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Samuel Anderson de Oliveira Lima

Leila Maria de Araújo Tabosa


Organizadores

Tradição e contemporaneidade
no Barroco Hispano-americano
Reitor
José Daniel Diniz Melo
Vice-Reitor
Henio Ferreira de Miranda

Diretoria Administrativa da EDUFRN


Maria da Penha Casado Alves (Diretora)
Helton Rubiano de Macedo (Diretor Adjunto)
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Conselho Editorial Conselho Técnico-Científico – SEDIS


Maria da Penha Casado Alves (Presidente) Maria Carmem Freire Diógenes Rêgo – SEDIS (Presidente)
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Cândida de Souza Célia Maria de Araújo – SEDIS
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Coordenadora de Revisão Capa
Aline Pinho Dias Eliza Mizziara
Coordenador Editorial Diagramação
José Correia Torres Neto Isadora Veras
Gestão do Fluxo de Revisão Foto da capa
Edineide Marques Nelson Soares
Gestão do Fluxo de Editoração
Rosilene Paiva
Samuel Anderson de Oliveira Lima
Leila Maria de Araújo Tabosa
Organizadores

Tradição e contemporaneidade
no Barroco Hispano-americano

Natal/RN
2020
SUMÁRIO

1 Apresentação 7

2 A representação do feminino divino na 14


cultura visual barroca da América portuguesa:
alegoria, Kunstwollen e hibridismos culturais
nos trópicos
Carla Mary S. Oliveira

3 A Virgem de Guadalupe: influência do discurso 47


barroco na consagração da sua imagem como
fundadora de uma identidade nacional em Nova
Espanha (séculos XVII-XVIII)
Elisabeth Fromentoux Braga
Juan Pablo Martín Rodrigues

4 Literatura e matemática: Neptuno Alegórico 75


em um mar fractal de Soror Juana
Leila Maria de Araújo Tabosa
5 Reverberações de um amor barroco: 98
Frida Kahlo e Diego Rivera
Maria da Penha Casado Alves
William Brenno dos Santos Oliveira

6 A busca pelo diálogo em “Este, que ves, 129


engaño colorido...”, de Sor Juana Inés de la
Cruz e “Retrato”, de Cecília Meireles
Roseli Barros Cunha

7 A americanidade barroca de Gregório de Matos 157


Samuel Anderson de Oliveira Lima

8 Estudar Manuel Botelho de Oliveira hoje: 182


perspectivas e propostas
Yuri Brunello
Erimar Wanderson da Cunha Cruz
1
APRESENTAÇÃO

Os estudos sobre o Barroco estão na ordem do dia, ainda que


queiram alegar a nós, pesquisadores, a alcunha de retrógrados,
que vivem da poeira da história. Há, em todo o mundo, muitos
e bons pesquisadores que, correntemente, estão escrevendo
sobre o Barroco, além de importantes instituições que têm
promovido eventos de grande magnitude nessa área, a exemplo
do V Congreso Internacional de Barroco Iberoamericano, em
2021, em Granada, na Espanha.
O Barroco parece ensejar caminhos sempre contrários
desde que se passou a estudá-lo de forma mais esquemática,
nos idos do século XIX. Muitos estudos o categorizam apenas
como um movimento histórico que findou no século XVII; há
outros, porém, que defendem sua permanência no tempo e no
espaço da contemporaneidade. Embora tenha ficado esquecido
por séculos, a modernidade trouxe o espírito barroco à cena.
Por essa razão, o título deste livro busca compreender não só
o barroco histórico, do século XVII, ou seja, a tradição, mas
também quer congregar novos olhares, novas perspectivas
que ampliem seu campo de atuação na contemporaneidade.
Pensamos esse movimento como o apresenta Cláudio Daniel
(2004, p. 17), “o barroco fez da arquitetura verbal uma forma
de delírio visionário”.
Não estamos falando de um Barroco ou neobarroco, mas
de um transbarroco, como pontuou Haroldo de Campos (2004).
Longe de querermos esgotar essa querela, cabe-nos aceitar que
é pertinente ainda falarmos de barroco nos idos deste século.
Esse trans é metamorfose, é apocalíptico, ultrapassa as linhas
APRESENTAÇÃO

da literatura, alcançando também as outras artes, a pintura,


a arquitetura, a música etc. Foi graças a Góngora e Quevedo,
os padres desse estilo na literatura, que podemos ler bem Sor
Juana, Neruda, Cecília Meireles, Frida Kahlo, Paz, Borges,
Carpentier, Haroldo de Campos, Gregório de Matos e muitos
outros que formam a constelação de poetas iluminados, cujas
estrelas estão bem mais próximas de nós devido ao engenho e
à obsessão pela linguagem.
Neste livro, também vamos encontrar grandes obsessões
pela ciência barroca. Reunimos, nas próximas páginas, sete
artigos/ensaios que buscam elucidar o viés moderno e atua-
líssimo das discussões sobre a arte barroca em suas múltiplas
experimentações. Trata-se, portanto, de uma obra que reúne
especialistas de universidades brasileiras diferentes que
comungam desse ideal. Reúnem-se, assim, sete professores e
três estudantes de pós-graduação que dão ao público leitor uma
fina camada das pesquisas produzidas no Brasil, muitas delas
resultado de pesquisas de mestrado e de doutorado.
O texto que inaugura esta obra está a cargo da renomada
professora Carla Mary S. Oliveira, da Universidade Federal da
Paraíba, autora de muitos livros e artigos na área de história.
No texto A representação do feminino divino na cultura visual
barroca da América portuguesa: alegoria, Kunstowollen e hibridismos
culturais nos trópicos, a historiadora vai analisar os elementos
iconográficos de alguns edifícios barrocos que identificam
as representações de seu uso naquela sociedade. Cabe ao
leitor ativar as pistas que ajudam a entender as obras de arte
da religiosidade barroca. Para Carla Mary, é preciso tentar
“compreendê-los em seus aspectos alegóricos, simbólicos e
devocionais, bem como as filiações estilísticas que seus artifí-
cios seguiram em sua feitura [...]”.

TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE 8
NO BARROCO HISPANO-AMERICANO
APRESENTAÇÃO

O segundo texto vem assinado por Elisabeth Fromentoux


Braga e Juan Pablo Martín Rodrigues, sendo este professor da
Universidade Federal de Pernambuco, e se intitula A virgem
de Guadalupe: inf luência do discurso barroco na consagração da
sua imagem como fundadora de uma identidade nacional em Nova
Espanha (séculos XVII-XVIII). Nele, os autores tomam como mote
o discurso que configurará a Virgem de Guadalupe, primeiro
como santa e depois como padroeira do México. Ao analisar esse
discurso como barroco, os autores afirmam que “a narração deu
então uma nova interpretação à imagem, uma interpretação
barroca”. Nesse sentido, concluem, depois de analisar vários
aspectos do discurso que leva ao culto à Virgem, que “a imagem
da Virgem de Guadalupe como meio ao serviço da configuração
identitária dos criollos, primeiramente da capital, e depois da
Nova Espanha inteira, pode ser considerada como represen-
tativa de um fenômeno generalizado na América hispânica
durante o Barroco”.
O terceiro texto deste livro é de autoria da professora
Leila Maria de Araújo Tabosa, da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte. Sob o título Literatura e Matemática: Neptuno
Alegórico em um mar fractal de Soror Juana, a autora brinda-nos
com uma belíssima discussão sobre a poética engenhosa da
Décima musa, Sor Juana Inés de la Cruz. Leila Tabosa apresenta
ao leitor uma aproximação possível entre poesia e matemática,
sendo algo comum à época do barroco histórico, quando Ciência
e Literatura caminhavam pela mesma estrada, como considera
a autora: “os estudiosos desconheciam limites entre áreas cien-
tíficas para suas investigações, existindo poetas-matemáticos,
filósofos-poetas, cosmógrafos-matemáticos, astrônomos-po-
etas, teólogos-poetas, matemáticos-jesuítas”. Para dar cabo
a seus objetivos, Leila Tabosa agencia muitas vozes teóricas,

TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE 9
NO BARROCO HISPANO-AMERICANO
APRESENTAÇÃO

como as de Luciano Anceschi (1991), Haroldo de Campos (1994),


Bernoît Mandelbroit (1997), Octavio Paz (2001), Severo Sarduy
(1989), entre outros.
O texto seguinte é assinado pelos professores, Maria da
Penha Casado Alves e William Brenno dos Santos Oliveira, ambos
amantes da obra de Frida Kahlo. O texto intitula-se Reverberações
de um amor barroco: Frida Kahlo e Diego Rivera, no qual discutem o
discurso de duas cartas que Frida escreveu para seu marido à luz
da teoria de Mikhail Bakhtin. É interessante destacar o que dizem
os autores logo nas primeiras linhas do texto: “não nos propomos
a enquadrar Frida Kahlo à estética barroca ou a sequer pensar
sua arte como representativa dessa manifestação artística”. Na
verdade, eles pensam o Barroco para além da historiografia,
além do espaço infinito do século XVII; pensam como um grande
tempo que não se esgota. Assim, esse artigo dialoga com uma das
âncoras deste livro, que é a contemporaneidade do Barroco, isto
é, como algo em constante renovação, em constante presença.
Além de Bakhtin, antes mencionado, o artigo desses autores
convoca para a cena da escritura Octavio Paz (1984), Rojo (2006),
Hayden Herrera (2011), entre outros.
Em A busca pelo diálogo em “Este, que ves, engaño colorido...”,
de Sor Juana Inés de la Cruz e “Retrato”, de Cecília Meireles, a profes-
sora Roseli Barros Cunha, da Universidade Federal do Ceará,
propõe estabelecer um diálogo entre duas poetas de épocas e
lugares diferentes, tendo como ponto de aproximação o tema
do “retrato”. A autora afirma que, nos poemas em análise, há
uma “coincidência temática”, o que a fez realizar o estudo. Além
disso, em sua pesquisa, ela constatou que há semelhanças entre
as poetas apesar do hiato temporal e espacial que as separa:
“apesar do tema coincidente, a distância tanto espacial quanto
temporal poderia impor uma dificuldade para a comparação,

TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE 10
NO BARROCO HISPANO-AMERICANO
APRESENTAÇÃO

mas há pontos de contato importantes que colaboram para


promover essa tarefa. Ambas possuíam conhecimento musical
e produziram poesia com uma forte influência dessa arte”.
A aproximação analítica feita por Roseli Cunha tem relação
direta com a proposta deste livro, que é passear pela tradição
(passado) e pela modernidade (presente) das pesquisas sobre o
barroco. Com olhar sincrônico, a autora une essas duas grandes
poetas. Em sua conclusão, ela afirma, corroborando o que estamos
afirmando: “por meio da metáfora do retrato, desdobrada na do
espelho, presente nos dois poemas, é possível um diálogo entre
tradição e modernidade, presente na obra de ambas, na América
Latina”. Isso, portanto, revela o aspecto trans-histórico do barroco,
um transbarroco, como reverbera Haroldo de Campos.
O professor Samuel Anderson de Oliveira Lima, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, escreve o
próximo texto intitulado A americanidade barroca de Gregório de
Matos. Nele, o autor faz leituras de alguns poemas gregorianos
que ensejam apresentar questões da América barroca. Esse
pesquisador parte do tema da americanidade transversal do
barroco, pensando esse estilo como atemporal, sem as amarras
do século XVII. Gregório, entre outras referências, faz uma
verdadeira crônica da vida das terras baianas; seu texto poético
revela todos os aspectos daquela sociedade, apropriando-se de
todos os elementos necessários para tal, desde a linguagem aos
traços da vida cotidiana daquele povo. Nesse ensaio, o autor faz
um recorte da obra gregoriana e analisa poemas nos quais são
discutidos os seguintes temas: a vida nas ruas da Bahia, a usura
dos governantes baianos, a festa de São Entrudo, o baile do
paturi, a cidade do Recife, a procissão da quarta-feira de cinzas,
com uma sátira à Bahia colonial. O autor conclui suas análises
fazendo um arremate do perfil do poeta estudado e diz: “este é

TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE 11
NO BARROCO HISPANO-AMERICANO
APRESENTAÇÃO

Gregório de Matos, esta é sua moldura barroca, decorada com


poesia de fino trato, produto do solo americano onde plantou
suas raízes. Não está só, não existe sozinho”.
O último texto dessa seleta, Estudar Manuel Botelho de Oliveira
hoje: perspectivas e propostas, escrito por Yuri Brunello, professor
da Universidade Federal do Ceará; e Erimar Wanderson da
Cunha Cruz, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia do Piauí, fecha um ciclo de sete ensaios que buscam
discutir o barroco no trânsito entre a tradição e a contemporanei-
dade. O número sete é bem significativo porque representa, entre
tantos elementos, o número da perfeição, que integra o mundo.
O texto dos professores Yuri Brunello e Erimar Wanderson
traz um panorama sobre a obra de Botelho de Oliveira, apre-
sentando sua fortuna crítica e propondo a revitalização de sua
poética, principalmente por sua aproximação com a literatura
italiana. O corpus de análise é Música do Parnaso, obra de maior
destaque de Botelho de Oliveira e que foi escrita em quatro
línguas: português, espanhol, latim e italiano, corroborando a
cena poética do barroco seiscentista. Essa pluralidade linguís-
tica tipicamente barroca também está presente nas obras de
Gregório de Matos e de José de Anchieta.
Ponto alto da discussão é quando, analisando um poema
de Botelho de Oliveira, os autores estabelecem aproximação
com a poética gongorina: “esta ferramenta, com um repertório
de imagens comuns e um trânsito do sentido denotativo para
conotativo, se fortalecerá em Góngora, naquilo que conven-
cionou denominar de estilo cultista”. Góngora é a matriz do
barroco, é o candeeiro que tem iluminado muitos poetas ao
longo desses anos. A partir dele, formou-se uma constelação
de poetas iluminados e que estão em diálogo permanente com
a tradição e com a modernidade. Manuel Botelho de Oliveira é

TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE 12
NO BARROCO HISPANO-AMERICANO
APRESENTAÇÃO

mais um nessa seara. Os autores desse ensaio apresentam um


bom arcabouço teórico, do qual destacamos Haroldo de Campos
(1989), Sérgio Buarque de Holanda (2002), Sílvio Romero (1888),
Ivan Teixeira (2004), Eugênio Gomes (1968), e outros.
Gostaríamos de agradecer a todos os autores que acei-
taram o desafio de escrever sobre um tema que ainda é caro em
muitas rodas de discussão acadêmica. Temos a certeza de que
cada um desses textos foi produzido com muito esmero para
que os leitores pudessem sentir o prazer de lê-los. Nosso desejo
é que você, leitor, possa desfrutar das discussões tomadas nesta
obra e que, além disso, esses estudos possam ampliar nossa
visão sobre cada autor/obra analisado perpetuando a paixão
que envolve cada um desses autores pelo universo do barroco.
Ao final, queremos agradecer também à Pró-reitoria
de Pós-graduação da UFRN, por proporcionar, por meio de
chamada pública, a publicação deste livro; assim como à Editora
da UFRN – EDUFRN e à Secretaria de Educação a Distância –
SEDIS pela execução do projeto e ao Programa de Pós-graduação
em Estudos da Linguagem – PPgEL pelos encaminhamentos.

Os organizadores!

TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE 13
NO BARROCO HISPANO-AMERICANO
2
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL
BARROCA DA AMÉRICA PORTUGUESA
ALEGORIA, KUNSTWOLLEN E HIBRIDISMOS
CULTURAIS NOS TRÓPICOS1

Carla Mary S. Oliveira2

“Gardons-nous de retirer à notre


science sa part de poésie” 3
Marc Bloch.

Como um introito

A tradição de se utilizar imagens como acessórios ou mesmo


suportes principais de uma prática catequética é algo que está

1  Este texto, numa versão preliminar, foi apresentado como conferência de


abertura na XXI Semana de Estudos da Religião – “Imagens femininas de Deus
e devoções marianas na América Latina”, evento realizado pelo Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de
São Paulo, entre 26 e 28 de setembro de 2017, no Campus Rudge Ramos, em
São Bernardo do Campo – SP. Para esta coletânea, ele sofreu acréscimos e
atualizações, especialmente em sua parte final. Ademais, toda a revisão do
texto é de responsabilidade da autora.
2  Este artigo foi revisado pela própria autora.
3  “Não retiremos de nossa ciência sua parte de poesia”.
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
DA AMÉRICA PORTUGUESA

enraizado ainda nas origens mais remotas do cristianismo,


nos idos tempos de perseguição do Império Romano e escusos
rituais realizados na penumbra das lúgubres catacumbas da
cidade de onde, ironicamente, séculos mais tarde, o próprio
poder da Igreja que surgiria dessa Fé se espalharia a todos os
quadrantes do globo terrestre.
Não deve causar espécie, desse modo, que tenha sido
justamente a imagem um dos principais veículos da conversão
e catequese cristã nos territórios americanos sob o controle
das coroas ibéricas, fosse ela bi ou tridimensional, obra de um
artífice limitado ou de um exímio virtuose, inspirada por temas
importados d’além-mar ou fruto de um hibridismo cultural sem
antecedentes iguais até então.
Isso posto, cabe ainda neste introito outra reflexão. Tanto
na América portuguesa quanto na espanhola nos naturali-
zamos, de certo modo, a uma convivência diuturna com uma
determinada estética que nos sussurra do passado e, de modo
algum, pode ser considerada como algo simples ou natural,
muito pelo contrário: mesmo que não tenhamos nascido ou
vivido nas cidades que os abrigam, os conjuntos arquitetônicos
coloniais, em sua grande maioria de cunho religioso e feições
barrocas, povoam o imaginário acerca de tal período. O Barroco
é, para muitos de nós, como tão bem coloca Alain Mérot, “[...]
uma forma do estranho – da esquisitice dos outros e do passado.
Um passado que é preciso reaprender, se reapropriar com
circunspecção [...]” (MÉROT, 2007, p. 11)4.

4  Todos os textos aqui citados em língua estrangeira foram traduzidos para o


português por mim. O texto original: “Le rapport que nous entretenons avec
le baroque n’est jamais simple. Il est une forme de l’étrange – de l’étrangeté
des autres et du passé. Un passé qu’il faut réapprendre, se réapproprier avec
circonspection [...]”.

15
CARLA MARY S. OLIVEIRA
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
DA AMÉRICA PORTUGUESA

E qual o motivo de meu destaque para este ponto? É a


constatação de que, para muitos de nós, a linguagem intrínseca
do Barroco já não faz mais sentido algum, já se perdeu quase
que por completo. Uma igreja barroca, um altar, um relicário,
uma pintura, uma escultura, um ex-voto, todas essas obras,
sejam elas gigantescas ou minúsculas, de uso coletivo ou indivi-
dual, público ou particular, todas elas estão sempre carregadas
de inúmeros sentidos que hoje nos escapam, de camadas e
mais camadas de significados fugidios que se sobrepõem, que
se colocam entre a visada do presente e essas obras, criando
uma bruma densa que dificulta a percepção de suas mensagens
intrínsecas, de seus sentidos primeiros.
Os atributos de santas, santos, beatas e beatos não são
mais um código de pleno domínio dos fiéis – e muito menos
de pesquisadores acadêmicos por vezes alheios ao universo
religioso – e as qualidades de caráter exaltadas por meio de
alegorias visuais e simbolismos multifacetados já não possuem
nexo algum numa realidade em que se perdeu a sutileza das
parábolas, das histórias sagradas e da literatura popular oral
como forma de admoestação e formação moral de uma grande
parte da população. Ou seja: o leitmotiv de todo um conjunto de
representações do sagrado não tem mais sentido no mundo em
que vivemos, daí o estranhamento que essas representações nos
causam, daí o interesse por sua compreensão, a necessidade de
que tal universo imagético adquira novamente, para nós, em
pleno século XXI, um sentido e um propósito, mesmo que isso
se dê apenas por meio da intelecção, da compreensão historio-
gráfica ou da fruição estética.
Se não nos é mais possível realmente vivenciar plena-
mente a religiosidade barroca e o sentido que tais obras de
arte tinham em seu contexto primevo, podemos, ao menos,

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CARLA MARY S. OLIVEIRA
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
DA AMÉRICA PORTUGUESA

tentar compreendê-las em seus aspectos alegóricos, simbó-


licos e devocionais, bem como as filiações estilísticas que
seus artífices seguiram em sua feitura, pensando no público
a que elas se destinavam e qual poderia ser o efeito desejado
em sua recepção. Mais do que isso escapa às possibilidades de
qualquer pesquisador do campo da História Cultural ou da
História Social da Arte e, por isso mesmo, esse limite trata-se
daquilo que pretendo fazer aqui, mesmo que brevemente.
Pretendo dirigir minha argumentação muito mais no sentido de
provocar questionamentos e estimular um olhar diferenciado
sobre o Barroco na América portuguesa do que, de fato, trazer
respostas definitivas sobre o tema.

Uma Cultura Visual Alegórica:


a Kunstwollen do Barroco

Toda a linguagem visual formativa do Barroco foi cons-


truída no Velho Mundo, a partir do final do século XVI, tendo
como parâmetros dois elementos que constituem sua essência
primeira: o discurso alegórico e a persuasão dos sentidos.
Vários autores já se detiveram na tarefa hercúlea de desvendar
as minúcias de ambos, dando margem às mais diversas inter-
pretações teóricas e conceituais sobre sua importância nos
campos da História da Arte e da História Cultural. O que é ponto
pacífico, no entanto, é que se tornou impossível falar do Barroco
sem se considerar como pressuposto que esses dois elementos
são praticamente indissociáveis em sua estética, pois foi sobre
sua lógica que toda a visualidade barroca se constituiu a partir
do final do século XVI, irradiando-se da Península Itálica para

17
CARLA MARY S. OLIVEIRA
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
DA AMÉRICA PORTUGUESA

o restante da Europa ocidental e daí para as Américas portu-


guesa e espanhola e também alguns pontos da costa africana e
entrepostos comerciais asiáticos onde houve a presença ibérica,
principalmente a lusitana.
Para Fernando Rodrigues De La Flor, por exemplo,
a imagem tinha, no Barroco, um caráter ontológico, pois através
de sua potência semântica intrínseca e da herança cultural
que nela se inscrevia de forma sintética, se podia estabelecer
contato com um vasto e profundo campo delimitado por aquilo
que ele chamou de “caminhos do olhar” (DE LA FLOR, 2009, p. 6),
na verdade, um conjunto de processos de intelecção por meio
dos quais a realidade era reconstruída em termos de figuração,
criando um “Antigo Regime Visual”, como proposto por Gilles
Deleuze (2011, passim). Ora, a linguagem alegórica, mais do
que qualquer outra, prestava-se a uma explicação ontológica
do estar-no-mundo, pois permitia a tradução, em elementos
visuais, de conceitos abstratos e de ideias que, em linhas gerais,
se desejava exaltar ou reforçar nas práticas do rebanho de
fiéis no Novo Mundo. Mas antes de discutir de fato em que se
constitui a alegoria barroca propriamente dita e a kunstwollen5
em que estavam inseridos os artífices e artistas que produziam
as obras que hoje são reconhecidas como barrocas, cabe ainda
uma pequena digressão a fim de esclarecer um pouco mais as
coisas aos não especialistas: de onde vem o termo que repetimos
tanto, que imediatamente nossa cultura associa a um conjunto
de formas profusas e exuberantes, tecidos drapeados, volutas,

5  Literalmente, algo como “vontade da arte”, neologismo criado pelo


historiador da arte austríaco Aloïs Riegl em 1893. Para ele a kunstwollen
constitui-se no conjunto de afinidades formais e estilísticas na produção
artística de indivíduos oriundos de uma mesma época ou de uma mesma
região, abrangendo todos os campos culturais (RIEGL, 2002, p. 33-35).

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CARLA MARY S. OLIVEIRA
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
DA AMÉRICA PORTUGUESA

rocailles, céus tenebrosos e de nuvens carregadas, corpos contor-


cidos, uma enorme gama de personagens em atos de contrição
ou mesmo expiação dos pecados?
É interessante que se tenha em mente que a palavra
“Barroco” nasceu da imperfeição. Se chamava de “barroca”
a pérola imperfeita, de formato irregular e quase sempre de
tamanho exagerado, bem rara e, por isso, também bem cara,
que os ourives ibéricos comercializavam nos séculos XVI e XVII,
trazidas de seus entrepostos comerciais nas costas africanas
e da Oceania. Com tais pérolas peculiares, se faziam brincos e
pingentes muito cobiçados, pois era praticamente impossível
encontrar duas barrocas idênticas. Em 1694, foi com este sentido
que o termo apareceu no Dictionnaire de l’Académie Françoise:

BARROCA. Subst. fem. Se diz somente das pérolas que têm


uma circunferência fortemente imperfeita. Um colar de
pérolas barrocas6 (DICTIONNAIRE, 1694, p. 84).

Dezoito anos depois, o Vocabulário Portuguez e Latino do


Pe. Raphael Bluteau, publicado em Coimbra pelo Colégio dos
Jesuítas, também registrava o verbete com o mesmo sentido:

BARROCO. Barrôco. Pérola tosca, & desigual, que nem he


comprida, nem redonda. [...] igoalmente comprido. [...] chato de
huma banda, & redondo da outra (BLUTEAU, 1712, vol. 2, p. 58).

Na verdade, até mesmo na reedição revisada da obra de


Bluteau, publicada em Lisboa no ano de 1789, ainda persistia a

6  Texto original: “BAROQUE. S. f. Se dit seulement des perles qui sont d’une
rondeur fort imparfeite. Un collier de perles baroques”.

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CARLA MARY S. OLIVEIRA
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
DA AMÉRICA PORTUGUESA

mesma interpretação para o termo (BLUTEAU, 1739, vol. 1, p.


170), o que demonstra a persistência de seu uso entre os portu-
gueses em seu sentido original. É importante ter consciência
disso, pois, de fato, à época, muitos dos artífices e artistas da
América portuguesa que produziam a arte que hoje recebe o
rótulo de “Barroca” não a identificavam desse modo tampouco
tinham plena consciência de que reproduziam certas carac-
terísticas e padrões estéticos que surgiram do outro lado do
Atlântico, a não ser pelo fato de que seguiam alguns modelos
provenientes de gravuras europeias como inspiração para seus
esboços, nada mais do que isso.
No entanto, ao exercerem esta prática, a de reproduzir
modelos existentes em gravuras, tais artífices e artistas
estavam imersos, mesmo sem o saber, numa kunstwollen esta-
belecida, numa certa maneira de se compreender e de se colocar
no mundo que encontrava expressão por meio das obras que
produziam. Não que isso significasse uma transmissão auto-
mática dessa ambiência, desse contexto, da atmosfera em que
estavam imersos às obras, é claro, mas o repertório simbólico
e alegórico de que se utilizavam era condicionado, marcado,
moldado a partir da kunstwollen que partilhavam entre eles e,
de fato, era sobre este vocabulário que imprimiam sua subjeti-
vidade, sua personalidade, seus anseios e sua visão pessoal do
mundo que os cercava.
Nesse sentido é que se torna necessário reconstruir a
compreensão dos mecanismos simbólicos presentes nas represen-
tações alegóricas comuns a tantas imagens religiosas do Barroco.
O que no presente pode parecer apenas simples ornamentação
como folhagens, por exemplo, na verdade, se for constituído por
um conjunto de ramos de acanto, representava a vida eterna
ou a ressurreição dos santos. Um buquê de lírios brancos, que

20
CARLA MARY S. OLIVEIRA
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
DA AMÉRICA PORTUGUESA

atualmente pode parecer apenas um conjunto de flores ao obser-


vador desavisado, simbolizava a pureza da virgindade... Ou seja:
é preciso se conhecer os códigos alegóricos presentes em todos
os elementos e atributos das representações de santos, santas,
beatos, beatas e demais personagens sagrados que adornam
igrejas e seus altares para nos aproximarmos minimamente da
ambiência que se tinha na recepção de tais imagens se, de fato,
quisermos compreender melhor o significado que elas tinham
para aqueles que as admiravam quando foram feitas, para que se
tenha a dimensão das mensagens que carregavam, dos discursos
que transmitiam àqueles que as observavam em suas orações
diuturnamente, missa após missa, novena após novena, procissão
após procissão. De outro modo, o que se estaria fazendo seria
apenas cair na pior das armadilhas em que um historiador pode
se enredar: a do anacronismo, ao atribuir sentidos contempo-
râneos a objetos, imagens e artefatos de outras temporalidades,
produzidos em outros contextos e sob outros padrões sociais,
políticos, econômicos, religiosos ou culturais, destinados à
recepção de sujeitos que teriam uma compreensão bem diversa
daquela que se pode imprimir hoje a seu respeito.
Obviamente, a alegoria constituiu-se em discurso visual
cheio de significados bem específicos antes mesmo do Barroco. É
possível identificar a associação de imagens a conceitos abstratos
já no Egito antigo, na escrita hieroglífica e, no campo da litera-
tura, constituiu-se em recurso retórico da poesia na Antiguidade
greco-romana, “mimética, da ordem da representação, funcio-
nando por semelhança” (HANSEN, 2006, p. 8). No que se refere
ao universo cristão, os primeiros usos da alegoria remontam às
catacumbas romanas, quando das perseguições aos primeiros
conversos à nova fé, e eram utilizadas pinturas alegóricas nas
paredes, como peixes, pães, taças de vinho e pombas brancas, em

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CARLA MARY S. OLIVEIRA
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
DA AMÉRICA PORTUGUESA

alusão aos mistérios da eucaristia e da ressureição, para marcar


os locais de reunião e realização dos cultos clandestinos, cons-
tituindo-se naquilo que hoje se denomina de arte paleocristã.

Figura 1 – Pão e Peixe Eucarísticos, arte paleocristã,


séc. III (alegoria representando Jesus Cristo).

Detalhe de afresco na Cripta de São Gaio e Eusébio,


Catacumbas de São Calixto, Via Ápia, Roma, Itália.
Fonte: Carla Mary S. Oliveira, jun. 2008.

A acepção que aqui interessa é a do uso de imagens reli-


giosas com sentido alegórico e divino, a de Allegoria in Factis, ou
seja, aquela de cunho cristão, surgida ainda na Idade Média,
em que se interpretavam personagens e acontecimentos das
histórias bíblicas como escritura divina, demonstrada nos fatos,
nos acontecimentos, por desígnio divino (HANSEN, 2006, p. 226) e,
por isso mesmo, como um relato inquestionável e que deveria
servir de exemplo aos fiéis e perseguido como modelo de conduta
em suas vidas. É esse este o sentido da alegoria barroca. Por meio
da kunstwollen, em que estavam imersos os artífices e artistas, se
produzia uma arte alegórica plena de sentidos religiosos, mas que

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A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
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dialogava constantemente com um público que a compreendia,


pois seus códigos faziam parte de sua vivência cotidiana.
Essa intimidade com a linguagem alegórica na cultura da
Europa ocidental e, por extensão, entre os colonos da América
portuguesa não existia, é claro, por acaso. Surgira a partir de uma
série de fatores que contribuíram, ainda no século XVI, para sua
popularização. Entre eles, estavam: o aumento da circulação de
impressos, sem dúvida, e também a publicação de obras como a
Emblemata, de Andrea Alciati, em 1531; e a Iconologia de Cesare Ripa,
em 1593 – especialmente depois de sua segunda edição, ilustrada,
em 1603 e reedições subsequentes (OLIVEIRA, 2014, p. 21-28). Tanto
a Emblemata quanto a Iconologia associavam imagem e conceitos
abstratos a versos latinos por meio da metáfora alegórica, o que, de
certa forma, franqueou o uso e maior familiaridade com este tipo
de linguagem fora dos círculos mais literatos, como ocorria antes
na Antiguidade e na Idade Média. A popularização da alegoria no
ambiente religioso dos templos barrocos foi uma consequência
natural desse processo, uso que, após a Reforma Católica, passou,
inclusive, a ser estimulado como meio de persuasão catequética,
reforçado no decreto tridentino de 3 de dezembro de 15637 e em
diversos tratados influenciados pelo Concílio8. Explicitamente,

7  “Decreto sobre a invocação, a veneração e as relíquias dos santos e sobre


as imagens sagradas”, 25ª sessão do Concílio de Trento, 3 dez. 1563 (apud
DENZINGER, 2007, p. 459-461).
8  Dentre os mais influentes tratados surgidos após o Concílio de Trento,
elaborados por religiosos e que deveriam servir de guia para artistas na
elaboração de imagens sacras, é possível citar: Discorso intorno alle imagine
sacre et profane, escrito pelo cardeal Gabriele Paleotti – uma das figuras chave
do concílio –, que foi publicado em Bolonha, em 1582 (PALEOTTI, 2012); e De
pictura sacra, de 1621, do cardeal Federico Borromeo, arcebispo de Milão,
colecionador de arte e mecenas, sobrinho do cardeal Carlo Borromeo,
secretário de várias das sessões do concílio (BORROMEO, 2010).

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no “Decreto sobre a invocação, a veneração e as relíquias dos santos


e sobre as imagens sagradas”, pode-se ler:

Os bispos ensinem diligentemente que, por meio das histórias


referentes aos mistérios da nossa redenção expressas em
pinturas ou de outros modos, o povo é instruído e confirmado na
comemoração e na assídua contemplação dos artigos da fé; e que
de todas as sagradas imagens tira grande fruto, não só porque
o povo recorda os benefícios e os dons que lhe foram conferidos
por Cristo, mas também porque entram pelos olhos dos fieis os
milagres e os exemplos salutares de Deus por intermédio dos
Santos, para que agradeçam a Deus por eles, modelem a vida e
os costumes à imitação dos Santos e sejam incentivados a adorar
e amar a Deus e a cultivar a piedade. Se alguém ensinar ou crer
coisas contrárias a estes decretos: seja anátema (“Decreto sobre
a invocação...”, 1563, apud DENZINGER, 2007, p. 460).

As imagens religiosas cristãs barrocas, portanto, deve-


riam não apenas instruir mas persuadir, inculcar de fato um
comportamento, uma maneira de se portar frente aos desafios
das inúmeras tentações do mundo profano. Era preciso cultivar
a virtude, resistir às tentações, expiar os pecados, e o modelo
deveria vir por meio das imagens sacras. Para a fé irradiada
de Roma, mesmo que filtrada pelos desígnios e interesses do
Padroado lusitano, era essa a determinação. Apesar disso,
como quase tudo na vida humana, nem sempre as regras,
por mais claras e rígidas que sejam, são seguidas à risca. Há
sempre frestas por meio das quais é possível se construir novas
práticas, ainda mais quando há um oceano inteiro e muitas
milhas a distanciar o olhar daqueles que devem fiscalizar o
bom cumprimento de tantos ditames, de tantas prescrições...

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A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
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Uma das maneiras mais fáceis de perceber a naturalidade


do discurso alegórico na cultura barroca talvez seja o campo
das representações dos continentes na cartografia. Por ser uma
área que cresceu enormemente a partir do século XVI com o
desenvolvimento da imprensa e consequente incremento da
circulação de gravuras e impressos a baixo custo, a cartografia
se tornou uma arte que caiu no gosto popular não apenas por
questões comerciais mas também sentimentais. Era comum que
os marinheiros, soldados e mercenários que trabalhavam para
as companhias comerciais como a VOC9 e a WIC10, ao dar baixa
em seus serviços, guardassem um ou mais mapas das terras por
onde andaram como recordação de suas aventuras, do mesmo
modo que o Conde Maurício de Nassau fez com as paisagens
retratadas por Frans Post e nativos pintados por Albert Eckhout.
Nestes mapas e nos atlas, usualmente, apareciam também
personificações alegóricas dos continentes na decoração das
pranchas ou páginas de abertura de seções:

9  Vereenigde Oost-Indische Compagnie – Companhia das Índias Orientais,


fundada em Amsterdã em 1602, por investidores neerlandeses interessados
em garantir o exclusivismo do comércio com as ilhas da Oceania.
10  West-Indische Compagnie – Companhia das Índias Ocidentais, criada nos
moldes da VOC em 1621, com o objetivo de garantir e organizar os interesses
comerciais das repúblicas unidas em suas possessões atlânticas.

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Figura 2 – O Omnium pertence a um tipo de publicação muito


comum a partir do século XVI: o de obras com curiosidades
sobre terras e povos distantes. No caso, a obra traz 112 pranchas
em formato in folio, com ilustrações detalhadas das vestes
encontradas nos 4 continentes conhecidos à época, que são
representados alegoricamente em sua folha de rosto.
Fonte: Abraham de Bruÿn, folha de rosto de Omnium pene Europae,
Asiae, Aphricae atque Americae gentium habitus, 1581. Gravura a talho
doce sobre papel, colorida à guache; 27,31 x 35,56 cm; The Doris
Stein Research and Design Center for Costume and Textiles,
The Los Angeles County Museum of Art, Califórnia, EUA.

