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A NATUREZA DO CONHECIMENTO

A filosofia cristã desenvolveu-se, por um bom tempo, fortemente influenciada por Platão e pelo
neoplatonismo decorrente do pensamento de Plotino, momento este que foi denominado patrística.
Coube a Aquino recuperar o pensamento de Aristóteles, dentro da escolástica, e mostrar como é
possível harmonizar sua filosofia com a concepção cristão-platônica.
Esse caminho foi preparado um pouco antes, por uma importante obra: Summa contra
gentiles  (Suma contra os gentios), concluída em 1265. Na busca por premissas filosóficas que
também são aceitas por pensadores judeus e muçulmanos, e não nos fundamentos da doutrina cristã,
Aquino se vê diante da necessidade de recorrer à razão natural. Segundo ele, muçulmanos e pagãos
podem rejeitar a autoridade das escrituras sagradas (a Bíblia), mas não podem ignorar os argumentos
expostos pela razão.
A Suma contra os gentios discute, em seus três primeiros livros, respectivamente, a natureza de
Deus, a hierarquia das criaturas que dele procedem e o meio no qual os seres racionais podem
encontrar o Criador e, por conseguinte, a felicidade. No contexto dessa obra, o caminho para o
conhecimento de todas essas questões é constituído exclusivamente pela razão, sem se apoiar em
qualquer verdade revelada. Nenhum argumento apresentado para provar qualquer uma das três
questões levantadas possui premissas extraídas da doutrina cristã.
Aceitando que a razão é o elemento que une todos os homens, e baseado na filosofia de Aristóteles
segundo a qual nosso conhecimento desse mundo é adquirido por meio da experiência sensorial,
Aquino afirma a importância de utilizar o intelecto como forma de conhecer o mundo natural. Ele
usa a expressão “tábula rasa” para descrever como se forma o conhecimento. Em sua concepção, não
há nada na mente que não tenha estado primeiro nos sentidos. Quando nascemos, nossa mente é
como uma página em branco, que será preenchida com o conteúdo fornecido pela experiência.
Dessa forma, nossa mente apreende as coisas sensíveis e as transforma em objetos pensáveis.
Usando a metáfora da luz, Aquino expõe sua teoria acerca do funcionamento da mente. O intelecto
agente fornece a luz que transforma os objetos individuais pensáveis do mundo em objetos pensáveis
na mente. Todavia, o intelecto, segundo ele, é uma faculdade natural e própria do ser humano, e não
algo que está fora da ordem natural do mundo.
A metáfora da luz como forma de explicar o funcionamento do entendimento humano foi
emprestada por Tomás de Aquino de Agostinho e Boaventura. Ambos preferiam a filosofia de Platão
à de Aristóteles, mas acreditavam que a fé deveria ser incluída para uma explicação mais adequada
de como o homem alcança a verdade. Sendo assim, a luz que permite explicar como funciona a
mente e como chegamos até a verdade é proveniente de algo que está fora da ordem natural. Ao
recorrer ao sobrenatural, esses pensadores tornam o intelecto humano dependente de algo que não
conhece, mas de que necessita para conhecer o mundo natural.
Sendo assim, a luz natural proveniente do intelecto agente capta as coisas sensíveis e as concebe não
como fundamento último do que existe, mas como simples efeitos que remetem a uma causa que não
apreendemos em si, mas somente em relação com seus efeitos. Fiel à posição aristotélica, Aquino
insiste em afirmar que esse intelecto agente, por si só, não garante a aquisição do conhecimento
intelectual. Segundo seus próprios termos:
Além da luz intelectual dentro de nós, há a necessidade da espécie pensável tomada das
coisas externas, se pretendemos ter conhecimento das coisas materiais (TOMÁS DE
AQUINO. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2001, v. 1).
