Você está na página 1de 130

 

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


PUC-SP

Daniel Lopes Faggiano


 
 
 
 
 
O TEMPO QUE NOS RESTA
 
- estudos Kamaiurá -

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS - ANTROPOLOGIA

São Paulo - SP

2014
 
 

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


PUC-SP

Daniel Lopes Faggiano


 
 
 
 
 
O TEMPO QUE NOS RESTA
 
- estudos Kamaiurá -

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS – ANTROPOLOGIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em
Ciências Sociais – Antropologia, sob a orientação da
Professora Dra. Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira.

São Paulo - SP

2014
 
 

BANCA EXAMINADORA:

___________________________

Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira

___________________________

Antonio Rago Filho

___________________________

Paulo Alves de Lima Filho


 
 

A Carmen Junqueira
 
 

Agradecimentos:

Akauã Kamaiurá

Antonio Rago Filho

Diogo Faggiano

Djara Mbya

Elaine Santos

Felipe Musetti

Felipe Rodela

Kotok Kamaiurá

Glória Lopes

Guilherme Cassis

Luciano Faggiano

Luís Felipe Martinez

Mario Frugiuele

Mayaru Kamaiurá

Michael Mary Nolan

Nelson Che

Paulo Alves Lima

Pedro Íris Paulin

Rodolfo Machado

Samuel Friedman

Taciana Vitti

Takumã Kamaiurá
 
 

Agradeço ao CNPq por ter financiado esta pesquisa.


 
 

RESUMO

FAGGIANO, Daniel. O Tempo que Nos Resta, estudos Kamaiurá. 2014. 131 f.
Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2014.

Em nosso processo de transição ao modo de produção e reprodução do capital


através de uma via colonial, forjamos um capitalismo particular nos trópicos.
Colonial, sim, pois se desenvolve de maneira atrófica, de modo incompleto,
perpetuando e acentuando o Brasil como elo subalterno do imperialismo. Sem
apagar as particularidades de cada autor, destaco os estudos de Caio Prado Jr.,
Francisco Oliveira, Florestan Fernandes, José Chasin, Octavio Ianni e Maurício
Tragtenberg como essenciais na formulação marxista do pensamento brasileiro. O
presente estudo parte da Marcha para o Oeste brasileiro, buscando adentrar na
particularidade histórica brasileira. Impulsionado pela industrialização hiper-tardia do
país, o mito do desenvolvimento alça violentamente todo povo brasileiro aos mandos
desta causa, enquanto o lucro passa a ser concentrado, ainda mais, nas mãos de
fazendeiros e empresários, nacionais ou internacionais. A dominação do valor de
troca pelo valor de uso, presente contraditoriamente nas mercadorias da civilização
capitalista, junto com a transformação da terra em capital-propriedade privada,
chega aos limites do Parque Indígena do Xingu (MT) e, aos poucos, penetra
sedutoramente no cotidiano das aldeias. Com base nos estudos realizados desde
1965 pela antropóloga Carmen Junqueira, esta obra pretende analisar criticamente a
chegada de mercadorias com seus valores e do capital-relação social na aldeia
Kamaiurá de Ipavu, analisando de que modo a sociabilidade do capital fragmenta a
coletividade ali existente, além de apontar os arranjos e rearranjos Kamaiurá em
frente ao processo desestruturante de nosso capitalismo de extração colonial. Este
trabalho, contemporâneo aos tempos de crise do capital em todo globo, procura
enfrentar a realidade brasileira sem perder seu horizonte humano societário,
ontológico. Por fim, defende-se que o modo de exteriorização da vida Kamaiurá,
ancorado no elemento coletivo de suas terras, possa se colocar, humanamente,
frente ao capital e abrir, de maneira consciente, caminhos livres por entre os
escombros do modo de produção e reprodução ampliada da vida sob o capital.

Palavras-chave: Imperialismo, Capitalismo Colonial, Marcha para Oeste, Kamaiurá,


Superação do capital.
 
 

ABSTRACT

FAGGIANO, Daniel, The remaining time. 2014. 131 f. Dissertação


(Mestrado), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2014.