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Figura 3 – Gravura a talho doce sobre papel, aquarelada; 54,6 X 40,64 cm.
Atlas Van Loon, Nederlands Scheepvaartmuseum, Amsterdam, Holanda.
Mapa do 1º volume do Atlas Van Loon, comissionado por Frederik
Willem van Loon na segunda metade do século XVII e que consiste
de uma coleção de 18 volumes com mapas avulsos e atlas de diversos
cartógrafos, registrando todo o mundo conhecido à época. Note-se
as alegorias dos 4 continentes adornando o rodapé da página.
Fonte: Joan Blaeu, Nova et Accvratissima Totivs Terrarvm Orbis Tabvla, 1662.

O Barroco da América como construção


de hibridismos culturais

Talvez a mais comum entre as características do Barroco


nas inúmeras paragens em que se desenvolveu tenha sido sua
adaptabilidade aos materiais locais. Ademais, houve a absorção

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A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
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de temáticas e motivos autóctones e sua reelaboração, amalga-


mando-os ao discurso católico pós-tridentino, especialmente
nas Américas espanhola e portuguesa.
Cada um a seu modo, tanto Peter Burke quanto Serge
Gruzinski se voltaram a esse processo de contato/confronto
cultural entre europeus e outros povos a partir das expansões
da Idade Moderna, preocupados em compreender os resultados
daí decorrentes. Enquanto Burke se voltou à ideia de traduções
nos contatos culturais11, não apenas em regiões distantes dos
maiores centros urbanos na própria Europa mas também em
outros espaços aonde chegava a cultura europeia, suscitando
as mais variadas reações (BURKE, 2010, p. 77-99); Gruzinski
desenvolveu a concepção de que se construíram, no Novo Mundo,
hibridismos culturais12. Ou seja, ao invés da visão tradicional que
interpretava a cultura europeia como um conjunto de práticas
que teria sufocado, suprimido e suplantado as culturas autóc-
tones, impondo-se por meio da força das armas e do capital
mercantil, Gruzinski vislumbrou um processo muito mais
complexo e subterrâneo, oculto logo abaixo da superfície dos
fatos e acontecimentos mais óbvios, marcado pela resiliência e
no qual os elementos trazidos d’além-mar se plasmavam ao meio
local para daí surgir uma terceira coisa, nova e peculiar, cheia de

11  Ver, em especial, a obra organizada em conjunto com R. Po-chia Hsia,


A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna (BURKE; HSIA, 2009).
12  Gruzinski desenvolve a ideia de hibridismo cultural em mais de uma de
suas obras. Dentre as principais destacam-se, sem dúvida, A colonização do
imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol – séculos
XVI-XVIII (2003), de 1988; A guerra das imagens: de Cristovão Colombo a ‘Blade
Runner’ (1492-2019) (2006), de 1990; As quatro partes do mundo: história de uma
mundialização (2014), de 2004; Que horas são... lá do outro lado? América e Islã no
limiar da Época Moderna (2012), de 2008; e A águia e o dragão: ambições europeias
e mundialização no século XVI (2015), de 2012.

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sincretismos e circunscrita ao espaço colonial sob domínio das


coroas ibéricas. Uma cultura híbrida, portanto, que nem era mais
a indígena tampouco era de todo idêntica à europeia, pois tinha
particularidades locais já que incorporara diversos elementos
“selvagens” ou “bárbaros” ao seu escopo.
Exemplos desse amálgama aparecem tanto no México
seiscentista – onde sibilas e centauros da mitologia pagã grega,
bem como deidades e guerreiros nativos decoram paredes de
prédios civis e religiosos – como no litoral nordeste da América
Portuguesa, onde sereias e fênix aparecem na talha de um
altar setecentista. Em Minas Gerais, existem, em diversas
igrejas, símbolos de religiões de raiz africana escamoteados
na decoração de altares laterais financiados por irmandades
aparentemente insuspeitas em sua fé aos preceitos cristãos.

Figura 4 – Sibilas em Procissão Equestre, c. 1580.


Afresco, Sala das Sibilas, Casa do Deão da Catedral, Puebla, México.
Fonte: acervo da autora, 2014.

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Figura 5 – Querubins, Aves do Paraíso, Centauras e


Macacos; detalhe de friso decorativo, c. 1580.

Afresco, Sala das Sibilas, Casa do Deão da Catedral, Puebla, México.


Fonte: acervo da autora, 2014.

Frutos tropicais em fachadas de cantaria de pedra


calcária em igrejas e portadas barrocas no litoral do Nordeste
brasileiro, bem como na iconografia decorativa espalhada
por vários recantos da América portuguesa fizeram com que,
aliás, se popularizasse, a partir de meados do século passado,
a expressão Barroco Tropical para definir esse modo de inter-
pretar os cânones visuais da estética barroca que atravessara
o Atlântico, adaptando-a ao gosto local e introduzindo em seu
discurso visual elementos que a aproximassem à ambiência
da colônia e ao público a que se destinava a mensagem que
engendrara sua própria essência13.
Mas não apenas a flora – com seus cajus, abacaxis e
pitombas – aparece na decoração das igrejas barrocas. É
possível também identificar indígenas e mestiços em diversos
templos, de norte a sul nas paragens que compunham o domínio
luso na América. Eles estão presentes tanto nas pinturas ou

13  A respeito da presença de motivos tropicais na iconografia colonial


brasileira, especialmente a religiosa, veja-se artigo de Eduardo Luís Araújo
de Oliveira Batista nos Anais do Museu Paulista (2017, vol. 25, n.1).

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entalhes anônimos de sacristias e altares no Nordeste como


também obras de artistas mais conhecidos, como Manoel
da Costa Athayde, em Minas Gerais; ou Mestre Valentim,
no Rio de Janeiro; em fachadas amplamente divulgadas em
cartões postais e campanhas turísticas, como a dos Terceiros
Franciscanos, de Salvador; como em outras mais ermas, como
a do templo carmelita, em Lucena, no litoral norte da Paraíba.
Num primeiro momento, o que disso tudo se pode inferir, tanto
se a prospecção histórica for feita a partir de uma redução de
escala como também de um panorama mais abrangente, é que
essa incorporação de elementos locais se dava, obviamente,
pelo fato de os artistas e artesãos que as produziam serem eles
mesmos membros desta sociedade colonial, profundamente
perpassada por contradições, desenraizamentos, disputas
e interesses dos mais variados tipos. Muitos deles, inclusive,
sabidamente viveram os dilemas e contradições coloniais em
sua própria vida pessoal – por serem pardos ou mesmo negros,
ou ainda filhos bastardos, ou terem relações amorosas com
forras ou escravizadas – ou seja, não é de se espantar que, de
um modo ou outro, uma realidade tão complexa se deixasse
entrever na arte Barroca produzida na América portuguesa.

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CARLA MARY S. OLIVEIRA
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Figura 6 – Decoração com frutos tropicais (abacaxis


e cajus), primeira metade do século XVIII.

Fachada da Igreja do convento carmelita de Nossa


Senhora da Guia, Lucena, Paraíba.
Fonte: Carla Mary S. Oliveira, 2014.

Figura 7 – Fachada da Igreja da Ordem Terceira de São


Francisco da Penitência, 1705, Salvador, Bahia.
Fonte: Carla Mary S. Oliveira, jun. 2007.

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O feminino como resistência do colonizado:


a Virgem Maria mestiça

Em tempos de empoderamento das mulheres, obvia-


mente, certos temas chamam mais a atenção do que outros.
Não haveria de ser diferente nas searas de Clio, ela mesma musa
da História. No entanto, sem querer tergiversar a argumentação
central deste breve texto, já faz algumas décadas que os pesqui-
sadores do Barroco na América portuguesa vêm destacando
as maneiras pelas quais é possível perceber a presença da
população local nas representações iconográficas, em muitos
casos chegando mesmo a configurar claras transgressões aos
cânones pós-tridentinos, especialmente no que se refere às
imagens da Virgem Maria.
Já não há dúvidas de que Manoel da Costa Athayde, o
grande artista mineiro nascido na freguesia de Mariana, em
1762, branco e filho legítimo de um militar, manteve-se solteiro
por toda a vida, mas se relacionou e teve seis filhos naturais
com Maria do Carmo, parda forra (CAMPOS, 2007, p. 74-78), e
utilizou não somente ela mas também parte de sua prole como
modelos em diversas de suas obras, entre elas, duas das mais
famosas: a N. Sra. da Porciúncula do forro da nave da Igreja
de São Francisco de Ouro Preto; e a N. Sra. da Conceição, do
forro da nave da Igreja Matriz de Santo Antônio de Ouro Branco.
Embora a motivação para a representação mestiça da Virgem
por parte de Athayde possivelmente passasse pelo interdito
social ao seu casamento com uma ex-escravizada, com quem
parece que nunca coabitou, já que, como militar e membro de
irmandades, devia seguir as “ordenações sinodais que exigiam
[...] uma vida sem mácula, ou seja, que fossem solteiros, casados,
mas nunca amasiados” (CAMPOS, 2007, p. 76-77). Já que havia o

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A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
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impedimento social a que assumisse, de fato, o relacionamento


com Maria do Carmo, casando-se com ela, Athayde a colocava
sobre a cabeça de todos seus confrades e contratadores, nada
menos como a Virgem Maria! Sem dúvida, trata-se de uma forma
bem inusitada de impor-se não apenas em suas vontades mas
acima de tudo em suas transgressões, e num espaço sagrado,
representando nada menos do que a figura alvo das devoções
mais pias e fervorosas.

Figura 8 – Manoel da Costa Athayde, Nossa Senhora da


Conceição e Santo Antônio cercados de anjos e querubins, c. 1825-
1826. Detalhe do forro da nave, medalhão central, Igreja
Matriz de Santo Antônio, Ouro Branco, Minas Gerais.
Fonte: Carla Mary S. Oliveira, nov. 2009.

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Figura 9 – Manoel da Costa Athayde, Nossa Senhora da Porciúncula


em apoteose, c. 1810-1812. Detalhe do forro da nave, medalhão
central, Igreja de São Francisco, Ouro Preto, Minas Gerais.
Fonte: Carla Mary S. Oliveira, ago. 2009.

Se as mestiçagens e hibridismos se mostram por motivos


sentimentais, como parece ser o caso de Athayde, é possível
buscar as mesmas motivações em ocorrências semelhantes
em outros artistas do Barroco na América portuguesa e, mais
ainda, tentar perceber até mesmo outras possibilidades de
interferências culturais nessas representações da Virgem.
A resistência do colonizado, nesse caso, foi, sem dúvida, benefi-
ciada pela distância, pelo fato de as representações construídas
estarem nas dobras periféricas do Império luso.
Um bom exemplo do esgarçamento deste limite pode ser
percebido no Recife, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição
dos Militares: em seu teto, repetindo-se entre diversas pinturas
distribuídas em nichos de seu forro, uma Virgem Maria de

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pele mestiça figura numa muito especial, representando-a


grávida, sendo abençoada pelo Espírito Santo e por Deus Pai.
Dois querubins mulatos ladeiam seus pés e um anjo, também de
pele escura, de asas abertas, aparece ao seu lado, trazendo um
disco brilhante com o cristograma IHS, representando o nome
de Jesus e anunciando seu nascimento próximo.
O autor da pintura, João de Deus e Sepúlveda, foi extre-
mamente ativo em Recife entre 1732 e o final do setecentos,
prestou serviços para diversas igrejas e irmandades, inclusive
para os terceiros dos carmelitas e dos franciscanos (ACIOLI,
2008, p. 267-271). Utilizava modelos iconográficos europeus,
pois é certo que consultou gravuras para executar os serviços
na Igreja de Santa Tereza da Ordem Terceira do Carmo, como
destacou recentemente André Cabral Honor14, ou seja, estava
atualizado com os cânones pós-tridentinos e com a kunstwollen
barroca. Apesar de parecer que Sepúlveda estava a transgredir
normas que certamente conhecia, de fato, não inovava na repre-
sentação da ideia do bendito fruto, pois tal forma de apresentar
a Virgem com seu rebento divino no ventre já existia na Idade
Média e chegava mesmo a ser popular, figurando em pinturas
murais anônimas em pequenas igrejas e capelas feudais da
Europa15. O fato de que ele use a mesma representação no Recife
setecentista nos remete à possibilidade não só de circulação
de informações e modelos europeus, reafirmando as concep-
ções mais recentes de que os artífices e artistas da América

14  Em palestra apresentada na Mesa Redonda “Saberes, poderes e globa-


lização”, da qual também participei, no Colóquio Internacional “Poder,
Globalização e Território nas Sociedades Ibero-Americanas: da Modernidade
à Contemporaneidade”, evento realizado na Universidade de Évora, em
Portugal, entre 23 e 25 de julho de 2018.
15  Sobre estas representações medievais, ver: MEGYEŠI, 2017.

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A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
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portuguesa não estavam isolados da cultura artística europeia,


mas também de que havia uma permanência de modelos cujas
origens podem remontar até mesmo aos séculos XIII e XIV,
o que poderia ser explicado pela presença, por exemplo, das
bibliotecas de ordens conventuais como as dos franciscanos
e dos carmelitas no Pernambuco colonial e da atuação desses
frades na instrução de primeiras letras, o que teria franqueado
o acesso de Sepúlveda a tais acervos e informações16.

Figura 10 – João de Deus e Sepúlveda, Nossa Senhora e o Bendito


Fruto, têmpera sobre madeira, c. 1777; medalhão secundário
na lateral esquerda do forro da nave, Igreja de Nossa Senhora
da Conceição dos Militares, Recife, Pernambuco.
Fonte: Carla Mary S. Oliveira, jul. 2008.

16  Sobre as bibliotecas dos franciscanos em Pernambuco e sua atuação na


instrução no XVIII, ver: Oliveira (2016).

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A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
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Figura 11 – Anônimo, Visitação da Virgem Maria, c. 1377-1400.


Pintura mural, detalhe, parede norte do presbitério,
Igreja de Kocel’ovce, Eslováquia.
Fonte: Dávid Doroš, 2017.

Figura 12 – Anônimo, Visitação da Virgem Maria, c. 1377-1400.


Pintura mural, detalhe, parede norte do presbitério,
Igreja de Ochtiná, Eslováquia.
Fonte: Dávid Doroš, 2017.

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A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
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Mas não apenas artistas conhecidos representaram a


Virgem com pele escurecida na América portuguesa. Se Athayde
e Sepúlveda deixaram seus nomes registrados em contratos e
livros de atas e pagamentos de irmandades, freguesias, paró-
quias e igrejas para as quais prestaram serviços, e podemos
ligar a eles e datar tais obras, há também os artífices e artistas
anônimos, até mesmo dentro de casas conventuais, o que
demonstra que, mesmo na estrutura eclesiástica, o fato de se
estar na periferia do Império luso dava certa permissividade à
interpretação dos cânones pós-tridentinos. Isso fica claro em
imagens como aquela que está no nártex da Igreja conventual
franciscana da Paraíba, representando a Virgem Maria como
rainha e mãe dos frades menores, provavelmente executado
pelos próprios religiosos ou então por artífices menores contra-
tados no Recife, já que, à época, a Paraíba estava anexada à
capitania de Pernambuco.
O que importa, portanto, é que a imagem traz um tema
extremamente caro aos franciscanos: aquele que mostra seus
membros fundadores, os primeiros irmãos que seguiram
Francisco, Clara e os papas de origem franciscana sendo
protegidos pela Virgem Maria. No entanto, esta Virgem tem
não apenas a pele mais escura, o que poderia ser simplesmente
explicado pela oxidação de tintas e vernizes, mas também seus
traços faciais têm características mestiças e seus cabelos são
ondulados, ou seja, os modelos de representação física usual-
mente utilizados para a Virgem Maria foram deixados de lado
neste caso, mesmo se tratando de uma casa religiosa, e sendo
uma pintura executada por religiosos ou por artífices traba-
lhando sob sua supervisão direta. Veja-se bem: não se trata
apenas da cor da pele, mais escura, que poderia ser facilmente
explicada pela oxidação dos materiais utilizados na execução

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CARLA MARY S. OLIVEIRA
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
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da pintura sobre o forro de madeira do nártex, mas os traços da


face da Virgem Maria ali retratada naquela obra reproduzem o
tipo físico que comumente se encontrava nas ruas lamacentas
da Paraíba colonial.
A Virgem do convento franciscano tem sobrancelhas,
lábios e nariz grossos, era o rosto comum das mulheres comuns
que frequentavam, nos dias de festa, as novenas, os batizados,
os casamentos e outras efemérides realizados na igreja conven-
tual, quando ela se abria aos fiéis da sede da capitania.

Figura 13 – Regina Immaculata et Mater Frarum Minorum, madeira


policromada, 2ª metade do século XVIII; parte central do nártex
da Igreja do Convento de Santo Antônio, João Pessoa, Paraíba.
Fonte: Carla Mary S. Oliveira, 2015.

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Ao modo de um arremate:
tentando juntar os fragmentos

De modo geral, o olhar que costumeiramente é lançado


para os templos barrocos espalhados pelo território que um
dia constituiu a América portuguesa deixa, muitas vezes, de
considerar diversos aspectos que apresento neste texto. Minha
intenção foi, justamente, tentar mostrar que ao prestar atenção
aos detalhes, ao buscar o significado de alegorias, decorações
e ornamentos que faziam sentido no momento em que tais
pinturas, esculturas, talhas e azulejaria foram feitas para
ornar esses espaços, se está, no sentido proposto por Roger
Chartier, “ouvindo os mortos com os olhos”17, ou seja, se tenta
construir, mesmo que de forma incompleta e fragmentada, uma
aproximação que busca compreender o contexto de produção,
circulação e recepção de uma arte que surgiu ainda imbuída
daquela aura benjaminiana pré-revolução industrial.
Nesse sentido, é claro, e ainda seguindo essa inspiração
de Chartier e Benjamin, estou trabalhando com um ruído que
vem dos mortos, uma ruína que ainda brilha com suas cores
e formas mas que, inadvertidamente, perdeu quase todo seu
sentido alegórico e simbólico original para praticamente todos
os fiéis que hoje se prostram a rezar em frente a elas. Muitas
sequer continuam sendo reconhecidas como sagradas, o que
não é o caso da Virgem Maria, obviamente, mas se existem
santos e santas, beatos e beatas que não têm mais quem os

17  Sobre essa possibilidade de o historiador buscar em suas fontes – sejam


elas escritas ou visuais – o discurso de outras temporalidades, especialmente
aquele advindo de sujeitos silenciados e marginalizados, Chartier desen-
volveu brilhantemente suas implicações em sua aula inaugural no Collège
de France. Ver: Chartier (2014, p. 19-51).

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CARLA MARY S. OLIVEIRA
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
DA AMÉRICA PORTUGUESA

reconheça como tal, que lhes dirija orações e faça súplicas,


será que sobre eles se abaterá o mesmo fenecimento que tanto
temiam os deuses gregos? Restará a elas ser apenas simulacro
a servir de souvenir às insaciáveis hordas de turistas?
Não se trata apenas de pensar a permanência do culto,
e não é esse o sentido que me interessa, apesar da minha
digressão anterior: meu incômodo reside no fato de que todo
esse este conjunto patrimonial e artístico, que deveria ajudar
a construir um sentido de identidade e pertença a quem os
frequenta hoje, de quem habita suas vizinhanças, só serve de
ilustração e referência para um discurso religioso externo aos
sujeitos que com eles convivem, do qual eles não participam e
que quase sempre lhes é imposto como algo alheio, enquanto
entendo que, na América portuguesa, era possível se perceber
a interferência dos sujeitos comuns no discurso visual que era
engendrado para figurar em tais espaços. Resta a nós, pesqui-
sadores, lançar questões a tais imagens, fazê-las murmurar lá
de longe suas histórias...

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CARLA MARY S. OLIVEIRA
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
DIVINO NA CULTURA VISUAL BARROCA
DA AMÉRICA PORTUGUESA

Referências

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A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
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A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
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CARLA MARY S. OLIVEIRA
3
A VIRGEM DE GUADALUPE
INFLUÊNCIA DO DISCURSO BARROCO
NA CONSAGRAÇÃO DA SUA IMAGEM
COMO FUNDADORA DE UMA IDENTIDADE
NACIONAL EM NOVA ESPANHA (SÉCULOS XVII-XVIII)

Elisabeth Fromentoux Braga


Juan Pablo Martín Rodrigues

Introdução

Andando pelas ruas da capital mexicana, um turista certamente


se deparará em cada esquina com a imagem da nossa Senhora
de Guadalupe, seja em murales ou edifícios religiosos, seja em
revistas ou propagandas, e provavelmente carregará a mala
com bugigangas e lembranças à efígie da Guadalupana. Imagens
que, na atualidade, no nosso imaginário, percebem-se como
totalmente inseparáveis da cidade – e da nação – mexicana,
intrinsecamente ligadas à sua beleza barroca. Em Grandeza
Mexicana (1997), Balbuena, ao descrever a Cidade do México
como ideal cosmopolita, valorizava o distinto, o diferenciado
em relação à Península, exaltando a modernidade e a riqueza
da metrópole colonial. Esboçava, dessa forma, um sentimento
que pode se intuir como de incipiente protonacionalismo. Esse
A VIRGEM DE GUADALUPE

orgulho da cidade reaparecerá alguns anos depois em obras de


autores criollos, tais como Sigüenza1.
Não seria apenas a singular configuração arquitetônica
barroca da Cidade do México que fundamentara o seu prestígio
como “cabeça” do vice-reinado, mas a extraordinária divul-
gação da onipresente imagem guadalupana e a conseguinte
devoção ao culto que lhe fora aparelhado que consagrariam de
forma definitiva e imparável a capital da Nova Espanha como
uma terra de milagres, constituindo, assim, o que poderia se
chamar de terra segura. Por sua vez, proclamou-se a Virgem de
Guadalupe como Santa Padroeira da Cidade do México em 1737
e, dez anos depois, passaria a ser de todo o vice-reino. A origem
do culto guadalupano se encontra no século XVI, porém, só a
partir do século XVII se firmaria e propagaria decisivamente
por meio das narrativas que colocariam à tona a imagem da
Virgem, explicando-a e lhe outorgando legitimidade.
Num primeiro momento, às imagens milagrosas foi-lhes
destinado um fim evangelizador, assim como um meio de
eliminação da idolatria dos indígenas, embora não se conse-
guisse conciliar uma visão unânime sobre Guadalupe entre as
ordens religiosas presentes na Colônia. Seria a partir de uma
verdadeira Guerra das Imagens (GRUZINSKI, 1991) que uma delas,
a da Virgem de Tepeyac (Guadalupe), adquiriria uma dimensão
consistente como fator de coesão social, logrando finalmente a
adesão ao seu culto de todas as camadas dessa sociedade.
Não se deve pensar que teria se entronizado essa imagem
miraculosa apenas sobre a base da mera representação pictórica,

1  Neste texto, será utilizado o termo castelhano “criollo” como característico


e definitório da classe e da etnia integrada apenas pelos descendentes brancos
dos espanhóis, que, por serem americanos, não podiam usufruir dos cargos
públicos, reservados com exclusividade aos peninsulares de nascimento.

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JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

mas através da sua associação às construções devindas de narra-


tivas – notadamente por meio dos sermões – que a partir do
século XVII se cristalizaram, generalizando-se o culto à Virgem
de Guadalupe. A trama, tecida mediante textos orais e escritos,
viria, então, conferir sustentação semiótica à imagem. De certa
forma, a imagem criou o mistério e o texto o elucidou. Desse
modo, a “Imagen de la Virgen María” (1648) de Miguel Sánchez que,
segundo Chávez Bárcenas (2006), seria o que primeiro funda-
mentara e legitimara o culto guadalupano, constituiria a base
simbólica sobre a qual se erigiriam os numerosos sermões, com
o caraterístico tom oratório da época.
Pode-se identificar, nesses textos, o discurso barroco
determinante não somente para divulgar o milagroso e
despertar o fervor ao redor da estampa mas também – e
principalmente – para traduzir esse signo imagético em
termos entendíveis para a sociedade colonial. Dessa forma,
esse discurso, simbólico e emblemático, além de embasar
um mito ou um culto, permitiria, como veremos a seguir,
a adesão quase unânime de todos os grupos étnicos presentes
na Cidade do México daquela época, gerando um sentimento
de união, necessário para constituir essa sociedade como
elemento de diferenciação da metrópole. Essa imagem da
Virgem, recuperada e americanizada já como estímulo e
resultado dos primeiros sentimentos nacionais, será aquela
que os movimentos libertadores do século XIX se apropriaram
definitivamente, utilizando-a até mesmo como emblema nas
próprias bandeiras de Independência, unânime e configurador
de uma identidade coletiva.

ELISABETH FROMENTOUX BRAGA 49


JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

Virgem de Tepeyac:
origem de um mito

Desde a época pré-hispânica, o Monte de Tepeyac


constituiu-se como centro privilegiado de devoção religiosa
para a população do Valle de México. Era o santuário de uma
importante divindade náhuatl, deusa da terra e da fertilidade,
chamada Coatlicue, que também seria venerada posteriormente
como Tonantzin (“nossa mãe”), nome que lhe fora assignado
pelas comunidades náhuatl. Nos primórdios da Conquista, esse
templo fora destruído pelos franciscanos, que estavam envol-
vidos em uma verdadeira “Guerra das Imagens” – como sublinha
Gruzinski (1994) – de modo que se encontravam focados na prio-
ridade de destruir qualquer ícone representativo de entidades
sobrenaturais americanas, considerando sua adoração como
idolatria e ameaça à completa cristianização dos índios.
Surpreendentemente, produz-se uma virada nessa estra-
tégia, quando, por volta dos anos 1530 e sabendo da importância
religiosa desse santuário para os indígenas, resolveu-se manter
uma pequena capela no lugar com uma imagem de Nossa
Senhora. A Virgem de Guadalupe (nome que lhe seria conferido
mais tarde) parece ter dado continuidade à deidade Tonatzin. Com
isso, os indígenas continuaram a dirigir-se massivamente para
esse lugar, com aparente devoção à imagem cristã, mas, de fato,
perpetuando uma tradição pré-hispânica. Alguns anos depois,
não somente os índios iriam venerar a imagem da Virgem Maria,
a devoção tinha-se estendido também à sociedade criolla “que
apenas se esbozaba [y se dirigía] al sanctuario en peregrinación
(“romería”) para ahí rendir culto a una Virgen pintada, Nuestra
Señora de Guadalupe” (GRUZINSKI, 1991, p. 104).

ELISABETH FROMENTOUX BRAGA 50


JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

Lois Parkinson Zamora (2011) defende que, nesse caso,


não nos deparamos exatamente com uma guerra das imagens
como postulara Gruzinski, mas com um processo de hibridização
cultural. Isso poderia explicar a inicial surpresa que desperta a
repentina troca na estratégia evangelizadora dos franciscanos.
Para os povos náhuatl, as imagens não constituem apenas
representação mas também o receptáculo e a própria entidade
divina. Entidades que mudam constantemente de atributos e
formas numa metamorfose cíclica seriam o ponto chave para
compreender a disposição dos nativos mexicas, toltecas, olmecas
e as demais tribos tributárias para adorar diversas efígies:

Como Quetzalcóatl, las más de doscientas deidades del


panteón mesoamericano cambian constantemente de
nombres, lugares, roles y apariencias; son fuerzas espirituales
más que dioses individualizados. Sus imágenes cambian de
acuerdo con la situación, el narrador, el contexto cultural,
y esta capacidad metamórfica necesariamente aplaza la
definición; los avatares no son innumerables, pero tampoco
existe un catálogo de atributos fijos, porque los dioses
mesoamericanos son múltiples y volátiles. Los límites entre
las formas humanas, animales y naturales son permeables; su
referente es la plenitud del ser, no la identidad idiosincrática
(PARKINSON ZAMORA, 2011, p. 12).

Deve-se entender, portanto, a mudança de estratégia


como algo que deve ter intuído ou mais provavelmente conhe-
cido com certeza, depois das profundas pesquisas etnográficas
dos franciscanos – desde Sahagún a Motolínia – e não é em vão
que a obra desses fenomenais pesquisadores houvesse conferido
às imagens um papel tão destacado.

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JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

Segundo a tradição oral mexicana, no ano 1531, a Virgem


Maria teria feito aparição no cerro de Tepeyacao ao índio Juan
Diego Cuauhtlatoatzin em não menos de quatro ocasiões e
uma vez ao seu tio Juan Bernardino. O fato narrado por Diego
posteriormente seria descrito em um manuscrito chamado
Nican Mopohua, redigido em náhuatl, com caracteres latinos, por
um indígena letrado chamado António Valeriano (1522-1605).
Esse relato, provavelmente produzido entre 1550 e 1560, seria a
base da transmissão da fé cristã, através da difusão do culto a
Nossa Senhora de Guadalupe cuja devoção começara a primar
a Igreja Católica, almejando consolidar-se de maneira firme em
terras Novo-hispanas (O´GODMAN, 1986, p. 53-61). Contudo, a
aceitação à devoção de Nossa Senhora não seria unânime no
seio da Igreja Católica de Nova Espanha. Assim, se, por um lado,
o Bispo Montúfar foi decidido defensor da expansão da crença
na Virgem de Guadalupe, considerando-a como modo para
fortalecer a instituição no território, por outro lado, figuras,
como Francisco Bustamante, acusaram o prelado de perpetuar
impiamente uma religiosidade anterior à Conquista. Esse não foi
o único detrator do culto guadalupano, como sinalizara Alfonso
Junco (2008, p. 56):

El español don Juan Bautista Muñoz, el regio montano Fray


Servando Teresa de Mier que fluctuó entre una apología
exorbitante y una impugnación oportunista, y don Joaquín
García Icazbalceta, que reprodujo las argumentaciones de los
dos precedentes, reforzó la lista de autores contemporáneos
a la aparición que no hablan de ella, y adujo una información
hasta entonces desconocida, hecha en 1556 por el Ilmo. Señor
Montúfar, sucesor inmediato de Zumárraga, sobre un sermón
antiguadalupano de P. Francisco Bustamante.

ELISABETH FROMENTOUX BRAGA 52


JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

Apesar dessa ferrenha oposição por parte de alguns à


devoção à Virgem de Guadalupe, o fervor religioso cresceu de
maneira exponencial e atingiu completamente a população da
Cidade do México como um todo: espanhóis, criollos, mestiços
e indígenas se uniram em torno do culto à imagem milagrosa.
A Virgem de Guadalupe se constituiu então como mito basilar
da religiosidade mexicana. Essa fenomenal expansão não seria
tão difícil de compreender, entendendo as concepções mesoa-
mericanas sobre corpo-mundo-divindade, bastante afastadas
do pensamento aristotélico que ainda hoje predominam no
Ocidente. Lois Parkinson Zamora (2011, p. 167) explica o fenô-
meno, ao afirmar que:

La interconexión de las formas visuales con las identidades


narrativas depende de una concepción del cuerpo humano que
antecede (y aún ahora evade) las separaciones occidentales
modernas entre el cuerpo y la mente, y entre el ser humano y el
mundo. En los mitos de las culturas mesoamericanas el cuerpo
ocupa la misma extensión que el mundo; es un espacio expresivo
que no filtra o fija al mundo, sino que lo contiene. Aquí sería útil
hablar de una cultura encarnada, una cultura de la encarnación.
En la poesía náhuatl, la imagen para el ser humano es in ixtli,
in yollotl, “rostro y corazón”. El gran académico y traductor de
la literatura náhuatl Miguel León Portilla escribe que, para los
antiguos mexicanos, in ixtli, in yollotl era la fisonomía moral y
principio dinámico de un ser humano.

ELISABETH FROMENTOUX BRAGA 53


JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

Os textos fundadores do mito

Se fosse considerado o “Nican Mopohua” como a primeira


redação relativa à aparição da Virgem de Guadalupe, estar-se-ia
adotando uma perspectiva que, como destacou Centurión (2015,
p. 165), “coloca Antonio Valeriano autor do Nican Mopohua, como
o mais provável incentivador da história a través desta obra que
caminha entre o verídico e o ficcional”. Segundo o autor, um
melhor exame das fontes existentes pode oferecer uma nova
visão dos fatos. A esse respeito, a primeira carta americana a
fazer referência à aparição da Virgem estaria datada em 1530,
ou seja, um ano antes dos fatos relatados no Nican Mopohua.
Trata-se da epístola do Bispo de Zumárraga: “la primera carta
americana a hacer referencia, aunque de forma indirecta y con
anterioridad al acontecimiento, al relato de la aparición de la
VG” (CENTURIÓN, 2015, p. 166).
A análise dessa epístola, redigida por um dos principais
interessados e envolvidos nos acontecimentos, revela alguns
detalhes presentes no texto de Antonio Valeriano, o que,
segundo Centurión, permite concluir que a carta de Zumárraga
tenha sido fonte de inspiração do Nican Mopohua que buscou dar
um valor relativo à sua veracidade,

los protagonistas, así como los hechos más importantes


de la aparición, están presentes en la carta; sin embargo,
en momento alguno se hace referencia al milagro. Esto
evidentemente resulta obvio pues la carta fue escrita un año
antes de la supuesta aparición. (CENTURIÓN, 2015, p. 169).

Ao dar a conhecer essa carta, o autor destaca Juan de


Zumárraga como um dos principais responsáveis pelo sucesso

ELISABETH FROMENTOUX BRAGA 54


JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

guadalupano, dada sua decisiva influência, emanada tanto


da sua natural liderança quanto da sua designação por parte
do próprio imperador Carlos V como Protetor dos Índios, cargo
talvez a ele outorgado por ser um franciscano com simpatias
erasmistas, tendência próxima ao círculo imperial. Esse frade,
fundador da Real e Pontifícia Universidade do México, hoje a
Universidade Nacional Autónoma do México e finalmente desig-
nado bispo do México, teria um ascendente que não poderia ser
ignorado naquele contexto colonial.
O Nican Mopohua se apresenta como poema escrito
em náhuatl que narra as aparições da Virgem a Juan Diego,
posteriormente resgatado e traduzido por Miguel León Portilla
em 2001. Nessa obra, se propõe uma descrição do ambiente,
relatando monólogos de Juan Diego e descrevendo os cantos
dos anjos para moldurar a narração num ambiente que facilite
o acesso ao sobrenatural da aparição. Segundo León Portilla
(2001), esse texto contém muitos elementos náhuatl, princi-
palmente no que tange à oralidade. No entanto, encontram-se
também aspectos da cultura católica. Com efeito, sabemos
que Antônio Valeriano era um índio cristianizado. Assim,
essa obra pode ser considerada como de natureza híbrida,
dado que coloca em diálogo o indígena e o europeu/cristão,
isto é, foi redigida em língua indígena, mas numa composição
expressada em moldes latinos. O Nican Mopohua apresenta-se
como uma transcrição de acontecimentos relatados oralmente.
Como já foi mencionado, representa a versão mais conhecida e,
conseguintemente, considerada sustento material definitivo do
mito da Virgem de Guadalupe. Serviu, ademais, de base para a
produção de textos posteriores, como notadamente a obra do
bacharel Miguel Sánchez, Imagen de la Virgen María Madre de Dios
Guadalupe, publicada no México em 1648.

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JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

As controvérsias em relação
à imagem e às aparições

Como surgiu o ícone de Guadalupe no México do século


XVI? Para o professor O´Gordman (1986), a imagem de Nossa
Senhora de Guadalupe foi uma encomenda feita pela Igreja
mexicana a um indígena chamado Marcos. Por sua vez, o
historiador Serge Gruzinsti (1991, p. 104) informa o seguinte:

el arzobispo había pedido a un pintor, Marcos, una obra


inspirada en un modelo europeo y pintada sobre un soporte
de factura indígena en lugar (o al lado) de la imagen primitiva.

As dúvidas em relação ao surgimento da imagem tiveram


como consequência gerar em torno dela um caráter misterioso.
Esse fato influenciou certamente o processo de produção do
Nican Mopohua. Em Destierro de Sombras, a ideia defendida por
O´Gordman (1986) é a de que o texto veio a operar também
factualmente como prova material das aparições:

Ahora bien, lo toral a ese respecto es advertir que esa


deficiencia del relato sólo es eso si se parte del supuesto de
que Valeriano tuvo el propósito de ofrecer una falsificación
histórica. Y ciertamente, la enconada polémica acerca de la
realidad de los hechos narrados en el Nican Mopohua tiene por
condición de posibilidad aquel falso supuesto cuyo origen sólo
se remonta a la segunda mitad del siglo XVII cuando, habiendo
decaído la devoción a la imagen guadalupana por esa misma
falta de fundamento que le había denunciado fray Francisco
de Bustamante, unos criollos alucinados descubrieron el
texto de la obra de Valeriano y se persuadieron de que era

ELISABETH FROMENTOUX BRAGA 56


JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

de que era testimonio auténtico de unos sucesos realmente


acaecidos [...] (O´GORDMAN, 1986, p. 54-55).