A natureza humana, dentro da concepção do aquinate, possui uma faculdade para o conhecimento
das coisas fornecidas pelos sentido. Sem a participação dos sentidos, não teríamos acesso aos
objetos. Isso, porém, não é suficiente para se chegar ao conhecimento. É preciso que o intelecto
agente, próprio do ser humano, pense os objetos fornecidos pelos sentidos. Essa teoria do
conhecimento, que não pode ser classificada de empirista ou racionalista, permite a Santo Tomás
estabelecer com clareza como Deus pode ser racionalmente admitido sem necessidade de apelar para
causas sobrenaturais.
Tomás de Aquino compara a função desempenhada pelo intelecto agente na aquisição do
conhecimento com a função desempenhada pela natureza do corpo na medicina. O médico procura,
mediante conhecimento da natureza do corpo, curar o enfermo de uma determinada doença. O
professor realiza o mesmo quando procura estimular seu aprendiz a usar a luz natural de seu
intelecto para obter conhecimento. a conclusão extraída da comparação é que a ação do intelecto
agente não é mais sobrenatural do que a ação do corpo quando procura expulsar a causa da doença.
Para ele, tanto a natureza física quanto a natureza intelectual são criações de Deus, mas se
chamarmos os processos físicos de sobrenaturais, por serem criação de Deus, então tudo é
sobrenatural, e a distinção entre o que é divino e o que é humano perde completamente o sentido.
Afirma Aquino que o intelecto agente, concebido como reflexão, quando se debruça sobre as coisas
sensíveis não necessita de nenhuma luz além daquela que naturalmente possui. Para conhecer basta
seguir a orientação divina e transformar objetos em ideias. Mas, quando falamos em tornar-se
consciente da verdade, então a mente humana recorre a Deus.
FÉ E RAZÃO: VERDADES REVELADAS E VERDADES DA RAZÃO
Como explicamos, três dos quatro livros que compõe a Suma contra os gentios procuram expor a
tese sobre a possibilidade de estabelecer a natureza de Deus mediante a razão. Contudo, nem todas
as verdades podem ser alcançadas racionalmente. A razão conhece somente um número limitado de
verdades sobre o Criador. Acerca da doutrina da trindade e a encarnação, somente a fé e a revelação
podem nos ajudar. Aquino chama este ramo, incumbido de lidar com tais objetos, de teologia
revelada. Não existe, portanto, segundo ele, conflito entre fé e razão. Cada um possui seu próprio
objeto e uma relação hierárquica pode ser estabelecida entre elas. Sobre isso escreveu Gilson (2007,
p. 656):
Nem a razão, quando fazemos um uso correto dela, nem a revelação, pois ela tem Deus
por origem, seriam capazes de nos enganar. […] Daí resulta que, todas as vezes que
uma conclusão filosófica contradiz o dogma, é um indício certeiro de que essa
conclusão é falsa.
Segundo o aquinate, quando as filosofias nos enganam, também existe a possibilidade que elas
acreditam em uma matéria em que a prova racional é impossível e em que, por conseguinte, a
decisão deve ficar com a fé.
Fortemente influenciado pelas concepções aristotélicas, Tomás de Aquino elabora a sua obra mais
importante, a Suma teológica, escrita entre os anos de 1265 e 1273. Expõe longa e detalhadamente a
forma como podemos conciliar fé e razão. Sob seu prisma, existem verdades acessíveis à razão, que
a primeira Suma procurou demonstrar, e estas não ultrapassam, como indicou Aristóteles, os limites
do mundo físico. Esta teologia natural exposta na primeira Suma concebe Deus como o “primeiro
motor”. Concebido dessa forma, Deus é um conhecimento tão racional como qualquer conhecimento
dos objetos físicos.
No momento em que o conhecimento atinge o próprio ser, e este ser se revela como todo, é possível
estabelecer os objetos que são as verdades da fé e as verdades racionais. Objetos dessa natureza são
racionalmente demonstráveis e igualmente revelados. Aquino expõe como exemplo dessa porção
comum entre verdades reveladas e verdades racionais cinco vias para a demonstração da existência
de Deus:
A “primeira via” é extraída do oitavo livro da Física de Aristóteles, o “primeiro motor imóvel”.