In our transition process to the production and reproduction of capital mode through a
colonial via, we plated a particular colonial capitalism in the tropics. Colonial, since it
develops itself in atrophy, not completely, keeping and reinforcing Brazil as an
subaltern bond of the imperialism. Considering the particularity of each author, I
remark the works of Caio Prado Jr., Francisco Oliveira, Florestan Fernandes, José
Chasin, Octavio Ianni e Maurício Tragtenberg as fundamentals in the marxist
formulation of the Brazilian thoughts. The current work starts from The Brazilian
March to West, searching our historical particularity. Moved by a late industrialization
of the country, the myth of development takes violently all Brazilian people to be
submitted to this cause, while the profits pass to be concentrated, even more, in the
hands of farmers, national and international dealers. The domination of value of
change by the value of use, contradictory present in the products of capitalist
civilization, together with the transformation of lands to capital- private property,
reaches the limits of Parque Indígena do Xingu (MT) and, slowly, charmingly
penetrates the daily life of the aldeias. Considering the studies made since 1965 by
the anthropologist Carmen Junqueira, this work intends to critically analyze the
arriving of the goods with its values and of the capital-social relation in
the aldeia Kamaiurá from Ipavu, analyzing the way the sociability of capital breaks up
the existing collectivity, besides pointing out the arrangements and adjustments
made by the Kamaiurá when facing the destructive process of our colonial capitalism.
This work, contemporary to the capital’s crisis era, searches to confront the Brazilian
reality without loosing its human horizon, ontological. At last, it defends that the
Kamaiurá’s way of life, anchored in the collective element of their land, may be put,
humanly, against the capital and open, consciously, free paths among the rubble of
the amplified production and reproduction of life under the capital.

Key words: Imperialisms, Colonial Capitalism, March to West, Kamaiurá, Capital


Overcome.
 
 

“Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a


coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a
derradeira prova e provação, o trabalho para o qual
qualquer outro trabalho é apenas uma preparação.”

Rainer M. Rilke
 
 

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1. Capa (Daniel Faggiano). ....................................................................... p. 9

FIGURA 2. A CEIA.. ............................................................................................... p. 16

FIGURA 3. “VW” .................................................................................................... p. 30

FIGURA 4. O problema do índio e a acusação de genocídio ................................ p. 60

FIGURA 5. Fotografias Kamaiurá .......................................................................... p. 83

FIGURA 6. Contracapa (Daniel Faggiano) .......................................................... p. 123


 
 

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1. Setor de Negócios Agrícolas ............................................................ p. 53

QUADRO 2. O Capital estrangeiro compra nossa terra com nosso dinheiro ....... p. 64

QUADRO 3. Setor de Mineração .......................................................................... p. 66

QUADRO 4. Distribuição geográfica do total de conflitos e dos conflitos graves


(1976)......................................................................................................................p.70

QUADRO 5. Situação Fundiária de Mato Grosso (1995) ...................................... p. 75


 
 

LISTA DE MAPAS

MAPA 1. Mapa das terras pertencentes ao Parque do Xingu vendidas pelo governo
do estado do Mato Grosso em 1954 .....................................................................p. 43

MAPA 2. Mapa do Parque Nacional do Xingu ...................................................... p. 45

MAPA 3. Usinas que impactam comunidades indígenas ..................................... p. 77

MAPA 4. Mapa Kamaiurá ..................................................................................... p. 89


 
 

SUMÁRIO

Carta ao Leitor. ....................................................................... p. 14

Capítulo 1: A Miséria da Antropologia.

1.1. Antropologia e História ......................................................................... p. 17

1.2. Antropologia e Capitalismo ................................................................... p. 25

Capítulo 2: A Flor Exótica da Via Colonial.

2.1. A Farsa do Desenvolvimento Nacional................................................. p. 31

2.2. Desterrados em suas Terras ................................................................ p. 41

Capítulo 3: Senhoras e Senhores de seu Trabalho.

3.1. Os Índios de Ipavu. ............................................................................... p. 87

3.2. Organização do Trabalho ..................................................................... p. 95

3.3. Modo de Produção Ordenado segundo o Parentesco ......................... p. 97

3.4. Arranjos e Rearranjos Kamaiurá ........................................................ p. 104

Considerações Finais ........................................................................................ p. 118

Bibliografia. ......................................................................................................... p. 125


 
 

Decerto, é muito difícil dizer: mudemos as coisas, busquemos novas possibilidades,


tentemos transformar os partidos, discutir, fazer análises, tentemos compreender a nova
estrutura social, elaborar novos programas econômicos. Pode ser difícil: mas tudo isso é
necessário, não há alternativa. Como também é necessário saber que há coisas que não
podem ser feitas do dia para a noite.1

Hoje, homens e mulheres, vivemos numa constante guerra de uns contra outros,
numa violenta luta de classes sob uma constante exploração do homem pelo
homem.

