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84 0 DESPHEZO DAS MASSAS| fortalecidos. Nao sio dignos, apenas vestidos na moda. Nao sao formados, sé terminaram o college. Nao so wos de uma cadeira de 808, sfo apenas inqu igicja. Nao so morais, apenas convencionais, Nao tém virtudes, séo somente covardes. Nio sio sequer malvados, sio somente fiacos. Niio sto artistas, so somente cobigosos (...). Nao tém dignidade, sio uni camente vaidosos...” O diabo, evidentemente, como se tivesse lido Rorty, ndo se deixa mais levar por essas diferencia- ges. Como senhor da cultura de massas, ele tem na ponta da I{ngua a resposta adequada: isto tudo € somente conversa fiada, repeti¢ao de coisas hé muito ditas, frases distintas, das quais o mundo néo tomou conhecimento, E mesmo que os vivos te- nham se decidido contra a diferenga vertical, o in- ferno nao pode considerd-lo de ourra forma. SOIRE A DIFERENCA ANTROPOLOGICA Em seu texto A sitwapdo intelectual da época, que em 1931 foi publicado considerando a ja nao controlivel reagio fascista de massa na Alemanha, 0 fildsofo Karl Jaspers notou: “Hoje comega a tilti- ‘ma campanha contra a nobreza (...). [Ela] é condu- zida nas préprias almas.”' Se Jaspers chama de tiltimo o mais atual ataque naquele tempo, no que no diz deixa soar que uma longa época precedente preparara os meios ¢ impulsos para o pretenso ata- que final. Entretanco entendemos a que discussio de situagio pertence a frase do filésofo: os tiltimos elitistas abertos, diante da derrota cera, revinem seus argumentos para arquivo. Apresentemos a situagao em outro contexto: a deslegitimago da nobreza politica foi c permanece 1, Die geisige Situation der Zeit Berlin ¢ Nova lerque, 1979, p. 177 85 86 sendo a primeira paixio burguesa que se impée, so- brepordo épocas, como exigéncia de mentalidade politica; ela distribui a ordem do século, & qual se subordinam as ordens do dia da cultura. Acima da terceira classe nfo devem estar mais a primeira ea segunda —a nova era mundial quer fazer valer uni- versalmente a equago entre homem e cidadao. Se houvesse nobreza, como eu suportaria nao ser um nobr ¢? Portanto, nao ha nobreza! — a doutrina s tem seu fun- politica do homem no tempo burgu damento nesse silogismo de afeto, E se ainda exis- tissem clero ou espiritualidade — mais claramente: formas de espiritualidade e intelectualidade distan- ciadotas ¢ por isso outorgantes de liberdade—, onde fururamente teriam seu lugar no sistema dos iguais? Onde estar minado sem que o reflexo de revolta a turve? altura aberta, pela qual se sabe do- Por meio do afeto igualitétio é expresso infini- tamente mais do que apenas a capacidade do narci- sismo plebeu e pequeno-burgués de aticar epidemias psiquicas. Ele também ultrapassa em muito o mero ressentimento antiaristocritico, Nele articula-se 0 postulado de época de que toro tipo de diferenga antropolégica teria de ser declarado irreal ¢ invélido —e s desse tipo radical- isto porque as disting hierrquico no homem estavam a ponto de tornar- se, na sociedade funcionalmente diferenciada em surgimento, no apenas supérfluas como também SORE A DIFERENA ANTROROLOGICA indecentes.* Como ciéncia de uma ¢ universal n tureza humana, a antropologia, que surge no século xvi ea partir do século xvii triunfa, torna-se a0 mesmo tempo a ciéncia da supressio da nobreza incia da abolicio de todas do cleto, e mais ainda a ci as supostas diferengas essenciais entre as pesso: Essa primeira ciéncia humana engajada nao esque: ce sua misséo em tempo algum. Com seriedade metédica ¢ fineza estratégica ela persegue scu ob- jetivo pretendido: se for necessétio suprimir a pré- por causa das diferengas essenciais pria esséncia a serem negadas —, também pagaré esse prego. Antiessencialismo nio é por acaso 0 elemento légico da cultura de massas, & qual estrutusalmente perten- cea sociedade diferenciada em subsistemas. A dife- renga essencial — este o vestigio do Ancien Régime que de dica a res publica vindoura 0 caminho. Aqui a an- e ser eliminado: a igualdade essencial — in- tropologia deve prestar ajuda: como a velha nobreza procurou fundamentar sua diferenga essencial a partir do nascimento elevado e seus direitos exclu- sivos, agora a burgucsia langa um discurso sobre 0 nascimento igual ¢o direito natural de todos, porém 2. Ver a ese respeio Niklas Lubrmann, “Inceraktion in Ober schichten: Zur Transformation ihrer Semansik im 17. und L8. Jahrhundere’, in N. L., Geidlchaftserakeur und Seman, Studien zur Wisensociologie der madernen Gesllehafi, vol. 1 wikfure, 1980, p. 72-161. acontecimento ser motivo da diferenga & uma idéia desta vez nao para atestar diferengas essenciais, mas igualdades essen essencialidade do igual ou a ndo obrigatoriedade do inato. O tom de tais discursos foi corroborado por que, até prova em contrério, ndo pode ser pensada. Nascimento é nascimento — com tal convicgio os atores das coisas vindouras arrombam a porta de acesso ao futuro da espécie. Toda igualdade tem seu , casualmente também a nao Beaumarchais quando, em sua provocadora pega La folle Journée (O dia lowco), faz. com que 0 servo Figaro, agora seguro de remeta ao seu senhor uma provocacio profética: motivo na igualdade diante do acaso de ter sido gerado e nascer. Sobre isso ninguém falou com mais dlareza do que Pascal, em seu Discuro aos Grandes no didlogo consigo mesmo “O que o senhor Conde ja fez. para ser um homem, “Vos assim tio grande? Ele se deu ao trabalho de nascer — éudo.” (Ato V, cena 3) Scum estado de mundo— expressao de Hegel pudesse perecer numa tinica fiase, deveria mostrar-se nessas palaveas: “ Quiavez-vous fit pour tout cela? Vous vous étes donné la peine de maitre — et rien de plus!” 9 nascimento depende deum casamento — ‘ou, mais do que isso, de todos os casamentos daqueles de quem descendeis. Mas do que dependem esses ca- samentos? De uma visita ocasional, de uma conversa 20 ar livte, de milhares de ocasides imprevisas.” A grande cadeia de casamentos € forjada de puros acasos, ¢ quem descende do acaso nunca ter nascido pri legiado.