Podemos então entender que, para O´Gorman, a elaboração


do texto não passa de uma “fábula” com o intuito de facilitar
a compreensão ou servir como guia para a interpretação do
milagre. As controvérsias que surgiram em torno da imagem,
presentes de forma patente na Igreja, foram marcantes para
estabelecer as linhas de força e a maneira com que Antonio
Valeriano textualizara e configurara os símbolos, que tomara
emprestados das duas culturas (cristã e indígena) na produção de
um macrotexto no intuito de atingir esse objetivo, contribuindo,
assim, para a criação do mito sobre a origem sobrenatural da
imagem; mito fundamental e fundador nesse espaço colonial,
que chegaria a uma extraordinária extensão mais tarde, que se
prolongaria firmemente até os dias de hoje. Nessa mesma linha
de pensamento, Centurión (2015, p. 163) afirma que

la historia oficial no discute la veracidad de la presencia de


la Virgen en el Monte Tepeyac; sin embargo, muchas otras
voces dudan de esa aparición y consideran el milagro como un
recurso estratégico para atraer a los indígenas a la fe cristiana.

Centurión, quando se refere à carta de Zurrámaga de


1530, destaca que

los protagonistas, así como los hechos más importantes


de la aparición están presentes en la carta; sin embargo,
en momento alguno se hace referencia al milagro. Assim,
para o autor, essa narrativa teria sido extraída da carta em
questão e utilizada como estratégia para “forjar um dos mais

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JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

importantes milagres da cristandade” (CENTURIÓN, 2015, p.


173, grifo do autor).

Centurión (2015) salienta ainda algumas contradições


entre a epístola e a narrativa de Valeriano. Uma delas seria a
alusão às rosas que, segundo a carta do bispo, floresceriam com
facilidade durante o ano todo, devido ao clima favorável. No
entanto, e em flagrante contradição, no Nican Mopohua, teriam
florido de forma excepcional naquela época (mês de dezembro),
algo que seria conclusivo e revelador do fato milagroso.

Imagem e cristianização do imaginário

A iconografia dos territórios conquistados foi de suma


importância para as populações pré-hispânicas, não só por
sua tradição pictográfica mas também e, principalmente, pela
estrutura ideográfica em que estavam recolhidas suas narra-
tivas, verdadeira escritura não ortográfica, mas portadora das
tradições seculares desses povos da meseta mexicana. Assim,
o aparelho imagético seria também, como consequência lógica,
instrumento privilegiado no processo de evangelização. Se,
seguindo o pensamento aristotélico, a arte é uma forma de
discurso, a imagem, então, desempenharia um papel prepon-
derante na “conquista espiritual” dessas populações. A imagem
se apresentou como um veículo de fé. A Igreja Católica destruía,
por toda parte, com afã iconoclasta, todas as estátuas e pinturas
que pudessem rememorar as divindades pré-hispânicas, mas,
em compensação, instituiria e distribuiria, decididamente e
com extraordinária difusão, toda uma série de ícones católicos

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JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

da Virgem e de alguns santos em forma de cruzes, gravuras e


estátuas, entre outros.
Iniciou-se, assim, o culto à imagem de Maria, porém, sem
abandonar o caráter de transição entre o pagão e o religioso,
isto é, entre o mundo pré-hispânico e o triunfante catolicismo.
Poder-se-ia aventar que, de certo modo, essas ações poderiam
ter sustentado e alimentado uma tendência natural dos novo-
-hispanos à idolatria, como já foi salientado antes por meio das
denúncias apresentadas por teólogos detratores, na época.
A construção, a disseminação e a entronização da Imagem
de Guadalupe respondia a uma estratégia. Para os evangeliza-
dores, essa aproximação às crenças indígenas cimentaria uma
adesão mais acelerada e consistente das populações novo-his-
panas ao seio da cristandade católica. Por sua vez, os índios,
ao adotar aparentemente as imagens santas, assimilavam, na
praxe, cada uma dessas figuras a uma divindade pré-hispânica
e continuavam, assim, praticando seus cultos próprios sem
que isso fosse perceptível aos olhos dos frades católicos. Cada
imagem da virgem Maria e dos santos era então apreendida
como Ixiptla (“objeto depositário de um poder divino”).
Nessa direção, era possível pensar que a necessidade de
“provar” documentalmente – como ocorre de forma periódica
entre os criollos novo-hispanos – não devia ser uma preocupação
entre os povos náhuatl da Colônia. Tal diferença deve se explicar
em virtude da decisiva distinção epistemológica entre uns e
outros, e que não poderia se entender apenas da pura distinção
letrados-iletrados. Para Lois Parkinson Zamora (2011, p. 18):

De este modo reconocemos que la encarnación visual y la


escenificación oral eran parte integrante de las identidades
metamórficas y de los poderes movedizos de los dioses

ELISABETH FROMENTOUX BRAGA 59


JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

mesoamericanos. Los medios visuales y escenográficos que los


encarnaban eran lo bastante fluidos como para abarcar una
cosmogonía basada en los principios de complementación,
movimiento y metamorfosis, una cosmogonía que el medio
alfabético no puede representar adecuadamente. Por el
contrario, los documentos alfabéticos tienden a fijar el
universo, a registrar y conservar el conocimiento, y de este
modo asegurar una estabilidad aparente.

A leitura da imagem cristã durante a época pré-hispâ-


nica era, então, reservada a uma elite – menestrel de clerezia,
que evolucionara na época moderna para constituir depois
um corpo de funcionários letrados reais – que atesourava um
conhecimento privilegiado que permitia interpretar os carac-
teres pictográficos e lhes dar autêntico sentido conforme os
dogmas cristãos católicos estabelecidos por Roma. A imagem
cristã emanada da Contrarreforma veio quebrar, de certa
forma, essa ordem elitista interpretativa em um processo de
homogeneização. As imagens acompanhadas e integradas
inextricavelmente aos textos oratórios ou escritos na forma
genérica do sermão permitiram e facilitaram uma considerável
apreensão e interpretação tanto em nível individual quanto,
sobretudo, no plano da coletividade novo-hispana.
A palavra divide a grei nas suas virtualmente infinitas
interpretações, como acontece na passagem paradigmática
da Torre de Babel. Para os promotores do Concílio de Trento
(1545-1563), considerando o exemplo dessa narrativa bíblica,
também a interpretação livre da Bíblia provoca a desagregação
da Igreja numa miríade de congregações cristãs ou protestantes
independentes. Quebrada a unidade cristã em torno da letra
da versão Vulgata latina da Bíblia, será sob a nova era dos

ELISABETH FROMENTOUX BRAGA 60


JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

seguidores de Lutero que as traduções em línguas modernas,


revisões, adaptações e inúmeras interpretações da Palavra
consolidam o(s) Cisma(s) da Igreja, numa sorte de sangria heré-
tica que o Concílio de Trento e a Contrarreforma pretendiam
parar. Essa extraordinária divulgação das Escrituras Sagradas,
numa expansão editorial sem precedentes, numa variedade
crescente de línguas, seria favorecida tanto pela tecnologia da
imprensa quanto por um sistema de trabalho que permitiria
um incremento da produção do livro antes nunca vista. Em um
mercado unificado, que o próprio Império alentava, produz-se
a consolidação editorial e normativa das línguas modernas ao
tempo que nascia o primeiro e maior “best-seller” de todos os
tempos, a Bíblia, e um escritor de considerável sucesso, não
apenas em relação à influência das suas teses mas também no
que diz respeito ao volume de vendas e expansão da sua obra.
Não bastará para a Igreja de Roma a criação ou a recriação
do Index, o índice de livros com passagens ou caracteres
heréticos proibidos, nem a destruição das inúmeras versões
não autorizadas dos Textos Sagrados e a perseguição dos seus
autores, uma vez que apenas se permitirá uma única versão
canônica: a Bíblia Vulgata. O pujante mercado editorial interna-
cional presente em várias cidades e produzido em várias línguas
será, de certa forma, imune a esse movimento de censura
inquisitorial, considerando a incipiente mundialização do
Renascimento. Havia de se introduzir medidas de contra-ataque
dotadas de maior eficácia, diante da inutilidade dos tradicionais
métodos, incapazes já de coibir a fenomenal expansão da venda
e leitura de livros, profanos e sagrados na nova era Guttemberg.
Como remédio a esse avassalador movimento policên-
trico, a Igreja Católica e, seu braço temporal, o Sacro Império
Romano Germânico optaram pelo poder expansivo do reino

ELISABETH FROMENTOUX BRAGA 61


JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

semiótico dos ícones, instaurado no concílio tridentino, com


seu executor: a Congregação dos Jesuítas. A imagem possui a
virtualidade do poder unificador singular, alinhada ao espírito
e à intenção universais, que são anunciados, proclamados e
instaurados no próprio adjetivo definidor “católico”, configu-
rador inegociável de identidade da Igreja Romana.
A prova de fogo e a batalha decisiva de tal desafio serão
realizadas no campo da evangelização americana. A difusão do
culto mariano é representativa da cristianização do imaginário
indígena, ou, nos termos de Gruzinski (1991), da “colonização
do imaginário” das populações autóctones. O episódio da
aparição da Virgem constitui um dos marcos da evangelização
mexicana. Nesse cenário, o santuário de Guadalupe não é um
caso isolado, visto pertencer a uma rede de imagens, devoções
e milagres difundida em Nova Espanha. No entanto, consiste
no fenômeno de caráter mais emblemático. A partir de 1580, o
culto às imagens atingirá seu auge, recobrindo completamente
a colônia com essas figuras que contribuíram decididamente
para a construção do imaginário mexicano.

Discurso barroco e consagração


da imagem milagrosa

A importância da imagem milagrosa, todavia, foi se


esvaindo no decorrer do século. Somente quando Miguel
Sánchez a reinterpretou como sendo mulher do Apocalipse
a devoção foi reavivada e Guadalupe se tornaria emblema
fundador da Igreja Mexicana. Parte do sucesso da imagem de

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JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

Guadalupe se deve, portanto, ao texto, isto é, à narrativa escrita,


ao livro que a cristalizara definitivamente.
Miguel Sánchez deu a essa imagem um caráter patriótico,
representante do setor criollo – nem espanhol, nem indígena –
de alguém nascido no México, da terra novo-hispânica. Assim,
em 1648, reunindo a informação oral e escrita antiga, o religioso
construíra uma narrativa repleta do mito, publicando então o
livro Imagen de la Virgen María Madre de Dios de Guadalupe, cuja
mensagem, a partir desse momento, seria repetida em centenas
de sermões e oratórias, destinados aos fregueses das igrejas por
toda a geografia da Nova Espanha, imprimindo-se assim num
imaginário coletivo.
Um ano depois, Lasso de la Vega publicara uma obra cujo
título abreviado é Hueitlama huiçoltica, no qual se encontra o
Nican Mopohua. Essa edição em náhuatl pretendia levar a palavra
divina ao público indígena para que

vean los naturales y sepan en su lengua cuanto por amor a


ellos hiciste [la Virgen] y de qué manera aconteció lo que
mucho se había borrado por las circunstancias del tiempo
(LASSO DE LA VEGA, 1649, apud GRUZINSKI, 1991, p. 193).

Ambos os autores difundiram os relatos em torno das


aparições e dos milagres de Nossa Senhora de Guadalupe, confe-
rindo-lhes, nesse momento, uma interpretação de marcado
corte apocalíptico. Essa divulgação situa-se em meados do
século XVII, período que se pode qualificar de apogeu do
“Barroco americano”. Nesse contexto de exacerbação do mila-
groso e da (re)criação do sobrenatural (não pelas narrações
mas também pela pintura), começava-se a desencadear uma
consciência criolla na Nova Espanha, num setor da sociedade

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JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

para o qual a imagem de Nossa Senhora e seus poderes foram


fundamentais no processo de desenvolvimento de um senti-
mento de identidade. Naquele momento, os prelados da Igreja,
apesar das contestações apresentadas veementemente por
alguns franciscanos, encorajaram a crença no sobrenatural, à
qual os fiéis aderiram, baseando-se nas visões e nos milagres
atribuídos à Virgem. Contudo, a essência não terrenal da
imagem milagrosa é produto do século XVII, pois, até então, os
primeiros textos que faziam menção à imagem (notadamente
a epistolar dos missionários) nunca lhe atribuíram tal origem.
A função social que preencheu a imagem da Guadalupe no
século XVI foi a de fomentar a devoção a Madre de Deus. Já no
século XVII, essa imagem permitiu dar coesão ao pensamento
criollo, mas, para isso, precisou apoiar-se na consistência de um
texto. A narração deu, então, uma nova interpretação à imagem,
uma interpretação barroca. Aliando a escritura à pintura
milagrosa, e despertando, assim, a um tempo, a percepção inte-
lectual e a percepção sensível, Sánchez consegue se emoldurar
totalmente aos parâmetros do Barroco:

si la pintura tiene consigo letras que la declaren, granjea con


ellas, fuera de los elogios admirables que le ha consagrado
la vista, alguna estimación porque las letras movieron a
leerse y fueron lenguas predicadoras de ocultas excelencias
(GRUZINSKI, 1991, p. 127).

Nesse processo, a sua obra não deixou de provocar


reações e originou tanto críticas quanto elogios por parte da
elite criolla, dando lugar a produções repletas de metáforas,
hipérboles desmedidas e fantasia.

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JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
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Durante todo o período colonial, pintores mexicanos ilus-


traram o tema do Apocalipse. Mas, seria em meados do século
XVII que a figura da Virgem de Guadalupe viria a ser plasmada
e cristalizada de modo definitivo. Também em várias ocasiões se
anunciam os sermões que lhe foram dedicados (até o século XVIII),
assim como as reproduções e variações em torno da imagem reve-
lada, aparecendo como uma superposição da mulher do Apocalipse
e da Virgem de Tepeyac, o que seria caldo de cultivo privilegiado
para interpretações das mais variadas espécies.
O discurso barroco de Miguel Sánchez conferira um novo
significado à Virgem de Guadalupe. O autor reinterpretou a
imagem do século XVI em termos inteligíveis para a sociedade
barroca da época, isto é, para a mentalidade criolla mexicana do
século XVII. Essa identificação dos criollos à imagem renovada da
Guadalupe os levou a tratá-la com uma marcada diferença com
respeito ao que fora a Guadalupe venerada pelos peninsulares.
Passou, então, a ser vista como um elemento gerado no âmbito
novo-hispânico, e logo se tornaria definitivo e quase unânime
símbolo de identidade nacional. Nesse contexto, floresceu
toda uma literatura, a partir de sermões e poemas dedicados a
Guadalupe, instigadora de um nacionalismo criollo avant la lettre.

Função social da imagem barroca

O período barroco, no século XVII, viu prosperar a “imagem


barroca”. Os objetos sagrados dos antigos mexicanos se confun-
diram com as pinturas religiosas europeias, o que resultou no
florescimento de um imaginário barroco. Imaginário esse no
qual a imagem religiosa desempenhara um papel fundamental

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de vínculo social. No início do século XVII, a Igreja incentivou o


culto às “santas”, distribuindo estatuetas e pinturas religiosas de
virgens e de santos. O Barroco foi época da construção de inúmeras
igrejas e da aparição de abundantes imagens milagrosas.
Assim, essa veneração religiosa do barroco mexicano foi
fortalecida mediante milagres, visões e revelações, e foi consti-
tuinte de um processo do imaginário coletivo. Em meio a essa febre
de imagens sagradas, uma delas se destacou na região do México,
a Virgem de Guadalupe, que provocou uma coesão entre todas as
etnias presentes na cidade: índios, mestiços, crioulos e espanhóis.

La guerra de las imágenes declarada por los religiosos contra


los indios se había desplazado y en adelante se ejercía en el
interior mismo de la sociedad colonial, borrándolas divisiones
que oponían los medios dirigentes peninsulares, criollos, y
a veces indígenas, a la inmensa mayoría de una población de
orígenes mezclados. Después de ser evangelizadora, la imagen
se había vuelto integradora (GRUZINSKI, 1991, p. 159).

A imagem da Guadalupe permitiu, assim, a integração


de uma população plural, o que geraria um sentimento de
nova nação. Não sem razão, alguns séculos mais tarde, os
movimentos de independência recuperariam a virgem como
símbolo nacional nas suas bandeiras.

A conquista espiritual espanhola desmitificada

Dois séculos depois do Nican Mopohua, o religioso criollo frei,


Servando Teresa de Mier, elaborou, a pedido do vice-rei, um sermão

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dedicado ao mito da Virgem de Guadalupe, no dia 12 de dezembro


de 1794, quando se celebrava o bicentenário da sua aparição. O que
a elite novo-hispânica esperava ouvir era certamente o discurso
tradicional baseado nas narrativas existentes dos milagres e
justificativas do mito da Virgem de Guadalupe. No entanto, o que
o padre enunciou foi uma completa dissonância com o esperado
e em oposição à tradição aceita pela Igreja. Com efeito, no seu
discurso, Frei Mier questiona o tradicional mito guadalupano,
não tanto quanto à aparição, mas sim, para refutar a supremacia
dos espanhóis sobre a evangelização dos índios. Para Teresa de
Mier, São Tomé, o apóstolo, e Quetzacóatl são a mesma pessoa,
que evangelizou os nativos com o auxílio de Tonantzin (a Virgem
Maria) venerada no Monte Tepeyac desde tempos remotos. O padre
acrescenta que a Virgem não estava pintada na tilma (casaco com
forma de cobertor náuhalt) de Juan Diego, mas na de São Tomé.

[…] que escribiendo por los años de 1666 la historia de nuestra


Señora de Guadalupe sacada de los manuscritos de los indios
recién convertidos dice estas formales palabras. Lo primero es
de notar que no dice la tradición que se formó la imagen de
nuestra Señora al desplegar la manta el indio en la presencia del
señor obispo Zumárraga, sino que se vio entonces y no antes, y
por estar ya figurada la imagen le mandó la Virgen al indio Juan
Diego que no mostrase a persona alguna lo que llevaba antes que
al señor obispo […] (TERESA DE MIER, 2001, p. 32).

Ao tratar a Virgem de Guadalupe, Tonantzin ou Coatlicue


como uma só e mesma pessoa, Mier surpreendeu e comoveu
quem estava ouvindo. Seu objetivo era demonstrar que os
habitantes do novo mundo/América não deviam as aparições
da Guadalupe aos espanhóis da Península.

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A VIRGEM DE GUADALUPE

Com esse sermão, Teresa de Mier (2001) desmitifica a


narrativa tradicionalmente aceita e associa a origem do México
a uma missão apostólica desvinculada da evangelização francis-
cana, reduzindo, assim, o poder de descobridor ou conquistador
de Espanha, com objetivo de pôr em crise o domínio espanhol
sobre o México, de forma que, segundo Lezama Lima (1993,
p. 45), se “desvalorizaba la influencia española sobre el indio
por medio de espíritu evangélico”. A intenção de Frei Mier era
delinear um discurso anticolonialista e identitário, que, poste-
riormente, seria recuperado pelos libertadores do século XIX.

“Metrópole colonial” e movimentos


nacionalistas criollos

Assim, ao longo do período colonial, a elite intelectual


hispânica do México utilizou a imagem da Guadalupe para
divulgar os ideais de um “novo catolicismo”, instaurando a
Virgem como modelo, emblema que permitiria transmitir
essa mensagem. No entanto, o culto à Virgem de Guadalupe
está intimamente ligado à tradição indígena e criolla, distinta
das características espanholas, e por isso se converteu em um
símbolo de identidade, em um processo de “proto-nacionalismo”.
Com efeito, durante os séculos XVII e XVIII, um sentimento de
pertencimento entre os crioulos às terras que Nova Espanha
abrangera começou a se despertar.
Essa consciência era, em parte, estimulada pela exal-
tação da “belleza y fertilidad de la tierra novohispana y de la
habilidad, el ingenio, la valentía, la fidelidad y la inteligencia de
sus habitantes criollos” (RUBIAL, 2014, p. 34). Esse sentimento de

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identidade por parte da elite criolla se consolidou notadamente


graças ao cristianismo que exaltava os mitos e os milagres.
Os criollos se aproveitaram dos mitos da aparição do início da
colonização, e em particular, do da Guadalupe, que por ter
aparecido em terra novo-hispânica, conferia a esse território
um caráter de sagrado e seguro frente aos menosprezos por
parte da Península, segundo Vicente Espinel (1618 apud SAIZ
DE MEDRANO, 1986). Esse aspecto divino se tornou motivo de
orgulho patriótico e de amor à terra onde se tinha nascido,
sinônimo de segurança e prosperidade.
De fato, os criollos, desejosos de ser considerados como
iguais aos espanhóis, precisavam demonstrar que sua terra –
México – era escolhida pelo divino, uma vez que era onde vivia
uma divindade. Isso somente seria possível constando a obra
de Deus nesse território. Desse modo, os milagres seriam prova
de proteção:

Los criollos, deseosos de ser considerados iguales a los españoles,


debían demostrar que esta tierra estaba contemplada en
el plan divino como un área donde habitaba la divinidad,
y tal demostración sólo era posible si constataban que Dios
había obrado en ella milagros y portentos como prueba de su
protección (RUBIAL, 2014, p. 37).

A Virgem, por sua vez, foi tomada como símbolo nacional,


criadora de uma identidade mexicana. Miguel Sánchez deu-lhe
forma ao recuperar e difundir uma tradição quase esquecida,
atribuindo características próprias dos criollos à Virgem. Ademais,
esse fenômeno definiu o Cerro de Tepeyac como um lugar seguro,
guardado por uma divindade. De fato, os criollos seriam “hijos de
Guadalupe” (JACQUES LAFAYE, 1974, p. 45), e por ela defendidos.

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A VIRGEM DE GUADALUPE

Os criollos se apropriaram, assim, da imagem da


Guadalupe para embasar sua identidade. Nesse sentido, poderia
objetar-se que, na verdade, a Virgem apareceu a um indígena
em um local que, na época pré-hispânica, já era sagrado para
os índios, ou ainda, que o primeiro relato fora recolhido em
língua nahualt. Entretanto, toda a narrativa e o imaginário por
ela suscitados pertencem ao estilo barroco. Além do mais, nem
os criollos, nem os peninsulares se interessavam muito pelas
fontes indígenas, a não ser na medida em que essas permitiam
comprovar a autenticidade dos fatos. A exaltação do passado
indígena – explorado e reapropriado – somente serviria a poste-
riori para acentuar a distinção do respeito ao peninsular, uma
empresa nada fácil considerando as caraterísticas homogêneas
que os aproximavam mais do que os diferenciavam.
A imagem da virgem de Guadalupe como objeto
empregado ao serviço da configuração identitária dos criollos,
primeiramente da capital e depois da Nova Espanha inteira,
pode ser considerada como representativa de um fenômeno
generalizado na América hispânica durante o Barroco. Assim,
como conclui Francisco de la Maza (1953, p. 12) no prólogo do
seu livro El guadalupanismo mexicano: “El guadalupanismo y el
arte barroco son las únicas creaciones auténticas del pasado
mexicano, diferenciales de España y del mundo”.

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JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
A VIRGEM DE GUADALUPE

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ELISABETH FROMENTOUX BRAGA 74


JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
4
LITERATURA E MATEMÁTICA
NEPTUNO ALEGÓRICO EM UM MAR
FRACTAL DE SOROR JUANA

Leila Maria de Araújo Tabosa

A ideia-ánima latente para este ensaio parte da ideia do Barroco


em estreita colinearidade com a Ciência e se inspira na assertiva
de Luciano Anceschi:

si yo tuviera que hacer un estudio sobre el barroco (no sobre


la historia y sobre el problema de la noción, sino sobre la
cultura y el espírito de sus formas) comenzaría por la ciência
(ANCESCHI, 1991, p. 37).

Devido a me propor a realizar um estudo sobre o Barroco,


a frase-teoria do ensaísta-crítico literário-professor italiano
da Universidade de Bolonha serve como mote para meu
trajeto em direção ao encontro com Ciência e com Barroco,
em lances de pérolas irregulares aos alinhados no Barroco –
e aos desalinhados também, para que, de igual modo, desfrutem
dos mistérios gozosos que circundam a estética do êxtase.
A proposta é começar um estudo do Barroco tendo como dístico
a Ciência – ponto inicial – para o estudo do Barroco.
Quando escrevo em Ciência sobre a Literatura ou a
Literatura sobre a Ciência, não me refiro apenas ao modelo
LITERATURA E MATEMÁTICA

analítico – base em que me ancoro estruturalmente sobre


história-crítica-teoria – para as leituras dos textos literários,
conforme ensina muito bem Compagnon (2006); refiro-me, mais
ainda, à Ciência – não como teoria literária que dará conta de
seu objeto de estudo analiticamente – como condição, meio,
tema e matéria de escrita literária. Ou seja, proponho-me a
realizar uma abordagem de leitura que perpassa a Ciência e
o Barroco na implicância do comungar científico entre arte
literária e ciência do século XVII sacralizado por Soror Juana
Inés de la Cruz1 (1648-1695) em sua obra Neptuno Alegórico, em
se tratando de Literatura e da Matemática como hipótese
de leitura literária e basta, “creo, para dar al sentimiento y
la idea del barroco abierta universalidad y verdad histórica”
(ANCESCHI, 1991, p. 37).
Partindo da ideia do Barroco como estudo que deve
pautar-se, antes de qualquer movimentação, na Ciência, compre-
endo a Ciência do século XVII, transitada e estudada na Nova
Espanha – antigo México Colonial –, como uma realidade que
sustenta uma leitura da literatura barroca produzida no México

1  Soror Juana Inés de la Cruz registra em sua obra completa textos escritos
em prosa, sonetos, silvas, autos, farsas, villancicos (cantigas religiosas). Ela
alcançou fama internacional por sua atividade intelectual tendo vivido
no México colonial. Poeta consagrada, teve grande parte de seus poemas
publicados em vida na Espanha no final da década de oitenta do século XVII
por influência dos governantes da Nova Espanha, o Marquês da Laguna e
a Condessa de Paredes. O poema da monja mais famoso e mais estudado,
sem dúvida, é Primeiro Sueño. Exatamente por ser considerada a obra mestra
da poeta por trazer à tona temas conflitivos, como o sentido dos sonhos e
a separação alma-corpo, como forma de tematizar o eterno desejo do ser
humano por buscar o conhecimento universal. No poema, a erudição cien-
tífica da monja, acumulada em anos de estudo no claustro, é demonstrada.
Os versos de Primeiro Sueño movimentam-se, exibindo-se em detalhados
processos vitais do corpo humano como o da digestão, o do funcionamento
do coração e dos pulmões, o do dormir e o do acordar.

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

dos seiscentos sob viés científico. Trato, assim, não apenas da


ideia base de compreensão da obra literária em sua historiografia
literária, sobre a qual tomo como parâmetro principal Irving
A. Leonard (1976), nem somente de sua fortuna crítica eleita
para diálogo analítico, com quem dialogo, a exemplo de Paz
(2001), Azeredo Campos (2003), Olivares Zorrilla (2001), entre
outros mais; tampouco apenas da noção da base teórica somente
literária – que já seria suficiente – como faço com as teorias do
barroco de Severo Sarduy (1989), de Eugênio d’Ors (1990), de
Gilles Deleuze (1991) – entre outros – que me acompanham nesta
leitura; mas, mais atentamente ainda, concentro-me em realizar
o encontro da Literatura e da Matemática na matéria literária da
fênix americana em Neptuno Alegórico com análise matemática na
teoria dos fractais de Mandelbrot (1997).
Necessito compartilhar com o leitor algo sobre a criação
de Neptuno Alegórico. Que cena é essa? Essa é a cena científica
em que viveu Sor Juana no século XVII. Nesse ambiente cultu-
ral-científico, transitam pelo México seiscentista livros não
religiosos, teses, tratados e estudos de homens de ciência como
Nicolau Copérnico (1473-1543), Johannes Kepler (1574-1630),
Atanasius Kircher (1601-1680), Juan Caramuel (1606-1682) e
Sebastián Izquierdo (1601-1681). Na América, o Barroco prati-
cado na colônia convive com/pesquisa a realidade científica e
reverbera suas variadas formas de expressão artística por meio
de monumentos luxuosos em forma de poesia experimental.
A poética de Soror Juana é construto concreto desse contexto
festivo de descobertas, expansões e experimentações cien-
tíficas. Neptuno Alegórico – o arco laudatório arquitetônico, a
prosa, a descrição emblemática, a poética, o espelho de príncipe
– é afinado com esse discurso científico-cultural novo-hispano
que ultrapassa fronteiras utilitárias, geográficas e temporais.

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

Assim, pois, o Barroco convive com mudanças no cenário


científico do Século de Ouro, embora o século XVII registre
muito mais as disputas religiosas iniciadas no século anterior
em detrimento de acontecimentos sociais de ordem política e
científica que contribuíram igualmente para o legado cultural
seiscentista, ao serem retratados nas criações artísticas. O inte-
resse e a importância de se começar a estudar o Barroco por
meio das manifestações científicas – deixando evidente que os
seiscentos também é tempo de grandes revoluções científicas
confirmadas por pesquisas cujo interesse consistia em buscar a
origem do conhecimento – é uma necessidade vital para leitura
da obra de Juana de Asbaje – Soror Juana2.
No cenário em que nasce, vive e morre a monja-erudita,
os pesquisadores desenvolviam teorias e objetos para encontrar
respostas sobre as incertezas acerca dos fenômenos da natureza

2  Juana de Asbaje Ramírez y Santillana, nome de batismo de Sor Juana Inés


de la Cruz, alta intelectual, monja erudita, dedicou sua vida e sua obra à busca
irrefreada pelo conhecimento. A maior intelectual da América escreve, no
século XVII, A Carta Athenagórica, em crítica ao sermão do Mandato do padre
luso-brasileiro Antonio Vieira. Após a publicação dessa carta-obra, à revelia
da autora, a poeta passa a ser perseguida e a sofrer represália por parte do
alto clero da Igreja Católica no México Colonial. Em sua defesa, a poeta erudita
escreve Respuesta a Sor Filotea de la Cruz, obra considerada autobiográfica, na
qual a monja erudita faz defesa explícita da igualdade de direitos indepen-
dentemente do sexo. O poeta-tradutor Haroldo de Campos (1994), no artigo
Quatour para Soror Juana, faz considerações acerca da disputa entre os textos do
pregador e confesSoror famoso, o padre Antonio Vieira, e da monja mexicana.
As palavras de Campos (1994) para a monja são: “poeta douta e estudiosa de
teologia, Soror Juana, a Fênix Mexicana, mediu-se com o então mundialmente
famoso pregador luso-brasileiro através de uma crítica (Crisis) ao Sermão do
Mandato, publicado (ipisis litteres) em 1690 sob o título de Carta Athenagórica”
(CAMPOS, 1994, p. 8). Sobre soror Juana e a escrita de autoria feminina no século
de Ouro, Horácio Costa (1998) afirma sobre a monja coqueta: “é unanimemente
considerada uma das mais importantes vozes do barroco ibérico do ‘Siglo de
Oro’, e ainda mais por ser a única voz feminina que recebe esta consideração
ainda no período” (COSTA, 1998, p. 411).

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

e de suas extensões cósmicas. A invenção do telescópio por


Galileu Galilei (1564-1642) é um dos maiores acontecimentos do
século no que tange à invenção de instrumento científico. Os
estudiosos desconheciam limites entre áreas científicas para suas
investigações, existindo poetas-matemáticos, filósofos-poetas,
cosmógrafos-matemáticos, astrônomos-poetas, teólogos-poetas,
matemáticos-jesuítas. O epistolário La luz imaginaria: epistolário
de Atanasio Kircher con los novohispanos, de Osorio Romero (1993),
registra a intensa troca de cartas entre os intelectuais, contempo-
râneos de Soror Juana. O epistolário revela que, na Nova Espanha,
circulavam objetos científicos trazidos da Europa para o Porto de
Vera Cruz, no México, a ser compartilhados entre os intelectuais
pesquisadores, assim também como havia grande interesse por
comércio de livros sobre matemática e experimentações cientí-
ficas nas obras de Athanasius Kircher (1601-1680), Juan Caramuel
(1606-1682) e Sebastián Izquierdo (1601-1681).
Estudiosos como Irving A. Leonard (1976), Ramón Xirau3
(2001), Dario Puccini (1997), Elias Trabulse (1985, 1996), Ignacio
Osorio Romero (1993) e Rocío Olivares Zorrilla4 (2001) tratam

3  Xirau (2001), no volume Entre la ciencia y el conocimiento, informa dados sobre a


concepção científica do século XVII. Argumenta o autor que o norte da Europa
e o Ocidente cediam à ciência; o mundo hispânico tratava de manter as ideias
religiosas, afastando-se das novas correntes científicas. A Espanha do século
XVII se fecha às correntes modernas. Segundo o autor, esse afastamento
também houve na América, por razões geográficas e políticas – o que não quer
dizer que o distanciamento fora total. É nessa brecha de não distanciamento
total que surge a Nova Espanha e o interesse por parte de alguns dos intelectuais
pelo conhecimento e pelas correntes científicas atuais.
4  Rocío Olivares Zorrilla, profesSorora-investigadora-tradutora, tem se
dedicado às veredas científicas em aproximação aos escritos de Soror Juana.
O preciso e precioso ensaio intitulado “La poética matemática en Soror
Juana” dá conta de uma análise de algumas das obras da poeta americana
sob a luz dos números e da cabala como norteadores da escrita da monja

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

de trazer à luz, na atualidade, o contexto social e cultural no


qual estava inserida a erudita da América com foco no contexto
científico tão decisivo para a matéria artística da sua arte
barroca. Em seus estudos, os investigadores tratam de buscar
os principais homens de ciência, como fray Diego Rodríguez
(1596-1668), Atanasius Kircher (1601-1680), Juan Caramuel
(1606-1682) e Sebastián Izquierdo (1601-1681), cujas teorias e
pesquisas científicas influenciaram a arte barroca produzida
na Nova Espanha. Por meio do estudo de Irving A. Leonard
(1976), pode-se verificar grande parte das intenções científicas
da época, como também tomar conhecimento dos principais
nomes de ciência do século XVII e de muitos desses conflitos
pela busca científica no Século de Ouro.
Assim, pois, não é estranho tratar de Ciência e de Literatura
ao se referir à obra da monja mexicana erudita. Não, não é
estranho tratar de Literatura e de Matemática ao se pensar em ler
Neptuno Alegórico, obra escrita e inscrita em prosa e em verso, com
descrições emblemáticas e que ultrapassou a função utilitária
de arco triunfal efêmero ao qual estaria destinada. Soror Juana,
monja enclausurada, em um tempo cuja sociedade intelectual dos
seiscentos caminhava pela Ciência já moderna no século XVII,
recebia em sua cela admiradores e amigos, por meio dos quais
teve acesso a livros e objetos científicos dispostos em sua cela
de monja jerônima. O acesso de Sor Juana fora interrompido por
meio da cultura de biblioteca como sacerdócio para os artistas

erudita do século de Ouro. Outra obra de Olivares Zorrilla que trata da


matemática como influência de matéria de poesia para Soror Juana é Juan
Eusebio Nieremberg y Soror Juana Inés de la Cruz, na qual, assim como Trabulse
traz à luz o frei Diego Rodríguez, Olivares Zorrilla a Juan Eusebio Nieremberg,
ao dizer que “en esta cercanía es conveniente destacar el papel que ha
tenido otro pensador hispánico contemporáneo suyo, el jesuita Juan Eusebio
Nieremberg” (OLIVARES ZORRILLA, 2001, p. 1).

