frieiro, é justo apontar dois notáveis roman-
cistas contemporâneos queo têm experimentado. Um é Silviano San-
tiago, que, no livro O banquete*, apresentou contos-ensaios, pro-
longando uma tradição que vem de Lima Barreto.
Em liberdade'', prodigioso romance, apresenta momentos su-
blimes de reflexão e instigante matéria ficcional. Também no Stella
Manhattan™, é possível surpreender instantes de pura perquirição
cognoscitiva.
O outro é Rubem Fonseca. Os seus dois últimos romances —
A grande arte11 e Bufo & Spallanzani12— contêm, por detrás de uma
estonteante fabulação, convites aliciantes para a meditação sobre
a obra de arte, especialmente a literária. Ademais, o narrador fala,
como especialista, de diversos assuntos, de forma que o saber circu-
la amplamente no tecido narrativo, recordando os melhores momen-
tos do naturalismo.
Confissão e apelo
158
A arte e a literatura rȋo se bastam a si mesmas. Descamadas
de qualquer finalidade social, sintetizam o desencanto do esforço inútil
ou desencanto do esforço satisfeito. A atividade desinteressada da
inteligência condurao ceticismo, ao desespero, à i natividade e à per-
da da energia vital
13
romance, Rio de Janeiro, Record, 1984.
159
A explosão de Guimarães Rosa para o grande público irá dar-
se em 1956, dez anos após a estreia, com Grande serIão: veredas
e Corpo de baite (dois volumes). A opinião pública, então, foi des-
pertada para o novo fenómeno de nossa prosa de ficção. O choque
foi tào grande que alguns escritores menos generosos e abertos ao
êxito alheio não conseguiram conter sua inveja e passaram, quer de
modo ostensivo, quer de forma soez, através de referências desairo-
sas ora ao escritor, ora à pessoa, a macular a fama do narrador lite-
ralmente vitorioso.
Além de Ciro dos Anjos e de Autran Dourado, outras tentati-
vas despontaram na realização da crónica das falcatruas da politi-
carem mineira. É o caso da obra de Mário Palmério, cujo romance
de estréia, vivamente aplaudido, Vila dos confins1*, constitui, em
parte, alegre relato das manipulações eleitorais do interior.
Bastante curioso é também o romance Rua do Quenta-Sol, de
Antônio Celso Alves Pereira 15 , que retrata os costumes de uma ci-
dade do interior e tem capítulos (ex.: nos cap. 12 e 13) dedicados
à disputa entre Hermes da Fonseca e Rui Barbosa no município. Dei-
xa a marca da violência e da arbitrariedade das eleições daquela épo-
ca. No capitulo 13, a cidadezinha contempla a passagem do cometa
Halley...
O romance de geração
14
romance. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956.
15
romance. Belo Horizonte, Nova Fronteira, 1967.
16
romance. Rio de Janeiro, Record. 1979.
160
.li torno dos dogmas religiosos organicamente impostos e adminis
trados, da disponibilidade intelectiva e da ampla absorção poética
dos valores humanos. Daí a fúria com que a geração de jovens lia
modernos e clássicos, embaralhando na indeterminação ideológica
o caos de informações colhidas ao acaso das leituras indisciplinadas.
Ler e fazer poesia constituía o mesmo ato. Daí a aproximação
de Eduardo Marciano, personagem central de O encontro marca
do, já casado e morando no Rio. do velho Germano, que costuma
va disparar para ele, deslumbrado, uma saraivada de frases e con-
ceitos poéticos, surreais.
O encontro marcado propicia a Fernando Sabino prolongar
os dois caminhos da ficção mineira: o confessional e a crónica de
geração. Há, mesmo, um tópico recorrenie em todos os grupos de
escritores novos: a criação de uma revista (como no caso de Eduar-
do Frieiro, em O clube dos grafômanos). Só que a Revista, planeja-
da, ficou em potência, não se realizou.
A conclusão de O encontro marcado, passada a tempestade
lítero-etílico-existencial, veio a ser um passo regressivo, uma tenta-
tiva de volta ao passado edènico e de reencontro de valores de que
a juventude havia-se ocasionalmente afastado: o fervor religioso.
Mas algo ainda na linha da incerteza. Uma das frases de Eduardo
Marciano, quando se descobre personagem de romance e decide mu-
dar o rumo da vida é: "Tudo que se escreve é apenas uma paródia
do que já está escrito e ninguém é capaz de escrever" 1 .
Em 1950, a geração de escritores novos foi logo realizando a
sua revista, na fase do delírio literário: Vocação. Esta fase não se
manifestou em nenhuma obra de ficção. A descoberta do mundo
artístico se fez através de encontros de admiração e de recusas polé-
micas. Atacávamos a grande literatura vitoriosa através de um es-
critor imaginário, Carlos Maurício Balsemão. E conquistamos, Af-
fonso Ávila e eu, um rodapé do Diário de Minas, em que procurá-
vamos dar a tónica de nosso pensamento e de nossas descobertas.