“ Inter faces et urinam nascimur, © trabalho de nascer: na superficie esta é a palavra este nao ser por muito tempo o antigo suspiro pe- mais forte do mundo da igualdade — pois quem aqui no a teria comado para si? — ¢, ao mesmo los precétios primérdios fisioldgicos do tornar-se pessoa no afunilamento materno} a sentenga torna-se tempo, é a incompreendida palavra bésica de uma arte, ainda nao aprendida, de expor as diversidades 3. Pensis, Segf0 1, Artigo 12: Discours sur te condition des grands 88 indisponiveis das pessoas & luz de seu trabalho para nascer e suas projegdes biogréficas ¢ politicas. Mas de inicio nao se fala de diferengas entre os facilmente e os dificilmente nascidos na fixagéo do discurso dos sujcitos burgueses. O fato de 0 préprio 4 (Ed, bras: Pensamentes. Sio Paulo, Martins Fontes, 2001.] Nietsche fo o primeiroa ver um caminho de como o acaso pode set reabilitado como motivo de nobreza: “Von? Mais-ou-Menos — este é 0 mais antigo nobre do mundo, a todas as coisas 0 devolvi, eu as salvei da servidio da finalidade”, (Ed. bras.s Asim Falow Zanttusra I, Antes do Nascer do Sol, Sio Paulo, Mastin Clare, 1999, 89 90 agora axioma antropolégico ¢ Jema na campanha contra nascimentos desiguais. Os acasos da proctia- 40 € os canais de nascimento so resumidos numa tinica contingéncia comum. Vira luz é tudo. Agora ter nascido se apresenta como motivo suficiente do dircito universal do nascimento, que em todo caso 86 se deixa dizer expressis verbis na Declaracio Uni- versal dos Dircitos Humanos de 1948 como uma “dignidade” que a todos cabe, sem excegio, Nessa expr 4 05 tempos modernos, de um privilégio para todos. Realiz todos cabe dignidade humana, todos podem levan- so condensa-se 0 paradoxo, que fundamen- ea democratizagio da distingao. Porque tar 05 olhos para todos. O homem tem em si mes- moa diferenga vertical Laonde, pela primeira vez na histéria da huma- nidade, a democracia inclusiva deve ser ousada, ela evidentemente nao pode renunciar as suas garan- tias ginecolégicas. Titulo hereditério e direitos ex- clusivos ficam de lado onde médicos burgueses assumem o trabalho, Rousseau recebe de Hobbes 0 bastio no escalao da subjetivagao, O homem nasce livremente ¢ mesmo assim em toda parte atado a con ces; em toda parte as pessoas sio partejadas de modo quase igual, e mesmo assim todos nao de- vem ter nem mais nem menos liberdade do que bebés que, depois da separagio do cordao umbilical, so entregues aos seus educadores, os verdadeitos formadores de pessoas. Por isso, a época pertence aos professores ¢ ginecologistas, que definem seus campos de atividade de modo tio extensive como nunca, Ninguém deve poder privar-se de sua com- peténcia nas questées de produgio humana: da feto- gogia para a pedagogia rumo 3 ancropologia. Devido, inclusive, & eficécia quase continua des- ses especialistas em gente, a época burguesa co- mega como ¢poca das nagées, isto é, como cra mundial dos grandes coletivos de natalidade, nos quais as pessoas entendem sua igualdade como igual-partejados, como recém-nascidos naturalmente idénticos no mesmo espago natal.6 Uma nacio antes de tudo um posto de maternidades, depois disso, primciro uma rede de reservistas, em segui- da uma rede de escolas primarias ¢ secundatias, € 5. Ji no século XVII novos pedagogos também estendem sua rei- vindicagio de formagio humana & nob:eza, cujas priticas ceducagio de mancita alguma se adaptam aos modelos e méto- dos morais da formasio burguesa. O reésofo e teérico do Estado Johann Joachim Becher, em um texto de 1669, atribuiu diceta- ‘mente aos nobres 0 fato de educarem seus filhos meramente para serem “bestas nobres’. A Becher também remonta a ex- :ntropogogi, teoria da criagio humana. press 6, Sobrea relagio entre nacionalidade e natalidade, ver deste au- chen auf Deutch. Rede auf das eigene Land, Frank furt, 1990, p. 53-67, capitulo 4: “Civilizagio de cima e de dentto, Introdugio & teoria da imigragio geral’, assim come: Zur Wele kommen. Zar Sprachen kommen. Frankfurter Vorle- sungen, Frankfurt, 1988, p. 99-143, capitulo 4: “Poética do parto”. SOBRE A DIFERENGA ANTHOPOLEGICA 1 por fim de bancas de jornal e teatros. Mas a nagio é sobretudo um posto de genialidade: aqui nascem grandes homens que no precisam mais de éevore genealdgica que remonte até herdis e deuses, porque cles mesmos pertencem diretamente & natureza. As reagSes entre essas instincias — ¢ algumas outras, sobretudo econdmicas — de moldagem e forjadura humanas” ptoduzem o efeito “sociedade moderna’, Caso queira experimentar nessa cra 0 modo como 0s novos iguais pensam sobre sua igualdade, entéo basta dar uma olhada nos livros de texto dos autores ¢ compositores abalizados, onde alguém conclamado a senhor de si justamente aprende a produzir os sons naturais da emancipagio. Se in- dagado sem rodeios “quem ¢ vocé2”, cle responde sem pestanejar com Papageno: “Um homem como vocé!” Caso se queira saber do que ele por fim gos- taria, entdo retruca com Leporello: “Vaglio far i gentiluomo /e non voglio pit servis”. Ser pessoa ie nifica agora se demitir do servigo ¢, com o servigo, da diferenga encontrada.