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

barrocos – especialmente os das letras. Posso pisar nesse chão


científico ricamente preparado e já celebrando frutos saborosos
como Sor Juana, chão fértil, no qual o mar de Neptuno Alegórico
é celebrado. No solo sagrado dos mexicas, a pluma sagrada da
poeta dedica-se ao deus do Mar e, por assim dizer, ao Mar, a seus
elementos, seus personagens e com eles, a poeta cifra persona-
gens que transitam entre a Terra e Mar.
Neptuno Alegórico, Océano de Colores, Simulacro Político5 é uma
das obras mais relevantes da poeta barroca por demonstrar o
conhecimento científico como matéria-prima e criação artística
intelectual em seu procedimento de elaboração artística. A obra
apresenta descrição de imagens emblemáticas e exuberante
pesquisa realizada pela monja intelectual para compor o Arco
Triunfal, revelando-se uma obra fundada-elaborada com proce-
dimento científico, na qual Soror Juana apresenta-se também,
além de poeta, como crítica literária e arquiteta do arco que fora
elaborado para receber os vice-reis da Nova Espanha em uma
festa popular na colônia. Neptuno Alegórico – arco arquitetônico
descrito em imagens emblemáticas em forma de prosa e versos –

5  A obra Neptuno Alegórico está no volume IV das Obras Completas de Soror


Juana Inés de la Cruz, publicadas pela editora Fondo de Cultura Económica,
2004. Alberto Salceda (2004) organizou esse volume, baseado na edição antiga
publicada com o apoio dos mecenas, Inundación Castálida, em Madrid,1689.
O quarto volume apresenta a produção da escritora em prosa, mas, como
a obra Neptuno Alegórico mescla prosa e poesia, o organizador achou por
bem inserir Neptuno Alegórico nesse volume. Na parte introdutória da
edição, Salceda (2004) escreve El Neptuno alegórico y los arcos triunfales. Nesse
ensaio-prefácio, o estudioso trata da tradição histórica, cultuada desde os
primeiros anos do nascimento da Nova Espanha, bem como enumera arcos
feitos desde a fundação da sociedade colonial mexicana. A edição organizada
por Salceda (2004) é a mais usada pelos pesquisadores, pois, mesmo tendo
havido a edição fac-similar de Inundacion Castálida, a baixa tiragem impediria
acesso facilitado. Nesta pesquisa, será utilizada a edição de Salceda (2004),
Tomo IV, das Obras Completas da autora.

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

é elaborado para orientação da arquitetura de um arco laudatório


com descrições imagéticas de como deveriam estar dispostas
pinturas, desenhos e os textos na estrutura a ser edificada
em forma de Arco Triunfal. A obra é composta de três grandes
momentos: o primeiro é a Dedicatoria ao Marquês de Laguna, em
que se insere o título e uma explicação sobre o costume egípcio
de adorar divindades sob a imagem de hieroglíficos. O segundo
é Razón de la fábrica alegórica y aplicación de la fábula, em que
se efetua imensa argumentação baseada em citações e descri-
ções emblemáticas dos lienzos, basas y intercolumnios. O terceiro
e último, chamado Explicación del arco, é o momento escrito
totalmente em versos e que reflete descrição para os oito lienzos
apresentados em Razón de la fábrica. Interessa-me penetrar na
Explicación del arco em busca da combinatória barroca e fractal da
poeta, mulher intelectual, já combativa pela luta pela igualdade
de direitos no século XVII.
Posta a cena intelectual de frenética atividade de leitura,
pesquisa científica e diálogo intelectual, é que Soror Juana escreve
Neptuno Alegórico. Em se tratando da seção da obra Explicação del
Arco, penso na combinatória poética de Soror Juana Inés de la Cruz
e nas descrições em versos como combinações poéticas e amplio
a leitura da obra barroca, de caráter transtemporal, nos termos
de D’Ors (1990), para um olhar contemporâneo sobre Neptuno
Alegórico por meio de deambulações em um mar fractal. Uma
análise contemporânea de Neptuno Alegórico baseada na Teoria
dos Fractais, de Bernoît Mandelbroit (1997), busca estabelecer
relações entre a obra de Soror Juana e o barroco, trazendo, assim,
fractais no mar de Neptuno construído como interpretação a
partir da obra Neptuno Alegórico.
A literatura ocidental registra, por meio de poetas
clássicos e também modernos, o mar como matéria de poesia.

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

Homero (928 a.C. – 898 a.C.), Virgílio (70 a.C.–19 a.C.) e espe-
cialmente Camões (1524-1580) consideram o mar princípio de
todas as riquezas, aventuras e dores. James Joyce (1882-1941),
por sua vez, saúda o mar em Ulysses e segue a tradição de exaltar
um símbolo que representa grandes e profundas metáforas.
Também a monja-homérica, Soror Juana Inés de la Cruz,
ocupa-se do mar em seu Neptuno Alegórico. Na obra, o Mar é o
princípio e é quem traz Neptuno-vice-rei para o México já acos-
tumado às suas águas e tormentas tropicais. Soror Juana Asbaje
de la Cruz Ramírez y Santillana também redesenha o Mar em
seu Neptuno Alegórico e, assim, homenageia o símbolo-inspiração
das grandes epopeias ocidentais.
Neptuno, o Marquês, é o personagem-herói dessa chegada
à Nova Espanha e, com ele, também sua diva-esposa, Anfitrite,
a marquesa vice-rainha, e, ainda, todos os deuses marinhos
com seus fragmentos de elementos marítimos que integram a
imensidão que é o mar. O mar oferece a Neptuno a capacidade de
que suas virtudes sejam multiplicadas, não sendo ele unicamente
deus do marinho, mas possuindo a capacidade de multiplicar seus
poderes por todo o ensinamento que se aprende em um estar-se
no mar. Neptuno também é deus dos Ventos, aclama as águas;
é deus das navegações, protege heróis; é o Júpiter marítimo,
grandioso e absoluto. O mar é o ensinamento de Neptuno, seu
símbolo, assim como o Tridente, mas é mais que isso. O mar, para
Neptuno e em Neptuno, é origem, natureza e identidade. O grande
deus capaz de tantas proezas, Neptuno autoassemelha-se ao mar,
à sua grandiosidade, a seus infinitos e grandiosos fractais.
Soror Juana adverte, em sua série de Basas y Intercolumnios,
quatro bases e dois intercolúnios, que adornará essas seis
propostas de hieroglíficos que expressam as inumeráveis prer-
rogativas de Neptuno-Marquês de Laguna no universo do mar:

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LITERATURA E MATEMÁTICA

y por no salir de la idea de Aguas, se previno deducirlas y


componerlas todas en empresas marítimas; quizá porque
siendo de águas se asimilan más con su claridad a sus ínclitas
virtudes y heroicas hazañas (CRUZ, 2004, p. 394, t. 4).

Justifica a monja poeta barroca o que faz em todo o Neptuno


Alegórico: exaltar a Neptuno suas virtudes; e ao mar, sua grandio-
sidade. A imensa tarefa de argumentar com citações ovidianas,
homéricas, virgilianas, em toda a obra, com mais ênfase em
Razón de la fábrica alegórica, representa, poeticamente, o valor de
Neptuno e do mar, representação das águas do México, em riquezas
e perigos. A geometria fractal marítima, que em Neptuno Alegórico é
a plenitude da irregularidade barroca, apresenta-se na obra como
um processo de imitação da natureza por meio das descrições
poéticas e iconográficas saídas da pluma da poeta que entende o
movimento do barroco luxuoso também como um eterno retorno
à imitação do movimento natural dos elementos. Soror Juana
imita a natureza marinha em Neptuno Alegórico, reconstruindo
uma imagem artificial e artificiosa que, por seu esplendoroso
detalhamento, aproxima-se da natural imagem do mar.
Se o barroco é a arte que exibe, em sua compleição, a
densidade da vastidão de pesquisa e de biblioteca, também não
é menos verdade que sua arte ocupe-se dos elementos e dos
fenômenos da natureza de inspiração natural e panteísta: desde
o surgimento de um cometa no século XVII à percepção do Sol
como elipse, à observação dos astros, passando por descrições
de elementos naturais do cotidiano em sua riqueza incompa-
rável de detalhes, como também por um retorno mítico-idílico
que perpassa as “rochas aglomeradas e roucas” (SARDUY, 1989,
p. 25) das dores do gigante Polifemo ante a beleza e o amor entre
Acys e Galatea. O plano do barroco de retorno ao natural está

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LITERATURA E MATEMÁTICA

nas recriações de frutas e flores imitadas em telas, em escul-


turas, em arcos, proferidas em versos que detalham a natureza
e seu funcionamento de maneira curiosa e até científica. No
reino do barroco, que busca o estado natural de imitar e inserir
a natureza em sua arte é

o recurso a uma direção de ‘natureza’ (que) nunca fica sem efeito.


O barroco será extravagância e artifício, perversão de qualquer
ordem fundada, equilibrada: moral (SARDUY, 1989, p. 51).

Pensar em aproximar Neptuno Alegórico da ideia fractal


que imita a natureza do mar implica atenção à obra de Bernoît
Mandelbroit (1924-2010), criador do termo fractal, que se
fundamenta no estudo das superfícies irregulares que se podem
perceber na natureza, mas para as quais não há um cálculo
preciso: uma nuvem, uma árvore, a superfície e a extensão
do mar. A pesquisa do matemático francês funda suas bases
em uma tradição matemática que buscou estudar os números
fracionados desde as pesquisas mais antigas na área, como
os estudos de Bentley (1794-1871), Henri Poincaré (1854-1912)
e Norbert Wiener (1894-1964), embora Mandelbroit haja dado
um salto em seus trabalhos em relação às investigações ante-
riores. As obras Les objets fractals: forme, hasard, et dimension, de
1975, e Fractals: forma, azar y dimensión, de 1977 reescrevem-se
em La geometría fractal de la naturaleza, de 1997, com algumas
novas análises sobre estruturas fractais, sendo a base para o
entendimento teórico implementado por Mandelbroit (1997).
La geometría fractal de la naturaleza, por congregar
estudos anteriores do próprio autor e traçar o lastro mate-
mático que iniciou a pesquisa de Mandelbroit (1997), é o ensaio
(longo, embora intitulado por ele como ensaio científico)

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

mais completo do autor. Na obra, o pesquisador ocupa-se em


demonstrar o conceito da forma fractal que, em sua descrição,
tende a ter e a ser forma irregular e fragmentada, embora
seu grau em escalas dentro dessa fragmentação se configure
com o idêntico a todas as demais escalas. Mandelbroit (1997)
aborda “lo irregular y lo fragmentado en la naturaleza”, ao
apresentar uma citação de Richard Bentley:

toda belleza es relativa...No hemos de... creer que las orillas del
mar sean realmente deformes por no tener la forma de un balu-
arte regular (BENTLEY, 1836 apud MANDELBROIT, 1997, p. 22).

A citação do matemático do século XIX legitima a busca


de Mandelbroit (1997) pelos objetos fractais e seus estudos
anteriores no intuito de provar que a estrutura fractal sempre
existiu, o que não havia era a pesquisa com resultados mais
eficazes. Ao longo de seu ensaio científico, o matemático faz
uma provocação explícita, entre tantas, ao colocar em sua
obra uma imagem antiga em que aparece Deus e os fractais,
para mostrar a existência e a preocupação de matemáticos e
artistas com o tema séculos atrás. Observa-se a figura:

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Figura 1 – Bible Moralisée


Fonte: Mandelbroit (1997).6

6  Essa imagem aparece na obra do matemático francês em paginação extra (1 ao


16), pois está inserida em forma de suplemento no meio da obra, entre os capítulos
(páginas 328-329). De acordo com Mandelbroit (1997), a imagem está gravada em
Bible Moralis, Codex Vindobonensis, foi artisticamente executada entre os anos
1220 e 1250 e hoje se encontra na Biblioteca Austríaca de Viena (códice 2554).

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

A imagem do século XIII apresenta Deus desenhando o


mundo com um compasso. Na figura do século XIII, o mundo
é desenhado em forma fractal, o que, para Mandelbroit
(1997), “aquí crea Dios los círculos, las ondas y los fractales”
(MANDELBROIT, 1997, p. 3). A nitidez da imagem fractal saída
do compasso divino assombra pela antiguidade de um tema
científico apenas desenvolvido no século passado, com o auxílio
também da informática matemática moderna. Não é de admirar
que Elias Trabulse (1985), em La ciencia perdida, dê conta da Teoria
de los números imaginários, ou seja, de números inexatos, que
podem ser um elo fractal que possa se aproximar também dessa
perspectiva de leitura de Neptuno Alegórico. Em La geometría
fractal de la naturaleza, Mandelbroit (1997) vai assegurando a
tradição matemática que estuda o conceito das estruturas
desconhecidas matematicamente e que não são programadas
para oferecer um número inteiro exato.
Os fractais possuem algumas características que
terminam por elaborar seu conceito em La geometría fractal de
la naturaleza. A autossemelhança é uma das características dos
fractais. Ela se fundamenta no fato de que, ao se verificar uma
pequena parte do fractal, ela é idêntica ao fractal original,
mesmo que vista sob escalas de tamanhos diferentes. Mandelbrot
(1997) verificou a falta de regularidade e exatidão nos padrões
geométricos de medidas como a das montanhas. Mesmo sendo
aparentemente caóticos na superfície; esses padrões são orga-
nizados na estrutura e na profundidade. Os fractais buscam,
na natureza, a comprovação da inexatidão de suas superfícies,
perscrutando suas menores partículas, aquilo que ninguém
consegue perceber. O estudioso verificou, a partir dos fractais,
que há mais medições incertas, de números infinitos, do que
medidas regulares. Os programas modernos de computadores

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

permitem que visualizemos fractais por mais irregulares que eles


sejam. A utilização dos fractais se estende por muitas das áreas
do conhecimento7. A teoria mandelbroitiana prima por entender
e registrar o estudo da complexidade de fenômeno ou de objetos
da natureza em escalas cada vez menores, refletindo a busca pelo
entendimento de estruturas densas, ricas em detalhes como é
caso das estruturas artísticas do barroco.
Verificar em Neptuno Alegórico a busca da autora por imitar
a natureza barroca do mar com seus elementos, mistérios e mitos
oferece um leque de fractais que forma toda a obra. Pensar em
uma seleção imagética que aluda ao mar, em Razón de la fábrica
alegórica e em basas y intercolumnios, pode ser um exercício
de observação barroca da repetição do detalhe e do exagero
barrocos em escalas diferentes, posições diferentes, mas que
oferecem a autossemelhança fractal. O mar é a imprecisão de
superfície e de profundidade, de cálculo fractal. No mar, estão
pedaços que apresentam escalas cada vez menores de elementos.
A aproximação da barroca estrutura marítima sororjuaniana
possui relação com os fractais, ambos possuem relação com a
natureza, com o movimento natural e com as irregularidades
das superfícies. O barroco expressa a natureza de maneira
inacabada, irregular; os fractais veem a natureza como amostras
da irregularidade dos números irregulares. O barroco contraria
o renascimento pela busca do movimento em suas obras;
os fractais trabalham exatamente com superfícies em movimento.
O barroco subverte a arte vigente; os fractais subvertem a ordem
exata da matemática tradicional, apresentando irregularidades.
O barroco expõe a riqueza dos detalhes na sua criação; os fractais

7  Eliezer Braum (2007) amplia essa afirmação, associando a teoria de


Mandelbrot (1997) a vários ramos da ciência, como aos ciclos biológicos, à
engenharia, à turbulência dos fluidos, à economia, à linguística e à cartografia.

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investigam e calculam os detalhes das criações. O barroco reúne


ciência no seu ato criador; os fractais se aproximam das ciências
para mais bem as esclarecer em seus detalhes estruturais, antes
impossíveis de aceitação e percepção.
Nesse sentido, uma seleção de pedaços fractais que
compõem o mar de Neptuno Alegórico pode ser realizada a fim
de retirar aqueles que podem se autoassemelhar na composição
da natureza marítima. A seleção ilustra imagens/pedaços/
fractus de partes aleatórias de Neptuno Alegórico. Nesse caso,
a escolha foi feita em Razón de la fábrica Alegórica (a prosa)
e basas y intercolumnios. A seleção congrega elementos que se
apresentam no mar proposto por Soror Juana para seu Neptuno-
vice-rei. As palavras retiradas de Razón de la fábrica alegórica
são: “Neptuno”, “Naturaleza”, “Excelentísimo señor Marqués
de la Laguna”, “Império de las aguas, Islas y estrechos”, “Nilo”,
“Océano”, “Diluvio”, “Neptuno inventor de la navegación”,
“General del mar Océano” e “Anfitrite”. As palavras retiradas
das basas y intercolumnios são: “Canopo”, “Neptuno-gigante-mar”,
“Nave”, “Neptuno”, “Anfitrite”, “Mar rico y peligroso”, “Mar
lleno de ojos”, “Mar es madre y princípio...”, “Un mundo
rodeado de mar” e “Tíber”. As duas seleções são consideradas
pedaços de uma mesma superfície fractal e que possuem a
capacidade de pertencer à natureza e, portanto, possuir escalas
irregulares e também, sendo pedaços de um mesmo fractal,
possuem a capacidade de ser autossemelhantes. A ligação mais
ou menos precisa que recorre às semelhanças entre si/entre
os pedaços pode ser visualizada nas colunas idealizadas para
essa finalidade:

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Figura 2 – Colunas de autossemelhança fractal.


Fonte: Autoria própria (2014).

A coluna da esquerda é a seleção de Razón de la fábrica


alegórica (prosa); a coluna da direita é a que corresponde à
seleção das basas y intercolumnios. A autossemelhança pode ser
estabelecida em ligações que apontam da esquerda para a direita
ou vice-versa, precisamente mostrando em linhas explícitas os
objetos-palavras: “Neptuno” autoassemelha-se a “Neptuno”, deus
do mar e governante do México; “Naturaleza”, à “Mar es madre y
princípio...”, ao se considerar o mar como parte do grande fractal
que é a natureza; “Excelentísimo señor Marqués de la Laguna”
autoassemelha-se a “Neptuno-gigante-mar”, sendo estabelecida
pelo fato de Neptuno e o vice-rei serem cifra alegórica um do
outro em toda a obra Neptuno Alegórico; “Império de las Aguas,
Islas y Estrechos”, a “Un mundo rodeado de mar”, por todo o
império que compete às águas abarcarem e suplantarem o
mundo, sendo o mar e seu patrimônio aquático maior que o
mundo; “Nilo” liga-se a “Tíber”, autossemelhança entre rios;
“Océano” autoassemelha-se a “Canopo”, deus mítico que é simbo-
lizado por um vaso, capaz de carregar consigo gotas da imensidão
do oceano; “Diluvio”, a “Mar rico y peligroso”, por ser capaz o
dilúvio de converter o mar perigoso e mortal, com inundações;

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

“Neptuno inventor de la navegación” a “Nave”, pois em espanhol,


nave é embarcação; “General Mar Océano” autoassemelha-se a
“Mar lleno de ojos”, pela vigilância constante do oceano em seus
mares; “Anfitrite”, a “Anfitrite”, esposa de Neptuno, presença
feminina constante no mar. Os elementos fractais podem ser
ainda mais bem visualizados em um elemento marítimo que
compõe todos eles em um plano fractal, conforme figura a seguir.

Figura 3 – Caracol de mar fractal.


Fonte: Autoria própria (2014).

O “Caracol de mar fractal” é uma proposta de represen-


tação fractal de Neptuno Alegórico. Nessa figura, há a exibição
dos pedaços da obra que vão se autoassemelhando e formando
o mar de Neptuno-Marquês de Laguna, de Anfitrite-condessa

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LITERATURA E MATEMÁTICA

de Paredes e de todo o império poderoso das águas, que sabe


ser princípio, mas que também sabe ser destruição. Em cada
volta do “Caracol de mar fractal”, estão ilustrados os elementos
selecionados que guardam detalhes que se autoassemelham
com o mar. Em todos eles e em cada um deles, está presente
a infinitude da irregularidade do mar. Nas palavras/pedaços,
o aspecto irregular da natureza é verificado pelos fractais em
aproximação aos da natureza irregular da estrutura de Neptuno
Alegórico, o qual é reflexo da imitação que o barroco faz da
imagem da natureza. A imagem do “Caracol de mar fractal”
vai rodopiando em movimento que permite a observação das
escalas dos elementos poéticos de Neptuno Alegórico, em propor-
ções cada vez menores, dobra sobre dobra (DELEUZE, 1991),
conforme os fractais estudados por Madelbroit (1997). Soror
Juana Inés de la Cruz escreve um todo formado por partes que
se complementam e apresentam um espelhamento imagético
mítico-científico entre si que converge para a imagem do mar
de Neptuno. Essa autossemelhança da pequena parte com o todo
é a característica principal do fractal e entra em consonância
com os conceitos barrocos contemporâneos pelo descentra-
mento (ex)cêntrico do núcleo de atenção da sua arte, no sentido
mesmo do olhar sobre o objeto que possui um núcleo ativo,
movente, em sentido kepleriano defendido por Sarduy (1989).
O olhar para escalas menores de padrão fractal pode ser
também associado ao perspectivismo apresentado por Deleuze
(1991), quando, de acordo com o ângulo movente, move-se
também o observador e vice-versa. Nessas aproximações
teóricas, há autossemelhança da menor escala expressiva
ba’rroca, que se agiganta pela cossemelhança com a maior,
pois elas se movem na mesma direção criativa, convivendo de
forma harmônica e convencendo o espectador de que não há

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LITERATURA E MATEMÁTICA

fragmento com mais destaque, pois tudo se completa, tudo é


autossemelhante entre si, sendo todos os objetos observados
segundo o grau de escolha e observação do leitor/espectador.
Lançar mão de uma imagem de Neptuno Alegórico corresponderá
a lançar mão de qualquer outra imagem independentemente
de seu lugar na estrutura textual no que tange à escala de
tamanho, pois essa imagem mítica se coaduna com o todo da
obra, comovendo-se de maneira autossemelhante e na mesma
direção da curva natural e barroca. Apresenta-se, nessa deam-
bulação, um “Caracol de letras fractais” para seguir o caminho
da natureza irregular do barroco e refletir sobre as muitas e
infindas relações analíticas que possam existir entre Barroco,
Matemática, Letras, Poesia, Fractais, Arte, Ciência.

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
LITERATURA E MATEMÁTICA

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LEILA MARIA DE ARAÚJO TABOSA
5
REVERBERAÇÕES
DE UM AMOR BARROCO

FRIDA KAHLO E DIEGO RIVERA

Maria da Penha Casado Alves


William Brenno dos Santos Oliveira

As complicações rituais da cortesia,


a persistência do humanismo clássico,
o gosto pelas formas fechadas na poesia
(o soneto e a décima, por exemplo), nosso
amor pela geometria nas artes decorati-
vas, pelo desenho e pela composição na
pintura, a pobreza do nosso Romantismo
em contraste com a excelência da nossa
arte barroca, o formalismo das nossas
instituições políticas e, finalmente, a peri-
gosa inclinação que demonstramos pelas
fórmulas – sociais, morais e burocráticas
- são outras tantas expressões desta ten-
dência do nosso caráter. O mexicano não
só não se abre; também não se derrama.
Octavio Paz

O texto de Paz (1984) faz menção à máscara como elemento


da cultura mexicana. Frida Kahlo era uma mulher de muitas
máscaras e que se autodenominava “La Gran ocultadora”,
pseudônimo com o qual assinou cartas pessoais e passionais
para seus amantes. Neste artigo, não nos propomos a enquadrar
REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

Frida Kahlo à estética barroca ou sequer a pensar sua arte


como representativa dessa manifestação artística. Pensando
o Barroco para além de historiografia ou de estilo findo no
pequeno tempo, nós o lançamos no que Bakhtin (2010a) nomeou
de Grande Tempo no qual ficam as obras, os tesouros do sentido,
que não esgotam sua compreensão na pequena contemporanei-
dade, mas que se constituem, culturalmente, como matrizes e
nutrizes de enunciados estéticos para além do tempo Chronos.
Dialogicamente, pomos em movimento as cartas amorosas de
Frida Kahlo no grande tempo barroco e nos debruçamos sobre
aquelas passionais que tinham como interlocutor e objeto de
um amor/paixão/despedaçamento/felicidade/tristeza/corpo
e espírito marcada e agonizantemente barroco: Diego Rivera.
Amor construído com a paixão desenfreada, com a dor, com o
conflito e a quem Frida dedicou telas, cartas, confissões que
atestam a contradição, a carnalidade, a espiritualidade elevada
e o baixo corporal com que se agrediam nas idas e vindas de
uma relação definida pela instabilidade, pela insegurança e por
um amor tão grandioso que resistiu às idiossincrasias de dois
grandes artistas mexicanos.
No que tange à delimitação do corpus analisado neste
artigo, interessa-nos os enunciados retirados de um livro da
correspondência de Frida – compilada por Martha Zamora, da
editora José Olympio – intitulado: Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo.
A obra com a qual trabalhamos é, mais especificamente, a terceira
edição – datada de 2002. Selecionamos, apenas, aquelas direcio-
nadas a Diego Rivera, que nos permitem perceber ressonâncias
barroquizantes no trato da pintora com a escrita amorosa. É sabido
que Frida enamorou-se de vários outros parceiros e parceiras
em lugares e tempos distintos. No entanto, não elegemos, como
intenção primordial neste texto, dar conta desses amores.

MARIA DA PENHA CASADO ALVES 99


WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA
REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

Uma última ponderação necessária concentra-se na


carta que constitui o recorte empírico deste trabalho, ou seja,
na segunda correspondência endereçada a Diego Rivera. Para
compor a cena enunciativa na qual ela se insere, decidimos
trazer a carta que Rivera escrevera para Frida e que, muito
provavelmente, gerou uma resposta – que Frida remeteu para
Diego e que constitui nosso corpus de análise. Sobre Frida, a
seguir, temos uma breve apresentação de sua persona.

As máscaras de Frida Kahlo


e a tragicidade da vida

Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, terceira filha


de Guillermo e Matilde Kahlo, nasceu no dia 06 de julho de 1907,
em sua casa, na esquina das ruas Londres e Allende, situada
em Coyoacán, um antigo distrito residencial nos arredores da
periferia sudoeste da Cidade do México. De acordo com Haydem
Herrera, que escreveu Frida: a biografia, essa é a data que consta
de sua certidão de nascimento. Mas Frida era filha da década
revolucionária, quando as ruas da Cidade do México estavam
coalhadas de caos e derramamento de sangue. Provavelmente,
optando por uma verdade menos precisa, ela escolheu nascer
em 1910, ano da explosão da Revolução Mexicana. Herrera (2011,
p. 25), na biografia de Frida, define essa revolução como:

[...] movimento armado que começou com alguns motins


em várias partes do país e com a formação de exércitos de
guerrilheiros em Chihuahua (sob a liderança de Pascual
Orozco e Pancho Villa) e em Morelos (sob o comando de

MARIA DA PENHA CASADO ALVES 100


WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA
REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

Emiliano Zapata); os conflitos e focos de revolta se estende-


riam por dez anos. Em maio de 1911, caiu o antigo ditador,
Porfírio Díaz, que partiu para o exílio. O líder revolucionário
Francisco Madero foi eleito presidente do país em 1912, mas
em fevereiro de 1913, depois da Dezena Trágica, etapa de
dez dias de combates em que tropas antagônicas no Palácio
Nacional e na Ciudadela bombardearam-se mutuamente,
causando tremenda destruição e mortandade, Madero
foi traído pelo general Victoriano Huerta e assassinado.
No norte, Venustiano Carranza insurgiu-se para vingar a
morte de Madero. Adotando o título de Primeiro Chefe do
Exército Constitucionalista e contando com um pequeno
contingente à sua disposição, lutou para derrubar Huerta.
A cruel disputa de poder e o inevitável derramamento de
sangue só cessariam com a posse do presidente Álvaro
Obregón, um dos generais de Carranza, em Novembro de 1920.

Muitos desses conflitos foram presenciados pela pequena


Frida. Em seu diário íntimo, publicado após sua morte, ela
relata que a mãe abria a janela com acesso para a rua Allende
e os zapatistas feridos, a quem alimentava e cuidava de seus
ferimentos. Mais tarde, esse movimento vai contar com a juven-
tude comunista da qual Frida fazia parte. Esse grupo procurou
implantar mudanças fundamentais na estrutura social do México
pós-colonialista. A identificação da artista com o mexicanismo
(1910-1920) foi tão grande que se tornou um dos símbolos mais
difundidos em toda a sua produção artística. Frida exclamava,
em cartas, em telas ou em seu diário: ¡viva la revolución! Assim
como ela, o México estava em um momento de reconstrução de
sua identidade e contava com seus artistas para o fazer. 

MARIA DA PENHA CASADO ALVES 101


WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA
REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

Não foi diferente com a arte da “pomba delicada” – um


dos apelidos que Frida recebeu nas rodas sociais em que
circulava. Seus autorretratos se enchem de elementos de seu
cotidiano que ganham um valor simbólico e representam, com
grande precisão, essa mulher exótica aos olhos estrangeiros,
enquanto que, para seu esposo, o grande muralista mexicano
Diego Rivera, ela era a personificação de toda a glória nacional.
Seus escritos (cartas, poemas e diário íntimo) também não se
diferenciam nesse aspecto cultural.
A questão do sentimento da identidade nacional no
México pós-revolução, ou melhor ainda, a busca por uma iden-
tidade mexicana que envolveu o país em discussões calorosas a
respeito do mexicanismo, também era um tema contemporâneo
de Frida. Essas discussões suscitaram questões e elementos que
iam da esfera econômica às artes. Passou-se a pensar no papel
social que teria a arte. Dessa forma, buscava-se uma arte genui-
namente nacional que rompesse com os padrões europeus.
Na América Latina, a sociedade está representada na
pintura desde a formação das nações. No século XIX, no período
pós-independência, não apenas no México mas também em todo
o continente, já se problematizava uma identidade nacional
por meio das artes. Era necessário despertar um sentimento
de pertencimento à nação recém-surgida. Nesse sentido, teve
muita relevância a pintura histórica. Naquele período, era muito
comum os Estados custearem jovens pintores promissores em
seus estudos na Europa. No “Velho Mundo”, eles entravam em
contato com usos de cores e luz, adquiriam as últimas técnicas
e eram treinados para escolher temas em voga. No entanto,
quando regressavam à terra natal, repensavam os temas para
suas pinturas, tendo como tema recorrente a independência,
evocando as lutas contra os exércitos espanhóis, a fundação

MARIA DA PENHA CASADO ALVES 102


WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA
REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

das repúblicas e os heróis desses processos. Dessa maneira,


formaram-se símbolos nacionais representados na pintura.
É importante dizer que esses símbolos e imagens nacio-
nais compunham uma identidade, na voz das elites, que já
assumiam a mestiçagem, mas mantinham o discurso de que
apenas os brancos letrados tinham a capacidade e o direito
legítimo de terem propriedades e de assumirem o governo,
enquanto que os pobres, índios, negros, mestiços e camponeses
não tinham, para as elites, capacidade de assumir cargos
públicos, nem mesmo poderiam comandar propriedades. Era
utilizada a famigerada dicotomia “civilização versus barbárie”
para justificar a dominação de um grupo pelo outro.
Em contrapartida, os grupos marginalizados formaram
reivindicações sociais e, em meio a essa cultura mestiça,
desenvolveu-se uma vigorosa cultura popular. Nesse processo,
distintos pintores em diversos países se dedicaram a repre-
sentar temas da vida cotidiana retratando pessoas simples.
As diferenças estéticas entre os pintores populares e os
pintores viajantes são expressivas. Enquanto estes procuravam
reproduzir sempre o mesmo estilo de pose, retratando mais um
tipo de uma pessoa; aqueles retratavam sempre a pose dura e
frontal, característica dos retratos coloniais e tinham ainda
uma imensa preocupação com os detalhes das roupas, o que
conferia um caráter deliberadamente realista ao retrato. Frida
Kahlo, por sua vez, busca inspiração nesses pintores retratistas
populares para compor os seus autorretratos.
Em seu segundo quadro – O tempo Voa –, feito em 1929,
a artista já mostra sua adesão à arte popular mexicana. A apresen-
tação de um rosto visto de frente com uma expressão determinada
e a importância que ela dá para suas vestimentas remetem ao
realismo dos retratos populares do século XIX. Com base nessas

MARIA DA PENHA CASADO ALVES 103


WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA
REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

influências, Frida também trata da questão indígena, que é reavi-


vada pela Revolução Mexicana (1910) e, logo após, do mexicanismo.
Essa foi uma questão que trazia em seu bojo um sentimento de
pertencimento a sua cultura.
Frida Kahlo é uma mulher vista em seus autorretratos
como exótica e bela, porém, torturada e martirizada por todo
o sofrimento de uma vida e por um acidente que, entre outras
dores, impossibilitou-lhe de realizar um de seus maiores
sonhos: ser mãe. Além de tudo isso, Frida já havia sofrido com
uma poliomielite aos seis anos de idade que lhe rendeu o apelido
de Frida perna-de-pau na infância/adolescência. Interessa, no
entanto, neste texto, a Frida escritora de inúmeras cartas, ao
longo de toda sua vida, para diversos interlocutores, entre eles,
o seu grande amor, Diego Rivera, seus amigos, suas amigas, seu
médico, seu amor juvenil.
Tais cartas são reveladoras de vários ethé que não
podem ser visualizados apenas observando seus quadros.
Nessas correspondências, Frida mostra seus sentimentos
mais profundos e toda a sua revolta com sua condição física
e a concepção de fidelidade que seu amado marido seguia,
pois, segundo ele, “ser fiel era apenas mais um dos valores
burgueses”. Ao escrever, Frida usava de toda a sua franqueza,
empregava um vocabulário singular e marcado de afetividade
para externar suas ideias. Boca desenfreada, usava a linguagem
da rua, da praça, dos artesãos que a muniam com palavrões e
gargalhadas irônicas e carnavalizadas.

MARIA DA PENHA CASADO ALVES 104


WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA
REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

Frida como ser de linguagem


sob as lentes da Linguística Aplicada

O corpus que elegemos foi um livro intitulado Cartas


apaixonadas de Frida Kahlo, compilado por Martha Zamora, uma
pesquisadora interessada na vida da artista mexicana. Trata-se,
portanto, de uma reunião de cartas pessoais que Frida escreveu
durante toda a sua vida, compondo um fascículo com mais de
cinquenta correspondências escritas em diferentes épocas de
sua vida e com interlocutores os mais variados possíveis, desti-
natários que rodeavam a vida social da mulher que mantinha o
hábito de escrever cartas. Além do que já foi exposto, assinalamos
algumas razões que conferem justificativa ao enfoque deste
artigo sob a perspectiva da Linguística Aplicada – LA. A primeira
delas é por ser o texto o dado primário – a realidade imediata e
produto de sujeitos constituídos dialogicamente – das Ciências
Humanas, sem o qual inexiste pesquisa (BAKHTIN, 2003).
A segunda advém da seguinte assertiva de Geraldi:

Quem estuda a linguagem não está interessado nos “recortes”


dos discursos, mas no enunciado completo, total, para cote-
já-lo com outros enunciados fazendo emergirem mais vozes
para uma penetração mais profunda no discurso, sem silen-
ciar a voz que fala em benefício de um já dito que se repete
constantemente (GERALDI, 2012, p. 27-28, grifo do autor).

Portanto, trataremos as cartas como enunciados


concretos e inacabados. Delas emergem vozes que nos ajudarão,
no embate dialógico com nosso olhar exotópico, a dar acaba-
mento às imagens que a pintora constrói de si, sob essa ótica,
discursivamente. Interessa-nos ouvir a Frida que está em

MARIA DA PENHA CASADO ALVES 105


WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA
REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

embate constante com seus outros, que é constituída nessa


arena dialógica e que também a constitui.
A terceira deriva da razão de Frida Kahlo ser conhecida,
mundialmente, por seus quadros e muito pouco, para não dizer
nada, por sua produção escrita. Ademais, já existem muitos
trabalhos no campo das artes plásticas e da história da arte, em
nível de mestrado e dourado, com as telas da artista mexicana.
Assim, assumimos que nossa perspectiva será alicerçada na
concepção de sujeito e de relação dialógica de Bakhtin (2003,
2006). Para esse teórico, o reconhecimento do sujeito e do
sentido é imprescindível para a constituição de ambos. O sujeito,
histórico e inacabado, constitui-se na interação com o outro, e
esse outro é o mundo no qual esse sujeito está mergulhado, e
não apenas o seu interlocutor direto. Poderíamos acrescentar
que o sujeito se constrói na experiência com o seu espaço/tempo
e seus participantes.
Dessa maneira, por sopesarmos e adotarmos o que diz
Bakhtin (2003, p. 262) a respeito dos “gêneros discursivos” – que
esses são produzidos, reelaborados e estilizados nas práticas
sociais e que cada esfera social elabora seus “tipos relativa-
mente estáveis” –, entendemos que o gênero discursivo “carta
pessoal” não se constitui de forma diferente. No caso de Frida,
ela é esse sujeito histórico e inacabado e que, em constante
diálogo com seus outros, por meio das cartas, cria para si
mesma determinadas imagens que serão interpretadas, lidas
e acabadas por tantos outros que, dependendo do lugar em que
estão, poderão observá-las de formas diferentes. Consideramos,
ainda, a prática de escrita do gênero carta pessoal de Frida uma
prática social de linguagem, uma vez que ela se posiciona a
respeito dos mais variados temas. Sobre isso, Moita Lopes (2006,
p. 86) postula que a LA é, principalmente, “um modo de criar

MARIA DA PENHA CASADO ALVES 106


WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA
REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem


tem um papel central”, e ainda, segundo Celani (2000, p. 19),

a LA como área do conhecimento é vista hoje como articula-


dora de múltiplos domínios do saber, em diálogo constante
com vários campos que têm preocupação com a linguagem.

