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4 MONTAGEM SOVIETICA Leandro Saraiva Depois de outubro, no veio a bonanga. Entre 1917 ¢ 1920, as ainda no consolidadas repiblicas socialistas sovicticas mergulharam numa dura guerra civil, No olho do furacto, os futuros protagonistas do cinema, que, na segunda metade dos anos 1920, assombraria 0 mundo, comesavam suas carreiras nas fileiras do Exército Vermelho. Sergei Eisenstein rompeu com o pai ¢ com os estudos de engenharia para se engajar na organizagao de espeticulos teatrais para os soldados. Lev Kulechov, Dziga Vertov ¢ Eduard Tissé (que viria a ser o fot6grafo de Eisenstein) trabalharamjuntos nos noticirios cinematogréficos do fronte nos primeiros trens de propaganda, equipades para filmagem e exibigdes, A decoragdo desses trens foi o primeiro trabalho de muitos artistas, a época ainda adolescentes, como Grigori Kezintsev, que, com apenas 14 anos, fundou a Fabrica do Ator Excéntrico (Feks) com um grupo de amigos. Todos eram ingcreditavelmente jovens ¢ inexperientes. O sistema de estidios anterior a revolugdo fai destruido. Seus donos ¢ ‘grande parte dos técnicos qualificados fugiram do pais. O Estado teve de reinventar a atividade cinematogrifica, comprar equipamentos ¢ reorganizar produgdo, distribuigdo e exibigdo, Essa total estatizagio do cinema teve duas faces. Por um lado, possibilitou uma radical reinvenso da atividade cinematogrifica, como talvez em nenhum outro momento da histéria, Por outro, os caminhos dessa nova era ficaram & meroé das disputas politicas. Tal como a revolugdo, © cinema conheceu uma fase de explosio criativa e um posterior fechamento de horizontes. Enquanto uma figura como Lunacharski ~ que era aberto & experimentagdo, ainda que esta no fosse sua preferéncia pessoal - foi comissdrio da Instrugdo Publica, o florescimento artistico na URSS permitia vislumbrar uma nova relagdo entre arte e vida, além do consumo e do lazer escapista. Mas, j6 no inicio dos anos 1930, o realismo socialista era algado a doutrina oficial. E ainda que se possa compreender © sentido desse endurecimento doutrinario, surgide como versio artistica da unidade antifascista da Frente Popular, o fato é que ele marcou o fim da era das vanguardas, Com um pé no front da guerra civil e outro no ambiente cultural onde vanguardistas como Maiakovski, Malevich © Meyerhold lutavam por uma revolugto estética, cresceu-se uma geragdo de cineastas que revolucionaria 0 cinema para sempre, Artes plasticas: Malevich e Tatlin No inicio da década de 1910, a Rissia sentia a influéncia das idgias de Marinetti, © futurismo do italiano fazia 0 elogio da vida moderna, do ambiente urbano, da velocidade, das méquinas. Langado por um manifesto publicado no jornal francés Le Figaro em 1909, 0 futurismo estabeleceu a retérica panfletéria como lance de vanguarda estética. Mas essa retérica recobria uma adesio acritica aos poderes que mobilizavam a vida modema, Na Rassia, a promessa fururista de superagao total do passado era util a0 desejo de desenvolvimento dos intelectuais ¢ artistas de um pais provinciano. Mas os artistas russos iriam dar cores préprias ao movimento. Malevich ¢ especialmente significativo nessa histéria, Tendo dominado as téenicas cubistas da colagem e da sobreposigo dindmica de pontos de vista, cle elaborou sua propria resposta a poderosa influéneia futurista. Sua pintura se deixava embeber do gosto pela tecnologia numa proximidade formal com a pintura de Léger, que, oriundo do cubismo, experimentava formas abstratas & geometrizantes. Malevich chamava seu estilo de cubo-futurismo, expresso que se generalizou para toda vanguarda russa daquele momento, Ao mesmo ‘tempo que mantinha esse didlogo formal com os centros curopeus, Malevich elegia temas de um mundo camponés. Pode-se dizer que esse gesto 0 aproximava mais da critica & modernidade via primitivismo - de Gauguin, Matisse ou Picasso - modema. Os camponeses "eubo-futuristas” de Malevich internalizam a tensio entre a utopia formal e o atraso social da Rissia subdesenvolvida (operagio, ais, préxima do modernismo brasileiro). Mas Malevich foi mais além na busca da autonomia da arte, criando o suprematismo, que negava até mesmo a representaglo fragmentada do cubo-futurismo. O artista dizia que seus quadros abstratos, compostos de quadrados ¢ retdngulos - entre cles 0 célebre Quadrado preto-, eram a ralizagdo do processo de autonomizagdo da arte (Malevich 1976). © futurismo, segundo el, tinha sido o titimo resquicio 1mimético, com seu esforgo de formalizar a dindmica mecanizada da vida ‘moderna, J4 a pintura suprematista era feta de formas puras, sem referéncias. wo intuitiva", © caminho do ra a realizagdo "concretamente pictérica” da " verdadeiro realismo: acabava-se a ilusio da arte como reprodugio da vida © surgia uma arte que criava uma realidade prépria e nova, ‘Outros artistas russos trabalhavam no mesmo diapasio. Kandinsky pintara, jd em 1910, a retrospectivamente nomeada Primeira aquarela ‘abstrata, mas buscando uma expressividade emocional ¢ uma sugestdo espiritual distantes do enfoque suprematista. Mais préximo do utopismo formal de Malevich, estava o trabalho pré-revolucionario de Tatlin. Seria ele gue, anos depois, em 1920, viria a criar a mais célebre obra construtivista, Monumento a Terceira Internacional (ou Torre de Tatlin), projeto que era um misto de arquitetura, engenharia, instalagdo ¢ escultura. 14 antes do construtivismo, Tatlin expunha trabalhos que rompiam no apenas com 0 figurativisino, mas com a prépria pintura, Seus relevos, obras tridimensionais, foram o passo pioneiro da realizagio concreta da arte como objeto construido, (© préprio Malevich viria a sistematizar a proposta de "fim da pintura": logo depois da revolugdo, antes ainda da formagio da tendéncia construtivista, ele declararia que a arte devia tomar os materiais do mundo como objeto de sua agdo. Ele chegaria, assim, a trabalhar nas grandes festa civicas, inspiradas nos festivais da Revolugdo Francesa, que tomavam a propria cidade como matéria- prima, Poesia @ teatro: Maiakovski e Meyerhold Maiakovski foi o principal lider das vanguardas russas. Segundo Sergei ‘Yutkevich, ele estava por toda parte e "se interessava por tudo" (apud Schnitzer et ai. 1975, p. 34). Alto, atlético, exuberante em sua camisa amarela, que Histéria do cinema mundial 114 consagrou como bandeira futurista, fizendo de cada aparig#o um espeticulo, Maiakovski declamava seus poemas como instrumento de agitagdo dos meios teatral, plistico ¢ cinematogréfico. Estreando na cena poética em 1912, sua atividade ao longo da década de 1910 foi fundamental para estabelecer 0 futurismo como forga vital, referéncia de ousadia ¢ engajamento enérgico para os jovens artistas que emergiram no furacdo da revolugao, Sua pocsia tinha, a0 mesmo tempo, um forte componente experi- ‘mental e iconoclasta e uma marcada veia dramética. Buscava dramatizar a ‘matéria lingtistica, criando na propria forma a tenso que pretendia insuflar na matéria vital, eminentemente historica e coletiva, da qual tratava, Maiakovski canta um lirismo novo, espécie de heroismo neo-romantico, em que a expressio pessoal se amalgama a um mundo dinamizado, tensionado, Essa arte recusa a diego sentimental, langando mao de invengaes de rigor que anunciam planos de reconstrugio universal. Isso, que esta cifrado no suprematismo de Malevich e ita florescer na montagem eisensteiniana e vertoviana, é cantado na poesia de Maiakovski (2003, p. 