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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS UNIDADE 03 AULA 07

INSTITUTO FEDERAL DE
EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
PARAÍBA

O texto poético:
uma introdução

1  OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

„„ Distinguir os conceitos de poesia, prosa e poema;


„„ Compreender o que é lirismo e como ele se manifesta no texto
literário.
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - O Texto Poético: uma introdução

2  COMEÇANDO A HISTÓRIA
Caro aluno, na aula anterior, você ficou sabendo sobre a teoria dos gêneros
literários, cujo início da discussão foi com Platão e Aristóteles. As bases teóricas
foram, portanto, lançadas na Antiguidade, mas, ainda hoje, se sustentam,
naturalmente com mudanças e vários desdobramentos.

Você deve lembrar que são três os gêneros literários basilares: o lírico, o
épico/narrativo e o dramático. Nesta aula, especificamente, vamos fazer uma
introdução ao estudo do texto poético ou, em outros termos, uma introdução
ao gênero lírico. Isso significa que vamos ler e discutir sobre poesia, algo
extremamente interessante, você não acha?

Mais adiante, no nosso curso, você vai aprofundar esse estudo numa
disciplina chamada Teoria da Literatura I. Por enquanto, vamos dar o pontapé
da discussão.

Muito provavelmente, você já ouviu as seguintes falas:

– Vamos bater dois dedos de prosa?

– Aquele professor lê poema muito bem.

– Gosto muito de ouvir poesia.

Bem, você já se deu conta do significado destes termos: prosa, poema


e poesia? A palavra prosa significa apenas conversa? Poema e poesia são
sinônimos?

Essas e outras questões serão objeto de nosso estudo a partir de agora.

3  TECENDO CONHECIMENTO
Para começar nossa conversa sobre o texto poético, é importante falarmos
sobre gênero lírico e lirismo. Qual a origem desses termos? O que eles significam?
Após responder a essas questões, trataremos, como já foi adiantado, das
diferenças entre poesia, prosa e poema, e, em seguida, de alguns comentários
a respeito do discurso poético como algo inato ao ser humano. Por fim,
discutiremos sobre o que são imagens poéticas. Tudo isso com alguns textos
poéticos interessantíssimos.

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3.1  O gênero lírico e o lirismo


As palavras “lírico” e “lirismo” derivam de “lira”. A lira foi um instrumento de
cordas, como se fosse uma harpa pequena, bastante utilizado na Antiguidade
para acompanhar a recitação de versos.
Figura 1

A significação do vocábulo “lírica” articula-se estreitamente


à sua etimologia: no início, designava uma canção que
se entoava ao som da lira. Assinala, pois, a aliança entre
a música e o poema, ou entre a melodia e as palavras.
Inaugurada pelos gregos, no século VII a.C., essa modalidade
poética permaneceu até a Renascença, quando o primitivo
significado – poesia cantada – entrou em desuso. [...]
De modo geral, o histórico da lírica apresenta dois grandes
lapsos de tempo, limitados pela Renascença: no primeiro,
consistia na atividade poética destinada ao canto, e
acompanhada pela lira ou, durante a Idade Média, por
outros instrumentos de corda, como a viola, o alaúde, o
saltério, a guitarra; no segundo, instaurado o divórcio entre
a letra e a pauta musical, o poema lírico endereçava-se não
mais aos ouvidos, e sim aos olhos, pois visava a ser lido.
(MOISÉS, 2004, p. 260)

Desde os gregos, o que hoje chamamos de poesia lírica já designava uma


construção poética individual, ou seja, criada e executada por uma só pessoa,
em oposição à poesia córica (cantada por um coro). Lançava-se a base da
noção de um “eu” poético. Sobretudo a partir do Romantismo, o gênero lírico se
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definiu como sendo “a poesia do ‘eu’, poesia da confissão ou poesia da emoção”


(MOISÉS, 2004, p. 262).