* © homem demoeritico descobre em si, sob 0 efeito do principio da seme- 7. Ver Walter Seitter, Menschenfistungen. Studien zur Exkenntnise politkwisenschafi. Manique, 1985. O autor, em referéncia @ Michel Foucault, lembraa nosio-condutora da moderna “cién- cia pol 8. Noiinicio do século xvit Jonathan Swift, em suas satircas Prece- 10% pant 0 ws0 do peso! domestic, jf havia elaborado regras, que Titeralmente entendidas, levam o criado & sabotagem do serve, al": fazer de gente pessoas, Ihanca de todos em relagio a todos, reservas quase infinitas de misericérdia para com aqueles que sio sobrecarregados e muito abastados. “Quanto menos ele se deixa ofuuscar, tanto mais deixa que o toquem Quanto menos respeitoso é, tanto mais causaré im- pressio.”” A simpatia substitui a condescendéncia, Attavés do reptidio da diferenga encontrada, a antropologia politica moderna entra em um esté gio no qual — como se costuma dizer na linguagem do jovem Hegel — segue as massas. Recentemen- te, Alain Finkielkraut, em seu livro A bumanidade perdida, encontrou uma feliz expzessio para esse mo- mento. Desde que 0 grande mistério das pessoas, diz. o autor, 0 mistério de sua igualdade medrosa- mente guardado pelos senhores, foi difundido a partir do século xvii entre outros pela indiscris arrependida do grande Pascal, os contemporineos comegam “a viver sua desigualdade de outra for- ma”, Creio que nunca houve melhor definigao para o experimento da democracia moderna. “Vivre autrement Uinegalité.”" Com essa formula diante dos olhos pode-se repetir a pergunta sobre 0 que a cera mundial democrética tem em vista para mim as pessoas, esperando por uma resposta acertada. 9. Aluin Finkielkraut. L'Hiamanitépendue. Esai sur le XX stl Paris, 1996, p. 33. [Ed. bras. A humanidade pentida. So Paulo, Atica, 1998,] 10. Lbider, p. 31 93 94 O projeto democrtico baseia-se na determi- nagio de interpretar de outa maneira a alteridade das pessoas — de modo que as diferengas achadas centre elas caduquem e sejam substitufdas por dife- rengas feitas. Entre achar e fazer sao gerados no fa- turo os limites mais veementemente disputado: aqueles entre interesses de conservagio ¢ progredi- mento, entre submissao ¢ autodeterminagio, entre percepgio ontoldgica ¢ o impeto construtivista de tornar novo e diferente, e por fim também aqueles entre high and low culture. Quando Jaspers, no cio dos anos 30, pade falar de uma dltima campa- nha contra a nobreza, com isso ele expressava sua avaliagao realista de que, a partir de entao, os fa dores de diferenga chegariam ao ponto de arrancar das maos dos supostos achadores de diferenga as posigies de retirada que Ihe restaram — na filoso- fia, na pedagogia, nas relagées entre os sexos ¢ por fim e sobretudo na arte, 0 foco da diferenga velho- novo. Eles chegaram a esse ponto porque esclarece- ram o argumento geral contra 0 achar diferengas nna natureza até 0 ponto em que cada usuério pode empregé-lo apés pouco trein nao importando o que seja apresentado como encontrado ¢ existente nna natureza, pode ser desvendado como algo feito ou interpretado pelos proprios interessados; toda diferenciagao recai sobre o diferenciador. A partir de agora realmente nao existem mais fatos, existem apenas interpretagbes. Pluralidade de interpretagGes significa disputa crdnica na base sobre o sentido da- quilo que em geral deve valer como bisico — pois também nao existem mais condigdes externas da na- tureza, s6 existem “construtos sociais”. S6 existem partidos em construcio no parkimento das ficgdes, que chamamos opiniio ptiblica. Nele se pendura a cadeia de revisdes revolucio- ndrias que se impdem: no hd senhores, sé ha pro- cessos de submissio; nao hé talento, hd somente processos de aprendizagem; nao ha um genio, hé somente processos de produgao. Nao hi autores, hd somente processos de programagio — e progra- mados programadores. Ts natureza das coisas se generalizem num consenso, todas as figuras tradicionais da diferenga antropolé- gica sio anuladas, nao apenas nos jogos lingiiisticos da classe teorizante, como também no cotidiano da sociedade mobilizada. Os {dolos que a diferenga metafisica entre as pessoas havia estabelecido s derrubados sem excegio — comegando com os {do- los teocrdticos. Hé muito estamos trangiiilamente no mais se 10 logo essas corregées na imagem clissica da convictos de que nada nos faltase a n6 aces, avatares ¢ ilu- mostram rejs-deuses, encar minados. Nossa cultura politica como um todo é construfda sobre a negagio da primeira diferenga antropolégica — nao queremos mais ouvir nada onoLacica 95 96 sobre deuses que poderiam estar persistentemente pfesentes no homem que em meio ao género podem condicionar uma diferenca entre pessoas-deuses ¢ eras pessoas. Simpatias sentimentais pelo Dalai Lame nada mudam; intetesses sentimenta porum certo Cristo ¢ suas duas naturezas, das quais uma perturba decisivamente, tampouco. A diferenca na qual se baseavam os teocratas, nesse meio tempo parece para a maioria das pessoas, excluidas mintis- culas subculturasreligiosas, to ridicula que em prin- cipio nao é preciso comprovar detalhadamente que ela nunca péde ser uma diferenga realmente encon- trada, mas somente e sempre uma diferenga incons- ciente — ou mais grave ainda: diferenca feita de forma fraudulenta. Era o sentido do atefsmo politico destruir toda religizo histérica, na qual puderam ser encontradas as premissas de uma diferenciagao seria mente realizvel entre homem e homem-deus, Os modernos também néo tém muita pacién- cia com a segunda forma da diferenga antropoldgica, aquela entre 0 santo ea multidio profana. Pois como se pode mostrar facilmente que os chamados santos — quando nfo foram meros projetos da multidio — no passaram neste caso de atletas que se sub- metiam a rotinas