65). cy Nas cals pisadas de mina alma forgas esganam cidades ‘em nes de nuvens coagulam peseogas de torres obliguas solugando eu avango por vas que se ener ‘ham Avista decnuci- fixos policias Variados recursos stio empregados para explodir o lirismo habitual. ‘Metiforas concretas e urbanas (calgadas, torres) substituem as figuragdes sentimentais do estado da alma, Ao mesmo tempo, essas figuras urbanas surgem transfiguradas por uma imaginagdo delirante, que contamina ¢ desestabiliza até mesmo as regras sintéticas ("nés de muvens coagulam pescogas de torres obliquas"). A diagramagio dos versos apresenta © poema como um objeto construido, visivelmente concrete, e as quebras de palavras (encruz-itham) multiplicam sentidos pela fragmentagio compositiva, A colaboragiio entre poesia, teatro e artes plisticas vanguardistas seria cconsagrada na célebre pega teatral Mistério ufo, escrita por Maiakovski em 1918, dirigida por Meyethold, com cenografia de Malevich. Miséro bufo éa nossa grande revolusdo,condensada em versos © em a0 tara. Mistrio:aguilo que nol hd de ridculo. Os verso de Mstrio buf so as epirafes dos comicio,agritaria das uns, alinguagem dos jrsais. A plo de Mitirio buf é © movimento da massa, 9 confio és clases, alata as idias: miniatura do mundo entecasparedes do cteo. (Maiakovski gual Ripelina 1971, . 77) ‘A colaboraao com Meyerhold e Malevich - um entre os varios artistas que colaboraram para a grandeza da cenografia russa de vanguarda - garantiu que o espeticulo explorasse as rupturas do texto, tanto numa interpretago de influéncia eénica circense ¢ de nimeros de era quanto numa visualidade geomética, Em Mistério bufo, a ditegio de Meyethold orquestrava a dramaturgia alegorica de Maiakovski e o design suprematista de Malevich, baseando-se em interpretagdes no-psicologizadas, nas quais os atores exploravam gestos e voz a contrapelo da reprodugZo da aparéncia cotidiana da ago humana, criando no palco uma representago desautomatizada, que levasse o espectador a sair da passividade. Meyerhold estava as vésperas de langar seu “Outubro teatral", no qual também faria uma nova montagem de Mistério bufo, no inicio de 1921. O ‘movimento de Meyerhold dava prosseguimento a dissidéncia em relagio a0 realismo psicolégico do Teatro de Arte de Moscou, de Stanislavski, com quem trabalhara nos primeiros anos do século. Durante a década de 1910, Meyerhold desenvolveu um método novo de interpretagdo e, no inicio dos ‘anos 1920, langaria sua proposta de revolugo tcatral encenando espeticulos Para um piblico bem popular Para Meyerhold, o grotesco era mais que um estilo, ero principio do método que em 192 cle batizaria de "biomecénica", Tratava-se de adotar Procedimentos de atuagao de diversas tradigdes - tanto da Gpera de Pequim Hlstéria do cinema mundial 143 quanto das marionetes ou do teatro de feira - e, percebendo-os como codificagdes teatrais, reutilizé-los na eriagdo de uma apo teattal estranha. Apontava-se, assim, um novo caminho para a “teatralidade", reconhecida e cexposta como linguagem, ¢ nfo como mimese que oculta sua construgdo. A. afinidade desse teatro com o clima de vanguarda das virias artes é evidente - com ‘especial destaque para a afinidade com Eisenstein, que fi aluno de Meyerhold. © construtivismo Como qualquer movimento ou periodo artistico, a classificagdo do construtivismo é polémica, o que ¢ acentuado pela quantidade de propostas de debates estéticos que pululavam na Rissia revolucionéria. Evitando @ diseussdo sobre marcos inaugurais e de encerramento, assim como as questdes de distingo de correntes, podemos identificar alguns principios comuns a amplos setores da atividade artistica russa nos anos 1920, que formaram 0 ambiente no qual o cinema se desenvolveu, especialmente na segunda metade da década, ‘A base dessa revolugio estética esté na recusa da mimese realista, iniciada pelo suprematismo, Dessa recusa, desenvolveu-se uma apurada auto- teflexdo sobre a arte como trabalho, oposta & concepeio simbolista, segundo a qual o artista era quase que um médium, que, por meio de simbolos herméticos com poder de comosiio inconsciente, expressava sua mais secreta subjetividade ¢, por meio dela, uma outra realidade, invisivel e essencial. Contra esse artista espiritual, os construtivistas propunham o artista engenheiro, que desprezava a expressao lirica e concentrava-se na tarefa da construgdo da obra - mais um objeto entre os objetos do mundo. A revista LEF (Frente Esquerdista das Artes), proeminente publicagdo construtivista que, em sua fase mais radical, foi dirigida por Maiakovski e Brik, chegou a defender arte feita apenas de registros como programa universal a "factografia’, reconstrugdo dos fatos presentes e dos elementos materiais do mundo. 0s artistas - ¢ mesmo essa classificagdo de categoria profissional foi renegada por muitos - dedicaram-se a construir "experiéncias" (a expresso & |. Um exempo recente de simbolisme sto o cinema ¢ torizagto de Tarkovsl (1988) Nese io, o cineasa rsso renega explcitamente a heranga do cinema de montagem ex especial o de Fseacin dda época, evitando a idéia de "obra") que expusessem sua "fatura” (expressdo utilizada pelo critico Chklovski para sublinhar a ateng%o dada aos procedimentos empregados na realizagio do trabalho, "a evidéncia de sua feitura"- apud Fer 1998). A criagdo era freqiientemente acompanhada de uma atividade tedrico-analitica, de pesquisa sobre os elementos formais das ‘composigSes (linha, ponto ete), 0 que também seria feito pelos cineastas © emprego disseminado de elementos mecinicos na execugdo das experineias ndo se reduzia ao emprego dos recursos de desenho téenico. Na escultura, além da organizacao geometrizante, os préprios materiais industriais serviam de matéria-prima. ponto méximo dessa aproximagio centre arte e industria fai o trabalho de artistas como Stepanova em fibricas de tecido, desenhando as estampas. A recorréncia do termo "construga0", da politica estética, é percebida e assumida pelos construtivistas. Eles queriam ver a inspiragdo € o lirismo superados pelo artista-engenheiro, que conhece e domina a fatura das “experincias", a ponto de poder calcular as reagdes dos espectadores, Expondo o modo de construir os artefatos que nos sensibiliza, construtivismo foi uma pedagogia para os sentidos. O melodrama, que se desenvolveu na fase herdica da burguesia, contra 0 teatro aristocrético, era também uma pedagogia para o olhar. Mas @ dramatizagio moral do mundo buscada pelo melodrama é to mais eficiente quanto mais consiga ocultar suas operasdes, transmitindo a idéia de uma ordem natural das coisas. O construtivismo, expresso de uma revolugdo que quer refazer 0 mundo ‘encerrar toda a alinago humana, trabalha expondo © mado como as coisas Slo feitas, Os objetos construtivistas no so orginicos: eles so feitos de fragmentos justapostos, pedagos do mundo que comp3em um novo objeto. No limite, o construtivismo nega mesmo a fungdo de representagio do ‘mundo - ou seja, nega a mais tradicional das fungSes definidoras da arte. O objeto construtivista sugere, em sua "fatura", que, ja que tudo & construgao, tudo poderia ser diferente, Os artifices da montagem soviética Foram muitos os cineastas que, nos anos 1920, assumiram seu trabalho como parte do esforyo revolucionério e o construtivismo como plataforma geral. Nao é 0 objetivo desta introdugo apresentar uma visio panordmica ddesse que foi um dos mais complexos ambientes da histéria do cinema, Ao Histéria do