Anos mais tarde, realizamos a revista Tendência (1957), que,
pela primeira vez em Minas, propunha um programa ideológico pré-
vio: éramos socialistas e nacionalistas. Marxismo e existencialismo
marcavam a tendência de novo compromisso literário, mantido a
poder de debates e polémicas. Esgrimávamos com Sartre, Marx, mais
os analistas e intérpretes de ambos.
O romance da geração, Curral dos crucificados18, de Rui Mou-
rão, não encerra propriamente os princípios da revista, nem procu-
1
O encontro marcado, cit., p. 276.
18
romance, Belo Horizonie, Tendência, 1971.
161
ra exprimir o grupo. Antes discute a temática do " e u " perante a
coletividade. A personagem, na sua solidão impotente, chama-se Jo-
nas e vaga perdido nas entranhas da baleia, a multidão. Apanha,
portanto, a dimensão existencial do engajamento. O cenário é Belo
Horizonte. A corrente migratória é a dos retirantes que chegam à
cidade de trem, tangidos.pela necessidade. Como no capítulo inicial
de A festa19, de Ivan Ângelo.
Curiosamente, Rui Mourão, em seu último livro, Monólogo
do escorpião19, busca atualizar os moldes em que o mesmo esque-
ma se corporifica. Alt, todas as personagens fracassam. E o roman-
cista, retraído por delicado moralismo, não autoriza a busca do pra-
zer por parte da juventude, sumarizando as relações afetivas e
amorosas.
Em 1971, Luiz Vilela despontou com Os novos21, outro capí-
tulo de nossa crónica geracional. Dadas as circunstâncias, há uma
diferença de ângulo e grau na apresentação das personagens. Como
as de Fernando Sabino, são estudantes. Mas as preocupações são
outras. Fazem menos esforço para aparecer, mas preocupam-se igual-
mente com a carreira literária. E padecem de uma ameaça perma-
nente: a ditadura que se implantou em 1964.
A crónica geracional constitui um aspecto da crónica de cos-
tumes. Caracteriza-se pelo desprezo da urdidura, da montagem e
da produção de efeitos a cada capítulo, como no folhetim ou nos
romances de aventuras. Mais parece com o romance de formação,
em que transparece às vezes o lado pedagógico.
Luiz Vilela envolveu-se, enquanto estudante, com a publica-
ção de Estória, revista de contistas, de que se fizeram seis números.
Era o conto, nas décadas de 60 e 70, o género de eleição. Criou-
se a mística do "contista mineiro" e nada mais oportuno do que
se revelarem os "novos contistas mineiros".
A seguir, Luiz Vilela ligou-se à publicação Texto, outro título
sintomático para o período, de intenso debate da teoria da literatu-
ra, com predominância das análises estruturalistas. Texto era feita
com o aproveitamento do papel amarelo que envolvia as chapas de
raios X. Os escritores saíam de consultório em consultório, a reco-
lher cotas de papel para realizar sua literatura.
Os novos falam também da publicação de uma revista, Lite-
ratura, resolvida num ambiente de bebedeira. Nos debates dos jo-
vens, as letras internacionais desfilam. Há uma indefectível citação
162
de Sartre Um deles confessa ter ouvido uma frase significativa: " O
homem não foi feito para escrever livros, o homem foi feito para
ler" 2 2 .
Em outra ocasião, a personagem Vitor declara: "Eu que aos
quinze anos pensava que aos dezoito seria um génio, aos vinte e três
descubro que não sou n a d a " " . E Nei, talvez o alter ego do roman
cista. retruca: "Aos vinte e três anos já fazemos o balanço de nossa
vida""24
No final da novela, com o grupo envolvido em fracassos pes
soais e derrotas politicas, ainda se fala na possibilidade da publica
ção do clássico n? 3 da revista, mas "ninguém estava interessado
em fazer revista nenhuma, ninguém estava interessado em fazer na-
da, apenas beber e conversar enquanto o tempo passava lá fora no
asfalto quente" 20 . No horizonte de Nei, a esperança de escrever um
romance, sua mais fatal aspiração.
Luiz Vilela voltaria ao tema discussão intelectual/existen
ciai de um grupo — com Entre amigos26, uma das novelas mais bem
realizadas da nossa literatura. Puro diálogo, pura construção dra
mática, com forte aparência de teatro. O cenário agora não é mais
Belo Horizonte, mas a cidade do interior (Ituiutaba?) que cresceu,
tem sua faculdade de letras e seus jovens professores. Um retrato
da violenta urbanização que se verificou no Brasil nos últimos tem
pos. com a improvisação de tudo, inclusive dos órgãos educacionais
Outra experiência digna de relevo é Festa, de Ivan Ângelo Aqui
a crónica geracional apresenta características mais complexas, bem
mais elaboradas. O romance se estrutura em segmentos e se mostra
impregnado de motivação política e social.
A sonda analítica penetra mais profundamente nas camadas
ideológicas e revela mais objetivamente as contradições da socieda-
de belo-horizontina, agora mais amadurecida para a questão social.