espirituais de treinamento muito pouco usuais — das quais as mais excessivas consis- tiam em passar décadas sobre uma perna s6 ou amar todas as pessoas sem restrigé 's As suas qualidadest OnE A DIFERENG ANTROPOLOGICA tais exercicios hoje praticamente pararam de des- pertar um interesse piiblico. A exortagao para espe- rar por uma nova geragio de santos sé enconura crédito ainda numa forma de jogo um tanto atre- vida do catolicismo intelectual"! A sociedade moderna, de acordo com sua légi- ca, fez certo ao substituir os santos por atletas de ponta—ea maioria pecadora por espectadores. Além disso, 0 cristianismo jé desenvolvera a idéia do santo para o coletivo e preparara na communio sanctorum a figura imagindria daquela “democracia crista”, que na modernidade deveria tornar-se uma faccio en- tre outras, Nela é imaginada aquela “boa massa” como conjunto de individuos obedientes, que deve- ria retornar como a verdadeira massa de cooperado- res revoluciondrios nos textos candnicos da esquerda. Os pintores do Renascimento italiano anteciparam a transigao para o humano homogéneo, quando, no século XV, comegaram a representar as pessoas da Histéria Santa sem as auréolas, até entio obriga- térias. Quem fala da perda da aura, trata desse refluxo da transcendéncia, Na modernidade o além tornou- se tio discreto que chegou ao ponto do irreconhe- civel: agora Deus renuncia nao apenas & capacidade Th ¢ motivados 20s 11, Para um exemplo de apelos catolicamence mot Carl Amery, Die Botichapt de Jabrtausonds. Von Leben Tad und Wiirde, Munique e Leipzig, 1994 ” 98 de encarnar-se numa pessoa singular, ele perde cla- ramente também o interesse em brilhar através de certos individuos. No que diz respeito a figura mais universal da diferenga antropolégica, aquela entre o sibio ea multida io — uma diferenga sem a qual nenhuma das altas culturas histéricas péde viver —, no solo da Europa e dos EUA ela foi apagada em menos de duzentos anos por um esclarecimento duplo: o pri- meiro golpe contra 0 conceito do sibio foi dado pela teoria da evolugao, que retirou o predicado sapiens da oposigio ao termo insipiens vndeus para transformé-lo diretamente, ¢ sem escriipulo peda- gégico, em nome de espécie: Homo sapiens sapiens. Vé-se aqui como o igualitarismo cienticista cospe dluas vezes com uma expresso nos pés dos fildsofos elitistas. O outro golpe ¢ dado pela moderna cultu- ra da critica, na medida em que substituiu 0 sébio pelo intelectual, comegando com os philosophes do sécula xvi — Diderot: “Apressemo-nos em tornar popular a filosofial” —e terminando pelos céticos, convencionalistas e desconstrutivistas da atualidade, que em geral querem derrubar © conceito do saber soberano ¢ positivo bascado na evidencia. Onde 0 saber perde seu papel de fandamento baseado no objetivamence real e nao deve significar mais do que um meio da suposigao superior ¢ um auxilio para a escolha sempre dilematica entre males menores ¢ maiores, lé a avangada democracia da informagio fandamenta a si mesma como uma reuniio de ig- iguais, que numa penum- norantes mais bra geral, aquém do tragico, procuram por solug relativamente melhores para seus problemas de vida relativamente generalizéveis — Rorty pronuncia a 7 mudanga abertamente quando estabelece a “prima- a razio zia da democracia diante da filosofia”, Por es em todo o mundo crescem como erva daninha aque- las comissGes de ética que, como institutos da destro- 2 Quem gada filosofia, querem substituir os sAbios. no quiser aderir a essa comunidade de trabalho dos csclarecidamente nem-tio-sapientes, agora deve deixar- se marginalizar sob a alcunha de fandamentalista. De fato, medidos a partir do saber pés-moderno, fundamentalistas so na melhor das hipdteses demo- cratas nao-concomitantes, que, de uma maneira ultrapassada, acreditam em um saber incondicional- mente orientador — um saber que nao est 4 dis- posigao deles, mesmo que 0 mundo estivesse cheio de convencionalistas. Assim, resta resolver apenas a quarta figura da envelhecida diferenga antropolégica, aquela entre talentoso — uma diferenciagio 0 talentoso ¢ 0 12, Porisso a extingio do fldsofo-autor do tipo Adorno e sua subs- ‘ituigéo pelo modelo do filésofo de congresso e comissio, SOME A DIFERENA ANTROROLOGICA 99 SORE A DIFERENCA ANTROFOLOGICA 100 cuja aboligao seria mais dificultosa para a sociedade moderna do que outras diferenciagées metafisica- mente codificadas sobre © homem, porque com esta cla toca 0 seu proprio mito do estabelecimento. Mas cultura de massas em proceso tampouco perdoa seus estdgios anteriores. Com certeza, quando a cam- panha coni nobreza e 0 indignante superior esta- vane inicio, a mais importante estratégia da burguesia ofensiva foi deslegitimar a nobreza feudal, na medi- da em que se reportou a uma nobreza mais vélida, & aristocracia natural do talento ¢ do genio. “Nobreza do expirito” ¢ um lema de época, no apenas um titulo ocasional de livro."