cinema mundial 115 contrario, nosso foco estar em pontos centrais da obra dos dois principais realizadores sovisticos, Eisenstein e Vertov, precedidos por uma apreciaglo da contribuigdo pioneira de Kulechov, na esperanga de apresentar uma introdugao & escola de montagem soviética por intermédio desses cortes em profundidade. Assim, grandes cineastas, como Vsevolod Pudovkin, Aleksandr Dovzhenko, Kozintsev, Yutkevich e Leonid Trauberg, niio terdo suas obras snalisadas aqui Kulechov: © pioneiro Pouco antes da revolugdo, Kulechov, entio um jovem pintor, foi convidado para trabalhar como cendgrafo nos estidios de cinema Khanzhonkoy. Foi nesse context que o fundador da tcoria da montagem esereveu seus primeiros artiges. Neles, Kulechov defende uma ampliagdo do Ambito de trabalho do cenégrafo, para bem além da tradicional pintura de paingis de fundo. Para ele, era preciso superar a rigida especializagio de fungdes, em prol de um cinema entendido como uma modulagao plastica de todos 0s elementos envolvidos na composigao do plano, ‘Na mesma linha, defendia ainda que o roteire fosse escrito pelo proprio diretor. Ou seja, tratava-se da defesa de um cinema autoral, baseado na criagdo plastica, Nesse momento, Kulechov ainda nfo trata de montagem, mas percebe-se em sua abordagem um principio que serd fundante no apenas de seu método, mas de todo o campo de debates da escola russa: o cinema & encarado como um eonjunto de signos, no qual os elementos valem por sua posigdo dentro da composigZo e ndo por serem registro do real Depois da jé comentada participagao de Kulechov no esforgo de guerra revolucionsrio, cle vai estabelecer um estidio-laboratério - onde estudario, entre outros, Pudovkin ¢ Eisenstein, Esse estidio logo seré encampado pela Escola Nacional de Cinema, onde Kulechov lecionara durante décadas e sistematizara seus famosos experimentos. Um deles tornou-se eélebre, denominado "efeito Kulechov": © mesmo plano de um ator, justaposto, primeiro, a um prato de sopa; depois, porta de uma prisio; ¢, por fim, a imagens de uma situagdo amorosa. 0 "efeito" produzido sobre o piblico foram percepgdes diferentes a cada repeti¢o. Uma prova de que o sentido de cada clement era dado por sua posigio na montagem do filme, Kulechov realizaria ainda dois experimentos cruciais: a "geografia criativa” ea eriagdo de um "corpo cinematogrifico". No primeiro, ages de 146 Papirus Ealtora atores sdo encenadas em locagdes diversas, mas decupadas segundo os principios de continuidade do filme americano - como regra do cixo, continuidade do movimento, campo ¢ contracampo -, que permitiam a elipse fe mesmo a abstrarao do espago real, em detrimento de um espago irreal, filmico. No segundo, ainda mais reveladora na demonstrago dos poderes da ‘montagem, uma "mulher cinematogrifica” foi "construida” tomando-se por base imagens de diversas mulheres reais. Em virtude de seu interesse pela montagem americana, Kulechov no costuma ser associado vanguarda construtivista, 0 que é no minimo, redutor. Como comenta Kepley (1992, p. 144): [Nossa inclinagdo para relegar Kulechov a uma pretensa al dietste da ‘montagem sovitca parece envolver um julgamentohistrico baseado no entendimento do cinema elissco hollywoodiano como uma forga para sempre eessencialmenteconservadora, edo estilo radicelmente alternative ‘como otnico digno de ser assocado a0 moderismo, De fato, ndo apenas Kulechov, mas virios outros artistas sovictcos - para no falarmos da propria estratézia estatal de Lénin de importagao das téenicas tayloristas de organizagio do trabalho industrial - estavam fascinados pela ‘modernidade urbana americana, Nova York comegava a substituir Paris como ‘vanguarda social mundial, e os modernistas russos (como, alids, também os modernistas brasileiros) sonhavam com arranha-céus, automéveis (Maiakovski foi um dos primeiros a ter um automével particular), bondes, cenfim, com a velocidade vertiginosa da vida metropolitana cletrficada, Kulechov trabalhou nesse sentido, buscando dominar as téenicas cinema- togrificas americanas, pondo-as a servivo da causa soviética. O principal objetivo de Kulechov era envolver o espectador numa narragio vertiginosa, que © tomasse completamente ¢ conduzisse sua emogo e seu entendimento aos fins planejados - como no emblematico Mr. West no pais dos bolcheviques (1924), uma propaganda sovitica na forma de aventura de um ocidental na URSS. E-verdade que o esforgo de Kulechov foi o de construir uma impressio de naturalismo continuo, mas ele fuvia isso sem aderir & base melodramatica sobre a qual trabalhava Griffth, Seu cinema buscava a emogio pela vertigem € pelo envolvimento na velocidade mais do que pela identificagao psicol6gico- sentimental Kulechoy foi um empirista obsessive. Sua teoria ¢ mais uma sistematizagio de experimentos do que uma meditagdo sobre a natureza do Histéria do cinema mundial 117 cinema, Essa "natureza”, ele tomava como dada: 0 que identificava como as leis, de funcionamento da narragdo americana, enunciava como leis universais do cinema, Isso no o impediu de reconhecer Eisensicin como o maior génio do ccinema soviético, vendo-o como um herdeiro que 0 superou largamente (Schnitzerera/, 1975, p. 99). ‘Como veremos, Eisenstein construiu seu cinema com uma montagem de choque, e ndo da continuidade, como a de Kulechov. Mas o fez, de fato, perseguindo objetivos afinados com os do antigo professor: o &xtase caleulado do espectador, em razo de uma visio comunista do mundo. Nao estamos, portanto, distantes dos principios construtivistas. O fundamental da abordagem kulechoviana foi ver o cinema como linguagem, que poderia ser ‘manipulada racionalmente. © grande legado de Kulechov, que viria a ser uma marca da escola sovistica, foi o estabelecimento da montagem como principio de construgdo do cinema, Sua desmontagem tedrica da montagem americana estabeleceu um campo de reflexdo que permitiria outras formas de explorasao da linguagem cinematogrifica. A codificagio enunciada por seus experimentos foi o ponto de partida para as muitas veredas do cinema soviético dos anos 1920, que abrigava caminhos to distintos como os de Pudovkin © os de Eisenstein - adversdrios estéticos que concordavam, entretanto, quanto aos fins politicos que perseguiam ¢ quanto ao débito que ambos reconheciam para com o pioneiro Kulechov. © jovem Eisenstein Depois da guerra civil, Eisenstein foi trabalhar no Primeiro Teatro Operétio (Proletkul). Movia-o, como a varios construtivists, 0 desejo de superar a antiga arte, vista como uma substituigdo covarde da vida real. Eisenstein queria encontrar formas de expressio a altura da revolugio em curso, eapazes de mobilizar as pessoas, sua primeira realizado nesse sentido foi, ainda no teatro, a "montagem de atragées" A cincia conhoce "fons" "eléwons", "afutons". Que em arte sajam as ‘atragdes’, Dos processos de produgo, pass a lnguagem corrente um, termo técnica que significa mar as miguina, os tabos de conduso da ‘gua etc. A bela palavra"montagem" sgifica 2 agbo de armar algo. O conjunto das unidades, que, assoviadas sum todo, resem esa dupla 148 Papirus Eaitora significagd, semi-industrial,semi-music-hal,reunindo em si esas duas palavras. Ambus sara das entrashas do wrbanismo, e todos nbs naqueles| ‘ans dramos trrivelmente urbanistas. Asim aparece o term "montagers do atraghes", (Eisenstein sd, p. 39) Segundo Yutkevich, parceiro de Bisenstein nesse inicio, 0 termo “atragdes" ocorreu ao futuro cineasta quando 0 companheito Ihe