Em linhas gerais, tradicionalmente, pertence ao gênero lírico os poemas,


em geral curtos, escritos em 1ª pessoa e com certo grau de musicalidade,
carregados de emoção (subjetividade), expressando algum estado de alma
sentimental.

Por outro lado, não dá para confinar os sentimentos na estrutura de um


poema. As emoções estão em toda parte e podem aparecer em qualquer
tipo de texto. É óbvio que há lirismo no poema lírico, mas também é possível
encontrá-lo em narrativas, por exemplo. No geral, portanto, o termo lirismo
designa emoção, expressão de sentimentos.

Vejamos as colocações feitas pelo crítico Afrânio Coutinho a respeito da


matéria lírica:

A vida são as paixões. A literatura inexistiria não fossem


elas. Está nos movimentos do coração, portanto, a matéria
lírica, e são eles que constituem os temas líricos, isto é,
são os sentimentos humanos: amor, ódio, alegria, tristeza,
morte, melancolia, entusiasmo, admiração, piedade,
contemplação, saudade, adoração da beleza (natureza,
mulher)... Amor, morte e natureza são os principais.
[...]
O lirismo é essencialmente emocional. Apresenta, como
vimos, as emoções do poeta despertadas pelo contato
com cenas de beleza (humana ou paisagística), alguma
experiência (elemento da confidência que o poeta
transmite), ou algum efeito criado na sua imaginação por
qualquer coisa, ser, episódio, ou ainda um sentimento forte
(busca ou negação da felicidade, etc.). (COUTINHO, 2008, p.
82 e 84) (grifos nossos)

Para fecharmos esse tópico com um exemplo e uma atividade, leiamos um


poema lírico do poeta paraibano Augusto dos Anjos:

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Solitário

Como um fantasma que se refugia


Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia


Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!


E eu saí, como quem tudo repele,
— Velho caixão a carregar destroços —

Levando apenas na tumbal carcaça


O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!
(ANJOS, 2001, p. 56)

EXERCITANDO
Aproveitando o poema “Solitário”, transcrito acima, responda aos seguintes
questionamentos:

a) Que sentimentos são retratados no texto?

b) Como o eu-lírico foi caracterizado?

c) De que forma o ambiente descrito contribui para o lirismo do texto?

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3.2  Poesia, poema, prosa


Após a noção inicial do que é lirismo, bem como do que caracteriza um
poema lírico, façamos agora alguns esclarecimentos conceituais a respeito de
três termos bastante utilizados nos estudos da literatura: poesia, prosa e poema.
Não vamos aqui esgotar toda uma discussão teórica a respeito do assunto, mas
podemos apontar algumas possibilidades de diferenciação.

Podemos, para sermos didáticos, dizer, primeiramente, que o conceito


de poesia é amplo e abrangente, referindo-se à beleza, ao encantamento, à
suscitação de emoções, à sensibilidade. Já os conceitos de poema e prosa
podem ser associados à questão da forma do texto.

O poema seria o texto escrito em versos, com uma ou mais estrofes,


apresentando um ritmo de leitura mais cadenciado, certa musicalidade, com
ou sem rimas. A prosa seria o texto escrito com linhas contínuas, frases, orações
e parágrafos. Seria, popularmente, o texto “normal”. Veja os exemplos abaixo e
como é fácil distinguir o poema da prosa. Aproveite a leitura dos textos!

Soneto de fidelidade
Vinícius de Moraes

POEMA
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto versos
Que mesmo em face do maior encanto
estrofes
Dele se encante mais meu pensamento.
ritmo
Quero vivê-lo em cada vão momento rimas
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure


Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):


Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
(MORAES, 1991, p. 55)

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O pavão
Rubem Braga
PROSA
E considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor
frases
de suas cores; é um luxo imperial.
orações
parágrafos Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas
não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há
são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta,
como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.

Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o


máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e
luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.

Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha


amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e
delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz
de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
(BRAGA, 2009, p. 139)

É claro que essa distinção que estamos fazendo tem um caráter didático,
como mencionamos antes, e atende à noção “moderna” de poema. Esses
são apenas os primeiros passos de uma discussão que pode ser ampliada e
aprofundada. Veja, por exemplo, o que diz o professor e crítico literário Alcir
Pécora:
o que se tem chamado genericamente de “poema” não se
reconhece, numa preceptiva de tradição clássica, como
“poema” – termo cômodo pela totalização de objetos
de tradições letradas muito distintas e, muitas vezes,
impossíveis de justapor ou englobar –, mas, digamos,
como soneto, como madrigal, como romance pastoril,
como epístola satírica, formas poéticas precisas, com teoria,
história e efeitos particulares. (PÉCORA, 2001, p. 12)

O que Pécora afirma é que o termo poema, entendido apenas a partir do


aspecto formal, ou seja, como um texto escrito em versos, foi uma construção
histórica que se sobrepôs aos nomes das formas poéticas (ou o que hoje
chamamos de tipos de poemas). Os poetas dos séculos XVI ou XVII, por
exemplo, “não faziam poemas”; faziam “soneto”, “madrigal”, “epigrama”, “elegia”,
“écloga”, “ode” etc. Como vimos, hoje, o termo poema engloba todas essas
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formas poéticas – a noção totalizadora, mencionada pelo crítico.

Ainda no que diz respeito à distinção entre poema e prosa, afirma o poeta e
ensaísta mexicano Octavio Paz, Prêmio Nobel de Literatura de 1990, que o ritmo
é o elemento diferenciador: “o ritmo se dá espontaneamente em toda forma
verbal, mas só no poema se manifesta plenamente. Sem ritmo, não há poema;
só com o mesmo, não há prosa. O ritmo é condição do poema, enquanto que é
inessencial para a prosa” (PAZ, 2009, p. 11).

Outra discussão é a que se refere ao conceito de poesia. Vamos voltar a falar


sobre isso?

Poesia não é algo que se restringe ao poema, nem mesmo ao texto


literário. É possível encontrar poesia nos mais diversos lugares e situações. Um
desenho de uma criança, um quadro, uma fotografia, a imagem de um casal
de namorados, um casal de idosos de mãos dadas na praça, tudo isso pode
ser considerado poético. Diz-se que poesia está associada àquilo que provoca
reações sentimentais, deslumbramento, enlevo.

Observe que a noção de poesia está fortemente associada ao lirismo, às


emoções. Lembremos, ainda, que, muitas vezes, a palavra poesia é empregada
como sinônimo de obra literária de um autor. Por exemplo, a expressão “poesia
de Jorge Amado” refere-se ao conjunto de livros literários do escritor baiano.

Pode haver poesia, portanto, num quadro, no poema, na prosa, num gesto...

Por outro lado, para o poeta Octavio Paz, “só no poema a poesia se recolhe e
se revela plenamente”. Vejamos as palavras do autor que ora coincidem com o
que já afirmamos, ora ampliam nossa discussão:

Figura 1: Octavio Paz Lozano


(1914-1998), poeta, ensaísta
e diplomata mexicano, rece-
bedor do Prêmio Nobel de
Literatura de 1990.

Perguntando ao poema pelo ser da poesia, não confundi- Figura 2


mos arbitrariamente poesia e poema? Já Aristóteles dizia
que “nada há de comum, exceto a métrica, entre Homero
e Empédocles; e por isso com justiça se chama de poeta
o primeiro e de filósofo o segundo”. E assim é: nem todo
poema – ou, para sermos exatos, nem toda obra construí-
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da sob as leis da métrica – contém poesia. Um soneto não