O capital chega aos mais distantes confins da sociedade humana, em nossas mais
íntimas relações, tornando nossas próprias entranhas estranhadas, negando nossas
expressões humanas e perpetuando nossa desumanização do mundo.

Qualquer sociedade que pretenda uma participação ativa de seus membros deve
traduzir seu conhecimento teórico em estratégias de luta e ação popular.

A natureza da vida e seu dinamismo coloca a mudança como o cerne da nossa


existência. Nossa essência é, então, entendida como resultado de conflitos
dialéticos em que a humanidade já não aparece mais como um turbilhão brutal de
atos de violência sem sentido. Contudo, sem o conhecimento das circunstâncias
históricas, sem reconhecer-se no outro, qualquer passo será em vão. Sem tomar
partido, qualquer pretensa neutralidade ruirá junto aos escombros do que um dia
poderíamos ter sido e não fomos.

Numa época em que a poeira da miséria envolve a todos laçando um a um na


negação humana do trabalho sob a esfinge do capital, espero que este texto renove
nossas esperanças. Que a contradição do mundo adube nossa luta em prol de uma
sociedade mais livre e igualitária.

Que após a leitura de nossa história, sobre os exemplos dos povos indígenas, povos
dominados, mas ainda não organizados pelo capital, floresça em nossa consciência
uma práxis revolucionária.

Estejamos certos de que sem uma mudança radical de nossa sociabilidade, nosso
destino se encaminhará do caos ao fim da humanidade.

Boa leitura.

Daniel Faggiano

SP. 20 de junho de 2014

                                                                                                                       
1
Agnes Heller. Para Mudar a Vida.
 
 

CAPÍTULO I

A Miséria da Antropologia.
 
 

Fonte: PENEDO, Clécio. A CEIA. Série “Comei-vos uns aos outros”.


17  
 

1.1. Antropologia e História

Quando o conceito de cultura reifica ou emancipa o pensamento


antropológico?
Ou ainda, como utilizar o conceito de cultura sem esvaziar a concretude do
objeto estudado?

O conceito de cultura desempenha um papel central na formação do


pensamento antropológico. Seja no seu questionamento crítico do modo de vida de
um determinado povo, seja na consolidação de visões estereotipadas e
preconceituosas que falsamente justificam a injustificável dominação e exploração
de povos.
Não sendo uma leitura, o conhecimento é uma construção. Portanto,
devemos sempre iniciar nossos estudos a partir de outros conhecimentos. A crítica
do conhecimento acumulado2 nos impõe um rigoroso estudo dos conceitos
previamente existentes, para que estes, uma vez confrontados com um exame
racional de seus fundamentos, nos permitam delinear suas condicionantes e limites
teóricos, ao tempo que nos permite esboçar possíveis superações, práticas e
teóricas.
Para E. B. Tylor, um dos primeiros antropólogos a conceituar este fenômeno,
“cultura, ou civilização, tomada em seu sentido amplo, etnográfico, é aquele todo
complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e qualquer
outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”.3
Esse pensamento evolucionista atomizava uma determinada sociedade congelada
para analisar sua cultura circunscrita em relações internas fechadas e atemporais.
De lá para cá, no campo da antropologia foram formulados inúmeros
conceitos de cultura, dando margem às mais distintas interpretações. Aos poucos,
depois de superada uma fase inicial de afirmação da antropologia enquanto ciência
isolada, esta retomou ideias de outras ciências buscando ampliar seu horizonte