E bem verdade que a ficção mineira se expandira mais, nos
últimos tempos, para o lado do problema económico e político. Wan
der Piroli, Roberto Drummond, Silviano Santiago, Oswaldo Fran-
ça Jr. e Garcia de Paiva trouxeram para a ficção mineira uma ele-
vação temática jamais experimentada anteriormente, rompendo, des-
se modo, as amarras provincianas.
Passaremos ao largo de suas obras, entretanto, dado o inte
resse apenas dos testemunhos geracionais deste estudo. Mas e preci
" Ibid . p 18
-M Ibid.. p. 41.
- 4 Ibid., p 42
Ibid.. p 151
'" novela. Sao Paulo Atiça. 1983
163
so registrar que, com esses autores, sim, a prosa de apelo se instau-
ra no território mineiro, entrevista apenas episodicamente no pas-
sado com Eduardo Frieiro, em parte, e Avelino Foscolo, este atra-
vés da abundante pregação libertária que lançava em seus romances.
Desse modo, é com o aparecimento daqueles escritores, que
se exprimiram nas décadas de 60 a 80, que o protesto e a denúncia
se produzem concomitantemente com a elaboração literária de refi-
nado acabamento artístico.
Ivan Ângelo colhe uma turma a discutir no Bar Lua Nova (a
turma do Luiz Vilela prefere o Pelicano) e apanha o seguinte:
— 1980 vai julgar a gente! Quede nossos livros, quede nos-
sas revoluções? O que é que nossa geração ; sz? Nós estamos aqui
julgando o Fernando Sabino, o Paulo Mencís Campos, a geração
Complemento, mas 1980 vai julgar a gen;= também 2 '.
2
A festa, cit., p. 114.
28
Ibid., p. 122.
29
Ibid., p. 123.
30
Ibid., p. 172.
31
Ibid., p. 173.
164
Sérgio Sant'Anna, carioca aclimatado em Minas, deu-nos Um
romance de geração32. Com ele acontece o oposto a Rubem Fonse-
ca, cuja formação e cuja temática é exclusivamente carioca.
Seu romance, que tem como subtítulo "comédia dramática em
um ato", não deixa de inscrever-se na tradição da crónica geracio-
nal que estamos localizando em Minas.
O cenário é carioca, mas interessa colher aqui a problemática.
O autor realiza um "romance" numa peça teatral, cujos interlocu-
tores são apenas um escritor (uns 35 anos) e uma jornalista (mulher
de uns trinta anos).
De que romance fala o protagonista?
Então, além do romance da nossa geração, é um romance en-
tre pessoas da nossa geração. Pois temos que nos fazer justiça. Uma
revolução nós fizemos, a sexual. Agora todo mundo pode trepar com
todo mundo. E depois " t c h a u " sem maiores grilos. Cada um para
o seu lado, como gatos e gatas depois de uma orgia nos telhados 33 .
32
comédia dramática, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981.
33
Ibid., p. 59.
34
Ibid.. p. 69.
35
Ibid., p. 70.
165
tura], que preparou gerações c gerações cultoras das belas-ktras e
do aristocracismo intelectual. •
Consta que agora, quer no plano agrícola, em que as frontei-
ras de produção exportável (café e soja) se expandem extraordina-
riamente no Estado, quer no domínio industrial, em que Minas Ge-
rais vai galgando o segundo posto no País, a economia mineira ma-
nifesta franca expansão, tanto em termos absolutos, quanto em ter-
mos relativos. Resta saber qual será a resposta literária, agora que
o toque nostálgico ou rural, ou meramente de caráter costumbrista
e anedótico perdem substância na produção global. Teremos o res-
surgimento da narrativa social? Ou se estratificará a literatura de
lazer, a narrativa trivial ou a ficção digestiva, nos moldes da propa-
gação da indústria cultural?
166
O ROMANCE
DE ÉRICO VERÍSSIMO
E O MUNDO OFERECIDO
0 primado do social
1
Porto Alegre, Globo, 1965. (No texto, designado abreviadamente por SE.)
2
3. ed., Porto Alegre, Globo, 1971. (No texto, designado abreviadamente por IA.)
3
O senhor..., cit., p. 4.
168
^nfe.-w- ae
4
Incidente..., cit., p. 24.
5
Ibid., p. 454.
6
O senhor..., cit., p. 4.
7
Ibid., p. 29.