contava, entusiasmado, suas emogdes a0 andar de montanha-russa. Percebem. enti, as raizes populares dos esforgos de criagdo de Kisenstein. Sua negaca0 da arte como substituigdo da experiéncia se faria ndo pela via de um intelectualismo hermético, mas, a0 contrario, pelo descjo de mobilizar © ‘espectador emocionalmente e, no limite, fisicamente. Dito de outro modo, Eisenstein tentava dar uma resposta ao ancestral dilema da catarse em termos a altura de sua época, Eisenstein tinha poucos anos a mais que a turma da Feks, mas era chamado por ela deo velho". Isso no impedia que compartilhassem de um ‘gosto pela alegria andrquica que ficou conhecide como "excentrismo" Em 1922, Bisenstein e Yutkevich esereveram um artigo no qual defendiam a atuasiio nas comédias americanas - com destaque para o trabalho de Chaplin - como "oportunidades de auténtico excentrismo" (apud Bordwell 1999, p. 26). Eisenstein ja dirigia para o Profetkul, organizagdo teatral criada em 1917 sob a bandeira do combate ao teatro burgués, e havia nessa época uma disputa de caminhos estéticos para realizar esse propésito. Em 1923 e 1924, Eisenstein dirigiu trés espeticulos em parceria com Sergei Tretyakov (dramaturgo ¢ critico ligado a revista LEE): O sdbio; Escutas, Moscou?; ¢ Mascaras de gis. Os relatos sobte os espetaculos (apud Bordwell 1999, pp. 26- 28 e 143-144) descrevem um movimento que vai de uma proximidade com 0 excentrismo (em O sdbio) a uma mescla progressiva com elementos de melodrama, Em O sabio, o fienesi audiovisual rompia to violentamente a linha narrativa que as apresentagSes eram iniciadas com Tretyakov lendo um resumo do enredo, para que 0 pliblico tivesse alguma indicagdo da conexdo entre as "atragdes". As duas montagens seguintes, com maior linearidade ¢ apelo de comunicagio de conteidos politicos, conduziriam Bisenstein a0 seu primeito projeto cinematografico e & ruptura com o Praletkult ‘Um manifesto escrito por Eisenstein c publicado na LEF, sobre essa ‘montagem de atragdes, inseria-se num polémico quadro do teatro soviético. A oposigdo Stanislavski versus Meyerhold estendia-se ao interior do Proletkult, No manifesto, Eisenstein distingue duas alas do movimento: 0 "teatro Histéria do ci 8 figurative-narrativo (estitico, de costumes - ala direita)" e 0 "teatro de agit- atragdes (dindmico e exeéntrico - ala esquerda)" do qual ele proprio era 0 representante. Eisenstein opde ao teatro de identificago psicologica ¢ de continuidade de enredo um teatro baseado em estimules sensoriais & cemocionais. Ele lembra que esses recursos de impacto do espectador sempre foram utilizados pelos encenadores, mas o que propée &"transferir 0 centro da atengdo para 0 que era previamente considerado acessério e ornamental (..) ‘montar um bom espetdculo (do ponto de vista da forma) significa construir um bom programa de musie-hall e citco, partindo das situagSes de um texto de base" (1983, p, 192). 0 termo "montagem" indica o carter inorgénico, construtivista, dessa concepedo de espeticulo, A unidade da montagem - a atragio - pode ser "tanto a falagdo de Ostiév [ator popular russo], quanto a cor da malha da prima-dona; ‘tanto um toque de timpano, quanto o soliléquio de Romeu (.,) & todo aspecto agressivo do teatro, ou seja, todo elemento que submete o espectador a uma ago sensorial ou psicolégica, experimentalmente verificada e matema- ticamente calculada, com propésito de nele produzir certos choques emocionais, que, por sua vez, determinem em seu conjunto precisamente a possibilidade do espectador perceber 0 aspecto ideolégica daquilo que foi exposto, na conclusio ideolégica final" (ibid, p. 189). Mesmo tendo sido escrito em virtude do excentrismo de O sabia, 0 manifesto jd aponta para 0 desejo de chegar ao conceito por meio do choque dos estimulos. Ess seré a linha evolutiva da arte de Eisenstein, no apenas em O-sébio © A greve, mas até no "cinema intelectual" de Outubro. Mas, por ora, ‘vamos nos deter nas atragdes de estréia do cineasta A greve: A montagem de atragées no cinema A greve (1925) niio busca reconstituir de modo naturalista alguma reve especifica, Seu realismo é de outra ordem: aposta numa encenagio influenciada pelo teatro de Meyerhold ¢ pelo “excentrismo” de seus jovens amigos da Feks. Nesse longa de estréia, Eisenstein dava continuidade aos experimentos que vinha fazendo no Proletkult, mesclando um estilo afeito a0 teatro de vanguarda e a elementos esquemiticos tipicos do maniqueismo melodramético. Em termos gerais, trata-se de um estudo sobre a greve como momento privilegiado de autoconsciéncia proletaria. Se era verdade que se rus Editors queria entender © "fendémeno greve" era fato que isso devia ser feito pela mobilizagdo até mesmo fisica do espectador. Era preciso impacté-lo por um inc-olho" de Vertov "cine-punho" - expresso que Eisenstein oporia a (© cariter leninista do filme fica explicito desde a eplgrafe, uma citasio do lider bolchevique: "A forga da classe operiria esté em sua organizagdo. Organiza¢Zo quer dizer unidade de ago, unidade de atuagao pritica”. © tema da formagdo da unidade proletéria, bem como os riseos de sua dissolugdo, serdo tratados em A greve tanto no contctido narrative quanto na forma plistica e ritmiea, A historia narrada divide-se em seis blocos: agitagio, estopim para greve, fabrica parada, inatividade ¢ miséria dos grevistas, rovocagdo dos infiltrados e repressio violenta, Comega-se pela apresentagio da situagdo de trabalho, com a oposigao entre escritérios e cho de fabrica. estopim é a acusagao injusta de roubo de uma ferramenta, feita a um operiio, que, desesperado, suicida-se, Seguem-se o espeticulo da inatividade das ‘miquinas ¢ da burocracia, a alegriacotidiana dos operirios libertos do fardo do trabalho, a solidio indtil do capitaista e a mobilizagdo do aparato de repressao. © quarto bloco mostra a dura situagdo dos grevistas quando © movimento se prolonga: a irritago, o fantasma da fome, as brigas familiares. Os patres ‘mobilizam o lumpesinato para infiltrar-se no movimento, provocar tumulto € possibilitar a repressio, que resulta num massacre impiedoso da massa opera. Sobre essa linha narrativa ténue, sem dramas pessoais para provocar a identificagao psicoldgica dos espectadores, Eisenstein executou uma verdadeira antologia de "nimeros cinematogréficos", de golpes de cine- punho. Vejamos alguns desses procedimentos. Caricaturas - Os patrdes ¢ scus lacaios aparecem no filme de modo estereotipado, estimulando a repulsa imediala do espectador. 