é um poema mas uma forma literária, exceto quando esse
mecanismo retórico – estrofes, metros e rimas – foi tocado
pela poesia. Há máquinas de rimar, mas não de poetizar.
Por outro lado, há poesia sem poemas; paisagens, pessoas
e fatos podem ser poéticos: são poesia sem poemas. Pois
bem, quando a poesia acontece como uma condensação
do acaso ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias
alheios à vontade criadora do poeta, estamos diante do po-
ético. Quando – passivo ou ativo, acordado ou sonâmbulo
– o poeta é o fio condutor e transformador da corrente po-
ética, estamos na presença de algo radicalmente distinto:
uma obra. Um poema é uma obra. A poesia se polariza, se
congrega e se isola num produto humano: quadro, canção,
tragédia. O poético é poesia em estado amorfo; o poema é
criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se re-
colhe e se revela plenamente. É lícito perguntar ao poema
pelo ser da poesia, se deixamos de concebê-lo como uma
forma capaz de se encher com qualquer conteúdo. O poe-
ma não é uma forma literária, mas o lugar de encontro en-
tre a poesia e o homem. O poema é um organismo verbal
que contém, suscita ou emite poesia. Forma e substância
são a mesma coisa. (PAZ, 1982, p. 16-7) (grifos nossos)

Para fecharmos essa discussão, saibamos a origem dos dois termos: poema
e poesia, segundo o Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés (2004):

POEMA – do grego poíema, o que se faz, criação; invenção, trabalho.

POESIA – do grego poíesis, fazer, criar, alguma coisa, pelo latim poesis.

3.3  Prosa poética ou poema em prosa


No tópico anterior, acabamos de estudar que a poesia não se restringe
ao poema. Ela também pode ser achada na prosa. Há exemplos clássicos na
literatura brasileira que confirmam essa tese, indicando a existência de prosas
poéticas ou poemas em prosa. Em outras palavras, narrativas escritas em prosa,
mas com uma linguagem altamente lírica (poética). Indicamos quatro exemplos.

Primeiro, você já deve ter notado que a crônica O pavão, de Rubem Braga,
transcrita acima para exemplificar a estrutura da prosa, é um belo exemplar de
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prosa poética. Releia o texto, agora com esse novo olhar. O último parágrafo é
de uma beleza poética extraordinária!

Os outros três exemplos são de Clarice Lispector, Guimarães Rosa e José de


Alencar. Veja os fragmentos dos textos abaixo. Depois, aproveite para lê-los
integralmente. Estão disponíveis na internet:

Texto I

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam,


tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos.
A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era
forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo
nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e
enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as
sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores.
Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o
tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com
os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana
dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara
riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto
sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de
se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando
estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há
muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto
pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter
descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria
uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
(Fragmento do conto “Amor”, do livro Laços de Família, de Clarice Lispector)

Texto II

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se
o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu
sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha
achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por
quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar
do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada
do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira,
brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha
tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro.
(Trecho extraído do conto “A terceira margem do rio”, do livro Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa)
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Texto III

Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da
carnaúba;

Serenai verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco
aventureiro manso resvale à flor das águas.

[...]

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da
graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque
como seu hálito perfumado.

Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu,
onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal
roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
(Fragmentos iniciais dos capítulos 1 e 2 do romance Iracema, de José de Alencar)

Você deve ter percebido que, nos três textos, escritos em prosa, há elementos
típicos do gênero lírico: subjetividade, linguagem carregada de poeticidade e
até certa sonoridade e ritmo. Em suma, as narrativas em questão não se limitam
a contar uma história. Elas vão além desse aspecto. Em Iracema, por exemplo,
há um ritmo típico de poema. No texto de Clarice Lispector, repetições que
são muito mais comuns no texto em versos. Ainda em Clarice e também em
Guimarães Rosa, uma profunda interiorização das personagens.

Comprovada, então, a tese de que há poesia além do poema e que existem


textos em prosa profundamente poéticos. Finalizado este tópico, agora, vamos
saltar para outra tese: “o poético é inerente ao ser humano”. Será?