Sob essa ótica, entendemos que nossa proposta de sistema-


tizar conhecimento sobre a prática epistolar de Frida necessita
do par de óculos “indisciplinar” (MOITA LOPES, 2006) da LA para
prosseguir nesse caminho até então inexplorado.

Cartas e marcas de uma paixão mais intensa

Analisamos, nesta seção, os enunciados/cartas endere-


çados a Diego Rivera, o marido de Frida. Antes de adentrarmos
na análise, vejamos o que diz Herrera (2011, p. 107) sobre esse
homem que vai marcar profundamente a vida da pintora:

Diego tinha 41 anos quando conheceu Frida, e era o artista


mais famoso – e mais mal-afamado – do México. Sem dúvida,
já tinha pintado mais paredes do que qualquer outro mura-
lista. Ele pintava com tamanha fluência e velocidade que às
vezes parecia tomado por uma força telúrica. [...]. Quando
pintava, Rivera vivia cercado de amigos e curiosos, a quem
regalava com histórias fantasiosas – dizia, por exemplo, ter
lutado na Revolução Russa, ou jurava ter experimentado um
regime à base de carne humana. [...]. Apesar das palhaçadas,
e embora a velocidade com que pintava desse a impressão de

MARIA DA PENHA CASADO ALVES 107


WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA
REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

improviso, Rivera era um profissional completo, ponderado


e experiente, que produzia pinturas desde os três anos de
idade, quando o pai, depois de ver o filho rabiscando as
paredes, deu-lhe um quarto forrado de lousas, para que
ele pudesse desenhar à vontade. [...]. O primeiro emprego
de Diego na Cidade do México foi pintar o mural intitulado
Criação, no anfiteatro da Escola Nacional Preparatória.

E continua:

Em 1928, quando Frida o conheceu, Rivera estava solto no


mundo. Tinha viajado à Rússia em Setembro de 1927 como
membro da delegação de “operários e camponeses” para
participar do décimo aniversário da Revolução de Outubro
e pintar um afresco no Clube do Exército Vermelho, projeto
que jamais chegou a concluir, pois sempre parecia haver uma
ou outra obstrução burocrática; em Maio de 1928, o muralista
foi chamado de volta às pressas pelo Partido Comunista
Mexicano, aparentemente para trabalhar na campanha
presidencial de Vasconcelos. [...]. Embora fosse inegavelmente
feio, Rivera atraía mulheres com a facilidade natural de um
ímã atraindo limalha. [...]. Diego era um príncipe sapo, um
homem extraordinário, de humor brilhante e charme e vita-
lidade exuberantes. Sabia ser afetuoso e era profundamente
sensual. O mais importante: era famoso, e para algumas
mulheres a fama pode ser um chamariz irresistível. Diz-se
que as mulheres caçavam Diego mais do que ele ia atrás
delas. Ele era perseguido especialmente por certas jovens
turistas norte-americanas que julgavam que ter um encontro
com Rivera era “obrigatório”, como visitar as pirâmides de
Teotihuacán (HERRERA, 2011, p. 112, grifo do autor).

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REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

A fama de Diego precedia sua vida com Frida. Ele havia


se casado na Rússia, mas se separou de sua esposa antes de
retornar à Cidade do México. Não existem registros a respeito
do que Frida pensava da fama de mulherengo que acompanhava
Diego quando o conheceu. Talvez a volubilidade de Rivera a
tenha atraído; talvez ela tenha se aferrado àquela velha e enga-
nosa esperança: eu serei a mulher que vai cativar e prender o
amor dele. Obviamente, os dois se amaram intensamente, mas
não sem conflitos.
Pelo fato de Diego ser, também, pintor e ter alcançado uma
fama bem antes de Frida, alguns jornalistas ousaram compa-
rá-los, ou até mesmo insinuar que Frida bebera unicamente
da fonte afamada do Diego Rivera. Contudo, ela fazia questão
de pontuar que nunca havia estudado com Diego. Aliás, nunca
estudara com ninguém. Apenas começou a pintar, segundo ela.
Em uma de suas entrevistas a uma jornalista do Detroit
News, descrita por Herrera (2011, p. 200), Frida, jocosamente,
ironiza as especulações asseverando: “Obviamente, ele até que
não é nada mal para um menino, mas eu é que sou a grande
artista”. A jornalista ainda descreve o olhar de Frida após a
resposta: “Depois seus dois olhos negros cintilam e explodem
em uma gargalhada formidável” (HERRERA, 2011, p. 200). Assim,
Frida debochava da preocupação exacerbada da mídia da época
em explicar suas obras.
Como já havíamos falado anteriormente, os enunciados/
cartas que analisaremos a seguir são destinados a Diego. Eles
foram produzidos em períodos distintos: Enunciado 1 em julho de
1935 e o Enunciado 2 em dezembro de 1938. Assim, nós nos repor-
taremos a eles ao longo do texto.
No Enunciado 1, produzido um ano antes do turbilhão
de uma das maiores crises, para não dizer a maior, que Frida

MARIA DA PENHA CASADO ALVES 109


WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA
REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

enfrentaria em seu relacionamento com Diego – a traição dele


e de sua irmã, Cristina Kahlo –, ela, chateada com as inúmeras
traições “a céu aberto”, escreve para o seu amado na intenção de
questioná-lo e com a esperança de mobilizar alguma resposta
que a levasse a crer que ele estava preocupado em esconder suas
fugas amorosas, e, consequentemente, cuidando para que Frida
não sofresse com isso. No Enunciado 2, na segunda carta, temos
a construção de uma cena enunciativa mais específica, pois ela
é uma resposta à carta que Diego escreveu buscando dissuadir
Frida da ideia de desistir de expor na França.
Vejamos os dois enunciados/cartas deste bloco de análise
e que chamaremos de E1 e E2:

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REVERBERAÇÕES DE UM AMOR BARROCO

Enunciado 1

23 de julio de 1935

................................................................

Por casualidad vi una carta en un abrigo, un derecho


que pertenece al hombre, una mujer que viene de lejos y
sangrienta Alemania. Creo que debe ser la señora que Willi
Valentiner1 envió con fines “científicos”, artísticos” y “arque-
ológicos”… que me hizo enojada y, a decir la verdad, celosa…

¿Por qué tengo que ser tan terca y obstinada hasta el punto
de no entendimiento que todas esas cartas, aventuras con

1  Wilhelm Valentiner nasceu em Karlsruhe (Baden), e estudou em Heidelberg


com Henry Thode; e na Holanda com Cornelis Hofstede de Groot e com
Abraham Bredius, cujo assistente estava na galeria de Haia. Em 1905, ele
foi chamado para Berlim por William Bode, com quem trabalhou no Museu
Kaiser Friedrich e Kunstgewerbe Museum. Em 1906, ele publicou sua disser-
tação sobre Rembrandt que começou em 1904: Rembrandt auf der Lateinschule.
Em 1907, foi nomeado curador do departamento de artes decorativas no
Metropolitan Museum, em Nova York, que, sob a sua supervisão, tornou-se
uma das mais avançadas do mundo. No início da Primeira Guerra Mundial,
ele retornou à Alemanha para servir ao exército. Após o serviço na parte da
frente, em 1916, ele foi nomeado para o pessoal em geral, em Berlim. A partir
de 1924-1945, foi nomeado primeiro conselheiro e, em seguida, Director do
Museu Detroit, que mais tarde tornou-se o Instituto de Artes de Detroit. Sob
sua liderança, o museu desenvolveu-se em uma das principais instituições
de arte no país. Suas aquisições e exposições em Detroit eram produtos de
sua bolsa de estudos de grande alcance. Ele foi responsável por uma série de
murais pintados por Diego Rivera, revolucionário para Detroit no momento.

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mujeres, maestras de “inglés”, modelos gitanas, asistentes


con “buenas intenciones”, “emisarias plenipotenciarias de
sitios lejanos”, sólo constituyen flirteos. En el fondo, tú y
yo nos queremos muchísimo? ¿Por lo cual soportamos un
sinnúmero de aventuras, golpes sobre puertas, referencias
nuestras madres, imprecaciones, insultos y reclamaciones
internacionales, pero siempre nos amaremos? Creo que
lo que está sucediendo es que soy un poco estúpida y una
tonta, porque todo eso sucedió y se han repetido todas
estas cosas a través de los siete años que llevamos viviendo
juntos. Todos los corajes que he hecho sólo han servido
para hacerme comprender, por fin, que te quiero más que
a mí propio pellejo y que tú sientes algo por mí, aunque no
me quieras en la misma forma. ¿No es cierto? Si esto no
es cierto, yo siempre tengo la esperanza de que va a ser, y
esto es suficiente para mí…

Ámame un poco
Te amo
Frieda

Enunciado 2

8 de Diciembre de 1938

Niño mío…
Son las seis de la mañana

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y los guajolotes cantan,


calor de humana ternura
Soledad acompañada
Jamás en toda la vida
olvidaré tu presencia
Me acogiste destrozada
y me devolviste entera
Sobre esta pequeña tierra
¿dónde pondré la mirada?
¡Tan inmensa, tan profunda!
Ya no hay tiempo, ya no hay nada.
Distancia. Hay ya sólo realidad
¡Lo que fue, fue para siempre!
Lo que son las raíces
que se asoman transparentes
transformadas
En el árbol frutal eterno
Tus frutas dan sus aromas
tus flores dan su color creciendo con la alegría
de los vientos y la flor
No dejes que le dé sed
al árbol del que eres sol,
que atesoró tu semilla
Es “Diego” nombre de amor.

De la gran ocultadora
Fried

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O desdobramento do Enunciado 1 está diretamente ligado


ao modo como Frida inicia essa carta. Se observarmos bem o
início do E1, veremos que existe uma pequena linha pontilhada
entre a data e o primeiro parágrafo. Essa linha contínua, na
nossa perspectiva, pode indicar algumas supressões feitas,
ou pela própria Frida, ou pelos compiladores das cartas.
Possivelmente, algumas garatujas indecifráveis que se tornaram
traços recorrentes da escrita fridiana. Porém, são indagações
que não nos propomos a responder.
Assim, é possível constatarmos que não há vocativo,
tampouco saudação inicial. Concluímos, então, que o inter-
locutor de Frida é Diego, pelas várias remissões que a autora
faz durante a construção do enunciado ao grande amor de sua
vida, mesmo quando elas remetem aos dois – o casal –, pois
não há remissões tão intensas, numa perspectiva de futuro, de
querer estar com o ser amado, em outros enunciados com outro
interlocutor que não seja Diego.
Vejamos:

E1
L3 […] un derecho que pertenece al hombre
L4 que pertenece al hombre
L12 [...] tú y yo nos queremos muchísimo
L13 nos queremos muchísimo ¿Por lo cual soportamos un
L14 sin número de aventuras, golpes sobre puertas, referencias
L15 nuestras madres, imprecaciones, insultos y reclamaciones
L16 internacionales, pero siempre nos amaremos?

Partindo desses excertos e recorrendo aos traços


discursivos que caracterizam esse gênero como carta pessoal,
podemos afirmar que Frida rompe com o estilo funcional do

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gênero e começa transgredindo a ordem no que tange à macro-


estrutura. Essa característica já singulariza a escrita da autora e
ensaia um ethos passional, barroquizante e transgressor em E1.
Já no Enunciado 2 vemos uma situação completamente
diferente. Numa comparação, é por acreditarmos na influência
do conteúdo temático sobre as escolhas de Frida em E2 que assi-
nalamos a falta de vocativo em E1 e a presença de um vocativo
em E2. Sabemos que o motivo que levou a pintora mexicana a
produzir o Enunciado 2 tem uma carga emocional distinta do
motivo pelo qual ela produz o E1.
Em E2, Frida evoca Diego da seguinte maneira:

L2 Niño mío…

Nessa cenografia, o vocativo dá vez e voz a uma Frida


que se vê diante do maior amor de sua vida. A utilização do
possesivo mío é uma marca recorrente que a acompanha em
outras cartas. Além disso, temos a introdução de um elemento
fulcral na composição desse vocativo, que nada mais é do que o
substantivo Niño servindo como adjetivo. Em outras palavras, há
um acabamento dado a Diego que o coloca como criança de Frida.
Mais uma vez o ser amado vira objeto de pertencimento. Desse
modo, Frida transforma o Sapo-gordo2 em um menino amado.
Com esse vocativo, Frida preenche, com o amor que sentia por
Diego, a lacuna existente em seu lado materno, pois não podia
ter filhos por causa do acidente que dilacerara sua coluna e se
sentia incompleta com isso. Não é à toa que a autora o nomeia
assim, especialmente nessa carta. Desse modo, não nos é difícil

2  Esse era um dos apelidos que Diego recebera nas rodas sociais mexicanas.
Ele remetia para sua feiura e suas formas alargadas e exageradas.

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afirmar que a intensidade que há no comportamento passional


de Frida com relação a Diego é muito maior do que com relação
aos outros interlocutores que compõem a compilação das cartas.
Consideremos, ainda em E2, as escolhas estilísticas no
âmbito da organização composicional, como, por exemplo, a
disposição em versos diante de um parâmetro predefinido. Tal
composição se encontra compactada em uma única estrofe de
vinte e cinco versos. Frida compõe esse enunciado/carta esco-
lhendo versos que vão desde hexassílabos até bárbaros. Dessa
forma, podemos afirmar que Frida nunca teve a intenção de
responder aos modelos canônicos no que diz respeito à tradição
lírica. Sua escrita é labiríntica, barroca, dialógica e se nutre de
outros estilos, formas, linguagens e formatos.
Essa forma de organizar poeticamente e de escrever o
texto em verso, em um gênero prototipicamente escrito em
prosa, demonstra a plasticidade dos escritos fridianos assim
como sua ousadia em transgredir. Essa é uma marca recorrente
nas construções das cartas de Frida. Muito possivelmente, assi-
nala uma escrita que joga com as possibilidades da linguagem.
Voltemo-nos, então, para E1. Nesse caso, Frida inicia o
enunciado escolhendo um artifício em que buscava justificar
o fato de ela, supostamente, investigar os bolsos das roupas de
seu esposo: L3 Por casualidad. Seria esse marcador discursivo –
comumente utilizado para atribuir ao destino, à força do acaso,
descobertas, acontecimentos, acidentes etc. – uma tentativa de
Frida mostrar que não ligava para as traições que Diego Rivera
cometia? Acreditamos que não! Muito pelo contrário, já no
fim do primeiro parágrafo, a pintora mexicana esclarece seus
sentimentos e toma como força valorativa o adjetivo L7 celosa,
que, em uma tradução literal, significa enciumada.

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Porém, antes de discutirmos as metáforas e as adjeti-


vações, na condição de jogos de linguagem, apresentamos,
sucintamente, as indagações retóricas e do jogo de interlocução
que consideramos como marcas do conjunto de escolhas que,
nesse caso, são feitas pela autora-criadora. Para tanto, temos,
neste bloco, apenas em E1:

L8 ¿Por qué tengo que ser tan terca y obstinada hasta el punto
L9 de no entendimiento que todas esas cartas, aventuras con
L10 mujeres, maestras de “inglés”, modelos gitanas, asistentes
L11 con “buenas intenciones”, “emisarias plenipotenciarias de
L12 sitios lejanos”, sólo constituyen flirteos. En el fondo, tú y
L13 yo nos queremos muchísimo? […]
L13 […] ¿Por lo cual soportamos un
L14 sinnúmero de aventuras, golpes sobre puertas, referencias
L15 nuestras madres, imprecaciones, insultos y reclamaciones
L16 internacionales, pero siempre nos amaremos? […]
L23 . ¿No es cierto?

Como vimos, na seção anterior, as indagações que Frida


vai construindo durante a extensão de seus enunciados/cartas
são marcas estilísticas que se repetem e chamam a nossa
atenção para a presença maciça dessas escolhas que extrapolam
o simples jogo de interlocução inerente ao gênero discursivo em
questão. Encontramos, ainda, algumas indagações em E1 sobre
as quais nos debruçamos, mais uma vez, por não acreditarmos
na simples convenção genérica. Frida escolhe questionar Diego
de uma maneira bem própria. São perguntas que não abrem
margem para uma resposta diferente da que a autora gostaria
de ouvir, pois, em sua grande maioria, já pergunta afirmando,
como é o caso do exemplo na L23:

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L22 y que tú sientes algo por mí, aunque no


L23 me quieras en la misma forma. ¿No es cierto?.

Já em E2, encontramos apenas um questionamento que


nos parece retórico. Nele, Frida se questiona para onde olhar, ou
para onde dirigir o olhar, pois, sem a presença de seu amado, ela
não enxergava sentido ou extensão para o seu olhar. Para ela, a
terra se apequenava diante da falta de seu amor e essa pequenez
parecia sufocar Frida, a amante hiperbólica, barroca, conflituosa:

L12 ¿dónde pondré la mirada?

As indagações parecem-nos desenhar certa instabilidade


no que diz respeito à certeza da correspondência vinda de seu
amado Diego. Cada indagação se enche de um pedido desesperado
por amor. As expressões, destacadas mais adiante, confirmam
essa envergadura passional extrema, esse apelo ao amor do outro,
essa vontade de ser amada com a mesma intensidade com que se
ama. Ademais, ainda que fosse pouco, em migalhas, interessava
a ela receber esse amor. Como, mais uma vez, podemos observar:
em E1, L12 En el fondo, tú y yo nos queremos muchísimo?; L16 pero
siempre nos amaremos?; L22 algo por mí, aunque no me quieras
en la misma forma. ¿No es cierto?; e em E2, L12. Em outras pala-
vras, as interrogações a Diego definem a dúvida suplantada em
Frida. A dúvida de quem não acredita que é amada, não acredita
no amor do outro, a dúvida de quem implora por uma simples
marca de amor correspondido.
Voltemo-nos, a seguir, para as construções metafóricas e as
adjetivações de sí que Frida faz nesse bloco de Enunciados tendo
Diego como interlocutor. No início de E1, amparados também
pelos recursos gráfico-visuais que a autora utiliza em todo o

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texto (a utilização de aspas duplas, por exemplo), pensamos


ser a escolha da locução adverbial de modo (L3 Por casualidad)
um traço linguístico que irá contribuir com a construção da
ironia. Aliás, esse traço inicia um descarrilamento irônico que
se desenrola por toda a extensão do primeiro parágrafo dessa
carta. Entendemos, portanto, que, para construir a ironia, a
autora faz uso recorrente de metáforas que, inicialmente, será
a figura de estilo eleita por Frida para dar o tom desejado, pelo
menos no início, do Enunciado 1.
Percebemos isso, também e principalmente, na demar-
cação das aspas nas expressões substantivas e adjetivas a
seguir: L6 “científicos”, artísticos” y “arqueológicos”; e L11
“buenas intenciones”, “emisarias plenipotenciarias de sitios
lejanos”. Especialmente nesses trechos que encontramos uma
marca irônica que vislumbra uma crítica velada às verdadeiras
intenções das mulheres que se aproximavam de seu amado.
Em tom de revolta, Frida, inconformada com tanta indiferença,
sinaliza para Diego que sabe de suas latentes traições.
Porém, apesar de todo esse ataque, encoberto pela
navalha da ironia, o que vai nos interessar é a passionalidade
com que Frida conduz todo o resto do embate travado com
seu interlocutor mais intenso e mais amado. Assombrada pelo
fantasma da paixão, ela, já no segundo parágrafo de E1, começa
a orquestrar uma pergunta retórica que questiona todo o seu
posicionamento revoltado. Ao olhar para si, no movimento
retórico do questionamento valorativo, proclama-se L8 “terca
y obstinada”, e ainda afirma que essas “qualidades” impedem-na
de compreender o que ela representa na vida de Diego.
Ainda sob a égide da autocensura, escolhe como adjetivo
para essas traições riverianas, que tanto maceraram seu corpo
sentimental, a palavra piadas (sublinhada pela própria autora). E vai

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sublinhar, mais à frente, os pronomes L12 tú y yo e o intensificador


L13 muchísimo. Tal sinalização, parece-nos continuar sinalizando a
presença da ironia, mas a pergunta que se formata parece-nos pedir
uma resposta positiva. Em algum momento, Kahlo espera ouvir de
Diego que ela está correta. Ou ainda, parece implorar para que ele
concorde com ela, como já havíamos observado anteriormente.
No que diz respeito à escolha dos signos adjetivados em E1,
são recorrentes os usos valorativos de autodepreciação que faz
Frida assumir um lugar de vítima e, ao mesmo tempo, de apaixo-
nada. Puro drama barroco que se derrama nas seguintes palavras:

L8 […] tengo que ser tan terca y obstinada […]


L17 […] soy un poco estúpida y una
L18 tonta, […]

Parecem-nos escolhas que estabelecem relações dialógicas


com comportamentos típicos de quem está apaixonado, vivendo,
no entanto, em plenitude severa uma paixão que a machuca mais
que a própria dor da carne. Essa dor que evoca um comporta-
mento de passionalidade intensa e extrema se plasma e se
confirma, no campo da materialidade linguística, quando Frida
constrói a metáfora: L21 [...] por fin, que te quiero más que a mí
propio pellejo [...]. Essa metáfora elucida para nós a intensidade do
amor e das dores provocadas por Diego nesse sujeito encarnado.
Outra possibilidade de leitura nos leva a crer que a pintora não
teria como matar esse amor, pois, metaforicamente, seria preciso
arrancar a sua “própria pele”. Essa declaração é seguida de uma
triste constatação sob forma de pergunta.
Continuando, em E2, temos uma vasta recorrência de metá-
foras que vão se compondo a partir do jogo criativo que Frida,
agora mulher adulta, faz com as adjetivações. Nesse enunciado/

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carta, Frida rompe com a forma composicional, com modalidade


escrita em verso e escreve uma carta/poema, ou um enunciado
lírico, que dá vazão a um ethos passional mais intenso, mais sensível
e, agora, erudito. E2 é plasmado em um registro tido como culto
na modalidade escrita da língua e, convencionalmente, poético.
Nas construções metafóricas dotadas de adjetivações em suas
estruturas sintagmáticas, destacamos os seguintes excertos:

E2
L5 calor de humana ternura
L6 Soledad acompañada
L9 Me acogiste destrozada
L10 y me devolviste entera
L13 ¡Tan inmensa, tan profunda!
L14 Ya no hay tiempo, ya no hay nada.
L15 Distancia. Hay ya sólo realidad
L16 ¡Lo que fue, fue para siempre!
L17 Lo que son las raíces
L18 que se asoman transparentes
L19 transformadas
L20 En el árbol frutal eterno
L21 Tus frutas dan sus aromas
L22 tus flores dan su color creciendo con la alegría
L23 de los vientos y la flor
L25 al árbol del que eres sol,
L26 que atesoró tu semilla

A metáfora que se inicia em L5 faz remissão à presença


do próprio Diego na vida de Frida. O calor representa afeto e os
mexicanos têm uma relação cultural muito forte com as coisas
quentes: cores, frutos, culinária etc. No contrapeso dos dois

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substantivos abstratos (calor e ternura), estabelece-se um par


dicotômico que acaba criando a metáfora em si. Desse modo,
Frida humaniza o calor da presença marcante de seu amado.
Seguindo essa mesma ordem de inversão, teremos, logo
em seguida, no verso L6, a utilização de mais uma metáfora de
antagônicos (Soledad acompanhada). Como pode existir uma
solidão acompanhada? Essa construção brilhante da metáfora
fridiana remete-nos ao sentir de Frida, pois, mesmo estando
rodeada de amigos e de boas companhias na França, onde
iria expor seus afrescos, nada preencheria o vazio e a solidão
causados pela falta de Diego.
Por conseguinte, temos o xeque-mate dessa construção
metafórica nos versos L9 e L10, pois, neles, Frida enaltece a
importância de seu amado, uma vez que ele fora o responsável
por sua reconstrução. Muito provavelmente, Frida, quando usa
o adjetivo L9 destrozada, refere-se às sequelas deixadas pelo
acidente que ela sofreu ainda na juventude. Diego, então, teria
sido o responsável pela vontade de reconstrução que impreg-
nara a alma de Frida.
A terceira e última grande metáfora que Frida constrói
em E2 gira em torno da árvore, ou melhor dizendo árbol. Esta se
inicia no verso L13 e se espraia até o verso L26. Nessa construção,
a autora-criadora usa a árvore para dialogar com o discurso
bíblico da origem do homem e o fato de este ter comido o fruto
proibido na árvore da sabedoria: L20 En el árbol frutal eterno.
Ela seria a responsável pela vida e sabedoria do Éden. Frida
estabelece relações dialógicas com a tradição bíblica sim, e
acreditamos que essa é uma maneira de, metaforicamente,
referir-se a Diego como aquele que lhe dá vida, ou até mesmo o
que é proibido, pecado, mas que a seduz com forças irracionais.
Mais uma vez se comprova nossa leitura com as lentes barrocas

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que nos permitem enxergar o conflito, o paradoxo, o alto e o


baixo, o profano e o divino.
No desdobramento da metáfora em questão, a autora
faz uso de palavras do mesmo campo lexical que remeterão
à árvore: L17 las raíces; L21 Tus frutas dan sus aromas; L22 tus
flores dan su color; L23 la flor; L26 que atesoró tu semilla. E ainda
assevera a força e a imensidão dessa árvore que representa seu
amor por Diego: L13 ¡Tan inmensa, tan profunda!
No último bloco de análise das cartas, trataremos das
despedidas e/ou assinaturas dos dois enunciados/cartas que
Frida escreveu para Diego, as quais foram selecionadas para
nosso corpus. Nessa perspectivação, vejamos as despedidas e as
assinaturas de E1 e E2 que encerram as respectivas cartas:

E1
L26 Ámame un poco
L27 Te amo
L28 Frieda

E2
L28 De la gran ocultadora
L29 Frieda

Inicialmente, devemos acentuar a diferença entre as


despedidas dos dois enunciados/cartas. Chama a atenção,
também, o que Frida escreve um pouco antes de despedir-se e
assinar E1. Observemos: L23 Si esto (elemento coesivo que retoma
o questionamento em forma de apelo ao amor de Diego) no L24
es cierto, yo siempre tengo la esperanza de que va a ser, y L25 esto
es suficiente para mí…; e, ainda, em forma de súplica, pede e
declara, respectivamente: L26 Ámame un poco L27 Te amo. As

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escolhas que a autora-criadora faz nesses excertos nos levam a


construir, no bojo do jogo enunciativo, a imagem de uma mulher
que sofria muito por esse amor, mas que não se enxergava sem
ele; que conduzia suas decisões enviesada por esse sentir que
a dominava. Frida prepara o terreno para a maior entrega que
faria em sua vida com Diego. Conformada, ela admite alimentar
uma esperança de que tudo o que ela pensara seria verdade, e
esse simples fato já seria o bastante. Ela abaixa a sua cabeça,
não para Diego, mas para o sentimento que a toma e a consome.
Essa afirmativa revela-nos um grau de passionalidade que se
distingue dos outros, em momentos em que ela veste essa
máscara passional.
Compreendemos, portanto, que no jogo interlocutivo com
Diego, a imagem passional de Frida se agiganta, ganha força,
emerge no plano discursivo em um grau de amor e conflito.
Dessa forma, o apelo, a súplica, a passionalidade disfarçada de
ironia vão delineando, axiologicamente, uma Frida que estava
sob o jugo desse amor inenarrável.
Na cenografia construída por Frida em E1, temos uma
cena enunciativa diferente, pois, como já havíamos tratado
anteriormente, Frida responde a uma carta de Diego. Nela,
existem afirmações e declarações que, muito provavelmente,
insuflam a paixão que Frida sentia pelo Sapo-gordo. Temos,
assim, a presença do mesmo grau de passionalidade só que,
dessa vez, por um motivo diferente, ou melhor, um motivo que
agradava a pintora mexicana.
A despedida do E2 está, no plano valorativo, plasmada à
assinatura. Ela mistifica a figura feminina da pintora, empodera
Frida com armas discursivas que parecem inatas ao seu jeito de
agradecer a Diego e que podem, até mesmo, construir uma imagem

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de ocultista, aquela que também sabe esconder as coisas ou que


conhece o que está oculto por trás da carta que ele mandara.
Na ocasião em que Frida produziu essa possível resposta
a Diego, de acordo com Herrera (2011), ela estava em Nova York,
onde assistiu à exposição de sua obra na galeria Julien Levy, e
mantinha relações amorosas com Muray. O termo ocultadora,
diante dessa conjuntura, ressignifica-se e ganha tons valora-
tivos que vão além de misticismos e feitiços presentes na carga
axiológica dessa palavra. De posse dessa informação, podemos
afirmar que Frida tenta dar o troco a Rivera. Assinala que
existem coisas que ela esconde e que podem feri-lo profunda-
mente. No entanto, não seria de sua natureza tratar o imenso
amor que sentia por Diego com tamanho desdenho, apesar de
ele não fazer a mínima questão de camuflar seus casos fora de
sua relação com Frida.
Ocultar Muray seria matar um pouco esse amor
devastador que a autora sentia por Diego? Talvez sim. O que
nos é possível afirmar é que Frida não era indiferente ao seu
sentimento por Diego, muito menos às traições que sofria.
Ela respondia axiologicamente aos arroubos amorosos de seu
amante predileto, às feridas que se abriam e se suturavam o
tempo todo, ações de um homem que considerava a fidelidade
um valor burguês e aprisionador. Frida não se escondia em
falsos álibis. Ela assinava suas ações diante do mundo da vida.
A escolha do termo la gran ocultadora não foi aleatória,
nem despretensiosa. Frida quer que Diego saiba que ocultar é
uma habilidade que ela desenvolve com bastante frequência.
E que, apesar de amá-lo intensamente, ela mantém, nessa fase
de sua vida, alentos para suprir o abismo que o seu relaciona-
mento com Diego abrira.

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Sob a assinatura, percebemos que ela não se altera de um


enunciado para o outro, o que dá certa padronização e garante
a presença daquele sujeito fridiano assinando por seu discurso.
Frieda é o nome da pintora de verdade. É como está em seu registro
de nascimento e era como sua família a conhecia. Ou seja, esse
interlocutor era tratado, realmente, como alguém com quem Frida
compartilhava sua vida íntima ou por quem ela nutria algum afeto.
Portanto, podemos constatar que há, recorrentemente,
nesses dois enunciados/cartas, a presença de uma passionali-
dade mais intensa e desesperada. Identifica-se uma tendência à
conclamação ao amor do outro e, em tons quase jocosos, a uma
autocomiseração que a coloca no patamar de sofrimento dilace-
rante e humanamente barroco.

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MARIA DA PENHA CASADO ALVES 128


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A BUSCA PELO DIÁLOGO EM “ESTE,
QUE VES, ENGAÑO COLORIDO…”,
DE SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ
E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES1

Roseli Barros Cunha

Voltei (digo mal, pois nunca parei);


prossegui, digo, à estudiosa tarefa (que
para mim era descanso em todos os
momentos que sobravam de minhas
obrigações) de ler e ler mais, de
estudar e estudar mais, sem nenhum
outro mestre que os livros. Já se vê
quão duro é estudar naqueles caracte-
res sem alma, carecendo da voz viva e
da explicação do mestre; pois todo este
trabalho sofria eu muito com muito
gosto pelo amor às letras (CRUZ,
2004, p. 447, tradução nossa)2.

1  Uma primeira versão deste artigo em espanhol e com o título “Voces


Poéticas entre Libros y Retratos Mudos: Sor Juana Inés de la Cruz y Cecília
Meireles” foi publicada na Revista Barroco, editada pela profa. Dra. Pamela
H. Long, em 2012.
2  “Volví (mal dije, pues nunca cesé); proseguí, digo, a la estudiosa tarea (que
para mí era descanso en todos los ratos que sobraban a mi obligación) de leer
y más leer, de estudiar y más estudiar, sin más maestro que los mismos libros.
Ya se ve cuán duro es estudiar en aquellos caracteres sin alma, careciendo
de la voz viva y explicación del maestro; pues todo este trabajo sufría yo muy
gustosa por amor de las letras” (CRUZ, [1691] 2004, p. 447.).
A BUSCA PELO DIÁLOGO EM “ESTE, QUE VES,
ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

Introdução

A proposta deste artigo é estabelecer, de modo pontual, uma


breve comparação entre a produção de Sor Juana Inés de la
Cruz (1648-1695) e de Cecília Meireles (1901-1964), por meio da
análise de dois poemas, respectivamente a saber: “Este, que ves,
engaño colorido,…” e “Retrato”. A princípio, o que me instigou
a pensar nessa aproximação foi a coincidência temática entre
alguns dos poemas das autoras: retratos. Na obra da poeta
novo-hispana, o assunto foi recorrente. Ela compôs dezesseis
retratos literários (ZANETTI, 1998, p. 27). No caso da brasileira,
em Viagem (1939), há referências ao objeto em poemas como
“Convivência”, “A menina enferma” e, especificamente, em
“Retrato”. Posteriormente, Meireles escreveu “Retrato Natural”,
publicado em 1949.
Sabat de Rivers (1982a, p. 703, tradução nossa)3 afirma que
Cruz, em sua obra, “mostrou uma predileção especial por poemas
relacionados, direta ou indiretamente, a retratos femininos” (e
que há uma interessante variedade de poemas sobre esse tema
na lírica pessoal da autora. Além disso, podemos recordar que,
em sua contemporaneidade, a difusão de pintura de retratos
colaborava com os desejos da corte e da camada mais abastada
da sociedade de projetar a imagem de alguém na vida pública
e privada. A poeta foi retratada várias vezes e, nesses casos, é
possível vê-la vestida de freira e reconhecer sua beleza.
Susana Zanetti (1998), a partir do estudo que realiza sobre
a obra da autora barroca, conclui que os dezesseis retratos
literários são distintos formalmente em sua versificação, nos

3  “mostró una predilección especial por poemas relacionados, directa o


indirectamente, con retratos femininos” (SABAT DE RIVERS, 1982a, p. 703).

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LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

recursos expositivos e no tom que contêm. A crítica faz um para-


lelo entre a construção de retratos literários no Renascimento
e no Barroco, escola literária à qual a poeta estava associada.

O Renascimento normaliza esse subgênero poético: a flexão


enumerativa procura brindar um retrato nítido e completo,
respeitoso da Natureza e, em geral, atento a um só movimento.
O Barroco transforma essa modalidade ao imprimir-lhe ritmos
especiais e perspectivas dinâmicas, com o auxílio de parale-
lismos e antíteses marcadas, enriquecidas pelos cultismos e
pela mitologia, para romper a inércia da descrição. “O bom
retrato barroco – afirma Ciorianescu – é um movimento apre-
endido no espaço de um instante, uma sugestão mais que uma
pintura, um escorço que contém mais espaços do que aqueles
que são vistos” (ZANETTI, 1998, p. 28, tradução nossa).4

Apesar do tema coincidente, a distância tanto espacial


quanto temporal poderia impor uma dificuldade para a compa-
ração, mas há pontos de contato importantes que colaboram para
promover essa tarefa. Ambas possuíam conhecimento musical5

4  El Renacimiento normaliza este subgénero poético: la flexión enumerativa


busca brindar un retrato nítido y completo, respetuoso de la Naturaleza
y, en general, atento a un solo movimiento. El Barroco transforma esta
modalidad al imprimirle ritmos espaciales y perspectivas dinámicas, con el
auxilio de paralelismo y antítesis marcadas, enriquecidas por los cultismos
y la mitología, para romper el estatismo de la descripción. “El buen retrato
barroco – afirma Ciorianescu – es un movimiento sorprendido en el espacio
de un instante, una sugerencia más que una pintura, un escorzo que encierra
más espacios que los que se ven” (ZANETTI, 1998, p. 28).
5  No seu livro Viagem, no qual se encontra o poema que analiso, há vários
outros relacionados à música, isso se nota nos títulos e na construção dos
poemas. Meireles escreveu outros livros que fazem referência ao tema: Vaga
Música (1942), Canções (1956) y Crônica Trovada de Cidade Sam Sebastiam (1965).