* Ele explica por que inti- metos individuos no tempo burgués puderam acre- ditar ganhar participagio, gracas & formagio, nos nobres bens humaniscas. Além disso, ficou visivel que mera nobreza hereditaria, medida de acordo com a formagio, muitas vezes nao passou de um barbarismo consciente de seus modos. No caso da aristocracia inglesa, particularmente, seu caréter pré- alfabético foi muitas vezes atestado. “Assim falou 0 Duque de Gloucester a Edward Gibbon por ocasizo da publicagio de seu livro Deolinio e queda do Império Romano: ‘De novo um maldito livro grosso, nao é, Mr. Gibbon? Rabiscos, rabiscos, sempre rabiscos, no, 13. Ver Thomas Mann, Adel des Geistes. Sechzehm Vereuche zum Problem der Humanitas, Estocolmo, 1948 Mr. Gibbon?" No que diz respeito & veneracio bur- guesa diante da obra, no auge dos Estados nacionais cla foi responsdvel pela capacidade do ptiblico — hoje téo surpreendente para nés — de cuidar de Mas essa alianga seus clissicos dando o melhor de de atencZo, como se reconhece posteriormente, foi atada por um lago cujo afrouxar e rasgar s6 podia ser uma questao de tempo. Os grandes autores ¢ artistas da cra burguesa atuaram como condutores numa revolta contra a nobreza hereditéria entio obsoleta — nessa guerra ofensiva das novas contra as velhas ambigdes, que hé mais de duzentos anos atraves como um corte todas as geragées modernas. © que entdo vem depois acontece de acordo com uma legalidade sobre a qual ja surpreende que nao se a tenha investigado com mindcia muito antes. Os participantes de uma batalha nao sio mais os mesmos depois dela; justamente 0 sucesso total faz com que se cansem dos préprios estandartes do _front, Apés duzentos vitoriosos anos da religizo de talento, para os agressores o mundo parece mudado. Um dia caira diante de seus olhos, qual caspa, que cles conceberam também a natureza, essa grande aliada do levante burgués, como uma corte na qual 14. Marshall McLuhan, Die magischen Kandle. Understanding Media. Disseldorfe Viena, 1968, p21. [Ed, bras: Os moos de comunicacio como extentdes do borem. Sio Paulo, Cultix, 1998.) 101 102 existem protegidos e papéis favoritos. Portanto, ob- servada a luz do dia, a natureza é téo injusta e cae prichosa quanto o principe absolutista, mais ainda: €o absolutismo do acaso em sua mais pura for- ma. Com essa observagao, talento ¢ génio tornam- se indecentes para todos os que também devem viver, de aparecer!® — primeiramente é um mal-estar, em seguida o ddio com seu corolario de boas razées O desejo de extingao ¢ nivelamento vem tona nas fendes do folhetim. A matilha instigada descrita por Canetti aparece como centro instigado. Ela coloca na ordem do dia das idéias politicas a liquidagéo da nobreza natural ou de talento. Agora nao se pode mais ouvir o tom di tinto, seja o recentemente ele- nntigo, ¢, pensando bem, de forma alguma o com talentoso. O lema a partir de entio & primazia da democracia vado ou 0 mais ante da arte! Como confirma todo observador livre da his- téria da atte atual, o drama da arte moderna é inti- mamente perpassado por tensdes desse tipo; sem consulta & ordem de executar a autoliqiiidagao do génio nas formas da propria arte, amplas partes do acontecimento artistico »permanecem intrans- poniveis no século decorrido. Vé-se 0 exemplo de Joseph Beuys, que comeca como génio e termina como assistente socials vé-se Andy Warhol, que 15. formulagdo é de Niklas Luhmann, SORE: DIFERENEA ANTROPOLOGICA transforma cedo demais seu talento em farer arte para o de fazer dinheiro, e com isso cumpre o crité- lo tio da popularidade da maneira que pode faz um astto da falta de sujeito; e vé-sesobretudo Marcel Duchamp, sem concorrentes como o artista do sin- coma do século, porque emancipou do talento no atelié a arte de expor quase-obras infinitamente interpretéveis e, com maior presenga de espirito do que todos 0s outros, com um sorriso budista nos libios, fornecen a prova de que aquilo que agora importa se alcanca melhor quando nfo nos deixa- mos iludir por muito mais tempo pelo fetiche do talento. Talento, como até agora foi entendido, s6 incomoda. Para aquele que o possui ele nao passa de uma armadilhas para aquele que nfo 0 possui, somente um aborrecimento. Genius go home. Assim que isso foi escrito, em principio alcangamos clareza sobre as premissas da cultura contemporanea ¢ podemos nos voltar agora as conclus6es, Entendemos que as Juras culturais nas sociedades modernas eram mais do que os reflexos semanticos de confflitos sociais, sejam eles lutas culturais ¢ de sexo, sejam atritos en- tre culturas de maioria ¢ minoria ou tensdes entre poderes eclesidsticos de mentalidade e secularismo ofensivo.'°Elas também representaram mais do que 16, Pertencem a0 mesmo plano.as huts cultura ou prognosticadas por Peter Gloce no “capitalisino digital” especialmente no front entre a “classe” rdpida ea len mn registradas 103 los 1 as projegées culturais da guerra civil mundial"? en- tue os partid ios da idéia de liberdade ¢ os da idéia de igualdade, guerra que constituio mais abrangente acontecimento conflituoso do século xx. Mais do que isso, mostra-se que o fendmeno da luta cultu- ral como tal ¢ a disputa na qual se discute sobre legitimidade e origem das diferengas em geral. As- sim como a metafisica religiosa viu-se perturbada pela questo sobre a origem do mal, a sociedade secular viu-se perturbada por saber de onde deve tomar suas diferengas. 7. No sentido da reconsttugéo de Dan Diner [DENTIDADE NA MASSA: AINDIFERENGA Ea vinganga da Histéria contra nds, igualitaris- tas, que também nés precisemos fazer nossas expe- rigncias com a obrigacio de diferenciar. Essa obrigagio de aprendizado ¢ insepardvel do programa politico- anttopolégico do homem modemo de viver diferen- temente sua desigualdade. Come mostramos, depois da revolucao construtivista todasas diferengas encon- tradas devem ser reelaboradas em diferengas fabrica- das. As antigas diferengas, 3s quals nos submetfamos, cedem as novas, que nés mesmos produzimos — para revisé-las com a freqtiéncia necesséria. O projeto de desenvolver « massa como sujei- to alcanga seu estégio critico tio logo pronuncic- mos a regra de que todas as diferenciagdes devem set realizadas como diferenciagées da massa. E evi- dente que a massa no empreende ou faz valer dife- renciagdes por meio das quais ela pendesse para 0 lado ruim — ela diferencia, to