169
Pode-se observar certa constância na tematização de alguns as-
suntos nas obras de Érico Veríssimo, apesar da enorme variedade
de situações e de personagens. O Leitor por vezes é despertado peia
escassa modulação narrativa. Para ficar num exemplo: em IA, o Jor-
nal deAntares do Prof. Martim Francisco Teria, dap. L49 à p. 188,
usa o mesmo estilo, o mesmo tom e a mesma técnica do nanador
do romance. Até na descrição das personagens iremos encontrai pa-
ralelismo. De certa forma, o romancista se mostra herdeiro do lea-
lismo balzaquiano: ambos, ao introduzir uma nova personagem na
intriga, já fornecem o perfil acabado, os traços físicos mais salien-
tes e os cacoetes morais que a singularizam, suprimindo assim as
intermitências, as ambiguidades e os meios-tons. No Jorna1 de An-
tares do Prof. Terra, encontramos, por exemplo:
0 Maj. Vivaldmo aparenta uns quarenta e oito anos, estatura
abaixo da mediana, duma gordura musculosa muito encontrsdca
em motoristas de caminhões de carga*
8
Incidente.... cit., p. 155.
9
Ibid., p. 129.
10
Ibid., p. 135.
11
Ibid., p. 144.
12
Veríssimo; evite o espelho mágico, O Estado de S. Paulo, 12 mar. 1972, Suple-
mento Literário.
170
uma vez que a monotonia excita muito mais a imaginaçao do qui
a diversidade, Lévi-Strauss cogita se ali não se encontraria a passa
gem ou a adesão do mítico ao romanesco.
Quando mencionamos a escassa modulação narrativa de Éri-
co Veríssimo, dissemos também da variedade de personagens e de
situações. Seria o caso, agora, de perguntar se a monotonia do coti-
diano burguês não constitui um fator de excitação do imaginário
Apenas discordamos da formulação de Lévi-Strauss quando faz os
ciclos de curta duração dependerem de mitos estruturais que os pre
cedem. O relato daqueles mitos mostraria a personagem em busca
de uma ordem harmoniosa que ficou atrás, razào pela qual todo ro-
mance tem de terminar mal.
A esse respeito, ficamos com Lukács: a ordem a ser buscada
está no futuro Se, numa sociedade degradada, que elege determi
nados valores e impõe uma ética que simplesmente impossibilita se
iam os valores atingidos, o romance traduz um desejo irrealizável
de totalidade, ele ao mesmo tempo afirma a existência da totalida
de, ainda que disfarçada.
O romance realista — a que mais propriamente se filia a ten-
tativa de Érico Veríssimo nas obras em estudo — destina-se em gran-
de parte a negar a moral de classe e a afirmar o direito de todos
a justiça e à felicidade.
O romancista explora uma "sociedade problemática", que se
põe valores inatingíveis num sistema de relações comerciais. A socie-
dade está em choque consigo mesma, pois conhece os seus ideais e
não pode praticá-los. Eles se ocultam atrás de uma densa cortina de
hipocrisia e descerrá-la será, em muitos casos, condenar-se à morte.
A historicidade, que é aparente em SE, se revela clara em IA,
no qual o autor estabelece um trânsito entre a História do Brasil
e a História do Rio Grande do Sul, de um lado, e a construção fictí
cia, de outro lado. A própria cidade de Antares, assim como a Re
pública de Sacramento em SE, constitui um duplo de um cenário
historicamente datado.
Érico Veríssimo, a esse respeito, parece transmitir a impres-
são de que a História é sempre escrita pela classe dominante, pelos
vencedores. Essa tese é desenvolvida pelo Prof. Martim Francisco
Terra, em diálogo travado com o estudante Xisto Vacariano, des-
cendente de uma das famílias oligárquicas que dominavam Anta-
res, um duplo, por assim dizer, de Pablo Ortena, de SE. Ao mesmo
tempo, o contexto menciona certas tendências à destruição existen-
tes na alma humana, capazes de habitar até a alma de alguns huma-
nistas, como sir Winston Churchill, que ordenou o bombardeio de
Dresden. Ali mais gente teria morrido do que em Hiroshima (opi-
nião de Xisto). Eis o pensamento do professor:
171
— - A gente esquece com facilidade. As gerações se suce-
dem Cada governo escreve a História de acordo c o m as suas con-
veniências. E eu acho, meu caro, que cada um de nós tem nas suas
mais remo tas cave ruas interiores um troglodita adormecido, que, sub-
metido a u m certo tipo de estímulo, vem rapidamente à tona de nosso
ser e se transforma num déspota totalitário capai de todas as bes-
te li dades. E nunca faltará u m falso humanista para inventar uma teo-
ria filosófica c o m o obietivo de coonestar t o d a s a s monstruosidades
cometidas pelo "homem das cavernas" 1 " 1
13
Incidente..., cit.. p. 145.
14
Ibid., p. 184-5
15
Ibid.. p. 222.
172
Diríamos que SE se compara a uma paródia de qualquer na-
ção latino-americana, enquanto IA assume a feição de uma sátira.
O envolvimento histórico desta é visível em todas as partes. E o lei-
tor vai encontrando a Guerra dos Farrapos, a presença dos grandes
nomes da República, Júlio de Castilho, Borges de Medeiros, Assis
Brasil, Luís Carlos Prestes, Oswaldo Aranha, Flores da Cunha, João
Neves da Fontoura e, dominantemente, Getúlio Vargas. O enredo
chega até o governo de João Goulart e menciona muitos outros no-
mes de relevo da vida política brasileira.