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e produziram poesia com uma forte influência dessa arte. Além


disso, Cruz foi freira, apesar de a opção não ter sido motivada por
uma inclinação religiosa6; e Meireles, segundo reiteram alguns
críticos (WINCK, 2007), teve uma forte orientação católica aliada
a um espiritualismo peculiar. Desse modo, a questão religiosa
está presente na vida e na obra das duas, mas de forma oblíqua.
Estudos procuram demonstrar que, no mundo colonial
hispânico, outras freiras produziram literatura e revelam que a
autora, nascida onde hoje é território mexicano, diferenciava-se
claramente da maioria, pois grande parte seguia a tradição das
místicas, originada na Espanha (VALDÉS, 1993, p. 475). Sobre o
procedimento de escritura de Cruz, os críticos afirmam que
muitas vezes ela escreve

parodiando essas biografias ou testemunhos, nos quais


abundam visões, revelações ou êxtases. As preocupações
de Sor Juana são mais filosóficas do que religiosas” [...]7
(ZANETTI, 1998, p. 15, tradução nossa).

6  A freira em “Respuesta de la poetisa a la muy ilustre Sor Filotea de la


Cruz” (1691) ilustra sua decisão: “[...] Entréme religiosa, porque aunque
conocía que tenía el estado cosas (de las accesorias hablo, no de las formales),
muchas repugnantes a mi genio, con todo, para la total negación que tenía
al matrimonio, era lo menos desproporcionado y lo más decente que podía
elegir en materia de la seguridad que deseaba de mi salvación; a cuyo primer
respeto (como al fin más importante) cedieron y sujetaron la cerviz todas las
impertinencillas de mi genio, que eran de querer vivir sola; de no querer tener
ocupación obligatoria que embarazase la libertad de mi estudio, ni rumor de
comunidad que impidiese el sosegado silencio de mis libros. [...]” (CRUZ, 2004,
p. 446). Wissmer faz uma interessante observação sobre essa afirmação: “su
vida y su obra se inscriben dentro de su destino religioso y no fuera. Luchó por
la inteligencia y el derecho al saber dentro de la Iglesia” (1995, p. 647).
7  “parodiando sus biografías o testimonios, en los que abundan las visiones, las
revelaciones o los éxtasis. Las preocupaciones de Sor Juana son más filosóficas
que religiosas” (ZANETTI, 1998, p. 15)

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Por sua vez, Meireles fazia parte do grupo da revista Festa,


que tinha um programa católico conservador, ainda que seu
espiritualismo fosse mais cósmico e universal do que relacio-
nado a determinada tradição religiosa:

Em Cecília, são raros os vocativos divinos, as alusões bíblicas (neste


livro, só num poema: Desenho), as incursões no imaginário hagio-
gráfico católico, como em Bandeira. Ao contrário, há um claro
e desiludido agnosticismo [...] e uma resignação búdica: “Nem é
preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno / e afoga
a boca da vontade e os seus pedidos” (Êxtase). Não obstante, há
na obra Ceciliana um dualismo de vertente (WINCK, 2007, p. 135).

Desse modo, as ideias religiosas estavam inseridas na vida


e na obra das duas, mas de um modo diferente do convencional:
como reflexão filosófica, uma experiência mais particular do que
institucional. Por esses motivos, creio que, em uma leitura mais
atenta, podem ser percebidas, mais do que algumas coincidências,
evidentes à primeira vista, e para além das diferenças temporais
e espaciais, a presença de um procedimento comum em alguns
poemas de ambas: uma proposta dialógica, que, como veremos,
também apresenta peculiaridades. Para tratar disso, será neces-
sário refletir sobre o posicionamento das poetas na sociedade em
que viviam e sobre como suas obras foram recebidas por ela.

Retratos e a busca por diálogos

Volto ao ponto de partida: os retratos. Estudos sobre o


tema na obra de Sor Juana de la Cruz não são novidade. Temos

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os importantes trabalhos de Georgina Sabat de Rivers (1982b) e


Susana Zanetti (1998) que colaborarão com este estudo compa-
rativo entre a poeta novo-hispana e a brasileira.
Apesar de bastante conhecido, opto por reproduzir o soneto
“Este, que ves, engano colorido, [...]”, que será analisado, para conforto
do leitor. Opto também por apresentá-lo em espanhol, para que toda
a riqueza de detalhes produzida por Sor Juana seja percebida, e em
nota de rodapé uma tradução para a língua portuguesa do Brasil.

Procura desmentir los elogios que a un retrato de la poetisa inscribió


la verdad, que llama pasión
Este, que ves, engaño colorido,
que del arte ostentando los primores,
con falsos silogismos de colores
es cauteloso engaño del sentido;
éste, en quien la lisonja ha pretendido
excusar de los años los horrores,
y vencido del tiempo los rigores
triunfar de la vejez y del olvido,

es un vano artificio del cuidado,


es una flor al viento delicada,
es un resguardo inútil para el hado:

es necia diligencia errada,


es un afán caduco y, bien mirado,
es cadáver, es polvo, es sombra, es nada.
(CRUZ8, 1976, p. 662)9

8  Publicado em 1692.
9  “Este, que vês, engano colorido, /que vai da arte ostentando tais primores,/con
falsos silogismos de suas cores/é cauteloso engano do sentido;//este, em quem a

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O soneto de Sor Juana que se relaciona intertextualmente


com o do español Luis de Góngora, “Mientras por competir con
tu cabello…” (GÓNGORA, 1972, p. 447), elude a palavra retrato de
seu interior. Somente pelo mote “Procura desmentir os elogios
que a um retrato da poetisa inscreveu a verdade, que chama
paixão” (CRUZ, 1976, p. 626, tradução nossa)10 o leitor sabe que
o poema se refere a um retrato cuja pessoa retratada é a poeta.
É interessante recordar que não há segurança ao afirmar que
os motes desses poemas foram escritos por Cruz, visto que
“desconhecemos o autor dos títulos e das notas explicativas de
seus textos” (ZANETTI, 1998, p. 23, tradução nossa)11.
O poema “Retrato” de Meireles, como se pode ver logo
a seguir, não se completa como um soneto: são duas quadras
seguidas de somente um terceto.

Eu não tinha este rosto de hoje,


assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,


tão parada e frias e mortas;

lisonja tem querido/dos anos evitar todos os horrores,/e vencendo do tempo os


rigores/triunfar da velhice e do olvido,//é um falso artificio do cuidado,/é uma
flor ao vento delicada,/é um resguardo inútil para o fado://é uma nécia diligencia
errada,/é un afã caduco e, bem mirado,/é cadáver, é pó, é sombra, é nada.//”
(CRUZ, 1989, p. 29-30. Tradução de Vera Mascarenhas de Campos).
10  “Procura desmentir los elogios que a un retrato de la poetisa inscribió la
verdad, que llama pasión” (CRUZ, 1976, p. 626).
11  “se ignora quién fue el autor de los títulos y notas explicativas de sus
textos” (ZANETTI, 1988, p. 23.)

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eu não tinha este coração


que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,


tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida/a minha face?
(MEIRELES, 1982, p. 19)

Esse poema faz parte do livro Viagem, de 1939, conside-


rada uma obra de sua etapa madura, que desenha sua relação
com o simbolismo, movimento do qual retira procedimentos e
temas; bem como com o modernismo brasileiro, no qual está
inserida sua obra, embora mantenha uma postura indepen-
dente12. Assim como no soneto da freira, a palavra retrato não
aparece no interior do poema, mas o intitula.
Cruz não descreve exatamente nem o objeto – retrato
– nem a pessoa retratada, mas o qualifica como um “engaño
colorido” ou “silogismo de colores”. Identifica-o como um equí-
voco que se apresenta para quem o vê. O eu poético se dirige
a um “tú”, “este que ves”, e, como afirma o mote, “procura
desmentir os elogios”. Portanto, deduz-se que o eu poético não
se deixa enganar pela imagem que o retrato mostra e, de certo
modo, avisa a seu interlocutor sobre a não correspondência da

12  Segundo Coelho (1993, p. 90): “Notável é o fato de que, desde sua primeira
aparição, em plena renovação modernista, Cecília Meireles tenha revelado o
seu ‘tônus’ de poesia autêntica, equilibrada, pouco permeável às influências
circunstanciais. Lembremo-nos de que foi em meio à efervescência revolu-
cionária da segunda década do século, que surge ela no panorama literário
nacional, apresentada pelo grupo de escritores espiritualistas que, no Rio de
Janeiro, entre 1919 e 1927, através das revistas América Latina (1919); Árvore
Nova (1922); Terra de Sol (1924) e Festa (1927) lutavam, paralelamente ao grupo
paulista, por uma renovação em nossas letras”.

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ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
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pintura com a realidade. Esse engano seria a própria ideia do


carpe diem. A proposta de desfrutar da vida seria inútil, assim
como o retrato, que em lugar de perpetuar a imagem de alguém
apenas comprova a passagem do tempo.
No poema de Meireles, o eu poético não se reconhece no
retrato: “Eu não tinha este rosto de hoje”, “nem estes olhos”, “nem
o lábio”, “Eu não tinha essas mãos”, “eu não tinha este coração”.
Para concluir, ela escreve: “Eu não dei por esta mudança” e, a
esse respeito, o eu lírico se interroga: “ – Em que espelho ficou
perdida/ a minha face?”. Também, nesse caso, está presente o
tema da transitoriedade da vida, o sujeito lírico reflete sobre a
falta de consciência da passagem do tempo, das mudanças físicas
e subjetivas de seu ser. Há, assim como no soneto da novo-hispana,
a intenção de um diálogo, entretanto, no de Meireles, o diálogo
se dá de modo interiorizado (com afirmações que constatam as
mudanças) que culmina em um questionamento sobre si mesma,
uma pergunta não apenas pensada mas também proferida, por
isso, a presença do travessão.
Cruz, na construção do retrato literário estudado, escolhe
substantivos com uma grande carga negativa (horror, velhice)
intensificados porque estão ao lado de adjetivos que reforçam
a conotação adversa: “falso silogismo”, “cauteloso engaño”,
“vano artificio”, “resguardo inútil”, “necia diligencia errada”.
Em contrapartida, há vocábulos que perdem sua carga positiva
por estarem junto a outro negativo, como é o caso de “engaño
colorido” e do oxímoro “afán caduco”. Toda essa negatividade
culmina na última estrofe, com o fecho de ouro coroando o
poema com uma progressão desintegração: “cadáver”, “polvo”,
“sombra”, “nada”.

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ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
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Em Meireles (198213, p. 19), percebe-se uma conjunção


entre substantivos que se referem a partes do corpo e adjetivos
que lhe dão um tom negativo e acabam por mudar seu sentido
inicial, pois não necessariamente criavam uma percepção
adversa. “Eu não tinha este rosto de hoje,” esse verso seria
somente uma constatação da passagem do tempo, mas, em
seguida, temos “assim calmo, assim triste, assim magro...”
(MEIRELES, 1982, p. 19).Os adjetivos “calmo” e “magro” não lhe
dariam necessariamente um tom adverso, entretanto o “triste”
no meio do verso muda toda a perspectiva. O rosto triste não
indica uma passagem do tempo tranquila ou que essa experi-
ência tenha sido positiva.
Chama a atenção o uso anafórico de “assim” e “estes”.
A repetição do advérbio de modo e do pronome demonstrativo
intensificam e deixam mais presente essa constatação. O que
se pinta para o leitor do poema é a imagem de um sujeito que
faz uma reflexão interior, ou metaforicamente se olha no
espelho, percebe as mudanças ocorridas ao longo da vida e se
interroga sobre o caráter transitório da passagem do tempo.
Depois dessa constatação, predomina até o final a estrofe de
tom melancólico: “nem estes olhos tão vazios, / nem o lábio
amargo.//” (MEIRELES, 1982, p. 19).
Interessante perceber que o poema se constrói com poucos
verbos, somente quatro: “tinha”, “dei”, “mostra” e “ficou”. O
primeiro aparece por três vezes e nas duas primeiras estrofes.
Está no pretérito imperfeito do indicativo e indica uma ação
no passado que não foi concluída e dá a ideia de continuidade,
além de ser utilizado para descrever fatos. Mais adiante, temos
o verbo “mostra”, no presente do indicativo, que coloca a ação,

13  Publicado em 1939.

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realizada pelo coração, na atualidade. Os outros dois estão no


pretérito perfeito do indicativo, indicando uma ação ocorrida em
um determinado momento do passado. Desse modo, entende-se
que as mudanças começaram no passado e continuam ocorrendo,
mas a perda da noção da passagem do tempo, de saber quando
se deu essa mudança e em que lugar ficou perdida a imagem do
sujeito lírico, que já não corresponde ao que é na atualidade é
uma ação concluída, um fato consumado.
As repetições são abundantes no poema e funcionam
como ecos: além do verbo “tinha”, o termo “assim” aparecem
três vezes, já “nem” e “esse”, são inseridos, cada um, duas vezes.
O advérbio monossílabo “tão”, por sua sonoridade nasalizada,
assim como os enes e emes das palavras anteriores, contribuem
para dar um tom de lamento que se arrasta e pontua todo o
poema. Na segunda e terceira estrofes, temos de novo essa sono-
ridade com as palavras “não” e “tão” além de “mão”, “coração”
e “mudança”. Os monossílabos tornam a leitura do poema mais
pausada, pontuam um ritmo mais lento, que se contrapõe ao
tempo que passou, supõe-se demasiadamente rápido para que o
eu poético percebesse. Essas pausas e a lentidão deixam marcas
no poema como o tempo deixou no rosto que não se reconhece.
Volto à segunda estrofe: a conotação de negatividade já
está presente nela desde o começo, ainda que se intensifique
pelo adjetivo “mortas”: “Eu não tinha estas mãos sem força,/
tão paradas e frias e mortas;/” (MEIRELES, 1982, p. 19). Nesse
caso, demostra-se a falta de força da mão diante da passagem
do tempo, metaforicamente a incapacidade do eu em reagir
diante da vida. Mas essa mudança deveria ter sido sabida e a
inaptidão em reconhecê-la não impede sua chegada. Pode-se
dizer, como o eu lírico do poema de Sor Juana de la Cruz, que
este seria um “vano artificio del cuidado” (CRUZ, 1976, p. 662):

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“Eu não dei por esta mudança, / tão simples, tão certa, tão
fácil:/” (MEIRELES, 1982, p. 19). O poema de Meireles (1982) está
construído com vários substantivos que se referem a partes de
um corpo: “rosto”, “olhos”, “mãos”, “coração” e “face”. Essas são
metonímias do eu poético, presente integralmente por meio de
anáforas do “pronome pessoal do caso reto”, “eu”, no início de
cada uma das estrofes. Entretanto, nos dois últimos versos da
segunda estrofe de “Retrato”, além de o “coração” indicar uma
metonímia, é evidente seu sentido metafórico: “eu não tinha este
coração/ que nem se mostra. //”(MEIRELES, 1982, p. 19). Assim,
a falta de reconhecimento do eu lírico ocorre em termos físicos
e de sentimentos. O soneto de Cruz, por sua vez, também está
construído a partir de uma metonímia, mas, nesse caso, o retrato
é tomado pela retratada. Estabelece-se, assim, uma relação menos
direta, pois é um objeto que ocupa o lugar da pessoa.
Atentando novamente para alguns efeitos rítmicos no
poema de Meireles, percebe-se que, assim como as repetições,
também os vários monossílabos, as vírgulas e conjunções cola-
boram para pausar a leitura e marcar uma lentidão. Na primeira
estrofe, ao final de cada um dos três primeiros versos, há uma
vírgula. Elas também abundam na segunda e terceira estrofes
entre o primeiro e segundo versos. Além disso, no meio do
segundo verso da primeira estrofe, assim como na segunda da
terceira, temos várias vírgulas (três no primeiro caso e duas no
segundo). No segundo verso da segunda estrofe, elas não estão
presentes, mas aparecem a conjunção “e” e um ponto e vírgula
indicando uma pausa mais acentuada. Ademais, a marca de
uma pausa maior está presente ao final dos quatro versos das
duas primeiras estrofes com ponto final, que indicariam, talvez,
momentos reflexivos.

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ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
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Se temos todas essas pausas, existem pequenos e estra-


tégicos encavalgamentos entre o terceiro e o quarto versos,
exatamente quando o eu poético se refere ao coração que não
se mostra, quase como se, nesses momentos, ele se atrevesse
a se mostrar. Nessa direção, há o encavalgamento na última
estrofe, entre o terceiro e o quarto versos, quando a voz lírica
se questiona sobre a mudança e finaliza com a pergunta. Desse
modo, o efeito se amplia, visto que o segundo verso da última
estrofe termina com dois pontos, como se por meio dessa conti-
nuidade houvesse uma explicação ou um esclarecimento sobre
o que pensava antes. Portanto, há um apressamento forte do
ritmo, como se o eu poético quisesse chegar a uma conclusão
do pensamento que encerra o poema. Mas, contrapondo-se a
isso, ele termina com uma dúvida, indicada pela interrogação.
No soneto de Cruz (1976), as vírgulas aparecem entre
os dois primeiros versos da primeira estrofe, que, por sua
vez, termina com um ponto e vírgula. Na segunda estrofe,
temos vírgulas entre o segundo e o terceiro versos e também
no quarto. No primeiro e segundo tercetos, há vírgulas entre
os dois primeiros versos. Ao final dos dois primeiros versos
dos dois tercetos, elas também aparecem. No último verso
do soneto, no fecho de ouro, há três vírgulas que pontuam a
enumeração feita pelo eu poético. Mas entre os tercetos, temos
dois pontos funcionando quase como um encavalgamento. Esse
efetivamente aparece entre os terceiros e quartos versos dos
dois quartetos. Se por um lado temos as pausas com vírgulas;
por outro, os encavalgamentos e os hipérbatos, presentes já nos
primeiros versos dos dois quartetos do soneto assim como no
segundo do primeiro terceto, impõem um ritmo mais rápido:
“Este, que ves, engaño colorido,/”, “excusar de los años los
horrores” e “flor delicada al viento” (CRUZ, 1976, p. 662).

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O jogo entre pausas e andamentos rápidos acontece


como se fosse a procura do eu poético para desfrutar do tempo
ainda que se reforce a inutilidade desse procedimento. O final,
com um ritmo pausado, progressivamente demonstra onde o
eu poético é levado na sua vã procura: à morte, em tornar-se
cadáver. Portanto, no plano físico, o corpo será pó, a memória
será esquecida, a retratada será sombra e, finalmente, será nada.
Se o retrato, principalmente naquela época, era visto
como um modo de imortalizar a pessoa retratada por meio do
registro de sua figura, no entendimento do eu poético desse
poema, isso seria um “resguardo inútil”. A deterioração deta-
lhada no poema não é somente do corpo físico ou da memória
da pessoa retratada mas também da arte – o quadro – que
apesar dos primores que ostenta é “vano artificio del cuidado”
(CRUZ, 1976, p. 662).
É interessante recuperar a origem da palavra cuidado
em latim, cogitatus, ou seja, pensamento. Desse modo, o quadro
é uma construção do pensamento tanto de quem se deixa
retratar como de quem o realiza. Existiria, por parte de ambos,
a intenção de, a partir dessa reprodução da natureza humana, a
obra divina, perpetuá-la. Entretanto, o sujeito poético do soneto
declara a ineficácia de se reter no quadro “los horrores de los
años” ou “triunfar de la vejez” (CRUZ, 1976, p. 662), ou seja,
metaforicamente deter o tempo.
Seguindo os argumentos de Zanetti (1998, p. 28, tradução
nossa) 14, pode-se concluir que Cruz pinta um retrato barroco em
seu soneto, pois há um “movimento apreendido no espaço de um
instante” e “um escorço que contém mais espaços do que aqueles

14  “movimiento sorprendido en el espacio de un instante” e “un escorzo que


encierra más espacios que los que se ven” (ZANETTI, 1998, p. 28).

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que são vistos”. O leitor é levado por caminhos que se alternam


da pintura para o “tú” com quem o eu poético parece desejar
estabelecer um diálogo. Esse movimento é promovido tanto pela
apresentação do jogo de papéis no início do poema “este (quadro)
que (tú) ves” como pela sucessão de pausas e ritmos mais rápidos
da pontuação, os encavalgamentos e, especialmente, dos hipér-
batos, que, de certo modo, reproduzem a inversão da retratada
vista no retrato, que, por sua vez, não corresponde à realidade.
A fragmentação de um “eu” em partes de um corpo é uma
marca do poema de Meireles. Se o apelo às sensações está presente
em alguns adjetivos como “amargo”, “frias” e recorda os procedi-
mentos da poesia simbolista, plasticamente, o poema se constrói
como um quadro cubista em que o leitor é levado a recuperar as
partes do corpo descritas para retratar a figura total do eu.
Entretanto, nos dois poemas, chama a atenção a forma
como ocorre a referência de gênero do eu lírico. No soneto da
freira novo-hispana, somente sabemos que o interlocutor vê o
quadro e, pelo mote, entendemos ser da própria poeta. Ainda
que o eu poético se represente metonimicamente pelo “retrato”
– um objeto masculino –, não há marcas, ao longo do soneto, que
identifiquem a pessoa retratada pelo seu gênero. No de Meireles,
uma vez que o eu é representado por partes, elas podem ser
masculinas – “o rosto”, “o lábio”, “o coração” – ou femininas – “a
face”, “a boca”, “as mãos” –, mas também plurais: “os olhos”.
Integralmente, não sabemos se o eu é feminino ou masculino.
O tema do gênero e do uso dos pronomes, além de uma proposta
dialógica, foi primorosamente abordado por Sabat de Rivers ao
estudar as décimas “Copia divina…” (SABAT DE RIVERS, 1982b,
p. 704) e “A tus manos me traslada…” (SABAT DE RIVERS, 1982b,
p. 710-711) e podem ser ponto de partida para se pensar os dois
poemas em questão neste artigo.

143
ROSELI BARROS CUNHA
A BUSCA PELO DIÁLOGO EM “ESTE, QUE VES,
ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

A alternância de gêneros gramaticais nas referências às


partes do corpo ou dos objetos nos poemas tanto de Meireles
quanto de Cruz leva a uma indefinição por parte da caracteri-
zação do eu lírico. Se no caso da brasileira podemos pensar nesse
procedimento como um modo de mostrar a desagregação do ser
humano diante do modo de reagir com a passagem do tempo
no mundo contemporâneo, com relação ao da novo-hispana,
recorda-nos o jogo de papeis que Beatriz Colombini (1996) destaca
como um procedimento de inserção intelectual e social da freira
na sociedade hispânica do mundo colonial. Os sujeitos poéticos
das duas décimas de Cruz mudam de gênero para expressar
suas intenções e seus desejos, assim como a freira tinha de fazer
ao construir suas argumentações em ensaios em relação à sua
própria vida como religiosa que escolhe essa opção como forma
de manter-se como uma mulher intelectualizada no século XVII.
Se voltamos ao foco deste trabalho, podemos concluir que
nos poemas não se realiza um diálogo propriamente:

[...] ainda que haja um ‘yo’ e um ‘tú’, porque a segunda pessoa


nunca diz nada em nenhum dos dois; tudo que sabemos dela
nos chega por meio de um ‘yo’, que é o único que fala15 (SABAT
DE RIVERS, 1982b, p. 705, tradução nossa).

Esses interlocutores que não se pronunciam estão todos


mediados pelo eu lírico, o único que tem voz nos poemas.
Em “Este, que ves…” tampouco o “tú”, com quem o sujeito
lírico “fala” e recebe o quadro, responde. Temos somente a voz
do eu lírico. Assim, de diferentes modos, nos três poemas de

15  “[...] aunque haya un ‘yo’ y un ‘tú’, porque la segunda persona no dice
nunca nada en ninguno de los dos; todo lo que sabemos de ella nos llega a
través del ‘yo’, que es el único que habla” (SABAT DE RIVERS, 1982b, p. 705).

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ROSELI BARROS CUNHA
A BUSCA PELO DIÁLOGO EM “ESTE, QUE VES,
ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

Cruz citados neste estudo, não acontece um diálogo, como


em um primeiro momento, a voz que se registra no poema
parece querer demonstrar. Entretanto, há neles um jogo de
espelhos característico do Barroco. O poema “Copia divina…”
reflete a poeta, pessoa e imagem no retrato. Em “A tus manos
me traladas…”, esse jogo aparece nos reflexos que o eu lírico
assume ao incorporar as várias entidades. Finalmente, em
“Este, que ves…”, esse espelhismo aparece no procedimento
de fazer o leitor transitar, desde o hipérbato inicial do poema
para o retrato que em nenhum momento é descrito ao leitor,
mas que representa equivocadamente a poeta e seu interlocutor
mudo. De um modo muito apreciado à escola barroca, o leitor
é levado, por meio de uma forma fixa, a participar de um forte
movimento interno no poema e, desse modo, contribuir, por
meio da leitura, para a sua construção.
Com relação ao retrato pintado pelo eu lírico de Meireles,
não se pode dizer o mesmo. O espelho procurado por ele como
forma de verificar as mudanças físicas e subjetivas que o tempo lhe
trouxe é fragmentado e reflete partes de seu ser como se ele mesmo
tivesse de se reconstruir procurando se entender, por isso, o auto-
questionamento final. Apesar de o poema levar o título “Retrato”,
o sujeito lírico se indaga a respeito de sua imagem no espelho.
O retrato que intitula a obra é algo mais subjetivo e abrange a
própria situação de procura e autorreflexão vivida pelo sujeito.
Por sua vez, o espelho seria o reflexo do que se vê na realidade e
das mudanças não percebidas ao longo do tempo.
Podemos pensar que, no século XX, ainda que a vida para
uma mulher brasileira estivesse longe de estar envolta em desa-
fios e preconceitos, Cecília Meireles havia encontrado um espaço
razoavelmente constituído como possibilidade de atuação e certa
liberdade, podendo realizar vários projetos profissionais:

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ROSELI BARROS CUNHA
A BUSCA PELO DIÁLOGO EM “ESTE, QUE VES,
ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

Ensinou Literatura Brasileira nas Universidades do Distrito


Federal (1936-38) e do Texas (1940). Viajou longamente
pelos países de sua predileção, México, Índia e, sobretudo
Portugal, onde viu reconhecido o seu mérito antes mesmo de
consagrar-se no Brasil como uma das maiores vozes da língua
portuguesa contemporânea (BOSI, 1986, p. 516).

As restrições vividas por Cruz na sociedade patriarcal


hispânica foram sem dúvida maiores, pois nela

“imperava um ideal feminino de submissão, modestia e


respeito, de castidade e piedade, que o matrimônio e as
obrigações domésticas teriam desvirtuado, e de modo algum
autorizado, a dedicação aos estudos que essa ‘mulher douta’
aspirava”16 (ZANETTI, 1998 p. 12-13, tradução nossa).

Apesar dos obstáculos externos, ou por eles, na Respuesta


de la poetisa a la muy ilustre a Sor Filotea de la Cruz (1691), a freira
nos mostra algumas regras contra as quais ela se impunha
visando alcançar seu objetivo, o que muitas vezes poderia
incluir abdicar da vaidade:

Comecei a deprender gramática, ao que creio não chegaram a


vinte as lições que estudei; e era tão intenso o meu cuidado, que
ainda que sendo nas mulheres – e mais ainda na flor da juven-
tude – tão apreciável o natural enfeite do cabelo, eu o cortava
de quatro a seis dedos [...] e efetivamente o cortava por pena da

16  “imperaba un ideal femenino de sumisión, modestia y respeto, de castidad


y piedad, matrimonio y sus obligaciones domésticas hubiera entorpecido,
y para nada autorizado, la dedicación al estudio que aspiraba esta ‘mujer
docta’” (ZANETTI, 1982, p. 12-13).

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A BUSCA PELO DIÁLOGO EM “ESTE, QUE VES,
ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

ignorância: que não me parecia haver razão que estivesse vestida


com cabelos uma cabeça que estava nua de notícias que era um
adorno mais apreciável (CRUZ, 2004, p. 446, tradução nossa)17.

A impossibilidade de seguir com sua aptidão intelectual


por uma imposição social a seu sexo, a falta de professores e de
diálogos entre pares levou a freira a procurar, ao longo de sua
vida, o ensino mudo dos livros:

O que poderia ser satisfação para mim é na verdade supremo


trabalho não apenas por carecer de mestre, mas também de
condiscípulos com quem conferir e exercitar o que é estudado,
tendo apenas por mestre um livro mudo, por condiscípulo um
tinteiro mudo; e em vez de explicação e exercícios muitos
estorvos [...] (CRUZ, 2004, p. 450-451, tradução nossa)18.

Ao analisar as décimas de Cruz, Sabat de Rivers (1982b,


p. 705) recorda uma frase transmitida por Plutarco (cerca de
45-120 d.C.) e de autoria atribuída a Simônides de Ceos (556-448
a.C.) que poderia servir como epígrafe para alguns poemas de
Cruz: “A pintura é poesia muda e a poesia é pintura que fala”.

17  “Empecé a deprender gramática, en que creo no llegaron a veinte las


lecciones que tomé; y era tan intenso mi cuidado, que siendo así que en las
mujeres – y más en tan florida juventud – es tan apreciable el adorno natural
del cabello, yo me cortaba de él cuatro o seis dedos […] y con efecto le cortaba
en pena de la rudeza: que no me parecía razón que estuviese vestida de
cabellos cabeza que estaba tan desnuda de noticias, que era más apetecible
adorno” (CRUZ, 2004, p. 446.).
18  “Lo que sí pudiera ser descargo mío es el sumo trabajo no sólo en carecer
de maestro, sino de condiscípulos con quienes conferir y ejercitar lo estu-
diado, teniendo sólo por maestro un libro mudo, por condiscípulo un tintero
insensible; y en vez de explicación y ejercicio muchos estorbos [...]” (CRUZ,
2004, p. 450-451).

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A BUSCA PELO DIÁLOGO EM “ESTE, QUE VES,
ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

Se pensamos na situação da autora na sociedade de sua época,


podemos argumentar que a freira estava habituada a diálogos
mudos, a ter de ocultar ou disfarçar sua intenção ao escrever
suas ideias e assim ganhar voz e se inscrever nesse meio socio-
cultural. Esse foi o procedimento adotado por ela segundo o que
escreve em sua Respuesta a la Sor Filotea (1691).
As dificuldades vivenciadas pela novo-hispana se eviden-
ciam em sua vida e em sua obra, “sem dúvida ela viveu um conflito
interior bastante doloroso entre o que ela era e o modelo que a
sociedade de seu tempo lhe oferecia” (WISSMER, 1995, p. 647,
tradução nossa)19. Ainda que se possa pensar que a poeta tenha tido
na mãe um modelo de transgressão na sociedade americana da
época (SABAT DE RIVERS, 1982a, p. 275), na Respuesta a Sor Filotea, ela
faz uma verdadeira busca por mulheres fortes na história universal
para reforçar seus ideais e comprovar a capacidade feminina:

Confesso também que sendo isso verdade tal qual, como


eu disse, não precisava de exemplos, entretanto não me
deixaram de ajudar o muito que li, tanto nas divinas quanto
nas humanas letras (CRUZ, 2004, p. 460, tradução nossa)20.

Entretanto, esses modelos estão distantes de sua


realidade cotidiana. Se pensarmos nas possibilidades de um
verdadeiro diálogo intelectual, sua interlocutora mais próxima
e possível era a condessa de Paredes que, inclusive, colaborou
para que sua obra fosse publicada na Espanha

19  “sin duda tuvo un conflicto interior bastante doloroso entre lo que era y
el modelo que le ofrecía la sociedad de su tiempo” (WISSMER, 1995, p. 647).
20  “Confieso también que con ser esto verdad tal que, como he dicho, no
necesitaba de ejemplares, con todo no me han dejado de ayudar los muchos
que he leído, así en divinas como en humanas letras” (CRUZ, 2004, p. 460).

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ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

defendendo o direito de uma freira escrever, e atacando a santa


ignorância, [as publicações] exasperaram os inimigos de Sor
Juana que no México não suportavam nem essas lições dadas a
partir da Península (WISSMER, 1995, p. 642, tradução nossa)21.

Quando ela tentou expressar e debater suas ideias com a


de outro intelectual, homem e clérigo (sendo este seu superior na
hierarquia eclesiástica e social), na Crisis del Sermón, mais conhe-
cida como Carta Atenagórica (1690), recebeu uma reprimenda em
forma de carta, assinada por um homem que se disfarça de freira,
na qual é aconselhada a se dedicar a trabalhos religiosos.
No caso de Meireles, pode-se perceber que ela tinha mais
liberdade de expressão, mas não estava livre de algumas inter-
venções e censuras da crítica. Vivia uma situação em que havia
liberdade para que a mulher estudasse e trabalhasse (ainda não
era a maioria que o fazia, também não eram tantas as opor-
tunidades). Ademais, consta que tenha sofrido com algumas
restrições críticas, como no caso de Viagem, mesmo livro pelo
qual recebeu um prêmio da Academia Brasileira de Letras e
“ingressava na primeira linha dos poetas brasileiros, ao mesmo
tempo que se distinguia como a única figura universalizante do
movimento modernista” (DAMASCENO, 1983, p. 15).
A exclusão de seus três primeiros livros, Espectros (1919),
Nunca mais... e Poema dos poemas (1923) e Baladas para El-Rei (1925)
de sua obra poética teria sido, segundo alguns estudiosos,
uma decisão da própria autora (BOSI, 1986, p. 516). Outros
argumentam que isso ocorreu “devido à pressão de uma crítica

21  “defendiendo el derecho de escribir para una monja, y atacando la santa


ignorancia, [las publicaciones] exasperaron a los enemigos de Sor Juana
en México que no soportaron estas lecciones dadas desde la Península”
(WISSMER, 1995, p. 642).

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ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

preconceituosa que não via na autora destes volumes mais do


que um epígono simbolista, ou seja, passadista” (WINCK, 2007,
p. 133). Mas, sem dúvida, a possibilidade de um diálogo com a
crítica, com outros autores e com seu público já existia para
Meireles. Tanto é que em seu poema, “Retrato”, ela recorre a um
diálogo interior, pois não precisava criar, no âmbito da poesia,
um espaço que já estava constituído para se expressar.
Ilustra bem a diferença entre os dois poemas o conhecido
fragmento da Respuesta a la Sor Filotea (1691) no qual Cruz conta
que, quando menina, ela se vestiu com roupas masculinas e pediu
à sua mãe para ir à universidade. Ela sabia da impossibilidade que
sua condição de mulher lhe impunha, por isso, passados os anos,
optou por vestir-se de monja para se dedicar a trabalhos intelec-
tuais. Colombini (1996) comenta o modo como a freira se veste
com os papéis que são possíveis no mundo colonial hispânico para
responder à carta de Sor Filotea e finalmente manter suas ideias,
sua voz na sociedade. Podemos pensar que, em sua poesia, quando o
eu lírico promove um diálogo mudo com seu interlocutor, reproduz
de certo modo o que acontecia com sua obra na época. Ela até podia
estudar e escrever, mas não lhe era permitido discutir algumas
ideias ou discutir com algumas pessoas, em alguns âmbitos.
Asunción Lavrin (1995, p. 606, tradução nossa)22 dirá que
Cruz, assim como outras monjas da época, viviam uma tensão
entre os dois polos conceituais:

o dever de obediência à autoridade eclesiástica, contraposto


à urgência de reafirmar a própria existência através da
expressão intelectual e espiritual.

22  “el deber de la obediencia a la autoridad eclesiástica, contrapuesto a la


urgencia de reafirmar la existencia propia a través de la expresión intelectual
y espiritual” (LAVRIN, 1995, 606)

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A BUSCA PELO DIÁLOGO EM “ESTE, QUE VES,
ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

Segundo a crítica, havia uma rede de obrigações que abrangia


o que arcebispos, bispos, ministros provinciais das ordens religiosas
e as freiras faziam. Isso provocava a ocorrência de “numerosos
conflitos interiores e a reflexão sobre problemas com a autoridade,
obediência e desobediência” (LAVRIN, 1995, p. 606, tradução nossa)23.
Estudos sobre o papel do confessor das freiras indicam
que elas eram obrigadas a escrever com base em algumas regras
e como modo de dar conhecimento de suas virtudes. Essa escrita
servia somente como texto de base, pois havia um trabalho de
reescrita dessa vida. Nesse sentido, o confessor-editor decidia
que fatos seriam perpetuados para a posteridade:

O processo de edição, montagem e outras formas de manipu-


lação desse material bruto, até transformá-lo em exemplo de
conduta, deve ter produzido aspectos de grande interesse para
uma análise ideológica (VALDÉS, 1993, p. 475, tradução nossa)24.