logo imbufda dos poderes para tanto, sempre e sem titubear a seu favor 105 106 Ela anula todos os vocabulétios ¢ critérios que se prestem & manifestacdo de suas limitagées; ela des- legitima todos os jogos de linguagem que no ganha, Eh estilhaca todos os espelhos que nao lhe assegurem set ela a mais bela em todo o pais, Seu estado normal € 0 deuma votacio originétia sobre o prolongamen- mais alta. Nesse sentido, 0 projeto da cultura de massa é nietascheano de uma forma radicalmente antinietzscheana: sua todagreve geral contra reivindicags maxima chama-se revaloragio de todos os valores como transformagio de coda diferenga vertical em diferenca horizontal Mas jé que, como foi visto, todas as diferengas so efetuadas com base na igualdade, portanto em uma impossibilidade preestabelecida de diferenciar, todasas diferenciagées modernas esto em maior ou menor medida gravemente ameagadas pela indife- renga. O culto & diferenca da sociedade aual, expan- dindo-se da moda a filosofia, tem seu motivo no fato de que se sente todas as diferengas horizontais, e com razio, como sendo fracas, revogiveis, construidas. Por énfases veementes elas so intensamente ratificadas como se agora também valesse para diferengas a lei da sobrevivéncia dos mais fortes. Mas todas essas manobras realmente nfo fazem efeito, pois os formi- dveis designers ¢ pensadores da diferenca em ponto algum nstituem uma diferenciagéo, mas uma paté tica nio-diferenciacao, por sinal com o axioma igua- IDENTIDADE NA MASSA A INDIFERENCA litario que pretendente que toda diferenciagao parta da massa, que por sua vez € indiferenciada per defini- tionem — desde que se constitua de particulas homo- géneas que supostamente se esforgaram igualmente para nascer. © principio da identidade, no qual se baseava a filosofia cléssica, continua existindo, visto por esse Angulo; chega até a adquirir validade mais poderosamente do que nunca, s6 que mudou de nome ¢ aparece mais secundério, mais negativo, mais reflexivo em uma dimensio, Onde havia identidade, deve aparecer indiferenga, ou melhor, indiferenga di- ferente. Diferenga que nao faz. diferenga € 0 tfculo légico da massa. De agora em diante identidade ¢ indiferenga devem ser entendidas como sindnimos. Mais uma ve2, sob as premissas aqui estabel cidas, ser massa significa diferenciar-se sem que faga alguma diferenga. Indiferenga diferenciada & 0 mis- tério formal da massa ¢ sua cultura, que organiza um centro total. Por essa razo, seu jargio no pode ser outro senio o de um individualismo afiado. Quando juramos que tudo o que fazemos para ser diferente em verdade nada significa, podemos fazer © que sempre nos vem & mente. “Hoje a cultura bate em tudo com a semelhanga.”! Somente por T. Theodor W. Adorno, Gesammelte Scrifen 3, Dilek der Aufkla- - Philesophische Fragmente Frankfurt, 1984, p. 141. (Ed mento filefias, Rio de bras: Dialévica do esclereimento. Janeiro, Jorge Zahar, 1985.] 107, 108 isso, no decorrer do iktimo meio século pudemos sair de uma massa preta ou molar para uma mole- cular colorida, A massa colorida é aquela que sabe até onde se pode ir quando se vai longe demais — atéo limiar da diferenciagao vertical. Como no espa- ¢0 igualitario nao somos objetivamente provocado- res entre nés mesmos, olhamo-nos reciprocamente «em nossas tentativas de nos fiver interessantes, mais ou menos agradaveis, ou despreziveis. A cultura de mas- sas pressupde 0 fracasso de todo fizer-se-interessante, e isto quer dizer fazer-se-melhor-do-que-os-outros. E isto com raza io, pois é seu dogma que somente nos diferenciemos entre nés sob o pressuposto de que nossas diferengas nao facam diferenca, A massa compromete. Uma s dernidade aposca na indiferenga: se a fonte de nossas imples lembranga mostra por que a mo- dliferengas fosse transcendente, portanto verfamo-nos objetiva e normativamente diferenciados em tetmos de alto e de baixo pelos oficios de Deus ow da natu- reza, entdo nossas diferencas teriam sido institu‘- das antes de nés ¢ s6 poderfamos encontré-las, respeité-las, elaboré-las, destacé-las; s6 os satanistas se insurgiram, ¢ jé faz tempo, contra a ordem obje- tiva do cosmo da esséncia e das categorias. Pensar assim ja era fato para a Idade Média ¢ ainda quase natural para a era do classicismo burgués. A socie- dade de ordens preci wa de vantagens ontolégicas para as suas hicrarquias ¢ delimitagoes. Mas agora, apés a grande investida rumo a igualdade ea nova capacidade de moldagem de tudo, queremos e deve- mos existir antes de nossas diferengas, contanto que sejam feitas dirctamente, ¢ nao achadas. A prioti- dade de nossa existéncia ante nossas qualidades c obras desencadeia a indiferenga como primeiro € Linico principio da massa, Mas onde a massa ¢ seu principio de indife- renga formam o ponto de partida, Id se bloqueia a io moderna por reconhecimento por si s6, ambiga porque sob essas condigdes 0 reconhecimento no pode mais significar alta estima ou homenagem, mas — falta em nos: a lingua a expresso — baixa esti- ma ou igual estima no espago neutro, justa conces- sio de uma insignificancia que nao se contesta de ninguém. Claro que se evita, 0 quanto se pode, 0 juizo de que igual estima ow alta estima se excluem reciprocamente. Mas as evidéncias atmosféricas filam por si: a luta geral por reconhecimento, ou somente por lugares privilegiados, produz um engajamento vao por um soberano banal que nio oferece reconhe- cimento algum além de um aplauso ocasional — por aquicla opinigo puiblica nao expecifica que se de- nomina geral ¢ sobre a qual agora sabemos ser composta como plendtio imagindrio dos nao-dife- renciados. Quem logra diante desse forum, nao