3.4  O homem é um ser poético!?


É muito comum ouvirmos na televisão, em jornais ou entrevistas, que
o homem é um ser político e um ser social. São expressões que se tornaram
clichês e que dizem respeito à necessidade do ser humano de viver em
sociedade e também de organizá-la. Agora, vamos ousar e acrescentar que
o homem é também um ser poético, ou seja, a poesia é indispensável e está
intrinsecamente ligada à própria existência. Você já se deu conta disso? Ou
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melhor, você concorda com essa afirmativa? Vejamos, então, o que diz o filósofo,
antropólogo e sociólogo francês Edgar Morin:
Inicialmente, é preciso reconhecer que, qualquer que seja
a cultura, o ser humano produz duas linguagens a partir
de sua língua: uma racional, empírica, prática, técnica;
outra, simbólica, mítica, mágica. A primeira tende a
precisar, denotar, definir, apóia-se sobre a lógica e ensaia
objetivar o que ela mesma expressa. A segunda utiliza mais
a conotação, a analogia, a metáfora, ou seja, esse halo de
significações que circunda cada palavra, cada enunciado e
que ensaia traduzir a verdade da subjetividade. Essas duas
linguagens podem ser justapostas ou misturadas, podem
ser separadas, opostas, e a cada uma delas correspondem
dois estados. O primeiro, também chamado de prosaico,
no qual nos esforçamos por perceber, raciocinar, e que
é o estado que cobre uma grande parte de nossa vida
cotidiana. O segundo estado, que se pode justamente
chamar de “estado segundo”, é o estado poético.
O estado poético pode ser produzido pela dança, pelo
canto, pelo culto, pelas cerimônias e, evidentemente, pelo
poema.
[...]
O objetivo que permanece fundamental na poesia é o de
nos colocar num estado segundo, ou, mais precisamente,
fazer com que esse estado segundo converta-se num
estado primeiro. O fim da poesia é o de nos colocar em
estado poético. (MORIN, p. 35-6 e 43)

Você percebeu, caro aluno, a tese defendida por Morin? Para ele, existem
duas linguagens a partir de nossa própria língua: uma associada ao mundo
do trabalho, das informações, da burocracia e dos documentos; outra, ligada
à imaginação, à arte, à música, à poesia. As duas podem se misturar ou andar
separadas. Mas, ambas existem sempre.

Você já imaginou um mundo sem a fantasia, o sonho, a imaginação, ou,


em uma palavra, sem poesia? Já vimos que, de forma ampla, poesia se refere
à beleza, ao encantamento. Um mundo sem poesia, nesse sentido macro, seria
muito mais obscuro e triste, pois se reduziria apenas a atividades utilitárias, sem
espaço para a contemplação, a beleza, as cores, os sons, os ritmos, as canções,
as imagens e assim por diante.

Para Octavio Paz (2009, p. 12), “a poesia pertence a todas as épocas: é a forma
natural de expressão dos homens. Não há povos sem poesia, mas existem os
que não têm prosa. [...] é inconcebível a existência de uma sociedade sem
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canções, mitos ou outras expressões poéticas”.

É nesse sentido que dizemos que o homem é um ser poético. É inerente


à raça humana a necessidade de preencher vazios espirituais e emocionais. E
como diria a música interpretada pelos Titãs:

Comida

Bebida é água! A gente quer bebida


Comida é pasto! Diversão, balé
Você tem sede de quê? [...]
Você tem fome de quê?...
A gente não quer só comer
A gente não quer só comida A gente quer prazer
A gente quer comida Pra aliviar a dor...
Diversão e arte
A gente não quer
A gente não quer só comida
Só dinheiro
A gente quer saída
A gente quer dinheiro
Para qualquer parte...
E felicidade
A gente não quer só comida [...]

Figura 3

Agora, para fecharmos este tópico, vamos nos utilizar das palavras de um
dos mais importantes críticos literários do nosso país: Antonio Candido. Aliás,
são observações que já foram iniciadas na aula 5 (sobre as funções da literatura)
e que serão também mencionadas na aula 8 (sobre narrativa). Mas, valem à
pena serem reforçadas.