Cruz, por sua vez, não se contenta com isso. Ela mesma
escreve sua história em suas cartas. Utilizando sua capacidade
argumentativa, expõe e reforça suas ideias, usando ironias e
perguntas retóricas. Desse modo, ela procura uma possibili-
dade, ainda que precária, para inscrever suas ideias no âmbito
da sociedade por meio de sua obra.
Se se pensa no poema analisado, observa-se uma espécie
de procedimento de montagem promovido por um eu poético
que quer fixar sua voz e não exatamente dar voz para que o

23  “numerosos choques entre sí, y a plantearse problemas de la autoridad,


obediencia y desobediencia” (LAVRIN, 1995, p. 606).
24  “El proceso de editing, montaje y otras formas de manipulación de este
material bruto, hasta transformarlo en ejemplo de conducta, debe haber tenido
aspectos de gran interés para el análisis ideológico” (VALDÉS, 1993, p. 475).

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LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

outro mostre e fixe a sua. Há uma construção que leva o leitor


para dentro desse jogo de espelhos e de supostos diálogos e dá a
impressão, em um primeiro momento, de liberdade de expressão
ao outro. A autora, ao mesmo tempo que sofre processo de edição,
usa sua capacidade intelectual para dele se livrar, a partir da
produção pela sua via de poder: a escrita. Desse modo, a freira
acaba por criar um espaço onde ela podia ter voz e interceptar
ou mediar a voz do outro. Já a poeta brasileira, até por ter mais
possibilidade de se expressar na sociedade de sua época e de criar
com mais liberdade sua obra, pode optar por um diálogo interior,
tratar da passagem do tempo, das mudanças em seu ser e, assim,
usar o espaço do poema para refletir sobre toda essa situação
humana sentida e lamentada como particular.
Para Cruz, o espaço do poema era precioso como um dos
papéis a ser disputado na sociedade colonial de hispano-américa.
Ao editar a voz do outro ou não optar pelo diálogo, ela, no espaço
onde tem poder de criar, reproduz o que sente e sofre:

[s]abe perfeitamente que a sociedade de seu tempo não tolera


mulheres que não cumprem com os deveres tradicionais, a saber,
os de boa esposa ou boa religiosa. Ela internalizou toda essa
mensagem negativa (WISSMER, 1995, p. 646, tradução nossa)25.

A poeta joga tanto com seu eu lírico quanto com o leitor,


que é considerado como participante da criação do poema, no
qual repousa o questionamento sobre a possibilidade de a arte e
do pensamento humano se perpetuarem no tempo. Assim como
procurava no mundo real a possibilidade de fazer considerações

25  “Sabe perfectamente que la sociedad de su tiempo no tolera mujeres que no


cumplen con los deberes tradicionales, es decir, los de buena esposa o buena
religiosa. Interiorizó todo este mensaje negativo” (WISSMER, 1995, p. 646).

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LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

filosóficas e estar a cada momento, a cada atividade, atada a


seu fazer literário, leva para seu mundo literário uma forma
solitária, mas possível de se pôr e de se impor no mundo.

Breve conclusão

Esta análise procurou mostrar que, para além da


distância temporal e espacial, algumas pontes podem ser esta-
belecidas entre a produção da poeta barroca do século XVII
– Soror Juana Inés de la Cruz – e a da modernista brasileira, no
século XX – Cecília Meireles. Por meio de uma análise formal,
ainda que não exaustiva, e temática dos poemas “Este, que ves,
engaño colorido,…” (CRUZ, 1976) e “Retrato” (MEIRELES, 1982),
foi possível perceber que, em meio a jogos de espelhos entre
retrato/retratada frequentes na estética barroca e presentes
no poema de Cruz, e na fragmentação metonímica do corpo, no
de Meireles, os sujeitos líricos de ambas buscam, ou talvez se
possa dizer, esboçam um diálogo. Entretanto, efetivamente, esse
diálogo não acontece. No caso da novo-hispana, ele é mediado
pelo eu poético construído pela poeta que, assim como ela,
tinha sua voz intermediada. Já o eu lírico no poema da brasi-
leira volta-se para as reflexões íntimas e busca promover um
diálogo interior construindo mais um retrato de si. Entretanto,
por meio da metáfora do retrato, desdobrada na do espelho,
presente nos dois poemas, é possível um diálogo entre tradição
e modernidade na América Latina.

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ENGAÑO COLORIDO…”, DE SOR JUANA INÉS DE
LA CRUZ E “RETRATO”, DE CECÍLIA MEIRELES

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156
ROSELI BARROS CUNHA
7
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

Samuel Anderson de Oliveira Lima

Um dos nossos poetas mais criati-


vos. [...] GM soube levar a mistura
de elementos do Barroco à própria
textura de sua linguagem, atra-
vés da miscigenação idiomática
de caldeamento tropical (Haroldo
de Campos, 2010, p. 209).

Prelúdio

Pensando no tema da americanidade transversal do Barroco, que


propõe o não congelamento desse estilo na centúria do XVII, apre-
sentamos ao leitor a voz barroquista de Gregório de Matos, também
com o objetivo de não a restringir ao ambiente cartesiano da Bahia
seiscentista. Propomos, com este estudo, levar a conhecer/ouvir
a voz desse poeta que foi transversal em tudo, em ser, em compor,
em viver, em não ser; a ouvir a voz de um poeta que produziu
uma obra que fala da sua terra, da sua gente e de seus costumes.
Gregório de Matos expôs a rotina da Bahia seiscentista e, com isso,
apresentou a dualidade do homem barroco, que está submerso
na melancolia, mas, ao mesmo tempo, está na festa, sorrindo. É,
portanto, por meio de sua linguagem tropicalizada que podemos
observar a construção dessa América barroca.
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

É curioso que, numa edição da obra completa de


Gregório de Matos (1999), James Amado reuniu um conjunto
de poemas sob o título Crônica do viver baiano seiscentista. De
fato, o conjunto de poemas gregorianos é de Gregório, seja ele
um homem, seja um produto coletivo. Essa obra é uma crônica
da vida baiana. Nela, há um mundo e barroco. É um mundo
revelado pela poesia. Em suas diversas formas poemáticas,
GM1 consegue retratar fielmente a diversão e o sofrimento
daquele povo – dualidade marcante do mundo barroco.
Trata-se de um homem que expõe, às claras, toda a rotina de
uma época. Ele nos mostra as veias abertas do Brasil, já de
início, somente dialogando com o título do livro de Eduardo
Galeano (2010). O poeta fala do que lhe é próprio. Nessa obra,
o retrato ondeante da cultura barroca foi pintado pela pena
gregoriana. Sua obra “traduz exemplarmente um processo
de apropriação da linguagem e da realidade, que é o próprio
processo do barroco brasileiro”, como nos assegura Affonso
Ávila (1994, p. 45, grifo do autor). Nessa direção, Francisco Ivan
da Silva (2013, p. 280) confirma:

A Bahia passa a ser um símbolo da Poesia de Gregório de


Matos. Qualquer acontecimento aí, por meio da linguagem
jocosa, popular, carnavalesca de seus poemas se converte em
um símbolo da situação original da Colônia e de sua gente.

GM pertencia à elite baiana da época e, portanto, deveria


ter estado ao lado dos poderosos: o Estado e a Igreja. No
entanto, não é o que percebemos na sua produção poética. Era
descendente de portugueses, seu avô foi um homem influente

1  Utilizaremos a sigla GM quando nos referirmos a Gregório de Matos.

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

na Bahia, chamava-se Pedro Gonçalves de Matos. Este veio


antes de 1626, da Vila de Guimarães em Portugal para a Bahia,
trazendo seu filho Gregório de Matos, pai do nosso poeta. Pedro
Gonçalves de Matos ascendeu socialmente muito rápido em
Salvador, homem de negócio, foi dono de um guindaste que
transportava mercadorias da cidade baixa para a cidade alta,
foi senhor de engenho e fazendeiro, conforme afirma Fernando
da Rocha Peres (1983). Embora tenha feito parte do grupo do
colonizador, ele “olha” satiricamente para as mazelas sociais
vivenciadas pelo grupo dos colonizados.

A crônica da vida barroca seiscentista

É sabido, pela maioria das pessoas que ouve falar de GM,


que o tema mais apreciado de sua poética é a sátira. “Sua sátira
rasga o tecido moralista social. A voz do poeta ecoa pelas ruas
da Cidade da Bahia, suas palavras tremem em sua boca, ardem,
combatem e atormentam” (SILVA, 2013, p. 271). É por meio dela
que o poeta critica o aumento do preço do açúcar, o aumento
dos impostos, que, por consequência, leva ao enriquecimento
ilícito dos governantes. Critica a usura dos padres, bem como os
encontros sexuais que estes mantinham com as negras. Critica a
hipocrisia da Igreja, embora a ela pertença diretamente, pois foi
tesoureiro-mor da Sé de Salvador, recebendo as ordens menores.
Critica também a dona de casa, o mentiroso, o ladrão. Isto é, sua
pena fere a todos, o que pode ser inferido a partir do seguinte
poema em que a persona poética descreve a rotina daquela gente:

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A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

DESCREVE O QUE ERA REALMENTE


NAQUELE TEMPO A CIDADE DA BAHIA DE
MAIS ENREDADA POR MENOS CONFUSA

A cada canto um grande conselheiro,


Que nos quer governar a cabana, e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um frequentado olheiro,


Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos Mulatos desavergonhados,


Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,


Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.
(MATOS, 1999, p. 33, v. 1).

Na descrição da Bahia barroca, Gregório esquadrinha


o outro, sob a perspectiva do olhar perscrutador, previsto na
curiosidade do homem barroco. Temos, portanto, a realidade
sendo substanciada pelo poema, como efeito da dobra ao
dobrar-se sobre si mesma, redobrando-se infinitamente. Nesse
caso, o poema discorre sobre a usura, criticando aqueles que não
sabem governar sequer “sua cozinha”, imagine assumir o governo
da Bahia. Em tese, o poema descreve as bases que sustentam a

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

sociedade baiana, bases corroídas pela leviandade, pela hipo-


crisia, pela ganância. A poesia gregoriana é também uma espécie
de “desmascaramento” de uma Bahia mal administrada, de um
poder público hipócrita, entre outras características. A persona
poética apresenta os tipos humanos que vão dar vida àquela
sociedade: “freqüentado olheiro”, “mulatos desavergonhados”,
“homens nobres”, “grande conselheiro”, e isso é feito de forma
realista. O leitor consegue delinear o cotidiano daquela cidade
viva e mordaz. Nesse sentido, Antonio Dimas (1983, p. 14) afirma
que a poesia gregoriana é o testemunho da condição colonial:

[...] Gregório de Matos converte a realidade em poesia, doma


a referencialidade linguística, ilumina cantos suspeitos da
sua sociedade e, desse modo, chega-nos um testemunho –
literário, é verdade – da condição colonial.

Triste Bahia é um daqueles poemas que, a começar pelo


primeiro conjunto de palavras, traz a voz de um olhar sobre
a cidade, num campo de visão que se distancia, mas também
se aproxima. Ancorado na questão do comércio de açúcar na
Bahia, o poema vai se desenrolando como um descenso que
parte da riqueza para a pobreza, do elogio para o escárnio. Vê-se
um Gregório de Matos indignado com o comércio exercido pelos
portugueses em terras baianas; critica o mesmo exercício feito
desde o descobrimento daquelas terras: a troca das riquezas
brasileiras por migalhas.

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A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

PONDO OS OLHOS PRIMEYRAMENTE NA SUA


CIDADE CONHECE, QUE OS MERCADORES SÃO
O PRYMEIRO MOVEL DA RUÍNA, EM QUE ARDE
PELAS MERCADORIAS INUTEIS, E ENGANOSAS

Triste Bahia! Oh quão dessemelhante


Estás, e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vejo eu já, tu a mim abundante.

A ti tocou-te a máquina mercante,


Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado
Tanto negócio, e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente


Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sangaz Brichote.

Oh se quisera Deus, que de repente


Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!
(MATOS, 1999, p. 333, v. 1)

Herdeiro de engenhos de açúcar na Bahia, o poeta sentiu


perfeitamente os dois estados dessa manufatura – a ascensão
e a queda. O Brasil enriqueceu seu algoz, nos primeiros séculos
da colonização, via produção açucareira, enquanto a Colônia
amargava a miséria. Antes, a Bahia havia prosperado, mas a
“máquina mercante”, com sua visão mercenária, provocou uma
crise intensa na vida do homem baiano. O poema conjuga esses

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

dois momentos – passado e presente – com os quais conviveu in


loco o Boca-do-Inferno. Seus olhos puseram pé na riqueza, que
aflorava da moagem da cana; e na pobreza, com as cinzas dos
engenhos açucareiros: “Triste Bahia! Oh quão dessemelhante/
Estás e estou do nosso antigo estado!”.
A construção “Nosso antigo estado” revela o encontro
entre o passado e o presente. Nesse sentido, as pessoas verbais
“eu” e “tu” configuram a cena em que os dois sujeitos são partí-
cipes do tom tão “dessemelhante”. Não há somente um olhar de
fora para dentro, observado diante da passividade, há também
um olhar da subjetividade, do envolvimento. “Eu” e “tu” estão
envolvidos nos resultados desse mercado de opressão, um que
observa o outro no espelhamento dos significados que a cena
evidencia. O instante de aproximação é intenso e ao mesmo
tempo os dois observam a máquina mercante diluir as riquezas
daquela terra. Segundo Alfredo Bosi (1994, p. 96), a máquina
mercante é “uma arguta metonímica do sistema inteiro, o
mercantilismo”. O “antigo estado” situacional a que se refere
o poema também indica a crise existencial pela qual passava o
homem barroco da Colônia, por isso, a intensidade com que a
persona poética descreve os fatos é extrema, quase perceptível
aos olhos do leitor. Metonimicamente, o poema vai revelando,
como uma moeda de duas caras, os dois lados dessa crise,
pessoal e socioeconômica. Crise esta que estabelece os rumos
para a proliferação do mundo barroco.
Outro tema caro ao Barroco é a festa, motivo que esteve
presente nas obras do século XVII e que é valorizado pelos
pensadores na modernidade a fim de compreenderem com mais
amplitude o fenômeno do Barroco na América, como nos explica
Samuel Arriarán (2011, p. 182) “la idea del barroco como fiesta y
derroche parece tener más vigencia en un contexto posmoderno

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

el cual obliga a repensar la crisis de la globalización”2. O Barroco


é pensado, sob essa ótica, como um movimento que não tem
circunscrição, não está marcado pelas algemas da História. Em
uma exposição sobre o pensamento barroco de Lezama Lima,
Samuel Arriarán (2011, p. 168-169) afirma:

Esto se puede comprender por su peculiar definición del


barroco como un movimiento que no se desarrolla en un
determinado momento histórico (el siglo XVII), sino como
manifestación estilística en diversas épocas3.

Nesse sentido, o Barroco é transtemporal, invade as


épocas, é uma constante universal que não está amarrada ao
simples datar da História comum.
Há um poema bem característico dessa crônica do viver
baiano seiscentista:

2  As traduções feitas neste trabalho são de nossa autoria. “A ideia do Barroco


como festa e esbanjamento parece ter mais vigência em um contexto pós-mo-
derno, o qual obriga-nos a repensar a crise da globalização” (ARRIARÁN,
2011, p. 182).
3  “Isto pode ser comprovado por sua definição peculiar do Barroco como um
movimento que não se desenvolve em um determinado momento histórico
(o século XVII), senão como manifestação estilística em épocas diversas”
(ARRIARÁN, 2011, p. 168-169).

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A AMERICANIDADE BARROCA
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DESCREVE A CONFUSÃO DO FESTEJO


DO ENTRUDO4.

Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,


Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,
Os perus em poder do Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas.

Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,


Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o Taverneiro,
Com réstias de cebolas dar pancadas.

Das janelas com tanhos dar nas gentes,


A buzina tanger, quebrar panelas,
Querer um só dia comer tudo.

Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,


Despejar pratos, e alimpar tigelas,
Estas as festas são do Santo Entrudo.
(MATOS, 1999, p. 447, v. 1).

4  O Entrudo foi trazido pelos portugueses no século XVI, e consistia em brin-


cadeiras de vários tipos e eram diferentes de acordo com o grupo social, no
período correspondente ao carnaval. Havia o entrudo mais comedido, realizado
nas casas senhoriais, entre os ricos da época. E o mais festivo, realizado nas
ruas pelos escravos e pelo povo. Neste, o intuito era divertir-se, extravasando
todas as angústias pelas quais passavam. Costumava-se jogar líquidos e restos
de comidas nas pessoas, inclusive urina, sêmen etc. (DEL PRIORE, 2000). Mas, de
acordo com Antonio Risério (2004, p. 561), o entrudo foi proibido no século XIX.
Ele explica: “Motivo: a Bahia, como o Brasil, precisa ‘civilizar-se’. Por sua violência
anárquica, o entrudo passou a ser visto, naquela época, como coisa de bárbaros”.

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A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

Na primeira estrofe, percebe-se uma abundância de


comidas que seria contrastada pela abstinência durante a
Quaresma, instaurando nisso o universo do Barroco, pois existia
uma crise crônica na Colônia. Havia muita fome, mas a festa
fazia a inversão do tempo de crise. Comer e brincar revelavam
um estado do “devir”, o momento da ruptura com o tempo da
abstinência. Nas outras estrofes, a persona poética vai descrevendo
essa relação de comer em abundância e brincar com essa comida
que era jogada nas pessoas. Para Mary Del Priore (2000, p. 107),

o comestível, a farinha, a cebola, a laranja viram brinquedo


durante o entrudo, mas um brinquedo cuja significação
simbólica é a vingança contra a abstinência obrigatória.

Na festa, o espírito era de alegria, de liberdade, mesmo


que mascarada. Na sequência, o verso “querer um só dia comer
tudo” representa o espírito da festa barroca, na qual se estabe-
lecia o princípio da abundância, do exagero. Nesse sentido, o
espírito carnavalizante dos folguedos medievais está presente
no Brasil com a mesma carga semântica, ou seja, representa a
ambivalência daquele mundo.
Bakhtin considera que o homem medieval só se sentia
homem de verdade na festa popular, quando ele se voltava a si
mesmo e se sentia partícipe do mundo:

Em primeiro lugar [...] o carnaval é a única festa que o povo se


dá a si mesmo, o povo não recebe nada, não sente veneração
por ninguém, ele se sente o senhor, e unicamente o senhor
(não há convidados, nem espectadores, todos são senhores);
em segundo lugar, a multidão é tudo menos melancólica:

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
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desde que o sinal da festa soa, todos, mesmo os mais graves,


depõem sua gravidade (BAKHTIN, 2010, p. 217-218).

É um verdadeiro roteiro gastronômico do Brasil seiscen-


tista. As estrofes trazem algumas comidas que faziam parte
daquele cotidiano: filhós, fatias, sonhos, mal-assadas, arroz,
cuscuz quente, laranjadas; faz também uma enumeração de
animais a ser servida: galinhas, porco, vaca, carneiro, peru. Os
verbos, por sua vez, descrevem as ações daquela festa: enfari-
nhar, pôr rabos, dar risadas, quebrar panelas, despejar pratos,
alimpar tigelas, tanger a buzina, a maioria deles do universo
da alimentação. Esse é um dos poemas mais ilustrativos do
carnaval, resume e expande ao mesmo tempo o cerne dessa
festa, que é também a representante do Barroco, no sentido da
presença da dualidade.
Gregório se mostra tropicalizado. Desse modo, revela sua
americanidade ao trazer ao Barroco literário o modus vivendi
da gente brasileira, apropriando-se da língua, dos gestos, da
comida, das festas, dos rituais. Para Ávila (1994, p. 44):

[...] é já o homem europeu tropicalizado e reagindo ao instru-


mento linguístico de que se apropria, é o artista que, sob o
impacto de uma ordem original de fatores – de intuição, de
imaginação, de concepção – decorrentes de uma realidade
nova, viabiliza pela primeira vez uma saída brasileira na
expressão literária de língua portuguesa.

Ainda no ambiente dos costumes seiscentistas, há um


poema em que o autor descreve a maneira como as mulatas
bailavam o paturi:

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

Ao som de uma guitarilha,


Que tocava um calomim (curumim)
Vi bailar na Água Brusca
As Mulatas do Brasil:
Que bem bailam as Mulatas,
Que bem bailam o paturi.

Não usam de castanhetas,


porque cos dedos gentis
fazem tal estropeada,
que de ouvi-las me estrugi:
Que bem bailam as Mulatas,
Que bem bailam o paturi.

Atadas pelas virilhas


cuma cinta de carmesim,
de ver tão grandes barrigas
lhe tremiam os quadris.
Que bem bailam as Mulatas,
Que bem bailam o paturi.

Assim as saias levantam


para os pés lhe descobrir,
porque sirvam de ponteiros
à discípula aprendiz,
Que bem bailam as Mulatas,
Que bem bailam o paturi.
(MATOS, 1999, p. 447-448, v. 1).

Perceba que o poema em quatro sextilhas tem um estribilho


ao final de cada estrofe, sendo este um processo de repetição

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

muito presente no Barroco. Pelos olhos da persona poética, é possível


observar todo o desenrolar da cena, ou seja, o poema segue um
percurso que vai descrevendo, do início ao fim, a ação das mulatas
dançando o paturi. A cena evidencia o modo como a mulata dança,
usando os dedos (no lugar das castanholas) para dar ritmo às batidas
(estropeadas) e segue até a descrição das roupas que, ao rodopiar no
chão batido, formam a imagem de um pião. A terceira estrofe, por sua
vez, apresenta o aspecto da sedução. As mulatas eram malemolentes
e seduziam facilmente. Dançar o paturi – com a barriga à mostra, as
saias levantadas e mexendo os quadris – transforma as mulatas em
mulheres sedutoras, em objetos de desejo dos homens da colônia.
Neste próximo soneto, o poeta descreve a cidade do Recife:

Por entre o Beberibe, e o Oceano


Em uma areia sáfia, e lagadiça
Jaz o Recife povoação mestiça,
Que o Belga edificou ímpio tirano.

O Povo é pouco, e muito pouco urbano,


Que vive à mercê de uma lingüiça,
Unha-de-velha insípida enfermiça,
E camarões de charco em todo o ano.

As Damas cortesãs, e por rasgadas


Olhas podridas, são, e pestilências,
Elas com purgações, nunca purgadas.

Mas a culpa têm vossas reverências,


Pois as trazem rompidas, e escaladas
Com cordões, com bentinhos, e indulgências
(MATOS, 1999, p. 1191, v. 2).

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A AMERICANIDADE BARROCA
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Segundo seus biógrafos, GM foi degredado para Angola


motivado por sua assoladora língua que vertia fel aos desmandos
do Governo e da Igreja. Após seu exílio na África, GM retorna ao
país e vai viver seus últimos dias em Pernambuco. Esse poema
começa descrevendo a capital pernambucana por sua geografia,
apresenta o rio e a areia que sedimenta as ilhas recifenses. Os
poetas barrocos tinham predileção por escrever sobre a cidade.
Como exemplo, temos o célebre poema de Gôngora, A Córdoba.
Nessa perspectiva, Francisco Ivan da Silva (2013, p. 286-287)
comenta sobre essa predileção dos poetas barrocos:

Em suas direções mais diversas, a cidade foi o ponto focal dos


autores barrocos. A visão que tiveram os autores Barrocos da
cidade é teatral, monumental, violenta e moderna; critica-
mente, moderna.

Da segunda estrofe em diante, o poema descreve o povo,


reconstrói a imagem daquela gente humilde, pobre, sedenta. Essa
descrição não difere muito dos poemas que falam dos baianos. É um
povo que sofre e vive à mercê dos governantes. É um povo faminto
que busca por comida: linguiça, unha (presunto) e camarões.
Nos tercetos, o poema se dedica às cortesãs. Elas são
descritas como escória da sociedade, cheias de feridas e pesti-
lências, com mal odor (olhas podridas). Mas a culpa é devotada
aos sacerdotes, aos curas, aos clérigos, “mas a culpa têm vossas
reverências”. Ou seja, o poeta verte mais uma vez sua sátira
contra a Igreja. O poema denuncia, metonimicamente, os
encontros libidinosos entre os padres e as cortesãs. A socie-
dade religiosa do Recife é exposta à praça pública. Gregório
nos mostra o retrato daquela cidade que não é tão diferente de
Salvador. Os costumes parecem ser os mesmos.

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

Ainda sobre Pernambuco, há um poema bastante signifi-


cativo, do ponto de vista da cultura barroca no Brasil, em que o
poeta descreve a procissão da quarta-feira de cinzas:

Um negro magro em sufilié mui justo,


Dous azorragues de um Joá pendentes,
Barbado o Peres, mais dous penitentes,
Com asas seis crianças sem mais custo.

De vermelho o Mulato mais robusto,


Três meninos Fradinhos inocentes,
Dez, ou doze Brichotes mui agentes,
Vinte, ou trinta canelas de ombro onusto.

Sem débita reverência seis andores,


Um pendão de algodão tinto em tijuco,
Em fileira dez pares de Menores:

Atrás um negro, um cego, um Mamaluco,


Três lotes de rapazes gritadores,
É a Procissão de cinza em Pernambuco.
(MATOS, 1999, p. 1192, v. 2).

Estamos diante do ambiente religioso e a Igreja fazia


parte cotidianamente da vida colonial, conforme atesta Affonso
Ávila (2004, p. 18):

A igreja, como seria natural, presidia com seus dogmas,


valores e ritos o exercício individual e coletivo das popula-
ções, constituindo seu calendário litúrgico e suas festividades
sazonais ou esporádicas o fulcro de manifestações não só

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

devocionais ou de lazer congregativo, mas também e prin-


cipalmente da circularidade de componentes culturais e
artísticos, de permanência ou efemeridade, marcados pelo
vivo processo persuasório e lúdico de fundo residual barroco.

O que nos chama a atenção no poema é a riqueza do deta-


lhamento da procissão. GM vai descrevendo passo a passo a cena
daquela marcha solene sem revelar do que se trata, fazendo-o
somente no último verso do soneto. Outro detalhe importante
é a linguagem, com escolhas lexicais voltadas especificamente
para o universo colonial. Ela indica um código, linguagem
ambígua, dissimulada, que mescla uma atmosfera entre a língua
culta, das academias; e a coloquial, das ruas e dos bares. Para
Francisco Ivan da Silva (2013, p. 288), Gregório de Matos

[...] escreveu no idioma de seu tempo; um idioma culto e


ibérico, sem deixar de mesclar esse idioma culto com toda
classe de desafios linguísticos com o repertório lexico-
gráfico brasileiro, que realçava sua originalidade com seu
sotaque nítido, com sua dicção pessoal e uma contaminação
exagerada de expressões e palavras do tupi e do africano,
carregando assim a sua linguagem com fortes pinceladas
das cores brasílicas fazendo transparecer o Barroco tropical
da paisagem brasileira em sua natureza, em sua realidade
linguística, social, religiosa e cultural.

A poesia gregoriana traduz-se por uma entonação


brasileira voltada para a comunicação. Sua obra apresenta esse
repertório lexicográfico brasileiro de que fala Francisco Ivan,
haja vista um repositório de termos próprios daquela época,
como um caldeamento tropical na descrição das festas, das

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

danças, das procissões, das traições, dos roubos etc. Em cada


poema, e, especialmente, nos que trazem o quadro dos costumes
sociais, o leitor terá acesso ao grupo linguístico barroco que
foi transplantado da Europa para o Brasil, demonstrando o
encontro entre o continente europeizado e o tropical. Esse
encontro/choque provoca a antropofagia. “A arte transplantada
entra em contato com a nossa nova dimensão do mundo, uma
nova realidade, novas cores” (ÁVILA, 2004, p. 47).
Temos analisado até então poemas que descrevem o
ambiente colonial seiscentista brasileiro, que muitas vezes
não se projeta para nossa realidade atual. No entanto, existe
um conjunto de poemas que é o reflexo perfeito do cenário
em que estamos vivendo. Daí o Barroco ser essa constante
universal, atemporal, e Gregório ser tão moderno hoje quanto
o foi naquela época. Para compreendermos esse cenário, preci-
samos nos voltar para a compreensão do Barroco. Acreditamos
que é urgente esse retorno como o foi no início do século XX
com a revalorização da cultura barroca empreendida em todo
o mundo, especialmente na Espanha e na América do Sul.
Segundo Samuel Arriarán (2007, p. 22),

si queremos comprender la realidad actual, necesitamos


recurrir no sólo al concepto de barroco en su formulación
inicial (tal como lo postula Bolívar Echeverría reducido al
siglo XVII) sino a las condiciones impuestas por el proceso
de la globalización, el neoliberalismo y la posmodernidad5.

5  “Se queremos compreender a realidade atual, necessitamos recorrer


não somente ao conceito de Barroco em sua formulação inicial (tal como
foi postulado por Bolívar Echeverría reduzindo-o ao século XVII) senão às
condições impostas pelo processo da globalização, do neoliberalismo e da
pós-modernidade” (ARRIARÁN, 2011, p. 22).

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

No Epílogo que segue, do qual participam diversas vozes


– a do eu que interpela e a do outro que responde –, podemos
enxergar uma realidade sem tempo definido. O espaço sati-
rizado é o da Bahia colonial, mas também pode ser qualquer
outra cidade em qualquer outro tempo. Esse poema é típico dos
jograis, com participação ativa do público e causador do riso
carnavalesco da sátira gregoriana. É possível imaginar a garga-
lhada satírica daquele povo que vivia sob as ameaças constantes
do poder colonial, um poder hipócrita e sem vergonha.

Que falta nesta cidade?... Verdade.


Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,


Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.


Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.


Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

Dou ao Demo os insensatos,


Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.


Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

Os círios lá vem aos centos, 


E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda?... Bastarda.


É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa


O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.


E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha.

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

E nos frades há manqueiras?... Freiras.


Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas


Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.

O açúcar já acabou?... Baixou.


E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.


Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.

Quem haverá que tal pense,


Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.
(MATOS, 1999, p. 56-58, v. 1)

Samuel Arriarán (2007, p. 13) justifica o estudo e a reva-


lorização do Barroco em nossos dias da seguinte maneira:

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

lo que justifica hoy el estudio y revaloración del barroco


en América Latina es el requerimiento del pasado y una
reanudación del interés por temas que parecían superados
o excluidos por las políticas desarrollistas modernizantes y
por los teóricos cientificistas y tecnocráticos6.

Isso está posto no poema em análise. Mais uma vez,


o poeta critica as instâncias do poder da Bahia projetando-as
para qualquer lugar. Começa pela cidade, expondo-a à ridicula-
rização, uma cidade em que faltam “Verdade, honra, vergonha”,
onde os poderosos são “acometidos” pelo pecado da usura, da
ambição. GM dá sequência com a exposição satirizante dos
homens daquele lugar: pretos, mestiços, mulatos, meirinhos,
guardas, sargentos, todos figuram como motivo da cena satí-
rica. Gregório de Matos não poupa ninguém em sua pena jocosa.
Da Igreja, ele ataca a Santa Sé, onde “o que mais se pratica é/
Simonia, inveja e unha”; critica o clero, afirmando que um frade
se ocupa de “freiras, sermões e putas”. É um poema em cujo
cerne busca expor aquela sociedade hipócrita, desde o homem
das ruas aos mais poderosos, aos da Igreja enclausurados em
seus aposentos cheios de “pecado”. Esse retrato social daquela
Bahia pode perfeitamente ser reportado à nossa sociedade
atual, em que os mesmos abusos são cometidos, os mesmos sons
são ouvidos. É o Barroco em seu mais perfeito traço moderno.

6  “O que justifica atualmente o estudo e a revalorização do Barroco na


América Latina é o requerimento do passado e a retomada do interesse por
temas que pareciam superados ou excluídos pelas políticas de desenvolvi-
mento modernas e pelos teóricos cientificistas e tecnocráticos” (ARRIARÁN,
2011, p. 13).

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

Epílogo

Neste texto, apresentamos a voz de Gregório de Matos a partir


de seus poemas que denunciam a hipocrisia da igreja, do Estado, dos
governantes; que descrevem simplesmente a geografia das cidades,
que retratam os costumes. Isso para demonstrar que nosso poeta
barroco é tropical, é brasileiro, é americano, é universal. Sua pátria
é a linguagem barroca de seus versos. Sua pátria é o verbo tropical
das danças africanas inseridas no cotidiano da Colônia. Sua pátria
é a metáfora da hipocrisia da igreja revelada pelas ações descabidas
dos clérigos. Para concluir sobre a americanidade de Gregório de
Matos, damos voz a Affonso Ávila (2004, p. 48), quando afirma que
não há povo mais barroco que o povo sul-americano:

Não existe povo mais barroco, dialógico e cheio de contra-


pontos ou contradições permanentes entre o bem e o mal, o
belo e o feio, o agressivo e o pacífico, a profusão e a carência,
os grandes paradoxos que se confluem no barroco, do que o
povo latino-americano.

Esse é Gregório de Matos, essa é sua moldura barroca,


decorada com poesia de fino trato, produto do solo americano
onde plantou suas raízes. Não está só, não existe sozinho. Ele é a
consciência de uma poesia refinada pela pérola da ilha Broaki, é
um emblema em homenagem a Apolo, o deus sol, o guia das suas
penas, da evocação da vida e da morte, evocação da linguagem que
eleva as últimas consequências de seu código. Transversal, imortal,
transtemporal, fugidio, livre, visionário, obsceno,

é um poeta que tem consciência de sua realidade. Sabe que é


poeta, parece saber que escrever sobre a realidade de seu tempo

178
SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

é seu dever e seu destino. Sabe que só ele mesmo nos dará a visão
do estado original da formação brasileira. Ele é a consciência
crítica da Poesia Brasileira Seiscentista (SILVA, 2013, p. 292).

É um poeta que tem (e não tem) Verdade, Honra e Vergonha.

179
SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

Referências

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5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. (Debates, 16).

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SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
A AMERICANIDADE BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América


Latina. Porto Alegre: L&PM, 2010.

HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório


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Ateliê Editorial; Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.

MATOS, Gregório de. Crônica do viver baiano


seiscentista. Obra poética completa, edição de James
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PERES, Fernando da Rocha. Gregório de Mattos e Guerra:


uma re-visão biográfica. Salvador: Edições Macunaíma, 1983.

RISÉRIO, Antonio. Uma história da cidade da


Bahia. 2. ed. Rio de Janeiro: Versal, 2004.

SILVA, Francisco Ivan da. Ensaios para um


concerto barroco. Natal: EDUFRN, 2013.