Alguns nomes internacionais igualmente aparecem, aqueles
que, por um motivo ou outro, constituíram fonte de debates e de
referências. Por exemplo, em IA, Lebret (p. 468), Teilhard de Char-
din (p. 472), Marcuse (p. 483), no campo das ciências sociais. No
cenário da política internacional, Hitler e Mussolini.
E a reduplicação da realidade é tão enfática que no Jornal de
Antares do professor Martim Francisco Terra consta um diálogo des-
te com a matriarca D. Quitéria Campolargo (figura central de um
dos grupos oligárquicos), em que são abordados os dois romancis-
tas mais populares no Brasil: Jorge Amado e Érico Veríssimo. Sim,
temos o conceito que a personagem faz do próprio autor. D. Quité-
ria, dentro dos seus horizontes conservadores e valendo-se da opi-
nião de outra personagem, o Prof. Libindo, tacha o romancista de
"inocente útil", surrado jargão da desconversa tradicionalista.
Assim, no repositório de frases feitas e de expressões corren-
tes e triviais da vida pública brasileira o futuro leitor haverá de en-
contrar bastante de nosso mundo atual. As intenções documentais
do romancista são, desse modo, explícitas.
O enquadramento ideológico não cessa aí, entretanto. Outras
vertentes podem ser exploradas. Ao considerarmos IA como uma
sátira, não nos detivemos apenas nos elementos históricos. Sociolo-
gicamente, o romance descreve uma sociedade patriarcal. Veja-se,
a respeito, a opinião de Francisco Vacariano ao tempo da Guerra
dos Farrapos: "Um imperador é uma espécie de pai que a gente tem.
Numa república me parece que todo o mundo fica meio órfão" 1 6 .
Temos, na verdade, um patriarcalismo em fase de erosão; e, como
todas as épocas, a se findar com a sua própria paródia. Tal perspec-
tiva se denuncia clara na açâo posta em jogo pelo romance.
Pelas citações que já fizemos de algumas personagens e dos
quadros intelectuais que testemunham, apresenta-se a nós um des-
taque das tendências progressistas do catolicismo. Mas, ao mesmo
tempo, há fortes indícios do reconhecimento do absurdo do mundo.
16
Ibid., p. 8.
173
Em SE, poi exemplo, enquanto a velha Igreja é caricaturada
na figura saliente de Don PánfiLo Arango y Aragon, um aliado na-
tural do poder, por mais corrupto que seja, nas cenas idílicas ou
líricas o romancista entrega, através de algumas personagens, uma
visão céptica. Exemplo:
Ruth costumava dizer que as árvores, os pássaros, as crian-
ças e as outras coisas beias da vida sáo palavras soltas duma men-
sagem que Deus manda repetidamente aos homens, um recado de
esperança em meio deste mundo cruel, sórdido e absurdo. Sórdido
e absurdo... 1 7 .
17
O senhor..., cit., p. 7.
18
Ibid., p. 8.
" Ibid., p. 117.
174
Em meio a várias teses nacionalistas em abstrato, podemos lo-
calizai breves comentários acerca da situação brasileira. Assim, o
jornalista Gonzaga em SE alude ao fato de, uma vez, termos adqui-
rido feijão podre dos americanos: "Um símbolo do nosso regime,
da podridão dos nossos governantes e políticos"2®. Em IA, a perso-
nagem Tibério Vacarianotem oportunidade de comentar, numa ro-
da da farmácia Imaculada Conceição:
Durante a guerra acumulamos reservas em ouro na importância de
mais de setecentos milhões de dólares. Já nâo temos quase mais
nada. Gastamos tudo comprando sobras de guerra e outras porca-
rias que os Estados Unidos nos impingiram .
20
Ibid., p. 386.
21
Incidente..., cit., p. 58.
22
Ibid., p. 73.
23
Ibid., p. 187.
24
Ibid., p. 188.
25
Veríssimo; evite o espelho mágico, cit.
175
Em SE, a personagem Pablo Ortega, um dos trunfos do enre-
do, em conversa com o líder político e intelectual, Leonardo Gris
(em que vemos, em muitos pontos, um duplo do Prof. Martim Fran-
cisco Terra), expõe a sua opinião acerca de um artesão nacional,
artista primitivo, modelador no barro, que critica a sociedade por
meio da arte. As qualidades que são atribuídas a esse artista, Maes-
tro Natalício, podem traduzir um ideal do próprio romancista.
Observe-se, por exemplo, a correlação das categorias éticas e es-
téticas:
integridade artística, autenticdade humana, intimidade com a Na-
tureza... Como se a argila com que ele trabalhava lhe transmitisse,
através dos dedos, mensaaens secretas da Terra... Sim, e também
imunidade â sofisticação .
26
O senhor..., cit., p. 26.