Considerando literatura (ou poesia) em sentido amplo, ou seja, referindo-


se a “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os
níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos
folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção
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escrita das grandes civilizações” (CANDIDO, 2004, p. 174), afirma o autor:

Vista deste modo a literatura aparece claramente como


manifestação universal de todos os homens em todos os
tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem
ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com
alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham
todas as noites, ninguém é capaz de passar vinte e quatro
horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo
fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença
indispensável deste universo, independentemente da
nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional e
poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e
modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto
ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos,
noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba
carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso
ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de
televisão ou na leitura seguida de um romance.
Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem
mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura
concebida no sentido amplo a que me referi parece
corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser
satisfeita e cuja satisfação constitui um direito.
[...] Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio
psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja
equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator
indispensável de humanização e, sendo assim, confirma
o homem na sua humanidade, inclusive porque atua
em grande parte no subconsciente e no inconsciente.
(CANDIDO, 2004, p. 174-175)

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Figura 5

Na sala de aula: caderno de


análise literária. Um conjunto
de análises de poemas (de Ma-
nuel Bandeira, de Álvares de Aze-
vedo, de Murilo Mendes...). Um
livro que ensina, por meio de vá-
rias análises de textos poéticos,
como analisar um poema.

Figura 4

Figura 6
Antonio Candido, um dos mais
respeitados críticos brasileiros.
Autor de inúmeros livros e de en-
saios clássicos, como: “Dialética da
malandragem” (sobre o romance
Memórias de um sargento de milí-
cias) e “De cortiço a cortiço” (sobre
a obra de Aluísio Azevedo), ambos
disponíveis na internet.
Formação da literatura bra-
sileira: momentos decisivos.Um
clássico da história literária brasi-
leira, indispensável para qualquer
aluno de Letras.

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3.5  Imagens poéticas


Para fecharmos a discussão de nossa aula, terminaremos com a explicação do
que são “imagens poéticas”. Para facilitar a compreensão, vamos, inicialmente,
ler o seguinte soneto de Augusto dos Anjos:

Debaixo do Tamarindo

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,


Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,


Guarda, como uma caixa derradeira
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios


De minha vida e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,


Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!

(ANJOS, 2001, p. 37)

De alguma forma, você conseguiu visualizar a árvore descrita no poema?


Atentando bem, é possível projetar a seguinte imagem, de acordo com a
primeira estrofe: alguém debaixo de uma tamarineira, esgotado com a fadiga
de um dia árduo de trabalho. O eu-lírico projeta sua subjetividade a partir de
uma lembrança da época do pai: a paisagem, a árvore, a sombra, os galhos e,
sobretudo, a comparação com uma vela fúnebre expressam uma nostalgia,
uma melancolia, aspectos que reforçam o caráter lírico do texto. Aliás, ao afirmar
que “chorou bilhões de vezes”, derretendo-se “como uma vela fúnebre de cera”,
certamente o eu-lírico faz o leitor imaginar alguém se “acabando de chorar”.

Essa capacidade que a linguagem figurada empregada pelo poeta tem de


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produzir na mente do leitor uma série de imagens é o que podemos chamar


de imagem poética. A linguagem carregada de significados simbólicos ou
metafóricos povoa a nossa mente, projeta uma “imagem visual”.

A respeito do assunto, Octavio Paz afirma:

Designamos com a palavra imagem toda forma verbal,


frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que unidas
compõem um poema. Estas expressões verbais foram
classificadas pela retórica e se chamam comparações,
símiles, metáforas, jogos de palavras, paronomásias,
símbolos, alegorias, mitos, fábulas, etc. Quaisquer que
sejam as diferenças que as separam, todas têm em comum
a preservação da pluralidade de significados da palavra
sem quebrar a unidade sintática da frase ou do conjunto
de frases. Cada imagem – ou cada poema composto de
imagens – contém muitos significados contrários ou
díspares, aos quais abarca ou reconcilia sem suprimi-los.
(PAZ, 2009, p. 37-8)

EXERCITANDO
Releia os textos literários transcritos nesta aula (Solitário, Soneto de Fidelidade,
O pavão, trechos do romance Iracema e dos contos Amor e A terceira margem do
rio) e, a partir deles, comente as imagens poéticas suscitadas pela linguagem
empregada por cada escritor.