pode mais estar certo se seu éxito, medido por velhas idéias IDeNTIDADE NA MASSA: A INDIFERERCA 109 Lo de alta estima, nao ¢ mais inconsolavel do que pode- ria ser todo fracasso, Nessa situagio, ¢ inconsolavel © papel igualmente exercido pela critica. Triste- mente inserida em seu espago de manobra, ela acha xno mais das vezes bom ¢ muito bom tudo o que nao obtém éxito especial na tentativa de diferenciar-se vantajosamente, enquanto separa por instinto 0 que é realmente especi ¢ julga com condescendéncia, ou mais do que isso, j4 que mira de baixo o elemen- to superior, com cortante intransigéncia. Ao olhar para as premissas explicadas, enten- demos por que isso nao pode ser diferente. Depois que Deus morreu ea natureza foi desmascarada como construto, caem por terra as tinicas instincias que poderiam rer feito boas excegies. As excegdes de Deus revelaram-se casos de graca; as exceses da natureza, monstros ou génios. Quem quisesse se dar ao trabalho inoportuno de folhear os tratados sobre a graca do tempo dos doutores, veria confir- mado 0 resultado de que os discursos medievais sobre os carismas, as excesbes das misericérdias de Deus. representam 0 mais amadurecido sistema ja mais inventado para reproduzir as diferengas, enig- maticamente profundas, entre pessoas em bases transcendentes. As gracas cram as leis de excegio de um deus que nao apenas governava, como também dominava até o mi imo detalhe. Por forga dessa as diferengas entre os homens, tanto os dispontveis S leis m esclarecidas num quanto os indisponiveis, fora nivel mais alto, porém de suposigées obscuras para dados vivencidveis. Embora todos os setes abaixo de Deus estejam reunidos no status de criatura, e nesse sentido paregam iguais, heréis sagrados liberaram de altas instancias decretadas a perspectiva de um sistema intransponivel de excegdes, Com sua pret rogativa de conceder c reter gragas, Deus rejeitou to- das as expectativas de igualdade no sentido social ¢ exigiu dos fidis que se contentassem que, de modo obscuro, na desigualdade aparecia a mais elevada justica. Sem esse enigma majestésico da desigual- dade, 0 Deus cristo nfo teria passado desde 0 inicio nista. Um resto desse numino- deum simulacro huma so ainda hoje é sentido nos momentos irraciona do mercado de arte, que destaca inconcebivelmente alguns ¢ empurra os outros para a escuridio da in- vendabilidade. Na velha ordem justamente os mais elevados talentos foram também interpretados como oficios abaixo de Deus, oficios confiados a seus por- tadores para a fiel administragio em ascensio. Ne- les tornou-se visivel como convergiam setvigo © graca. A cultura medieval era multicarismética — assim como a moderna € multipretensiosa. Nesse ponto quero apenas indicar uma conse- giiéncia ineviravel do enfraquecimento moderno das dade contemporanea também diferengas. A soci no pode deixar de formar em todas as éreas 12 IDERTIONDE NA MASSA: A INDIFERENE veisescalas de valor, categorias, hicrarquias — como sociedade de concorréncia confessa, no pode fazer diferente, Mas ela deve conceder seus lugares sob premissas igualitérias — é condenadaa supor que a diferenga entre vencedores ¢ perdedores nos merca- dose nos estidios nao produz e ocasiona diferencas essenciais, mas representa tio somente uma conti- nua lista hierdrquica apta a revis 0. Aqui se anuncia um ato de forsa psicopolitica sem precedentes na histéria: a tentativa de conser- var massas dgeis, ciumentas, pretensiosas, que em Permanente competi¢ao se esfalfam por posigées privilegiadas, Sem um esforco permanente de satis- fazer os colocados, uma sociedade de massas subje- tivadas iria quebrar por suas tensdes endégenas de inveja. Ela seria implodida pelo édio daqueles nos quais fracassa o procedimento civilizador empenha- do em transformar vencedores nao colocéveis em perdedores colocéveis. Dai, na sociedade moderna, © esporte, a especulacio financeira, scm esquecermos 0 empreendimento artistico, deverem se tornar re- guladores psicossociais cada vez mais significativos, pois nos estédios, nas bolsas ¢ nas galerias os con- correates colocam-se amplamente pelo seu préprio éxito ¢ reconhecimento através de seus resultados. Como tais colocagées sao diferenciagdes auto-reali zadas, elas agem como redutoras de ddio, quando nao reconciliadoras. Elas nao abolem a inveja cle- movi mentat, mas lhe dio uma forma na qual poss: mentar-se. Elas legitimam a critica como discussio dos que esto & frente gragas aos que ficaram para vel instancia da venti- is — essa, a mais incontorn |. ColocagGes servem a informalizacao do lagi soci status ¢ tornam verticalmente méveis sistemas soc estratificados. Flas revogam a antiga idéia de hierar- quia da velha Europa ao ranking contemporinco. Em lugar algum isto € tio descjavel e a0 mes- mo tempo tao arriscado quanto no chamado setor cultural ¢ em seu fancionamento — desejivel, por- s a novidade artistica que sob as condigées atuai pode, como nunca antes, esperar por uma recepgo favoravel por parte de seus interessados; perigoso, porque a diluigao dos critérios levaas artes para cada ismo, ¢, além disso, vex mais perto do limiar do ni as proprias obras se multiplicam e vio até o limite ndo-o. No sistema artistico mo- do lixo, ultsapas derno — como na democracia avangada em geral — trata-se de desconectar 0 patriménio da afetivi- dade feudal, sobretudo a submissio ¢ o falso elogio, mas de forma que nisso os sentimentos verticais, 0 sentido para mais alto e mais baixo, para mais valioso € menos valioso sejam discretamente regencrados num campo informal e, em constante abertura para 0 novo, sejam reincorporados de maneira suficiente- mente