176
Como fatores de sátira, os livros sào verdadeiramente apre-
ciáveis. As observações globais quanto à América Latina e algumas
situações especiais do Brasil encontram paralelo perfeito nas obras
dos mais autorizados cientistas sociais. O romancista não recua dian-
te do mundo oferecido. Descreve-o com a exatidão possível da cos-
movisão que o suporta. Daí ser justo dizer que SE e IA constituem
livros corajosos.
Por que tamanho sucesso de ambas as obras? É claro que de-
ve haver uma relação positiva entre o conteúdo delas e a sua circu-
lação no mercado, as exigências e necessidades do público. O leitor,
de certa maneira, se identifica com a obra que lê; e o escritor, para
realizá-la, opera com categorias elaboradas coletivamente.
O convite à contemplação do mundo "sórdido e absurdo" sig-
nifica uma postulação participante, representa a abertura de um ân-
gulo da realidade por onde pode despertar-se, por parte do receptor
da mensagem, um mecanismo de visão crítica. Sob esse aspecto, po-
deríamos dizer que em Érico Veríssimo a " o b r a " é menos impor-
tante que o "acontecimento literário". Vale dizer: ainda que as pro-
priedades intrínsecas da narrativa sejam usuais, as possibilidades que
ela instaura no terreno da comunicação, dentro de um mercado se-
mimonopolístico de idéias (a forma de oligopólio seria a mais pró-
xima), revelam-se eficazes e oportunas. O movimento do consumo
tem a sua significação sociológica e psicológica.
O mundo oferecido, observado e julgado modela um ideal que
aparece nítido no discurso de Pablo Ortega, no final de SE: cada
país deve decidir seu próprio destino (sem a intervenção de potên-
cias de direita ou de esquerda), o amor e a tolerância devem consti-
tuir fundamentos tão sólidos quanto a justiça social e o trabalho
comum para o estabelecimento de um governo democrático.
A personagem testemunha um humanismo liberal convicto. O
narrador tempera-o com uma ponta de cepticismo, sem chegar, é
claro, ao cepticismo agônico de Jorge Molina. Cremos ajustar-se
mais ao jornalista americano Bill Godkin, que assim responde ao
brasileiro Gonzaga:
— Nessa sua subida da serra você correu o risco de levar bala dos
dois tados...
— Não será essa a eterna posição do liberal? Um homem entre dois
fogos : .
27
Ibid., p. 12.
177
Compromisso social em incidente em Antares
Bases ficcionais
28
Porto Alegre, Globo, 1972,'p. 144-57.
178
Meste romance as personagens e localidades imag nanas apa
tecem disfarçadas scb nomes fictícios, ao passo que as pessoas e
os ugares que na realidade existem ou existiram, são oesignados
peios seus nomes verdadeiros
• • , — . . _
V "T*. .. —
poi um olhar critico, uma História considerada sob determinada
perspectiva ideológica. O que diferencia a História como ciência dos
acontecimentos humanos da história como o relato imaginário de
um escritor é que a História com " H " maiúsculo não tem fim e a
história tem uma cena final.
Sempre que esbarramos num projeto literário, r u m projeto
narrativo, esbarramos com o início, o meio e o fim. A história com
a qual convivemos todo o dia, lendo peças de teatro, lendo roman-
ces, contos, diversas categorias literárias, essa história propõe uma
cena final, ainda que seja aberta, uma reticência, mas sempre uma
cena final.
Para aqueles que crêem e professam o cristianismo, por exem-
plo, é possível haver um balanço e um juízo final, um julgamento
da ação dos homens durante toda a sua História. Só nessa circuns-
tância podemos supor um epílogo para a História com " H "
maiúsculo.
O entrelaçamento de personagens fictícias e personagens reais
da História brasileira é comum no romance de Érico Veríssimo.
Na primeira parte de Incidente em Amares, a história floresce
mais, a História com " H " maiúsculo, mas ela está presente também
na segunda longa parte que é "Incidente". O autor divide a obra em
"Antares" e depois "Incidente". Este é a narração de algo extrema-
mente fictício, que ocorre numa comunidade. É que os mortos não
puderam ser sepultados, uma coleçâo de mortos de diferentes proce-
dências, porque houve uma greve em Antares e os mortos insepultos
em determinado momento se levantam e resolvem ir para o coreto (es-
tou fazendo uma simplificação enorme de um romance que tem quase
quinhentas páginas). Eles resolvem ir para o coreto e fazem seus pro-
testos e depoimentos. Evidentemente, a principal personagem que se
encarrega do discurso à comunidade é um advogado.
Pois bem, uma das personagens, ainda na primeira parte, aque-
la em que a História aparece mais, é Dona Quitéria. Ela é chamada
Dona Quita. Esta, em diálogo com outra personagem, que registra
isso em seu diário, Martim Francisco Terra, se desloca do plano fic-
cional e passa a falar do plano real do mundo oferecido e não do
mundo criado. Essa personagem menciona dois escritores: um é o
próprio Érico Veríssimo e outro é Jorge Amado. Jorge Amado é
tratado por Dona Quita, valendo-se de informação do grande eru-
dito da cidade de Antares, um professor que chama Jorge Amado
de bandalho comunista e Érico Veríssimo de inocente útil. Também
nessas informações das personagens há um conteúdo ideológico, uma
informação de nível político que enquadra as pessoas dentro de um
180
— -" - — m i m
Recursos narrativos
2
* Incidente..., cit., p. 158 e 201.