0 dono da fibrica & um tipico "capitalista gordo", como nas charges politicas. No caso dos espides, 0 procedimento ¢ ainda mais escancarado, em fusdes que os identificam animais furtivos © pouco confiéveis (coruja, raposa etc). Os atores interpretam esses personagens da mesma mancira grotesca, com gestos exageradas, Em oposig&o, os operatios raramente so individualizados. Predomi- nam as cenas de conjunto ¢ de massas. Nos casos em que um opersrio aparece isolado, o estilo de interpretagdo é naturalista, assim como o espago onde cle se movimenta (em contraste com os reenquadramentos que funcionam como molduras para as caricaturas dos inimigos de classe). Essa diferenga se Historia do cinema mundial 124 desdobra nos movimentos corporais dos atores. Os gordos capitalistas so pesados. Os operirios, ao contrario, esbanjam vitalidade, Objetos - Eisenstein sublinhou a rela¢do dos personagens com os objetos como instrumento de sua ago social, Os capitalistas usam instrumentos de controle, como o telefone, usado na organizagao da repressiio, ¢ © aparato burocratico, Alm disso, esto cercados por uma paraferndlia kitsch ~ peso de papel em forma de guia, mesa de bebidas, mecanismos de acionamento de tampas de escrivaninhas cte. Uma tralha inutil e afetada que metaforiza o cardter social parasitério da classe de proprictarios, fi os operirios aparecem ligados as méquinas - que, sem eles, revelam-se esqueletos cadavéricos - ou em ambientes simples ¢ naturais. Motivos - Na auséncia das dimensées de continuidade clissica - psicolégica, espago-temporal e narrativa - Eisenstein langa milo de "motivos" ~ designagio dos formalistas russos para os elementos de repetigdo ao Tongo de ‘uma narrativa -, que vo catalisando significados conforme teaparecem e se transformam, De modo mais imediato, hi uma dimensdo plastica nesse recurso. © motivo geométrico do circulo, por exemplo, é fartamente explorado. A palavra Ho ("mas", em russo) de um intertitulo é animada para que 0 "0" se transforme num circulo que, por fuséo, serd substituide por uma roda de engrenagem. De inicio, cla surge isolada de qualquer maquinado; logo a seguir, as imagens se tomario mais ralistas a roda aparecera integrada ais méquinas, Mais adiante, os grevistas conspirardo num depésito de rodas desmontadas. Uma dessas rodas do depésito sera usada numa agressiva provocagio ao capataz, que serd golpeado com uma delas. E assim o motive do circulo vai se transformando, servindo de veiculo narrative e significativo, A dgua, meio plistico que dé expresso a forgas que atuam sobre ele, é ‘outro motivo central do filme. Ela passa do estado inercial de poga, no inicio, para um ambiente - plistico, passivel de transformago - identificado aos sgtevistas em reunio, para depois se tornar arma, primeiro dos revoltosos, depois da repressio, Montagem metaférica - 0 mais célebre dos procedimentos de A greve & @ montagem que associa o massacre final dos operirios com imagens do saerificio de um touro no matadouro, baseando-se no choque da descontinuidade. A associagdo desacomoda a posigdo de voyeur do espectador, produzindo um efeito conceituai. Eisenstein comegava a desenvolver um estilo de montagem paralcla bastante diverso do paralelismo dramético que Grifftts consagrou em Intolerdncia (1916). 122 Papirus Editors Mais importante que a lista de atragdes € a forma de justapd-las, Todos esses recursos esto orquestrados numa montagem ritmica, que busca reproduzir 0 aciimulo de tensbes dos movimentos sociais. A montagem busca modular a energia desses movimentos de uma forma capaz de envolver 0 espectador nessa dindmica. Por isso, a égua & 0 motivo mais explorado. Ela varia de uma placidez inicial & posterior violéncia dos jatos das mangueiras. Essa variagdo de um elemento natural to plistico como a égua metaforiza 0 proprio tratamento dado & massa de proletirios, que varia entre a dispersio disforme e a composigio ordenada de um vetor de aso - uma "unidade pritica", diria Lénin, Esse principio-guia da composigfo fica evidente na batalha entre os operirios ¢ os bombeiros: depois de um inicio em que a anarquia do lumpesinato é usada como arma de provocagdo em oposiglo & marcha proletéria, sobrevém o choque caético entre a repressdo encarnada nos jatos d'gua e as imagens da unidade da massa operaria sendo dissolvida, © fluxo de energia que movimenta tanto as linhas grificas das composigdes, que variam de quadro a quadro, quanto as massas humanas, que se altersam junto com as variagSes de estado da égua, reliza, em termos plisticos e ritmicos, a visio de Lénin sobre a organizagdo e a agdo operirias expostas na epfgrafe. E Eisenstein realiza a maxima de Maiakovski: s6 existe arte revolucionéria na forma revolucionéria, Pouco tempo depois da realizagio de A greve, Bisenstein respondeu as criticas que the foram enderesadas em dois novos e polémicos artigos: "A. ‘montagem de atragSes no cinema" e "Sobre a questio de uma abordagem 1aterialista da forma" (1974b, 1974). Neles,aidéia da montagem de atrapSes se especifica, passando da analogia com a montagem de um music-hall & consideragio dos procedimentos especificos ao cinema, Seu adversirio de polémica foi Vertov, que, com seu cinema de montagem de fragmentos tomados da "Vida de improviso", contrapunha-se a qualquer fiecionalizardo, tida como resquicio de arte burguesa. Eisenstein combate no campo inimigo: ‘em vez de simplesmente repisar seus argumentos favorsveis a uma encenapao baseada em atragdes, argumenta que ndo s6 os recursos formais de Vertov so, sim, “artisticas", mas © sio de modo insuficiente. A montagem vertoviana & caracterizada por Eisenstein como uma espécie de "Impressionismo primitivo". Cada quadro de Vertov, realizado segundo © principio da nio- composigdo, seria estitico, e sua justaposigde provocaria uma exeitagio desordenada dos sentidos, e esteticista, porque desprovide de um cdleulo dos efeitos produzidos no espectador. O resultado seria um “tableau pontilhista", capaz. de captar apenas a dindmica extema das eventos, ¢ nio as articulagdes dialéticas da realidade social. © julgamento eisensteiniano considera que 0 ‘cine-olho" o método vertoviano de decodificagdo do mundo pela montagem, de fato, contemplative e propée, em substituigdo, 0 "eine-punho", Eisenstein nfo fica apenas nessas consideragdes estéticas gerais, Ele entra nas miniicias especificamente cinematograficas da montagem de atragScs. 1é nfo basta indicar a justaposigdo entre o massacre dos operiios ¢o touro sendo abatide no matadouro, Eisenstein lista os 38 planos que compéem a seqliéncia ¢ comenta o modo como a montagem foi feita. E, mais, importante que essa andlise técnica da montagem, serd o principio que a guia, do "cine-punho": se para Vertov, segundo Eisenstein, A greve é "uma tentativa de enxertar alguns métodos de construgio do Kino-Pravda [cinejomal realizado por Vertov] no cinema de arte, as eventuais semelhangas que possam, existir entre os dois trabalhios, no que diz respeito a téenicas de montagem, situam-se na "forma exterior [grifo de Kisenstein) da construgio", pois no "método formal de construgao, A greve é o exato oposto do cine-olho. (..) 0 produto artistico € antes de tudo um trator que trabalha o psiquismo do cespectador, segundo uma orientago de classe determinada'", eo cine-olho seria, agitado somente exteriormente, jé que ndo construiria suas variagGes ritmicas guiado por uma orientagdo ideolégica de fundo. Sem isso, por mais frenético que o cine-olho parega, ele acaba sendo, diz 0 ensaista, contemplative ¢ estitico, Encouragado Potemkin: A vanguarda em busca da comunicagao Encouracado Potemkin (1925), realizado no mesmo ano de A greve, significou uma mudanga substancial no estilo eisensteiniano, Tratava-se de uma narrativa muito mais linearizada, com mais personagens indivi- dualizados, e de um apelo emocional muito mais conereto. Em greve, o diretor cobria as varias fases do movimento, a0 passo que, no Potemkin, cle se concentra num episodio especifico, narrando-0 como metifora geral de um processo mais amplo. Ou seja, © Potemkin esti mais préximo da narrativa realista ¢ isso se especifica nos detalhes de composigao: ha muito mais continuidade espacial e temporal. Em 4 greve, a todo momento, havia uma ruptura que evidenciava @ fratura da narrativa © provocava uma leitura alegorizante do que era visto, No novo filme, composto por cenas dramaticas concrctas e continuas, hé muito menos quebras do foo 124 Papirus Ealtora