181
SAMUEL ANDERSON DE OLIVEIRA LIMA
8
ESTUDAR MANUEL BOTELHO
DE OLIVEIRA HOJE
PERSPECTIVAS E PROPOSTAS

Yuri Brunello
Erimar Wanderson da Cunha Cruz

Música do Parnasso é um conjunto de poemas publicado em 1705,


em volume, por Manuel Botelho de Oliveira1. O autor apresenta
o seu trabalho lírico, no prólogo, como a primeira antologia
poética publicada de forma impressa por um brasileiro. Ivan
Teixeira lembra que, entre o final do século XIX e o início
do século XX, críticos e estudiosos, entre os quais Cônego
Fernandes Pinheiro, Sílvio Romero e José Veríssimo, rejeitaram
o texto de Botelho de Oliveira como uma consequência da
“frivolidade do espírito barroco” (TEIXEIRA, 2001, p. 180).
Ainda na trilha do renovado interesse por Botelho de
Oliveira, demonstrado por personalidades como Haroldo de
Campos e João Carlos Teixeira Gomes, nos últimos anos, diversos
estudiosos, entre os quais: Leopoldo Bernucci, Adma Muhana e
o próprio Ivan Teixeira, contribuíram para resgatar a figura de
Botelho de Oliveira e os recursos do seu barroco. Nesse sentido,
Carmelina Almeida, no primeiro trabalho monográfico dedicado
em 1975 às relações existentes entre Botelho e o poeta barroco

1  O presente artigo nasceu do projeto de Pesquisa Manuel Botelho de


Oliveira e a nova Grécia, contemplado pela Chamada Universal MCTI/CNPq
nº 1/2016, do qual constitui um dos desdobramentos.
ESTUDAR MANUEL BOTELHO
DE OLIVEIRA HOJE

italiano, Giambattista Marino, havia observado que Botelho sabe


camuflar a derivação de vários poetas de maneira particular-
mente harmônica. Em seguida, acrescenta que o poeta brasileiro,
investigando em territórios alheios, dificilmente se traiu aos
olhos daqueles que não pesquisaram em profundidade as fontes
originais, como Marino, por exemplo. Para todos os efeitos, na
arte de Botelho – e não somente na trilha da flexibilidade meta-
mórfica e na agilidade combinatória –, a matriz barroca aparece
particularmente descoberta, e se constitui um elemento-chave.
Prova disso são os topoi do século XVII, imediatamente
retomados e organicamente integrados ao próprio discurso
artístico de Botelho, como aquele da imagem refletida no
espelho, aquele da contemplação policromática e multissen-
sorial da rosa e aquele do retrato feminino. Mas há, sobretudo,
o recurso ao virtuosismo técnico, ao engenhoso barroco,
elementos claramente expostos na poliglossia anunciada come-
çando com o título: Musica do Parnaso dividida em quatro coros de
rimas portuguezas, castelhanas, italianas e latinas, com seu descante
comico reduzido em duas comedias. A obra de 1705, na verdade, é
uma antologia dividida, precisamente, em quatro “coros”, cada
um dos quais é constituído por rimas portuguesas (o primeiro
coro), castelhanas (o segundo coro), italianas (o terceiro coro)
e latinas (o quarto coro). Botelho escreve, em suma, em quatro
línguas. Essa opção pela diversidade linguística, no entanto,
corresponde, de igual modo, à decisiva escolha do emprego –
na produção de um estilo barroco da hiperliterariedade – de
múltiplas referências intertextuais, de invocações a diversas
realidades e formações discursivas.
Como tão bem mostrou Rogério Chociay (1992, p. 207), a
produção poética de Botelho – não só Música do Parnasso mas
também a coletânea de poemas manuscritos, inédito até 1971,

YURI BRUNELLO 183


ERIMAR WANDERSON DA CUNHA CRUZ
ESTUDAR MANUEL BOTELHO
DE OLIVEIRA HOJE

Lira sacra – registra a confluência de três fontes diferentes:


a greco-latina, a ibérica (portuguesa e castelhana) e a italiana.
É a esta última que queremos voltar a nossa atenção crítica e
analítica durante a pesquisa que nos propomos a desenvolver.
Entre os paradigmas literários com os quais Botelho é confron-
tado, o tassiano-marinista, em nossa opinião, distingue-se,
comparado aos outros, por relevância. As razões para um forte
interesse nas discussões, tanto da tradição literária italiana
pré-renascentista e renascentista como – e especialmente – da
maneirista e da barroca, são muitas e variadas; e são, princi-
palmente, de natureza política, estilística e cultural.
O primeiro poeta brasileiro, ao fundar um novo cânone
“lusoamericano”, individua, na literatura italiana moderna e
contemporânea, o elemento-ponte entre a cultura portuguesa e
a brasileira, ainda a ser construída. Defendemos que o interesse
de Botelho de Oliveira em relação à tradição literária italiana
deriva de uma motivação tanto de ordem política quanto de
ordem estritamente estilística e de ordem sociocultural. Vamos
tentar enquadrar a questão da maneira apropriada, colocando
corretamente em foco as principais coordenadas.
Sérgio Buarque de Holanda incluiu o poema de Botelho
em uma mais geral “reação contra o espanholismo literário”
(1991, p. 56). Isso parece óbvio no texto programático que
Botelho apresenta na abertura do volume, uma verdadeira
declaração de poética, ou seja, uma dedicatória ao Duque de
Cadaval. O poeta afirma que “como as musas [...] ultimamente se
transferiram para Espanha” (BOTELHO DE OLIVEIRA, 2005, p. 6),
em Portugal, a “ilustre parte das Espanhas, se naturalizaram”
(BOTELHO DE OLIVEIRA, 2005, p. 6), expressando com isso o
papel da emulação como parte fundamental da poesia elevada.
Oportunamente, Marcello Moreira (2006, p. 147) lembra-nos que,

YURI BRUNELLO 184


ERIMAR WANDERSON DA CUNHA CRUZ
ESTUDAR MANUEL BOTELHO
DE OLIVEIRA HOJE

quando em Musica do Parnasso “se louva a poesia das Espanhas,


de que Portugal é parte, louva-se a poesia produzida na América
portuguesa, membro do corpo político do Estado português”.
A hegemonia literária espanhola sobre a Europa configura-se
como um fenômeno transitório, aos olhos de Botelho de Oliveira,
ao contrário do imediatamente próximo – mas muito mais
duradouro – prestígio português, do qual Botelho de Oliveira
propõe-se a ser porta-bandeira e paladino em solo americano.
Há, ainda, mais um traço de tipo ideologicamente “anties-
panhol”, embora, desta vez, tenha relação com uma questão de
natureza puramente formal. Referimo-nos à organização métrica
da Música do Parnasso. Na coletânea de Botelho de Oliveira, veri-
fica-se um fenômeno de divergência entre a poesia de língua
espanhola e a de língua portuguesa. Conforme observa Rogério
Chociay (1992, p. 210), na primeira, prevalece a medida velha
(pouco mais de um sexto dos versos é exceção), enquanto que na
última, o que domina é a medida nova, que ocupa mais do que
dois terços dos versos em português, e – como é óbvio – os cem
escritos em italiano. Sistemas estróficos como a redondilha ou a
quintilha apresentam-se como expressões de uma versificação
superada, como proposta pelos trovadores galego-portugueses.
No entanto, a poesia contemporânea apresenta notoriamente o
selo da nova medida, que afunda as próprias raízes no coração
da “modernidade” literária italiana, aquela que Francisco Sá de
Miranda, na primeira metade do século XVI, torna conhecida
em Portugal, no final dos seis anos que ele passou na Itália.
Compreenderemos isso porque, falando de Itália moderna,
Botelho (2005, p. 6) caracteriza-a – na sua dedicatória de aber-
tura – como uma Grécia renovada: “Transformou-se a Itália em
uma nova Grécia” (2005, p. 6), e as musas “na mesma Itália se
reproduziram no grande Tasso e delicioso Marino” (2005, p. 6).

YURI BRUNELLO 185


ERIMAR WANDERSON DA CUNHA CRUZ
ESTUDAR MANUEL BOTELHO
DE OLIVEIRA HOJE

O fato de que Botelho olhe para Tasso e Marino – em


vez de para Dante e do Petrarca cultuado por Sá de Miranda
– configura-se também como um dado não puramente métri-
co-formal, mas que pode relacionar-se a uma específica visão
do mundo, a uma ideia bem precisa de cultura e sociedade.
Botelho, dirigindo-se ao Duque de Cadaval, parece consciente
do seu papel de pioneiro e fundador de uma nova tradição, a
das letras brasileiras:

Ao meu [entendimento], posto que inferior aos de que é tão


fértil este país, ditaram as Musas as presentes rimas, que
me resolvi expor à publicidade de todos, para ao menos ser
o primeiro filho do Brasil que faça pública a suavidade do
metro, já que o não sou em merecer outros maiores créditos
na Poesia (BOTELHO DE OLIVEIRA, 2005, p. 7).

A Itália é indicada por Botelho (2005, p. 6) como a terra


onde “de novo renasceram as musas”. Daí a razão pela qual a
literatura portuguesa teve de olhar para a Itália humanista-
-renascentista a fim de renovar-se. Também Botelho, para dar
lugar a uma nova tradição, a brasileira, não se inspira no cânone
que tinha servido como guia para Sá de Miranda, mas lança o
próprio olhar na direção de outro cânone: o da engenhosidade
barroca. Assim ele escreve:

Nesta América, inculta habitação antigamente de bárbaros


índios, mal se podia esperar que as Musas se fizessem brasi-
leiras; contudo quiseram também passar-se a este empório,
aonde como a doçura do açúcar é tão simpática com a suavi-
dade do seu canto, acharam muitos engenhos, que imitando
aos poetas de Itália, e Espanha, se aplicassem a tão discreto

YURI BRUNELLO 186


ERIMAR WANDERSON DA CUNHA CRUZ
ESTUDAR MANUEL BOTELHO
DE OLIVEIRA HOJE

entretenimento, para que se não queixasse esta última parte


do mundo que, assim como Apolo lhe comunica os raios para
os dias, lhe negasse as luzes para os entendimentos (BOTELHO
DE OLIVEIRA, 2005, p. 6-7).

Eis que retornam no discurso de Botelho de Oliveira os


poetas italianos, os quais antecederam os espanhóis na lista
dos modelos a ser imitados; nesse caso, ainda estão, portanto,
os poetas italianos, embora não se trate dos líricos ligados à
cultura renascentista ou pré-renascentista, mas de escritores
da moda: os escritores barrocos, os poetas da inteligência,
do conceptismo, do “engenho”. Sob essa ótica, o vocábulo
“engenho” adquire, nesse excerto, um duplo sentido, não
simplesmente estético-criativo mas também mais ampla-
mente cultural, social, referindo-se tanto à estética do século
XVII quanto aos meios para a produção do açúcar, conforme
observou, em 2005, Adma Muhana na sua introdução à Música
do Parnasso (BOTELHO DE OLIVEIRA, p. LXXIII).
Não se deve subestimar esta última referência ao contexto
brasileiro específico. É a partir do empório e do engenho – e não,
segundo Botelho, da bárbara cultura indígena – que se alcança
civilização e arte poética. O “selvagem” Brasil não tem uma
história própria. O primeiro contato que o Brasil estabelece com
a história e com a “razão universal” é aquele com a moderna
civilização europeia em crescente desenvolvimento. O “canto”
das Musas da época de Botelho, ou seja, das Musas naturalizadas
em Portugal, é considerado pelo poeta brasileiro em perfeita
harmonia com “a doçura do açúcar”, planta que – ao contrário
do tabaco local – foi transportada por Cristóvão Colombo em
1493 às Américas. Desenvolvimento técnico e técnica poética,
na verdade, andam de mãos dadas, de acordo com a concepção

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ERIMAR WANDERSON DA CUNHA CRUZ
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historicista da evolução da poesia expressa na dedicatória ao


Duque de Cadaval.
Por sua vez, Adma Muhana (2011, p. 38) ilustrou, de forma
persuasiva, como o gosto de Tasso pelo estilo “florido e orna-
mentado” e o termo “maravilhoso” escolhido em chave melódica
por Giambattista Marino estão presentes em uma estética “da
materialidade sonora das palavras e sua composição eufônica”
contraposta àquela platônico-aristotélica centrada “principal-
mente na representação conceitual por meio das palavras”. Tasso
e Marino representam, na poesia italiana maneirista e barroca,
a linha tecnicamente mais sofisticada e “desenvolvida”. Eis
algumas considerações de Muhana (2011, p. 38):

É sobretudo na “suavidade do metro”, ambicionada pelo


poeta da Ilha de Maré, que se reconhece o modelo da poesia
de Marino, emulada no léxico, nas rimas, nos vocativos, nos
ritmos, nas imagens e nas tópicas marinianas, e isso não só
nos poemas italianos de Botelho de Oliveira, como em poemas
seus portugueses e castelhanos. É certo que essa imitação
tem diversos intermediários – em particular, Lope de Vega
e Gôngora –, o que minimiza a importância da identificação
das fontes. Porém, nas linhas mestras da poética de Botelho
de Oliveira, permanece a concepção, fortemente mariniana,
de que a poesia lírica é arte “irmã” da Música, como se canta
no Adone: “Musica e Poesia son due sorelle / ristoratrici del’afflitte
genti, / de’ rei pensier le torbide procelle / con liete rime a serenar
possenti” [...].Soa assim mariniana a definição (incomum
nas letras seiscentistas lusitanas), proposta por Botelho de
Oliveira no prólogo a Música do Parnasso: “Poesia não é mais
que um canto poético, ligando-se as vozes com certas medidas
para consonância do metro”.

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ESTUDAR MANUEL BOTELHO
DE OLIVEIRA HOJE

As possibilidades que o estudo de Botelho de Oliveira


abrem podem tocar questões como: a) a presença de uma “função
italiana” na arquitetura expressiva da produção poética de
Botelho, em posição estruturante; b) a escansão – complementar,
ainda que separada – em dois paradigmas diferentes de tal
“função italiana”: de uma parte, o modelo petrarquista intro-
duzido por Sá de Miranda, em Portugal do século XVI; de outra,
aquele maneirista-barroco de Tasso e Marino que Botelho declara
privilegiar ao fundar uma nova tradição literária; c) o significado
mais profundo (estético, mas também político e econômico) desse
entrelaçamento entre os cânones italianos e a literatura portu-
guesa, declarado por Botelho em chave literária “americana”;
d) a ligação entre o modo de produção extrativo-mercantil
dominante no Brasil (exploração de matérias primas) – formação
econômica totalmente integrada ao progressivo processo de
acumulação primitiva do capital, funcional ao surgimento do
capitalismo – e a técnica, “expansiva” e virtuosística, do barroco
italiano; e) o uso, por parte de Botelho, do maneirismo e do
barroco italiano em função “anti-hispânica”.
Sobre o barroco americano, com efeito, Lucia Helena
Santiago Costigan (1988, p. 93-94) identificou a existência – na
análise da produção literária das Américas do período de esta-
bilização colonial – de duas posições críticas. A primeira dessas
tendências exegéticas encontra seus representantes mais ilustres
em Octavio Paz e Pedro Henríquez Ureña, com a sua interpre-
tação do barroco americano apoiada sobre as categorias de
mestizaje e de “transculturação”. O segundo filão interpretativo
é, diferentemente, aquele da “aculturação”: o barroco americano
do século XVII caracteriza-se por ser uma repetição do barroco
“metropolitano” perfeitamente orgânico aos ideais, aos temas e à
linguagem provenientes da Península Ibérica. Essas duas leituras,

YURI BRUNELLO 189


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DE OLIVEIRA HOJE

na verdade, situam-se em um contraste apenas aparente. O que


parece é que, nas colônias, existem diversos tipos de barroco,
entre os quais aquele – metropolitano – dos europeus transferidos
para as Américas para operar no aparato governativo e entre
os vértices do tal aparato burocrático, assim como o barroco,
mais livre e independente do ponto de vista criativo em relação
aos parâmetros metropolitanos, dos descendentes dos europeus
nascidos nas Américas, como Botelho: um barroco mais livre e
desinibido, mais inclinado a celebrar os valores americanos e a
exuberância das belezas naturais americanas, na sua diferença –
e conflitualidade – em relação às homólogas realidades europeias.
É o que faz Botelho, pela primeira vez na história da literatura
brasileira, na silva Ilha de Maré, compreendida em Música do
Parnasso, lírica pelo aceso e polêmico nativismo.
Tratar da obra desse grande poeta barroco brasileiro
é lidar, portanto, com uma série de terrenos precários. Em
primeiro lugar, uma fortuna crítica, que, apesar de grandes
avanços nos últimos 40 anos, ainda mantém ecos de uma leitura
depreciativa, que pode ser sintetizada nas palavras de Manuel
Bandeira (2009, p. 15) em sua Apresentação da Poesia Brasileira:

[...] mal se pode lembrar o nome de Manuel Botelho de Oliveira


(1636-1711), autor de um medíocre poema descritivo intitu-
lado A ilha da Maré, cujo único mérito está em inaugurar o
louvor do país em nossa poesia.

Além disso, pouco lida pelo grande público e ignorada


pelos manuais didáticos, a obra de Botelho de Oliveira pode
ser considerada work in progress, pois ainda há obras do baiano
que permanecem não reeditadas, e mesmo, inéditas, como os
escritos preceituais e antológicos, Jardim Historial de conceituosas

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flores (1704) e Conçeitos spirituais (1706), cujos manuscritos se


encontram hoje na Biblioteca Pública de Évora (Portugal). Nesse
sentido, pode-se afirmar que, até bem pouco tempo, Manuel
Botelho de Oliveira era pouco mais que uma personagem plana,
do qual se conheciam limitados dados biográficos, o que dificul-
tava consideravelmente o exame histórico e contextual.
Outro ponto fundamental para compreender com mais
profundidade Botelho de Oliveira é refletir sobre aquilo que
representa a estética na qual ele se insere. Longe de ser um ponto
pacífico na historiografia literária brasileira, bastando recordar
da polêmica entre Haroldo de Campos e Antonio Candido sobre
seu assalto, o Barroco é um fenômeno de tal complexidade que
exige contínuas visitações e ressignificações por parte dos
críticos, uma vez que boa parte do que se afirma a respeito do
poeta baiano consiste em reverberação dos juízos atribuídos
pela crítica romântica e neorromântica acerca da produção
literária seiscentista e setecentista. As práticas sociais, estéticas
e de leitura barrocas diferenciam-se substancialmente daquelas
experimentadas a partir da consolidação das burguesias urbanas
em nosso país, que maturavam a necessidade de uma arte dotada
de sentimento nacional e de originalidade, contrastando com
a prática emulatória e de desidentificação que caracterizava
a poética barroca. Essa conflitividade gera apreciações como
“semsaboria privilegiada” (ROMERO, 1888, p. 133), “extravagante
e obscura” (GOMES, 2001, p. 133), ou ainda,

a poesia de Manuel Botelho de Oliveira como revelar um


esteta, ou um retórico, parece antes fruto da operação
cerebrina de conjugar imagens de pronto efeito, que duma
sensibilidade autenticamente poética (MOISÉS, 1983, p. 116).

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Parte dessa avaliação negativa surge de uma má compre-


ensão das tradições e dos procedimentos poéticos empregados
pelo autor de Música de Parnasso. As críticas mais ferrenhas que
se abatem sobre a obra botelhiana se assentam em 3 tônicas: a) o
seu desapego à nacionalidade; b) a excessiva presença de tradições
(gongorismo e marinismo) e línguas estrangeiras em sua produção;
e c) a falta de “verdadeiro sentimento” em suas obras. Sobre isso,
cabem os seguintes esclarecimentos: Botelho de Oliveira nasce num
contexto histórico em que ainda resistia uma identidade ibérica
unificada não apenas politicamente (1580-1640) mas acima de tudo
culturalmente. Nesse processo, o bilinguismo (castelhano-portu-
guês) e, mesmo, o plurilinguismo (português, castelhano, latim
e italiano), por via da erudição e da educação jesuíta, facultava
uma circulação transibérica das Letras e das Artes. Assim, não é
por acaso que eleja, para além das barreiras nacionais que hoje
reconhecemos, os paladinos da poesia europeia coetânea e clássica
como modelos de sua produção, conforme se enumera no Prólogo
da Música: “[...] o famoso Virgílio e elegante Ovídio, os grande Tasso
e delicioso Marino, [...] o culto Gôngora [...], o vastíssimo Lope; e [...]
o insigne Camões” (BOTELHO DE OLIVEIRA, 2005, p. 6). A partir
desse pressuposto, não é possível recriminá-lo nem por não se
expressar numa linguagem popular ou prosaica, muito menos por
não ter em mente um apelo identitário exclusivamente brasileiro,
visto que sua estética se fundava em critérios outros. Isso não lhe
impede de demonstrar uma profunda consciência de sua arte e de
sua localização histórica na Literatura Brasileira, de ressignificar
originalmente os modelos que tem em mente e de se reconhecer
como “filho do Brasil”, deixando tal marca em suas produções,
como, por exemplo, na silva “A ilha da Maré”.
A própria estruturação de Música do Parnasso já aponta para
um diálogo ativo com tradição: sua composição plurigenérica,

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que assoma uma porção lírica, dividida em 4 coros em línguas


portuguesa, castelhana, italiana e latina e duas comédias ao gosto
espanhol, indica uma linha petrarquista, na esteira de Giovan
Battista Marino, e outra, lopista, no que trata dos descantes
dramáticos. Tratando especificamente da série de poemas
dedicados à sua musa, convencionalmente denominados Ciclo de
Anarda, evidencia-se uma bricolage das duas tradições citadas,
pois, conforme se apresentou em outro momento, o nome Anarda,
que tanto estranhamento gerou na recepção crítica, advém de
uma personagem de uma comédia de Lope, que, na produção do
Siglo de Oro, tornou-se denominação comum de grande dama e
fonte de inspiração dos poetas. No entanto, apesar de assumir
um viés petrarquista ao nomear sua amada, a Anarda de Botelho
é despojada da idealidade transcendental de Laura, e é retratada
em sua reidade e corporeidade, em diversos momentos aparente-
mente banais, em que, sujeita ao olhar ambivalente (ora tímido,
ora íntimo, ora intimidado) do observador poético, deixa-se
fragmentar segundo diferentes pontos de vista, sem nunca
abandonar sua condição de fonte contínua de imagens insólitas
(maravilhas), numa clara alusão temática a Marino.
Nesse jogo de imagens fractais, duplas, o eu poético
não perde de vista o engenho, construindo uma sofisticada
arquitetura de palavras e paragones, em que o significado flui,
escorre entre diferentes níveis semânticos. Na agudeza desse
procedimento, a razão é mestra, e a emoção torna-se fruto
das deliciosas fruições que o leitor culto experimentaria ao
deslindar cada um dos conceitos poéticos. O envolvimento
com as afectiones e o ethos patheticum, entendidos pelas lentes
da acepção retórica seiscentista, levou, não sem razão, a se
considerar esse estilo afetado e patético, no entanto, tais deno-
minações, caras à cosmovisão barroca do Theatrum Mundi,

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passaram, por influência do racionalismo das Luzes, a designar


atributos negativos, como o testemunham até hoje os registros
linguísticos e os qualificativos empregados por alguns críticos
ao analisarem a poesia barroca, conforme se pode constatar na
seguinte poesia (BOTELHO DE OLIVEIRA, 2005, p. 24-25):

Ponderação do rosto, e olhos de Anarda

Soneto X

Quando vejo de Anarda o rosto amado,


Vejo ao Céu, e ao jardim ser parecido;
Porque no assombro do primor luzido
Tem o Sol em seus olhos duplicado.

Nas faces considero equivocado


De açucenas, e rosas o vestido;
Porque se vê nas faces reduzido
Todo o Império de Flora venerado.

Nos olhos, e nas faces mais galharda


Ao Céu prefere quando inflama os raios,
E prefere ao jardim, se as flores guarda:

Enfim dando ao jardim, e ao Céu desmaios,


O Céu ostenta um Sol; dois sóis Anarda,
Um Maio o jardim logra; ela dois Maios.

Esse soneto inicia-se com uma comparação entre o rosto


da musa e um jardim. A partir disso, aduzem-se o elemento
celestial e o solar, que se duplica para emular os olhos de

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DE OLIVEIRA HOJE

Anarda. Por meio da construção de imagens aparentemente


simples, na verdade, revela um jogo sofisticado de alusões e
manejo com diferentes procedimentos da tradição poética.
A metaforização dos atributos femininos se codifica na poética
de Francesco Petrarca, assim, os cabelos são ouro, a pele é nívea,
os lábios são rubis ou cravos etc. Essa ferramenta, com um
repertório de imagens comuns e um trânsito do sentido denota-
tivo para conotativo, será fortalecida em Góngora, naquilo que
se convencionou denominar de estilo cultista. Manuel Botelho
de Oliveira é engenhoso ao empregar tais procedimentos, pois,
em primeiro lugar, rompe o perfil geométrico tradicional da
descrição petrarquista, ao iniciar com olhos, face, vestido e
retornando novamente aos olhos, numa perspectiva de espiral e
não linear. Além disso, não há, como em Góngora, um completo
reposicionamento do sentido literal pelo alegórico, muito menos
uma total substituição do elemento referencial pelo simbólico.
Nesse soneto botelhiano, os planos de significação são
entrecruzados a um tempo que o rosto de Anarda é um jardim,
no qual está Anarda transvestida de Flora, figurando plasmada
de modo propositadamente ambíguo (trata-se do simulacro da
deusa ou de uma metonímia para a vegetação que se cobre de
flores?). Vale a pena notar que, apesar do colorido da cena, não
nos deparamos com um mundo idealizado: todos os elementos
nela contidos são prosaicos, imediatamente reconhecíveis no
cotidiano. A maravilha de sua construção poética se encontra
exatamente no olhar artificioso de um eu lírico que refrata as
imagens percebidas de tal maneira que o quadro apresentado
instiga uma sensação, uma aparência espetacular. O próprio
emprego do jardim, em sua concretude, como figura e ambien-
tação do relato lírico, plasma um topos paradigmático do barroco
e de sua cosmovisão, pois o jardim é entrelugar do natural e

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do artificial, como o afirma Kluckert (2004, p. 152): “por um


lado, o jardim é definido como uma formação geométrica, e,
por outro, como um espaço delimitado, onde a natureza impera
em plena realidade orgânica”. Um jardim sintetiza, portanto,
o ideal da natura desnaturata, tão caro à estética barroca. Não à
toa, constata-se em L’Adone e na Lira de Giambattista Marino a
recorrência dessa tópica.
Desse estado de coisas, conforme assevera Enrique
Rodrigues-Moura numa entrevista em vias de publicação2,
surgem algumas demandas a ser desenvolvidas em futuras
investigações acerca de Botelho de Oliveira, por exemplo, a
busca em bibliotecas e arquivos públicos por manuscritos
e documentos relativos à vida e à obra de Manuel Botelho
de Oliveira; a produção de edições críticas e comentadas; ou
a “formulação de levantamentos que localizem com mais
propriedade sua obra no ‘mapa literário’ e estético de sua
época”3, no que toca à presença do petrarquismo, do marinismo
e, principalmente, da tradição barroca hispânica (Góngora,
Lope de Vega, Quevedo, Cervantes etc.), colocando em questão
a fortuna crítica consolidada no Brasil, reposicionando-o no
cânone literário nacional. Demonstra-se, assim, que a obra de
Manoel Botelho de Oliveira é um campo fértil para investigações
e sobre a qual há uma série de questões por responder.

2  Manuel Botelho de Oliveira: um poeta brasileiro entre dois continentes e quatro


línguas, entrevista inédita de Enrique Rodriguez-Moura concedida a Erimar
Wanderson da Cunha Cruz no prelo na revista “Mosaico Italiano”.
3  Ivi.

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DE OLIVEIRA HOJE

Referências

ALMEIDA, Carmelina Magnavita Rodrigues de. O marinismo


de Botelho. Salvador: UFBA, 1975. Tese apresentada ao Instituto
de Letras da Universidade Federal da Bahia para concurso de
Professor Assistente do Departamento de Letras Românicas.

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Literatura colonial. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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GOMES, Eugênio. O mito do ufanismo. In: COUTINHO,


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Janeiro: Global Editora, 2001. p. 126-261.

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ROMERO, Sílvio. História da Litteratura Brazileira: Tomo


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Oliveira. Revista da USP, São Paulo, n. 50, p. 178-209, 2001.

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ERIMAR WANDERSON DA CUNHA CRUZ
OS AUTORES

Carla Mary S. Oliveira


Licenciada em História (1996), mestre (1999) e doutora (2003)
em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Realizou
estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Minas Gerais (2009) com
o financiamento de uma bolsa Capes/PROCAD-NF. Professora
Associada do Departamento de História da Universidade Federal
da Paraíba, atuou no Programa de Pós-Graduação em História
da mesma instituição como docente permanente entre 2005 e
2019. Líder do grupo de pesquisa Arte, Cultura e Sociedade no
Mundo Ibérico (séculos XVI a XIX) [Diretório CNPq/ PROPESQ-
UFPB]. Membro do grupo de pesquisa História da Educação no
Nordeste Oitocentista – GHENO [Diretório CNPq/ PPGH/ PPGE-
UFPB]. Membro da Sociedade Brasileira de História da Educação
desde janeiro de 2016. Atualmente desenvolve investigações
sobre o Barroco na América portuguesa; sobre a instrução e os
professores régios nas capitanias de Pernambuco e da Paraíba;
e também acerca das bibliotecas conventuais e a instrução
franciscana de meados do século XVIII a meados do século XIX
na Província de Santo Antônio do Brasil.
Elisabeth Fromentoux Braga
Graduanda de Licenciatura de Letras-Espanhol na Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), membro do Grupo de Pesquisa
CNPQ Literatura Colonial Hispanoamericana, atúa como profes-
sora de francês, espanhol e português para estrangeiros. Realiza
periodicamente trabalhos de tradução escrita e consecutiva de/
para francês, português, espanhol. Graduada em Administração
Econômica e Social na Université Paris V-René Descartes (1997).

Erimar Wanderson da Cunha Cruz


Erimar Wanderson da Cunha Cruz, professor do Instituto
Federal do Piauí – Campus São Raimundo Nonato, é licenciado em
Letras/Português (UESPI), mestre em Estudos Literários (UFPI)
e doutorando em Literatura Comparada (UFC). Atualmente, faz
parte do Grupo de Estudos A “Nova Grécia”: o Brasil e a Itália da
Modernidade, em que se debruça sobre o poeta baiano Manuel
Botelho de Oliveira, especialmente no que toca ao estudo das
redes de tradição e recepção nas quais se insere sua produção.
Editou com Yuri Brunello, em 2019, dossiê temático intitulado
Manuel Botelho de Oliveira, un barocco baiano italofono no periódico
Mosaico Italiano. Sua tese, em andamento, versa sobre o dimen-
sionamento da obra do escritor baiano no contexto da poética
sacra românica. Contato: erimar.cruz@ifpi.edu.br
Juan Pablo Martín Rodrigues
Professor Adjunto IV (DE) da UFPE na área de Ensino de Língua
e Literaturas em língua espanhola. Doutor em Teoria Literária
(PPGL-UFPE), mestre em Letras (PPGL- UFPE), licenciado em
Letras Português/Espanhol (UFPE) e bacharel em Direito
pela Universidade de Burgos (Espanha). Atua na PPGL-UFPE
na área de Literatura Latino-americana, Literatura colonial
e Língua e cultura hispânicas, principalmente nas seguintes
áreas: Literatura Colonial Hispano-americana e Literatura
Latinoamericana. Dirige o grupo de pesquisa Textos Fundadores
das Nações Latino-americanas na Segunda Modernidade. Membro de
APEEPE e da ABH e Chefe do Departamento de Letras da UFPE
Leila Maria de Araújo Tabosa
Professora Adjunta IV da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte, departamento de Letras Vernáculas, possui
graduação (Licenciatura plena) em Letras - Língua portuguesa
e literaturas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(2006) e mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos
da Linguagem (área de concentração Literatura comparada)
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2009). Cursou
doutorado pleno pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos
da Linguagem (área de concentração Literatura comparada) pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2014), com douto-
rado e pesquisa de campo no exterior (PDSE), na Universidad
Nacional Autónoma de México (2013), Cidade do México-DF. A
professora doutora é pesquisadora do Grupo de Pesquisa Ponte
Literária Hispano-brasileira e possui experiência na área de
tradução em língua espanhola, com ênfase na obra de Sor Juana
Inés de la Cruz. A docente, que também é roteirista de teatro
e curadora de artes plásticas, coordena o projeto artístico de
extensão “FALA, BARROCO”; é pesquisadora do GET (Grupo de
Estudos de Tradução)/UERN, Linha de Pesquisa de Tradução
e é, ainda, pesquisadora do GELINTER - Grupo de Estudos de
Literatura e de suas interfaces críticas. A professora Doutora
dedica-se atualmente a seu Pós-Doutorado, em Literatura e
Teatro, na Universidade Federal do Ceará (UFC).
Maria da Penha Casado Alves
Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (1996) e doutora em Comunicação e
Semiótica pela PUC de São Paulo. Pós-doutora em Linguística
Aplicada na UNICAMP sob a supervisão da Profa. Dra. Roxane
Rojo. É Professora Associada da área de Língua Portuguesa
do Departamento de Letras. Atua na Graduação e na
Pós-graduação no Programa de Estudos da Linguagem da UFRN
e coordena nacionalmente o Mestrado Profissional em Letras
(ProfLetras). É líder do Grupo de Pesquisa Práticas Discursivas
na Contemporaneidade, pesquisadora do Grupo de Estudos
Discursivos da USP-GEDUSP e do GED-UNESP. Tem experiência
na área de Linguística Aplicada, atuando, principalmente,
nos seguintes temas: gêneros do discurso, ensino de língua
portuguesa, leitura, escrita, gêneros discursivos, enunciados
estéticos, Frida Kahlo, tendo como referência os pressupostos
teóricos do Círculo de Bakhtin.
Roseli Barros Cunha
Professora Associada de Língua e Literaturas de Língua
Espanhola do Departamento de Letras Estrangeiras da
Universidade Federal do Ceará e do Programas de Pós-graduação
em Literatura Comparada (PPGLetras). Pós-Doutora pela PósLit/
Universidade Federal de Minas Gerais (2016-2017); doutora (2005)
e mestre (1999) em Língua Espanhola, Literatura Espanhola e
Hispano-Americana pela Universidade de São Paulo; graduada
e licenciada em Letras Português e Espanhol pela USP (1995).
Coordenadora do grupo de estudos de Literatura, Tradução e
suas Teorias GELTTE/CNPq/UFC. Autora de Aves sem ninho, de
Clorinda Matto de Turner. Tradução, notas e estudo crítico (2019) e de
Transculturação narrativa: seu percurso na obra crítica de Ángel
Rama (2007); organizadora de Tinkuy, encontro com a literatura
e cultura peruanas (2016); coorganizadora de Tradução e suas
interfaces: múltiplas perspectivas (2015); tradutora de Terra sem
mapa, de Ángel Rama (2008) e autora de vários artigos sobre
literatura, tradução e cultura na América Latina.
Samuel Anderson de Oliveira Lima
Doutor (2013) em Estudos da Linguagem pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Realizou estágio de pós-dou-
toramento na Universidade do Ceará (2019) com pesquisa
na Universidade de Buenos Aires. Atualmente, é Professor
Adjunto IV da UFRN e membro permanente do Programa de
Pós-graduação em Estudos da Linguagem. Tem experiência
na área de Educação, com ênfase no ensino de línguas e
literaturas brasileira e espanhola, atuando principalmente
nos seguintes temas: Barroco, José de Anchieta, Gregório de
Matos, Língua Espanhola, Literatura Espanhola e Hispano-
americana do século de ouro, Literatura brasileira, Gonzalo de
Berceo, Antropofagia, Melancolia, Oswald de Andrade, poesia e
teatro barrocos. Coordena o Grupo de Pesquisa Ponte literária
Hispano-brasileira. É autor de Gregório de Matos: do Barroco à
antropofagia (2016) e Edifício de palavras: Gregório de Matos e seu
corpus espanhol (2017). É um dos organizadores de Literatura
hispânica em pauta (2018) e Colóquio Barroco IV (2017), além de autor
de vários artigos sobre os temas de suas pesquisas.

William Brenno dos Santos Oliveira


Licenciado em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas –
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Especialista em Leitura e Produção de Textos pela mesma
instituição. Mestre em Estudos da Linguagem pelo Programa
de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) da
UFRN. Atualmente, é professor assistente no Bacharelado em
Tecnologia da Informação (BTI) pelo Instituto Metrópole Digital
(IMD) da UFRN.
Yuri Brunello
É professor Adjunto do DLE-UFC (Universidade Federal do
Ceará) e membro permanente da Pós-graduação em Letras
da Universidade Federal do Ceará. Doutor em Metodologia
da pesquisa pela Università La Sapienza de Roma em 2012. No
começo de 2015, foi visiting scholar na Stanford University (UEA),
cinco anos antes havia sido visiting researcher na Concordia
University of Montréal (Canadá). Graduado em Letras pela
Università di Genova, mestre em Cultura e sociedade pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA), após defender disser-
tação sobre as relações intertextuais entre a produção de
Nelson Rodrigues e a de Luigi Pirandello. Foi aluno regular da
University of Notre Dame (EUA) na disciplina Literary criticism.
Tem ministrado conferências em instituições acadêmicas
internacionais como a City University of New York (EUA), a
University of Oxford (Reino Unido) e a University of Toronto
(Canadá). Seus principais interesses na área da pesquisa são
a produção estética e teórica de Dante Alighieri, de Ludovico
Ariosto, de Antonio Gramsci, de Luigi Pirandello, assim como
a literatura comparada, o teatro e a dramaturgia. Publicou a
monografia Nelson Rodrigues pirandelliano (2016). Organizou
a edição italiana dos escritos de Gramsci sobre Pirandello (La
smorfia più che il sorriso. Roma: Castelvecchi, 2017). É coordenador
do Projeto de Pesquisa Manuel Botelho de Oliveira e a nova Grécia,
contemplado pela Chamada Universal MCTI/CNPq n º1/2016.
É colaborador da revista semanal italiana Left e coeditor da
revista Entrelaces.Contato: yuri.brunello@ufc.br
Este livro foi produzido pela equipe
editorial da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte.

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