185
da do pensamento de Augusto Comte: " A progressão social repou-
sa essencialmente sobre a morte: Os vivos são sempre cada vez mais
governados pelos mortos". A frase está em todos os manuais que
tratam do positivismo e é repetida no trecho da p. 306. Na p. 324
novamente a frase se repete. Isso nos faz também refletir sobre o
conteúdo da obra.
O pensamento de que os mortos governam os vivos traduz,
primeiramente, a situação de Antares, em que havia duas famílias
adversárias, e o velho problema do maniqueísmo nas pequenas co-
munidades se reedita, com a oposição entre os Vacarianos e os Cam-
polargos. Duas famílias. Elas se estraçalhavam e observamos aque-
les mortos que, nesse novo esquema narrativo de Érico Veríssimo,
voltam e dialogam com os vivos, mortos insepultos, na verdade, es-
tão cumprindo a lei positivista de Augusto Comte. Estão dirigindo
os vivos, porque estes os perturbam, do ponto de vista implícito,
já que a presença das duas grandes famílias acaba influenciando to-
das as pessoas de Antares, dividindo a sociedade sempre entre o bem
e o mal, como também acontece na essência da narrativa.
Os mortos insepultos que vão ao coreto e começam a quebrar
a censura e a falar abertamente todas as vilezas que as pessoas da
alta sociedade cometiam, todos os adultérios, todos os furtos, to-
dos os deslizes de conduta, tudo isso reproduz aquela noção, retira-
da do positivismo, de que os vivos são sempre e cada vez mais go-
vernados pelos mortos. E é engraçado que esses mortos insepultos
— é a característica que mais chama a atenção dentro da narrativa
— cheiram muito mal, as pessoas têm de se proteger do mau cheiro
com lenços perfumados e com máscaras. Eles cheiram mal, mas es-
tão cheios de verdade. Tudo o que os mortos falam constitui, por
assim dizer, o inconsciente da sociedade. Eles rompem com a cen-
sura social para tornar pública a censura que implicitamente cada
habitante devia ter a respeito de suas próprias personalidades.
Dissemos que um dos esquematismos de Érico Veríssimo é que
as personagens são muito idênticas a si mesmas; não mudam de tom,
mas ele ameniza isso com alguns recursos. Vou mencionar um, à
p. 201, em que introduz duas personagens: uma é o americano e ou-
tra, o francês. Érico Veríssimo põe essas personagens a falar e sati-
riza o modo como usam o português. Ambas falam o português de
forma acastelhanada, como se a pessoa tivesse primeiro estudado
o espanhol e depois tivesse alcançado o português. Isso é muito co-
mum entre os americanos, porque nos Estados Unidos quase todos
os cursos de língua portuguesa estão no departamento de espanhol
e português. O curso mais procurado é o espanhol e, para obter cré-
dito, as pessoas, muitas vezes, estudam a língua mais próxima, que
é o português. Por isso mesmo, costumam usar o português cheio
de inflexões castelhanas.
186
Jefferson Monroe III, em determinado momento fala assim:
"Quando hemos recebido vosso memorial, consultamos imediata-
mente nossa matriz em São Paulo, e a resposta que ganhamos foi
negativa. O aumento demandado pelos operários é demasiadamen-
te alto". Expressões como "a resposta que ganhamos" lembram que
"ganhar uma resposta" não é uma construção legitimamente por-
tuguesa e traduz de forma habilidosa como o americano diria o por-
tuguês.
Aí replica o francês: "Precisamente — reforçou o francês, pas-
sando os dedos por entre os seus já ralos cabelos cor de cenoura.
— Os senhores leram as respostas de nossos superiores. Personal-
mente nada podemos fazer". Érico Veríssimo habilidosamente trans-
fere para a fala das personagens as características do aprendizado
do português que tiveram. Nisso tudo também se mostra um fator
satírico, sobre o qual vamos falar adiante.
Há uma dimensão dentro do romance que tem que ser explo-
rada por qualquer pessoa que vá estudar isso, que é a dimensão hu-
morística. Muitos encaram o maravilhoso a sério, até de forma poé-
tica. Por exemplo, os contos de Murilo Rubião têm uma grande atra-
ção pelo poético. Assim a ficção de Lygia Fagundes Telles também
revela atração pelo ângulo poético das coisas, a crença no sobrena-
tural, o uso da magia. Ao contrário, em Érico Veríssimo, isso ex-
plode quase sempre do ponto de vista da veia satírica. Ele a usa pa-
ra zombar de atos milenares do ser humano. Por isso mesmo é mui-
to curioso como a todo momento o grotesco aparece dentro do ro-
mance Incidente em Antares.