segura. Asavaliagées do artisticamente primo- -a se realizam ros0 ou notavel na situacdo democrat 14 inevitavelmente de uma maneira que nio conhece capacidade judicial de reclamagio numa aptidao parz a objetivacao, e no entanto, quando nestas coi: sas se perde o compasso, o diferenciar e valorizar de forma geral deveriam dissolver-se, Visto desse ponto de vista, 0 justa ou injusta- mente assim denominado “Projeto da Modernidade” édefinitivamente o mais admirdvel empreendimen- to observado na histéria da humanidade. E sempre bom lembrar que a democracia apela, de modo iné- dito, para a discrigio de seus membros — para a discricao no duplo sentido da palavra: como forga de diferenciagio ¢ como sentimento de compasso, como sentido para inescritas relagoes de categoria ¢ como respeito por ordens informais do bom e do menos bom — em constante consideragio as ne- cessidades de igualdade ¢ habitos de compara A virada para o informal contém todaa aventu- ra da cultura sob condigées modernas. Os mundos feudal e da sociedade de ordens puderam regula- mentar, nestas como nas outtas coisas, 0 que dizia respeito 2 penachos, brasdes, costumes; quanto a categorias e prioridades, tudo apontava para visi- bilidade e demarcagio piiblica. Cultura na demo- cracia vive de uma herildica invisivel. Ela pressupde a disposigao dos cidadaos para o reconhecimento nao-forgado do potencial mais elevado, da tenta- tiva lograda e do esforgo persistente. O que porém ainda hoje é “merecido” no campo da cultura — aqui nZo hd uma moeda objetiva, nem créditos que estivessem provegidos de revalorizasio, infla- Gio ¢ falsificagio. Os artistas vivos mais significa tivos nfo puderam queixar-se formalmente de uma sociedade que acteditaram nao rer dado 0 devido valor a seu mérito. Eles dependem de que o sist ma das discrigées informais, que cresce em meio a décadas de pacigncia e constante esforgo cultural, o saber do nivel, o sentido para a nuanga voltem a se incorporar de forma suficientemente vivaz nos parceiros do jogo cultural. novos e adiciona Nesse campo, nos tiltimos tempos crescem, de forma inquictante — mas como aludido, vindos de muico longe —, erros de compasso, disparates, desinibigdes ¢ deselegincias. Isto é 0 que, com mi- ssintoma de Munique” em nha polémica contra 0 fevereiro de 199°, sugeri no calor da hora. Se ali se tratasse apenas de habitual dialética de geracéo © efeito-escindalo, com os quais debutam talentos, cento nada mais haveria a ser dito. Mas 0 que estéem jogo no concerne muito aarte como tal ea sua dina- mica de rejuvenescimento movida pelo conflito, mas suas mais recentes formas de funcionamento, apro- veitamento e administracao. Todas elas querem ago- ra bancar o senhor ¢ nao mais servis, os Leporelli nos Siiddewtrche Zeitung, 15 de fevercira de 1999, 0 DESPREZO DAS MASSAS 116 degraus do servigo ptiblico, sendo eles assessores cultu- rais ou exercendo outras fungdes em proveito proprio. Os colarinhos brancos, os moderadores ¢ criticos ctesceram em quase toda parte & custa dos criativos € deixam-se festejar como os verdadeiros criadores. ‘Vejo em tudo isso vestigios de um édio que se torma cada vex. mai seguro de si, para com a excecio que ainda representa uma excegio no sentido mais antigo, vestigios de rancor daquilo que em sua ma- neira nunca poderd ser substituido e que justamente Por isso se quer substituir de forma tio répida e in- digna quanto possivel — porque somente 0 permu- tavel preenche a norma da indiferenga; além disso, vejo ainda vestigios de um desespero embaracado, que se move sobretudo em vista daquilo que lembra o reino perdido da graca. Talvez, por menos oportu- ‘no que possa parecer, se devesse dizer mais uma ver: no mundo que sucedeu 3 graga, a arte foi o asilo das exceg6es que restaram. Ela foi um campo no céu no- turno, no qual de tempos em tempos nascia uma estrela. Exposta a andlise, a quem admiraria se a cul- tura da uniformidade em franco progresso, que s6 suporta determinadas diferencas diante do pano de fando de indiferenciabilidade, agora prepare os pr ximos golpes da derradeira e sem data marcada cam- panha contra o extraordinério? Emile Cioran deu a um volume com ensaios sobre autores do passado e do século xx 0 seguinte titulo: Exercicias de admiragio.* Confesso que niio co- snhego uma expresso que pudessearticular mais per- feicamente a fungio de um trabalhador da cultura em nossa época do que essa férmula concisa, modesta, in- teligente. Exercicios deadmiragio — de fato, em tudo co que compéea cultura, como a entendo aqui, trata- se de um esforgo de nio perder completamente 0 rumo medindo o admirével. A admiragio referente a0 abjeto concede asilo também ao talento, a0 qual nfo nos equiparamos. Ela é um sofrimento volunta- rio de obras que nés mesmos nao somos capazes de produit, mesmo que tivéssemos trinta e scis vidas. Ela éabertura paraa iluminagio da diferenga indisponi- velmente maior. Com tudo isso, cla €0 oposto daque- acritica que se retine no centro totalitério ¢ 6 clogia fo que é como este. Quando muito, a formulacio de Cioran teria de ser estendida a expressiio “exercicios de provocagio”. Somente pela provocagio surgem ‘ocasides para no nos deixarmos afundar ainda mais. Cultura no sentido normativo, € mais do que nunca necessitio lembrar, abrange a quintesséncia das tentativas de provocar a massa em nés mesmos para decidir-se contra si mesmo. Ela éuma diferenga para melhor que, como todas as diferenciagdes relevantes, somente perduraré enquanto e sempre que for feita Ba bras: B Roceo, 2001 rlcios de adminagie, Envios e peri. Rio de Janeiro, 47

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