                                                                                                                       
2
NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx, p. 18.
3
Edward Burnett, A ciência da cultura, p. 69.
18  
 

conceitual.4 Evans-Pritchard, por exemplo, em 1950 criticou severamente o


estrutural-funcionalismo chegando a afirmar em sua palestra “Antropologia Social:
Passado e presente” que “seria um contrassenso acreditar que estudos sincrônicos
podiam produzir percepções da mesma profundidade que estudos históricos”.5
Cultura, tomada em seu sentido histórico, é um complexo de complexos no
qual um determinado ser (social) produz um modo de vida adquirido como membro
de uma comunidade determinada. Ou seja, a cultura não é um ente subjetivo, mas
sim um modo de vida que transforma concretamente o mundo.6
A cultura, apesar de sua tendência unificadora, não paira sobre nossas
cabeças como um manto que nos enlaça e envolve. A cultura é viva e se corporifica
materialmente nos membros de uma dada sociedade. No entanto, cultura jamais
será uma única representação homogênea de um determinado grupo de pessoas.
“Na verdade o próprio termo ‘cultura’, com sua invocação confortável de um
consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das
fraturas e oposições existentes dentro do conjunto.”7 Justamente por fazer-se em
atos e gestos é que a cultura se faz de acordo com a posição com que determinada
pessoa se encontra na organização social de uma dada sociedade. A cultura se faz
em defesa dos mais diversos interesses e vontades, ou ainda, diferentes estratos
sociais produzem e reproduzem diferentemente a cultura de uma mesma sociedade.
A diversidade e os antagonismos das relações sociais também estão
presentes nessa atividade humana sensível que chamamos de cultura. Mistificada
por uma ideologia dominante, o estranhamento das relações de trabalho esfumaça
tanto a diversidade quanto os antagonismos. Mas não os apaga, pois jamais seria
capaz de desconectar-se de sua base material fundante. Por mais envernizada que
seja uma dada cultura, esta, em seu interior, ultrapassando sua mera aparência,
reflete em sua essência as contradições reais existentes na sociedade.
A cultura tem vida, com a vida na sociedade, dos grupos raciais, regionais,
religiosos e outros da mesma forma que com a vida das classes, burguesia,

                                                                                                                       
4
“Enquanto os evolucionistas descartavam um interesse pela história de determinadas sociedades e
culturas, os difusionistas descartavam qualquer interesse pela matriz ecológica, econômica, social,
política e ideológica na qual as formas culturais estavam sendo transmitidas no espaço e no tempo.
As duas escolas de pensamento manifestavam, portanto, preocupações muito diversas. Os
funcionalistas, por sua vez, rejeitavam a “história conjetural” dos difusionistas em favor da análise do
funcionamento interno em um todo supostamente isolado” (WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem
História, p. 39).
5
EVANS-PRITCHARD, Edward Evans. Antropologia Social.
6
Cf. LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I.
7
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum, p. 17.
19  
 

campesinato, operariado, setores médios. As palavras e as coisas, o


passado e o presente, o próximo e o distante, o contrato e a prestação
pessoal, a sociedade e a comunidade, o tempo e a duração, a luz do dia e a
poeira do tempo, são várias as determinações históricas, sociais e outras
que entram e saem na construção de valores, padrões, ideais, modos de
8
ser, visões de mundo.
Essa cultura viva apresentada por Ianni, nada mais é do que seres humanos
vivos produzindo e reproduzindo cultura; a natureza não se apresenta nua ante o
homem, mas humanizada.
Tempo, espaço, matéria, casualidade, relação, natureza humana e a própria
sociedade são produtos criados pelo homem tanto quanto o são os
diferentes tipos de ferramentas, sistemas de cultivo, roupas, casa,
monumentos, linguagens e mitos que a humanidade produz desde a aurora
da vida humana. Entretanto, para seus participantes, todas as culturas
tendem a apresentar essas categorias como se não fossem produtos
sociais, mas coisas elementares e imutáveis. E tão logo essas categorias
são definidas como produtos naturais em vez de sociais, a própria
epistemologia atua no sentido de ocultar a compreensão da ordem social.
Tudo – nossa experiência, compreensão e explicações – passa apenas a
ratificar as convenções que sustentam nosso senso de realidade, a menos
que comecemos a nos dar conta de como os “blocos de construção”
básicos de nossa experiência e de nossa realidade sentida são construtos
9
não naturais, mas sociais.
É um erro considerar a cultura como uma mera sobrevivência inerte do
passado e não observar seu caráter processual que se faz e refaz nas
cotidianidades colocando-se imperativamente como modos de vida. Somente
podemos pensar cultura se considerarmos o fluxo do passado se materializando em
formas presentes, ou seja, somente podemos pensar a cultura historicamente.
Ainda, não podemos circunscrever um povo, devemos, ao contrário, alargar
suas fronteiras, borrar seus limites e ampliar sua história em contexto. Muitas vezes,
a cultura não é um reflexo apenas interno da sociedade, mas também uma pressão
das relações externas que impõem a uma sociedade um papel e lugar no modo de
produção regional ou, até mesmo, global.
[...] o conceito de uma sociedade e de uma cultura autônomas,
autoreguladoras e autojustificadas aprisionou a antropologia nos limites de
suas próprias definições. Nos espaços da ciência, o âmbito da observação e
do pensamento estreitou-se, enquanto fora deles os habitantes do mundo
estão cada vez mais envolvidos em mudanças globais e de alcance
continental. Com efeito, acaso já houve uma época em que populações
humanas existiram numa situação de independência em relação a
relacionamentos tão abrangentes, não afetados por tão grandes campos de
10
força?