narrativo, o que resulta numa maior intensidade de pathos. Na epigramitica frase de Eisenstein: "A greve é um tratado; o Potemkin éum hino" (1974a, p.37) A histéria dos marinheiros amotinados desenrola-se, segundo anélise do proprio diretor, numa ‘unidade orginica da composi (..) segundo a es da austeracomposiso «da raga em sua forma tradicional de cinco alos (.) I. Homens evermes Exposigio da ago, As condigSes a bordo do encouragado, Came cia de vermes, Inquietag entre os marinheiros, Drama no convés fados os homens ao convés!" Os marinheiros se reeusam a comer 8 sop cheia de vermes, Cena da lona fordem de fuzilamento dos amiotinados). "mos!" Recusa cm disparar. Motim, Vinganea contra os oficiais. IL © morto clama por vinganga Névoa. O cadiver de Vakulinchuk no porto de Odessa. Luto diante do ‘orto. Ato public. figadaa bandeira vermelha, WA escadara de Odessa Inmanados o litoral © encouragado, Botes com provisdes. Descargas de fiilaia na escadaia, V, Diante da esquadra Noite de espera. Encontro com a esquadra. Motores."Iemios!" A esquada se recusa ata. (1982, p99) A organicidade da estrutura é excepcional, Na continuidade narrativa, ppassa-se de um conflito pontual ao motim; do motim, ao levante da cidade; da cidade, ao movimento revolucionério contra a frota ezarista, Os passos dessa evolugdo se do segundo uma regra de simetria e, segundo a explicagao do proprio dirctor, "cada ato esta claramente dividido em duas partes iguais (..) Cena da lona/motim; luto por Vakulinchuk/manifestagio de protesto indignado; confraternizaydo/descargas; esperando a esquadralriunfo". Cada ‘uma dessas divisdes ¢ marcada por um ponto de cesura, que indica a passagem no apenas mecinica, mas de qualidade: uma inversio explosiva do que se desenvolvia na primeira parte do bloco. Em A greve, na auséncia de uma linha mais continua, a narrativa apoiava-se em motivos que se repetiam e se desdobravam. No Potemkin, esses elementos destacados estio subsumidos no fluxo narrative, Hé menos ropetisdo e mais pontuagdo: os elementos em destaque dio fechos sintéticas ‘20s movimentos do filme. Citemos alguns desses elementos de pontuagao: a quebra de um prato marca a explosio do motim; a cruz do padre marca 0 Histéria do cinema mundial 125 tempo do fuzilamento dos amotinados ¢ é associada, pela montagem, & espada, do oficial; 0 pince-nez do médico serve primeiro como meio de destacar os vermes da came podre e depois para simbolizar a morte do médico; a chama bruxuleante de uma vela sintetiza o Iuto por Vakulinchuk um punho se fechando marca a passagem do luto 4 revolta; uma bandeira hasteada anuncia 6 encontro entre a tripulago © a populagdo de Odessa; as botas perfladas dos ccossacos se opéem A multido massacrada nas escadarias; um carrinho de bebé desgovernado exprime a situagio das vitimas; as bocas dos canhées marcam, como uma longa nota, o suspense no confronto final do encouragado com a frota czarista Todas essas pontuagées so como notas de transigo ou conclusto de movimentos. Movimentos que, diferentemente da fragmentagao de A greve, vio sendo construidos por uma sutil modulagdo de gestos, E assim na repressio fisica da abertura: o marinheiro que é chicoteado e sufoca 0 choro, seguido pela lentidio dos gestos de trabalho dos que preparam a refeigio de came podre, até a explosio do prato espatifado. Mas isso no quer dizer que a continuidade reine absoluta no Potemkin, A dilatagao do tempo no massacre na escadaria permite distorcer expressivamente cada lance: a me que é alvejada cai em planos sucessivos, que sublinham a dor de uma forma tao extrema que fiz lembrar a transcendéncia barroca do éxtase de Santa Tereza ‘Avila, esculpida por Berrini. A multiplicagio dos planos da multidao fugindo escadaria abaixo cria uma terrivel suspensio temporal da violencia, Inserges de detalhes tomados em primeiro plano, rostos e gestos retirados do ffuxo humano, desestabilizam a continuidade espacial. (© que ha de mais proximo entre Potemkin e A greve esti num nivel bem ‘mais fundamental: Eisenstein continua buscando formas capazes de exprimir © fluxo de energia que move as massas nos movimentos revolucionirios. Considerando o filme nesse plano, surgem similaridades: de novo, temos as idas e vindas da formago da vontade organizada das massas. Se, em greve, temos uma apresentagao grifica do conflito, entre a marcha operdria dissolvida pelos velores das manguciras de pressio, ndo deixa de haver ‘grafismo na contraposigio entre a repressio geometricamente organizada das botas e dos fuzis dos soldados a desabalada carreira do povo de Odessa escadaria abaixo, Ainda mais importante que essa caracterizagdo de grandes linhas de analogia formal, é a percepgao de que "Eisenstein segue sendo um. montador de atragSes" (Bordwell 1999, p. 102), Elas esto agora mais amalgamadas 2 narrativa, mas continuam ls. Vejamos 0 caso do terceiro ato. 126 Papirus Edltora © cerimonial fiinebre para heréi Vakulinchuk comega pelo lento deslocamento da embarcagdo que conduz seu corpo até o porto. Além do simbolismo figurative, com a evocagio mitolégica da barca dos mortos conduzida por Caronte, a solenidade & construfda pelo contraste entre a brancura da fumaga espessa, da mesma cor dos marinheiros perfilados, © 0 mar escuro. Entre os elementos do ar e da agua, 0 navio se desloca ‘melancolicamente, numa decupagem com repetidas quebras de eixo, fazendo © movimento apontar em varias dire Passamos ao porto, Entre as mios do morto, a decupagem destaca a vela."A noite traz a neblina", diz um letreito. E como se o frio da morte se cexpandisse para o mundo inteiro, Por fim, surge uma pequena réstia de luz. Um britho na 4gua, Surge um primeiro passaro. Uma mulher se ajoetha junto a9 morto ¢ reacende a vela. Um passante ¢ logo outro prestam sua homenagem. Um primeiro aglomerado de pessoas se forma, Surge entio um cordio humano que caminha para o cais. "Junto com o sol, uma noticia chega a cidade", anuncia o letreiro: seguem-se planos de uma procissio que se desloca em siléncio para prestar sua homenagem. © povo preenche a infindavel escadaria de Odessa (trata-se de uma sofisticada retomada da marcha operiria de A greve). A massa humana cerca 0 corpo. Os restos da multiddo se alternam, Um homem cobre seu pranto, 0 choro de uma senhora, se exacerba, Um punho se fecha! A multidio se agita, Um grito é langado e a ‘energia represada explode em punhos e gritos, embalados por um discurso de agitagdo: "Povo de Odessal". A multiddo marcha sobre a cidade. No ‘encouragado, os marinheitos se apinham na torre, Completa-se o movimento: do velério que se estendia a toda natureza passamos & revolta que se alastra pela cidade. A bandeira revolucionéria é hasteada, Esse memordvel segmento serd, num artigo tedrico escrito no final dos anos 1920, citado como exemplo de "montagem tonai" - que "poderia ser também chamada de emotivo-melédica” (Eisenstein 2002, p, 85). Bisenstein ainda buscaria novas revolugdes cinematograficas, ou melhor, novas formas de expressar a revolugdo. Mas, depois de Encouracado Potemkin, seu nome estava definitivamente inscrito ndo apenas na historia do cinema sovietico, ‘mas na do cinema mundial Eisenstein maduro: Outubro e o cinema intelectual Outubro (1927) foi uma encomenda governamental, para as comemoragdes dos dez anos da revolugdo, Na base do filme esti uma erdnica dos acontecimentos de 1917, Entretanto, 0 objetivo da narrativa no foi a reprodugdo fatual, mas a construgdo do sentido geral da experiéneia, uma