Vou dar um exemplo rápido, o da banda de música que vai
acompanhar o enterro de uma das maiores personagens, Quitéria
Campolargo. Depois desse enterro é que todas as coisas saem dos
eixos na cidade.
Formou-se finalmente o cortejo. À frente ia a Banda Municipal
Carlos Gomes, vinte e dois músicos que, a um sinal do Lucas Faia
— encarregado pelo prefeito e pela família enlutada de dirigir a pro-
cissão — romperam a tocar algo que poucos na multidão consegui-
ram identificar como a Marcha fúnebre de Chopin, pois, embora as
duas clarinetas e os dois pistons conseguissem emitir sons que se
pareciam com os da conhecida composição, uns trombones aluci-
nados tomavam a liberdade de enxertar notas que o compositor ja-
mais escrevera para aquela peça, um flautim frenético entrava em
trémulos desesperados, talvez com a louvável intenção de simular
soluços, enquanto uma tuba roncava como um animal ferido no fundo
de uma toca e um tambor surdo, coberto de crepe, tentava, mas
em vão, marcar a cadência da marcha Lucas Faia aproximou-se do
187
maestro e recomendou: ' 'Devagar, chefe, para o povo poder acom-
panhar a pé o enterro!" 3 0 .
30
Ibid., p. 212.
188
cando as pessoas e acusando tudo aquilo que elas fizeram de errado
e de condenável. É uma cena dramática, descrita com variedade de
detalhes. Mostra um fato também fora do comum: os ratos todos
da cidade saem e são perseguidos, numa matança extraordinária;
os urubus descem sobre o coreto porque são atraídos pelo mau cheiro
etc. Como sempre, dentro da idéia maniqueísta, havia dois hospi-
tais que competiam em Antares. Junto ao coreto as pessoas desmaia-
vam, sentiam-se mal. Cada hospital mantinha na praça uma ambu-
lância e os dois disputavam as vítimas de mal-estar. Vê-se, assim, co-
mo o grotesco se manifesta. Na p. 348:
Uma mulher do povo solta um gemido e cai. Correm para os
enleieiros da ambulância do Salvator Mundi ao mesmo tempo que
os cc carro do Hospital Repouso, e por um momento os dois grupos
emoínham-se numa luta quase corporal disputando a posse da víti-
ma 3 Dr Mirabeau, apesar de perturbado, intervém na contenda e
sugere que se decida a questão com uma moeda. Os enfermeiros do
Hosc tal Repouso escolhem cara; os do Salvator Mundi, coroa. O juiz
de o reito — símbolo da justiça imparcial — é convidado a atirar a
moesa para o ar, o que faz, aparando-a na trémula palma da mão
dire:a Coroa! Os enfermeiros do Dr. Lázaro põem a vítima na sua
maca e a conduzem num marche-marche glorioso para a ambulância.
190
«tau*»» •• w
1 0
A POESIA
DE HENRIQUETA LISBOA
1
Rio de Janeiro, Pongetti, 1929.
1
Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1936.
1
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1941.
191
Repete-se em Henriqueta Lisboa o gosto das miniaturas, a des-
crição de objetos orna mentais, assim como a. manifestação de senti-
mentos sutis do espírito.
É claro que as tendências gerais irão stbordinai-se às singula-
ridades da escritora e ao permanente refinamento de sua linguagem.
Inicialmente, a expressão simbolista é contaminada pela rela-
tiva desordem do Modernismo. Os longos versos confessionais já
comparecem em Velório:
Tua saudação foi como um bando de alvoroçadas gaivotas
subindo pelas escarpas do rochedo, cc "tornar do-lhe as arestas,
aureolando-lhe os cumes. ("Tuas paia.'ras, a m e " )
4
Belo Horizonte, 1945.
5
Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1963.
6
O mistério, em Flor da morte, João Calazans, 1949.
7
Em Pousada do ser. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.
Ou:
Não me engana o visível.
Mas eu me engano com o que vejo. I " Visibilidade") 8
' Ibid.
9
Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1959.
194
Além da Imagem: trama do inefável
para mudar contorno definido.
Ou não bem definido. Além da Imagem
treme de ser lembrança o que era olvido.
10
Rio de Janeiro, Nova Aguilar/MEC, 1976.
11
Belo Horizonte, Ariel, 1958.
195
A própria substância humana se entrecruza com a camada mi
tica, e temos " í d o l o " :
ídolo
— objeto
de vidro
12
O alvo humano, São Paulo, Ed. do Escritor, 1973.
196
3 teira, Henriqueta Lisboa compõe um poema emocionante, "De-
pois da opção", conforme se lê em Miradouro e outros poemas.
Eis uma reflexão do post mortem, como é do gosto da poeta,
brandindo a palavra '' reposteiro'' que ocorre a ela de vez em quando:
Um reposteiro o mais espesso
caia sobre a tragédia dos Andes
13
Rio de Janeiro, 1943.
198
* %