                                                                                                                       
8
IANNI, Octavio. Pensamento social no Brasil, p. 167.
9
TAUSSIG, Michael T. O diabo e o fetichismo da mercadoria na América do Sul, p. 24.
10
WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História, pp. 42-43.
20  
 

Assim sendo, a ideia de contato cultural não pode representar um simples


ajustamento de diferenças. Para uma correta interpretação do contato cultural
devemos levar em conta não apenas os valores de cada cultura, mas também a
posição que ocupam no modo de produção regional (ou global). Por exemplo, por
mais que a classe dominante europeia chame os negócios com os povos originários
da América Latina de escambo, os indígenas continuam se reconhecendo enquanto
produtores de riqueza, enquanto trabalhadores, e sabem que sua força de trabalho,
desde o primeiro contato, é saqueada em benefício de outrem. Percebem, na
prática, os reflexos nocivos do contato colonial, independentemente do conceito
cultural que o europeu utilize para justificar suas ações na América Latina.
A antropologia, ao estudar o contato com estes povos, precisa tornar
inteligível a função de seu objeto estudado dentro de uma totalidade, dentro de uma
universalidade capitalista que é singular em cada caso concreto. A particularidade
constitui a singularidade mediatizada, ou seja, não é possível a compreensão do real
tão somente a partir dos dados imediatos.11
Dito de outra maneira: o que uma “coisa”, ou uma “entidade”, ou um “objeto”
é depende do contexto não só linguístico, mas também real em que se
encontra e, portanto, da função que cumpra. Isolar o objeto ou suas
“propriedades” nos conduz, no melhor dos casos, a uma teoria lógica que
recorre, como em Quine, à significação e aos fatos, mas que não põe o
acento na transformação dos fatos, nem na relação determinada que os
12
fatos guardam entre si e pela qual são modificados.

Qual a falha desses postulados? Eles nos predispõem a refletir sobre as


relações sociais não simplesmente como algo autônomo, mas causal por si
13
só, à parte seu contexto econômico, político ou ideológico.
Esse abandono das forças econômicas, políticas e ideológicas das relações
sociais humanas desvirtuou o que seria um caminho ontológico da antropologia para
colocá-la a serviço, acriticamente, justamente das forças econômicas, políticas e
ideológicas – no caso, forças dominantes. De pretensão neutra, a antropologia se
firmou como uma extensão dominante do pensamento capitalista.14
A antropologia é produto do seu tempo e do seu meio e, portanto, a serviço
de quem a criou. A antropologia não tem uma história autônoma, circunscrita
                                                                                                                       
11
CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica, p. 169.
12
LABATISDA, Jaime. O Objeto da História, p. 183.
13
WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História, p. 32.
14
“O conceito neutro de mudança cultural é a continuação do projeto analítico não especulativo e
comparativo de Malinowski e Radcliffe-Brown. Enquanto que os vitorianos tinham concebido o
colonialismo em termos que o justificavam, e enquanto neles a linguagem descritiva e a linguagem
normativa e voluntarista se confundiam, os funcionalistas agarram-se a uma linguagem puramente
descritiva, que coloca entre parêntesis os móbiles do colonialismo, o qual chega a desaparecer como
sistema”. (LECLERC, Gérard. Crítica da Antropologia, pp. 76-77).
21  
 