mitologia historica: "O pequeno destacamento que invadiu 0 Palicio de Inverno se converte numa multidio (..) A reunitio do comité central de 10 de outubro, que ndo estabeleceu data alguma para a insurreigdo, se converte, nas. mos de Eisenstein, na votagdo de uma data exata" (Bordwell 1999, p. 103). ‘Vejamos o resumo da crénica histérica, segundo a competente anilise de Bordwell (ibid). O levante de fever, iniciado espontancamente pela clisse trabalhadora, 6 rapidamente apropriado pelas forgas burguesas. O govemo provisério inssteem seguir participando na Primeira Guerra Mundial, ao custo de fiver morrer de fome os trabalhadores © de adiar a reforma agréria, O ‘egress de Léin do exliogavaniza as massa, que se langam suas de Go Petersburgo em jlo. Mas o eovemo provséro reprimearebelifoeprende ‘os lideresbolcheviques. Alexander Kerenski, vido de poder mas inept, se converte no primeiro-ministre do governo de coalzio.O general Komilov, antigo aiado de Kerensk, encabera uma marcha contra-revolucionésia sobre a capital, que € deta por feroviros bolchevigues. © outono se aproxims ¢ os bolcheviques conseuem obter armas ¢0 apoio popular, Em 10 de outubro, 0 comité central bolchevique vata favor de langar uma insure armada para o dia 25 de outubro, data do inicio do segundo congresso pan-russo dos soviets. Os boleheviques organizam as ‘topes. Kerenski vai & Frente em busca de ajuda. Os ministros do governo provisiro se entrincheiram no Palio de lnverno,defendido por cossacs, ‘adeles ¢tropas femininas. Manhi do dia 25, enquanto © congresso de ‘Smolny ndo cess o debate as ropas bolcheviques ea multidio seapoderam o Palicio de Inverno e prendem os ministos. Lénin sobe natribuna do Congresso ¢ anuncia que se consumou a revolugdo de operirios © camponeses Baseado nesse argumento geral, Eisenstein dividiu sua narrativa em duas partes: a primeira condensa © processo que condu até 0 dia 25 de outubro; a segunda narra o dia da tomada do Pakicio de Inverno. A diferenga entre as duas € marcante, B na primeira parte que se concentram as experigneias do que Eisenstein viria a chamar de "montagem intelectual": um tipo de ruptura da continuidade diegética que busca provocar no espectador uma reflexio ‘conceituai. 16 as agbes do dia decisive da revolusdo estdo narradas de modo mais, convencional: num estilo mais préximo & montagem paralela consagrada por 128 Papirus Ealtora Griffith, alternam-se tréslinhas de ago (os debates no segundo congresso dos sovietes, as conas das tropas nas imediagSes de So Petersburgo e as apes no interior do paticio). Ainda que Eisenstein no centre essa encenagiio da tomada do palécio em protagonistas individualizados, o entusiasmo romantico das rmassas foi suliciente para que a segunda parte fosse palativel para o regime que comecava a restringir o espago de experimentagdo. No entanto, Outubro conguistou seu lugar na histéria do cinema pela riqueza de sua primeira parte {1 na abertura, o filme demonstra seu grau de ambigdo ensaistica, Em ugar dos confrontos de feverciro, que levaram 4 queda do czarisme, ele ‘comega com a imagem da esttua do czar Alexandre III sendo atacada por um. arupo de insurgentes. Os detalhes visuais contribuem para a abstraglo da representagdo: no lugar de uma locagdo, a estétua é filmada num fundo infinito de estidio; os revoltosos amarram cordas na estitua, mas a continuidade espacial nao se articula: ninguém aparece puxando a estétua, ‘que se desmantela sozinha, como que sugerindo o apodrecimento do regime. ‘A montagem faz com que um plano de centenas de fazis erguidos, e outro de foices, anteceda & queda da estitua, Era evidente a referéncia a mortandade dos, soldados enviados para o front & fome que assolava os camponeses russos. Mas nio so camponeses ou soldados que comemoram a vitéria: 0s doses de atitos de saudagdo sto de figuras tipicamente burguesas e a cena que se segue a0 letreiro que anuncia a instalagao do govemno provisério é a de uma missa. A cena seguinte nos leva a um campo de batalha, onde russos ¢ ‘inimigos" confraternizam. Ali, reina a camaradagem proletéria, sublinhada pelas brincadeiras com os capacetes de campanha, ironizados como simbolos de uma divisio e inimizade alheias a uma identidade de classe internacional. A confraternizagio proletéria, entretanto, dura pouco. A senha para a destruigo dessa miragem de paz é a imagem de um lacaio curvando-se na entrega de um documento, cujo contetido 0 intertitulo explicita como a capitulagio do governo provisério aos interesses dos aliados e & manuteng%o dda Rissia na guerra, A interpretagdo da permanéncia na guerra como traigl0 ao proletariado completa-se com a associagdo da imagem de um grupo de soldados entrincheirados com a da "ameaga" de um tanque sendo produzido numa linha de montagem. Novamente, a justaposigao de imagens sugere 20 espectador uma articulagdo intelectual, uma causagio mais complexa do que a simples ago fisica imediata A interpretagio do sentido hist6rico completa-se no tiltimo segmento: aos soldados esmagados por um "tanque conceituai’, situado no espago Histérla do cinema mundial 129 completamente diverso de uma linha de montagem, articulam-se quadros fixos de enormes ¢ iméveis filas noturnas de famintos, A imagem do pesado tanque, na fibrica, descendo "sobre" os soldados, nas trincheiras, ¢ alternada com letreiros que indicam o peso progressivamente menor das rages de pao (7400 g, "200 g etc.) A essas imagens soturnas, segue-se uma compacta multid’o, Mas, a0 contririo da lassidio das filas de famintos sob a neve da madrugada, hi agora algo de eletrizante, que se anuncia nos rostos tensos da multidio, Um clase extasiado e um letreiro rompem a expectativa: "E ele!" "Ulianov!" Surge Lénin, © lider discursa, pedindo terra, plo e paz, Ao longo do filme, esse tipo de conceitualizayao construida pela montagem serd abundante: 0 artificialismo do poder de Kerenski, por exemple, sera figurado pela repetigdo do mesmo plano dele subindo as escadas, do Pakicio de Inverno, como se ni saisse do lugar. No segmento "Deus e a ptr", depois de um apelo & manutengdo da ordem em nome dessas forsas atavicas, Fisenstein procede a uma desmontagem metédica dessas entidades: ‘uma sucessio de imagens de divindades, numa descendente de complexidade gue termina num idolo muito primitive, e uma sucesso de emblemas ¢ ‘medalhas militares explicitam a arbitrariedade dessas construgdes ideolgicas. Esse trabalho conceituai langaré mao, fartamente, de interpolagdes de objetos deslocados de seus espagos: um pavio mecinico - parte do espélio czatista que lembra as quinquilharias associadas aos burgueses em A greve - serve de caricatura de Kerenski; a0 chamado bolchevique para que proletariado se arme, um ful seré montado por uma sucesso de imagens; no final do filme, marcando a vitéria da revolugdo, uma coleslo de relégios do mundo inteiro sublinha o sentido universal do evento, que realizaria a teleologia marxista, Hé no filme um destaque especial para as estétuas (do czar, de Napoledo; os amantes de Rodin, que se contrapdem & brutalizagao das mulheres integrantes do batalhio ferinino; as estétuas egipcias; os {dolos religiosos) Eisenstein, convocado a eriar um monumento comemorativo, manipula os monumentos dos poderes do passado, revelando sua fragilidade diante da ago histérica. A desnaturalizagdo da montagem intelectual atua desmontando a aparéneia de realidade ndo apenas da cena ficcional, mas também da encenagao dos poderes que se rificam e