17
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS - O Texto Poético: uma introdução

4  APROFUNDANDO SEU CONHECIMENTO


Para aprofundar seu conhecimento, seguem algumas sugestões:

Livro: Estudo Analítico do Poema

Autor: Antonio Candido

Além do já mencionado Na sala


de aula, livro em que Antonio Candi-
do empreende uma série de análises
de poemas, indicamos também, do
mesmo autor, O estudo analítico do
poema. Nesta obra, Candido, como
sempre fez com muito didatismo,
ensina como analisar um poema. Ali-
ás, os dois livros aqui indicados são
frutos das anotações do autor para a
ministração de aulas e cursos.
Figura 7

Site: www.jornaldepoesia.jor.br

O site Jornal de Poesia é de uma


riqueza impressionante. Há textos
de todos os autores que você possa
imaginar. Há, ainda, artigos e estudos
de algumas obras.

Na internet, também é possível


encontrar sites de livrarias e sebos,
por meio dos quais livros podem
ser adquiridos. O site Estante Virtual,
por exemplo, reúne quase todos os
sebos do país. Aproveite as dicas de
Figura 8 livros sugeridos ao longo das nossas
aulas. Em outra direção, há também
muitos livros disponíveis na rede.

18
UNIDADE 03 AULA 07

5  TROCANDO EM MIÚDOS
Nesta aula, você se deparou com algumas observações sobre o texto poético.
Esperamos que tenha compreendido o “estado poético”, o que é um texto lírico e
quais elementos o caracterizam. Fizemos, ainda, a distinção entre poema, prosa
e poesia, entendendo que os dois primeiros termos se diferenciam, entre outros
aspectos, pela forma textual, pela estrutura (texto escrito em versos x texto
“normal”) e que a palavra poesia está associada à beleza, ao encantamento, à
linguagem geradora de imagens poéticas. Vimos, ainda, que a poesia é inerente
ao ser humano e que é possível encontrar poesia em qualquer lugar e não
somente no texto literário, apesar de que, para Octavio Paz, a manifestação do
poético só se dá plenamente no poema.

6  AUTOAVALIANDO
Levando em consideração o que foi tratado nesta aula, você pode se fazer os
seguintes questionamentos:

a) Sei explicar o que é lirismo e o que faz um texto ser classificado como
pertencente ao gênero lírico?

b) Posso facilmente diferenciar um texto em prosa de um texto em verso?

c) Sou capaz de identificar imagens poéticas em um texto literário e quais


mecanismos linguísticos o poeta empregou para suscitar tais imagens?

Se suas respostas foram todas positivas, é sinal que você compreendeu bem
a proposta de nossa aula. Parabéns! Se ainda há dúvidas, releia a aula e exponha
seus questionamentos nos fóruns de dúvida.

19
REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. Iracema: lenda do Ceará. São Paulo: Saraiva, 2006.

ANJOS, Augusto dos. Eu. 52. ed. João Pessoa: UFPB, 2001.

BRAGA, Rubem. O pavão. In: Ai de ti, Copacabana. 27. ed. Rio de Janeiro: Record,
2009, p. 139.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4. ed. São Paulo; Rio de
Janeiro: Duas Cidades; Ouro sobre Azul, 2004, p. 169-191

COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. Petrópolis: Vozes, 2008.

LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

MORAES, Vinícius de. Soneto de Fidelidade. In: Livro de sonetos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 55.

MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

______. Signos em rotação. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009 (Debates, 48).

PÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros. São Paulo: Edusp, 2001.

ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. 15. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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