Tudo o que se move é movido por alguém, é impossível uma cadeia infinita de motores provocando
o movimento dos movidos, pois do contrário nunca se chegaria ao movimento presente; logo, há que
ter um primeiro motor que deu início ao movimento existente e que por ninguém foi movido.
A “segunda via” é recolhida do segundo livro da Metafísica de Aristóteles, a causa primeira,
decorrente da relação “causa e efeito” que se observa nas coisas criadas. É necessário que haja uma
causa primeira que por ninguém tenha sido causada, pois a todo efeito é atribuída uma causa, do
contrário não haveria nenhum efeito, pois cada causa pediria uma outra numa sequência infinita.
A “terceira via” é derivada da experiência que temos do nascimento e da corrupção dos seres,
consistindo no “ser necessário”. Existem seres que podem ser ou não ser (contingentes), mas nem
todos os seres podem ser desnecessários, senão o mundo não existiria. Logo, é preciso que haja um
ser que fundamente a existência dos seres contingentes e que não tenha a sua existência fundada em
nenhum outro ser.
A “quarta via” utiliza novamente o segundo livro da Metafísica. Trata-se do “ser perfeito”. Verifica-
se que há graus de perfeição nos seres, uns são mais perfeitos que outros, e qualquer graduação
pressupõe um parâmetro máximo. Logo, deve existir um ser que tenha esse padrão máximo de
perfeição e que é a causa da perfeição dos demais seres.
A “quinta via”, emprestada de João de Damasceno e Averróis, é a “inteligência ordenadora”. Existe
uma ordem no Universo que é facilmente verificada, e toda ordem é fruto de uma inteligência, pois
não se chega à ordem pelo acaso. Logo, há um ser inteligente que dispôs o Universo na forma
ordenada. A este ser chamamos Deus.
A pretensão, portanto, dessas provas é mostrar como, mediante o uso de noções técnicas extraídas da
física e da filosofia, a razão pode chegar a Deus. Todo e qualquer sentimento religioso, segundo
Aquino, não deve intervir para que as demonstrações tenham validade. Além disso, dois outros erros
podem ser corrigidos mediante essas demonstrações: a suposição da eternidade do mundo e que o
primeiro corpo celeste se move por si próprio. A suposição da eternidade do mundo deve ser
descartada como falsa, pois nela está contida a concepção de um mundo sem história, sem criação. A
segunda deve ser abandonada, pois prescinde da existência de Deus.
As cinco vias para a demonstração da existência de Deus também corrigiriam alguns equívocos
cometidos pelas pessoas simples. Segundo Aquino, as pessoas simples muitas vezes acreditam que
podem conhecer a existência de Deus diretamente pela razão, sem a mediação do mundo sensível.
Outros aceitam o contrário, que Deus só pode ser conhecido pela fé. O crente sem instrução muitas
vezes não consegue acompanhar as demonstrações expostas nas cinco vias que Santo Tomás
produziu, e simplesmente crê que Deus existe. Essa crença é desautorizada, pois não passa pelas vias
da razão.
O homem simples erra, também, ao aceitar que a razão admite somente como existente o que
conhece. Só poderemos falar de Deus, segundo o homem culto, quando, primeiramente,
conhecermos o que ele é. Seguindo os passos de Santo Anselmo, o nome de Deus significa o ser tal
qual não se pode conceber nada maior, dessa forma, Deus existe. Existe aqui a pressuposição de que
a essência de Deus é idêntica à sua existência e conceber a primeira é aceitar a segunda.
Os erros cometidos pelas pessoas simples repousam sobre a falsa ideia de que não se pode falar da
existência sem antes conhecer. Aquino acredita que uma nova distinção entre essência e existência
deve ser mais bem esclarecida. O tratamento dessas clássicas noções metafísicas contribuiu para
ratificar a tese central de seu pensamento, segundo a qual as verdades da fé não precisam ser
conflitantes com as verdades da razão.

FONTE: excerto do texto mais amplo em:


https://conhecerepensar.wordpress.com/2017/02/04/tomas-de-aquino-e-o-projeto-de-
conciliacao-entre-fe-e-razao/

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