monumentalizam. As vésperas do congelamento stalinista, que degencraria © processo revolucionério num culto a personalidade que repunha antigas relagdes entre povo e autoridade, no é pouca coisa essa meditagdo sobre a simbologia do poder 130 Papirus Raltora E possivel ver nesse vivo interesse pela heranga cultural um trago do. pensamento eisensteiniano que iri se aprofundar em seus estudos teéricos - ¢ ‘mesmo em seu trabalho de diretor, em Iv, oterrivel, parte I(1944) ef! (1958), Nao se trata de uma valorizagao fetichista do passado, mas uma consideraga0 da permanéncia do passado no presente, que caberia reclaborar perma- nentemente, submetendo 0 passado aos novos sentidos da histéria. Noutras, palavras, com Eisenstein, “o projeto construtivo incorpora a tradi¢do”, como resume Ismail Xavier (1994, p. 363): no se deixam de seguir as divisas da cxplicitagio da construgdo formal e de sua associaglo & tarefa da construgao da nova sociedade, Mas Eisenstein ndo concorda com a fabula rasa cultural proposta por muitos construtivistas - em especial por Vertov -, que afirmava a morte da tradigdo artistica ¢ a necessidade de uma representago que partisse do zero, Lembrando o desafio iconoclasta ao qual Eisenstein se propusera quando jovem - aquele de matar a arte - pode-se dizer que, quando entra em sua fise madura, o cineasta j4 redefinira o desafio como uma luta interna as fronteiras da arte. Se 0s exemplos citados ¢ as questées por eles suscitadas sugerem a riqueza ensaistica de Outubro, nfo so suficientes para explicar a forga emocional do filme, que é to importante quanto 0 aspecto conceituai, Raziio, © emogdo formam um par indissocivel para o defensor do "cine-punho”. O desenvolvimento do "cinema intelectual" no poderia se dar em detrimento do pathos. Essa combinagdo esté presente no desenho geral do filme: sintomaticamente, a passagem da predominancia ensafstica da primeira parte para. fluxo de ago da segunda é marcada por uma vertiginosa montagem da, festa da vit6ria contra a tentativa de golpe de Kemilev, Os bolcheviques ¢ os soldados desarmades fundem-se, pela montagem, em um s6 corpo, rodopiando numa danga frenética, Nessa ¢ em varias outras cenas, como a do ccélebre massacre na ponte de So Petersburgo, Eisenstein investe na energia bruta da encenagdo e da montagem, como forma de mobilizagio do espectador. No massacre da ponte - herdeiro da repressio aos operiirios de A greve © do ataque das tropas czaristas a0 povo, na escadaria de Odessa -, Eisenstein prossegue aperfeigoando sua montagem de atragdes, reunindo reflexdo conceituai e explosdo de energia das massas, equagio de engenbaria e impulso surrealista A cada volta em sua espiral eriativa, Bisenstein busea manter 0 jé conquistado e experimentar novas formas de realizar a sintese cinematogréfica entre emogiio e razdo, passado e presente, arte, cigncia e revolugao. Histéria do cinema mundial 134 © cinema intelectual: Teoria de um novo cinema No final dos anos 1920, Eisenstein amadurecera seu pensamento tedrico. A teoria do "cinema intelectual’, parcislmente realizada em Outubro, propunha-se como superagio dialética do conjunto da experigneia do cinema russo dos anos 1920 - e, conseqdentemente, de toda historia do cinema até enti. (© mais importante ensaio dessa fase do pensamento eisensteiniano é "Dramaturgia da forma do filme” (ou "Stuttgard"),? no qual o autor busca dotar a reflexdo sobre o cinema de uma epistemologia bascada numa filosofia, dialética, Dessa perspectiva, Eisenstein retoma criticamente © conjunto da reflexdo russa sobre cinema. Ele refuta a idéia, assentada por Kulechov ¢ Pudovkin, da montagem como justaposigdo ritmada de segmentos estanques, "como tijolos". Segundo Eisenstein (apuel Albera 2002, p. 87) ‘De meu ponto de vista, a montagem no é um pensamento composto de partes quese sucedem, esimum pensamento que nasce do choque de duas pares, uma independente da outrs(..) Como na hieoglifes japoness, na qual dois signos ideogtificos independentes (quadros), justapostos, ‘explodem em um conecito nove Dessa idéia seminal do nflito" como base de tudo, Eisenstein desenvolve uma visio do cinema como fluxo incessante de choques em varios niveis expressivos, 0 que o leva a sistematizar uma escala de "métodos de montagem" (2002): montagem métrica, ritmica, tonai, atonal ¢ intelectual Cada método - compondo uma hierarquia de niveis de complexidade ~ mobiliza um espectro de elementos em "conllito’, A idei chave & que cada corte se apoia em alguma conexio especifica, uma "dominante", como chama © autor, apropriando-se da linguagem musical A montagem métrica bascia-se em relagbes entre o tamanho dos planos justapostos, e Fisenstein, desenvolvendo a analogia musical, compara essas 2 O texo tem duas vertes em portgués. A primeira, "Dramaturgia da forma do ie", st include em 4 forma do fm. A otra versio, "Statgar,éresuliado de um rgoros casio de varias verbes © tradugdes c serve de base para o amplo estudo Eisenstein © 0 consirtvismo rus, de Panis Alber, ceramentso mais importants lio sobre Fisescin | publiendo no Bras 182 Papirus Editora relagdes a compassos. O segundo tipo de montagem é a ritmica, na qual "é 0 ‘movimento dentro do quadro que impulsiona o movimento da montagem de tum quadro a outro" (2002, p. 81), que conduz 0 olho do espectador, diz Eisenstein. A montagem tonai & aquela que se baseia no "tom emocional dominante dos fragmentos" (2002, p. 82). Bordwell sugere que se trata da “qualidade expressiva que impregna os planos" (1999, p. 159) de uma sequéncia. Eisenstein dé como exemplo a melancélica sequéncia da neblina, no Potemkin, baseada na imersio geral dos objetos quase iméveis naquela densa atmosfera esbranquigada - num exemplo de anélise fllmica capaz. de se concentrar em conjuntos de variéveis plisticas que organizam linhas de costura da montagem (luz, sombra, cor, linhas, volumes, velocidades ete). Na ‘montagem atonal, como o nome jé indica, temos uma superagao dialética mais, contundente em relagio aos tipos anteriores. Aqui, jd ndo hd uma linha “dominante": todos os clementos expressivos sio mobilizados em igual medida, Ele apela para duas comparagbes explicativas: uma & como teatro Kabuki, onde o impacto sobre 0 espectador é obtido pela justaposigdo de miiltiplos canais expressivos simultaneos, sem hierarquia, A outra comparagdo é com a musica de Debussy, que abriu caminho para a ruptura radical de Schoenberg com o tonalismo, multiplicando notas "selvagens" ou seja, no justficadas segundo as regras da harmonia, Um cinema do futuro, capaz de mobilizar todos esses métodos de montagem, atuando em niveis variados para a formagio de conceitos na mente do espectador, seria um cinema que teria aleangado a montagem intelectual, Vertov: O homem da cdmera e a decodificagao do mundo pela montagem No ambiente altamente polémico do cinema russo dos anos 1920, 0 confronto entre Eisenstein e Vertov foi o mais importante. Como vimos, Eisenstein desenvolveu uma vertente de construtivismo de vocagio sintética, interessada em incorporar, de forma revolucionéria, © pasado burgués da cultura, A estratégia de Vertov era outra: para ele, a revolugdo era um. recomeso. Eta preciso fazer tabula rasa do passado e aderit a0 presente por meio de uma linguagem também contemporiinea, ‘Ainda que todos os cineastas soviéticos dos anos 1920 trabalhassom sob a 64ide vanguardista do construtivismo, Vertov foi, provavelmente, © que tentou

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