unicamente no meio acadêmico, desenvolvida imparcialmente por métodos


cientificamente neutros, ao contrário, os homens, “ao desenvolverem sua produção
e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu
pensar e os produtos do seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas
a vida que determina a consciência”.15
No mesmo sentido, a antropologia ocidental desenvolveu-se ligada ao
colonialismo, permitindo a emergência de um novo tipo de intelectual: o
“antropólogo colonial”, a serviço da administração inglesa, holandesa ou
francesa, sugerindo ao poder medidas oportunas para a manutenção do
16
colonialismo.
Basta pensar nos favores que a antropologia prestou à dominação colonial na
América Latina e na África. A mistificação da violenta realidade confunde a opressão
vivida pelo colonizado forjando uma falsa realidade da situação colonial.
Sartre:
Nas colônias, a verdade se mostrava nua; as “metrópoles” a preferiam
vestida; era preciso que o indígena as amasse. Como mães, de certa forma.
A elite europeia pôs-se a confeccionar um indigenato de elite;
selecionavam-se adolescentes, marcavam-se em suas frontes, com ferro e
brasa, os princípios da cultura ocidental, introduziam-lhes na boca
mordaças sonoras, grandes palavras pastosas que colavam nos dentes;
depois de uma breve permanência na metrópole, mandavam-nos de volta,
17
falsificados.
Gérard Leclerc:
A colonização clássica era, em muitos aspectos, a forma privilegiada deste
monólogo. Durante um longo período a Europa apenas contemplou, nas
outras culturas, a sua própria subjetividade, a matéria e o instrumento da
sua vontade. Que tenha considerado o bom selvagem um tema
desculpabilizante, que tenha praticado a antropologia para ficar com a
consciência tranquila, tudo isso é pouco, é apenas o aspecto ideológico.
Porque se trata da destruição de culturas, de sociedades. Passagem dos
modos de produção pré-capitalista ao modo de produção capitalista, é
18
certo.
Aimé Césaire:
Não há uma colonização que destrói indígenas e atenta contra a “saúde
moral dos colonizadores”, e uma outra colonização, uma colonização
esclarecida, uma colonização apoiada na etnografia, que integraria,
harmoniosamente e sem riscos para a “saúde moral dos colonizadores”,
19
elementos culturais do colonizador no corpo das civilizações indígenas.
Qualquer que seja o sentido abstrato e geral que a antropologia tente dar ao
colonialismo, se esconde seu sentido real, que outro não é senão o da expansão do
modo de produção capitalista, praticado através da exploração brutal dos povos
                                                                                                                       
15
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia alemã, p. 94.
16
TRAGTENBERG, Maurício. A delinquência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder, p.
10.
17
SARTRE, Jean-Paul, Prefácio à edição de 1961, p. 23.
18
LECLERC, Gérard. Crítica da Antropologia, p. 149.
19
CÉSAIRE, Aimé apud LECLERC, Gérard. Crítica da Antropologia, p. 164.
22  
 

indígenas da América Latina. “Ignorar o drama desses povos seria associar-se ao


processo que os aniquila.” 20
A história da América Latina, desde o contato com a Europa, ou ainda desde
a invasão europeia sobre os povos astecas, maias, tupi, caribe, araucano, quéchua,
aimará e outros, tem sido uma constante luta de sobrevivência de uns e saques e
assassinatos de outros. A partir de Colombo, Vespúcio e Cabral, toda história da
América Latina tem sido uma sucessão de confrontos genocidas de europeus contra
os índios, mestiços, negros, mulatos e nativos. “Há uma luta aberta ou latente entre
raças, etnias, culturas, atravessando toda essa história.”21 Inúmeros povos indígenas
foram reduzidos ou eliminados, antes mesmo do uso da arma de fogo no novo
mundo, milhares de indígenas já haviam sucumbido pelas doenças do antigo
mundo. Ainda assim, os povos indígenas da América Latina resistem. A começar
pela primeira matança de Tlatelolco no início do século XVI, passando pelas lutas de
Tupac Amaru, em fins do século XVIII nos Andes peruanos, os Wilka, em fins do
século XIX em terras bolivianas, os Munduruku no atual século XXI nas margens do
rio Xingu no Brasil, “índios e mestiços sempre representaram outra forma de vida,
trabalho, organização social, cultura, religião, língua, mitologia”.22
Ainda hoje se mantém o “mito” de que os aborígenes, nesta parte da
América, limitaram-se a assistir à ocupação da terra pelos portugueses e a
sofrer, passivamente, os efeitos da colonização. A ideia de que estavam em
um nível civilizatório muito baixo é responsável por essa presunção.
Todavia, nada está mais longe da verdade, a julgar pelos relatos da época.
Nos limites de suas possibilidades, foram inimigos duros e terríveis, que
lutaram ardorosamente pelas terras, pela segurança, pela liberdade, que
23
lhes eram arrebatadas conjuntamente.
Desde o primeiro contato com os europeus, podemos dizer que as culturas
dos povos indígenas da América Latina, ou seja, o seus modos de vida, também são
agora, modos de luta, ou ainda, modos de resistência.
Tratar abstratamente o encontro de culturas, reduzir o prisma colonial ao feixe
único do contato cultural neutro, nos leva a entender o colonialismo como um
simples ajustamento de culturas distintas, num mecânico processo de
industrialização, urbanização, educação, etc. Ao contrário, se voltamos nossos olhos
para a cultura interpretando-a como um modo concreto de vida analisaremos o
contato cultural em seu aspecto social de expansão do modo de produção

                                                                                                                       
20
JUNQUEIRA, Carmen. A questão indígena, p. 126.
21
IANNI, Octavio. Revolução e cultura, p. 33.
22
Ibidem, p. 33.
23
FERNANDES, Florestan. A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios, p. 11.
23  
 

capitalista, ou seja, evidenciaremos a dimensão desumana deste contato. Falsear a


história, forjar doutrinas raciais, impor dogmas e aprisionar o pensamento local numa
educação formal, produz armas não menos genocidas do que aquelas produzidas
nas fábricas.
Os conceitos forjados por uma determinada classe dominante, com sua
pompa acadêmica, são maciçamente propagandeados no resto do globo. Essa falsa
universalidade, estabelecida por caminhos equivocados, inculcou nos povos da
América Latina o péssimo hábito de que são eles (europeus) que devem pensar por
nós.
Dessa maneira, as relações sociais no mundo colonial se transformam num
significante à espera de significados europeus. A auto definição simbólica dos povos
americanos foi arrancada pela antropologia ao passo que a expansão colonialista
arrancava o destino destes mesmos povos. Estes, ou deixavam fisicamente de ser o
que eram, ao sucumbirem a doenças e chacinas, ou lhes era infligido um novo modo
de pensar, que não o seu.
Todas estas insuficiências e implicações ideológicas das noções clássicas
de mudança, de contato, etc., levaram G. Balandier a falar, de preferência,
em “situação colonial”. Esta noção implica, em primeiro lugar, a
necessidade de considerar o colonialismo como uma totalidade e não como
um conjunto de processos que se poderiam estudar independentemente
uns dos outros (monetarização da economia, difusão de um ensino
europeu, evangelização, etc.). Por outro lado implica que as mudanças
operadas sob o colonialismo não são as mesmas que teriam tido lugar
numa outra situação, que as mudanças de origem externa, isto é, colonial,
são fundamentalmente diferentes das mudanças indígenas, e sobretudo das
24
mudanças operadas num verdadeiro “give and take”.
Se o colonialismo deve ser interpretado dentro de uma totalidade, o mesmo
deve acontecer com nossa concepção de história. Ou seja, inexiste uma “história
indígena” destacada da uma “história branca”. O caminho da etnohistória atinge seu
objeto de maneira alienada, pois analisa o índio isolado da problemática do colonial.
A “história indígena” é apenas uma das relações do processo histórico humano e
não pode ser destacada de suas conexões.
Se existem conexões em todos os lugares, por que insistimos em
transformar fenômenos dinâmicos, interligados, em coisas estáticas,
desligadas? Parte disso se deve, talvez, ao modo como aprendemos nossa
própria história. Fomos ensinados, nas salas de aula e fora delas, que
existe uma entidade chamada Ocidente e que se pode pensar nesse
Ocidente como uma sociedade e uma civilização independentes e em
oposição a outras sociedades e civilizações. Muitos de nós até mesmo
crescemos acreditando que o Ocidente possui uma genealogia segundo a
qual a Grécia antiga gerou Roma, Roma gerou a Europa cristã, a Europa
                                                                                                                       
24
LECLERC, Gérard. Crítica da Antropologia, p. 175.
24  
 

cristã gerou a Renascença, a renascença gerou o Iluminismo, o Iluminismo


gerou a democracia política e a Revolução Industrial. A indústria, cruzada
com a democracia, por sua vez produziu os Estados Unidos, encarnando o
25
direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade.
Mas então, que significado devemos subtrair dessa conexão chamada de
colonialismo? Que totalidade é essa?
O colonialismo nada mais é do que a expansão violenta do capitalismo no
globo. “O capitalismo transformou-se num sistema universal de subjugação colonial
e de estrangulamento financeiro da imensa maioria da população do planeta por um
punhado de países ‘avançados’.”26 O excedente de capital acumulado na Europa
não é convertido na melhoria da condição de vida do povo europeu, pois isso
significaria uma diminuição dos lucros capitalistas, ao contrário, esse excedente, na
busca de ampliar o lucro, é exportado, sob determinadas condições, para o resto do
globo.
Veja que a subjugação colonial permanece mesmo após a onda de
independências na América Latina. O estrangulamento financeiro da imensa maioria
da população do planeta por um punhado de países “avançados” persiste nos dias
de hoje. Talvez, por estas razões, o antropólogo Balandier (1955) prefira utilizar o
termo situação colonial.
Para designar esta situação colonial que persiste, utilizaremos o termo
empregado por V. I. Lenin - Imperialismo, o estágio superior do capital. Para o autor,
esse desenvolvimento das características fundamentais do capitalismo, o qual
denomina imperialismo, pode ser interpretado como:
Uma forma de produção e reprodução da vida baseada na exploração do
homem pelo homem; a concentração cada vez menor de corporações e da
classe que as conduz, a burguesia; o desenvolvimento das forças
produtivas com o objetivo único e exclusivo de intensificar a extração de
mais-valia dos trabalhadores e, com isso, gerar mais lucros para os
exploradores; a dominação dos Estados imperialistas sobre outros Estados
27
e diferentes povos.
Assim, se o capitalismo, em seu estágio imperialista, transformou-se em um
sistema universal, o que significa hoje, estudar a antropologia sob a expansão da
ordem dominante do capital?

                                                                                                                       
25
WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História, p. 27.
26
LENIN, Vladimir Ilitch. Imperialismo, estágio superior do capitalismo, p. 27.
27
Ibidem, p. 18.
25  
 

1.2. Antropologia e Capitalismo


Assim como a filosofia encontra as armas
materiais no proletariado, assim o
proletariado tem as suas armas intelectuais
na filosofia. [...] A filosofia não pode realizar-
se sem a supra-sunção do proletariado, o
proletariado não pode supra-sumir-se sem a
28
realização da filosofia.

Entendemos a antropologia com uma dupla conexão. De um lado, liga-se à


filosofia, em seu sentido ontológico, na qual busca estabelecer uma totalidade29
concreta de suas ideias. Do outro, conecta-se ao trabalhador; por exemplo, no
indigenismo é no cotidiano prático da comunidade indígena que sua teoria deve
germinar.
Uma antropologia que se faça sem essa relação mútua corre o risco de
reduzir-se a um simplificado inventariado de bens etnográficos, uma coleção de
fatos mortos, quando não, apequena-se numa ordeira serventia colonial.
Redirecionar a antropologia não se faz apenas criticamente no espaço
acadêmico, mas principalmente com a subversão prática das relações sociais. As
transformações conceituais só fazem sentido se repousarem numa transformação
objetiva do mundo.
O trabalho etnológico deve documentar a realidade que envolve os grupos
estudados, de tal forma que os resultados possam ser usados na defesa
dos seus direitos: na correta definição das terras, na informação e denúncia
dos interesses econômicos e atividades que exponham a comunidade a
30
perigos, etc.
A vasta diversidade cultural anteriormente existente no mundo está sendo
substituída pelo abismo antagônico entre pobreza e riqueza. Vemos a intensificação
dos grilhões de um capitalismo agonizante consumir sistematicamente culturas,
aldeias, povos inteiros na edificação quase infinita de mercadorias efêmeras.
A perseguição prossegue nos séculos seguintes, em novo compasso é
verdade, mas no mesmo rumo de civilizar cristianizando e europeizando. Já
sem o esplendor do saqueio milionário de outrora, porque despojados de
todos os seus bens, os índios remanescentes se converteram em párias.
São mera força de trabalho superexplorada que mal consegue sobreviver
nas terras em que um dia edificaram civilizações. Ou são tribos
especializadíssimas na fuga, deslocando-se incansavelmente para além da
31
fronteira da civilização para escapar dela.

                                                                                                                       
28
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 156.
29
“Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que distingue decisivamente
o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.” (LUKÁCS, György. História e
consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista, p. 21).
30
JUNQUEIRA, Carmen. A questão indígena, p. 127.
31
RIBEIRO, Darcy. A América Latina existe?, p. 99.
26  
 

Por mais “isolada” que esteja uma dada comunidade, e mesmo que esta não
se constitua como classe especificamente, hoje, com a expansão capitalista no
globo, seu futuro passa a ser operado de acordo com os mecanismos da divisão de
classes.
As várias contradições existentes nesse complexo se articulam em torno de
uma contradição fundamental do capital, que é a contradição de classes, e é
impossível pensá-las sem ser em relação com essa contradição fundamental. Em
seu cerne, o capitalismo se produz e reproduz suprimindo outros tipos de relações
não capitalistas, bem como usurpa das comunidades resistentes sua capacidade de
autodeterminação. Conduz dominantemente as demais consequências no mundo,
eliminando qualquer perspectiva histórica à margem da relação de classes imposta
na sociedade global.
Progressivamente, a dimensão étnica vai sendo subordinada à dimensão de
classe, que passa a ser uma matriz estrutural para o pensamento antropológico.
Desse modo, o antropólogo que estuda uma determinada comunidade indígena
deve ter claro que o índio também é um trabalhador explorado, “independentemente”
da percepção deste sobre si mesmo.
Percebemos que as contradições que devem ser resolvidas são estruturais
(de domínio e de classe social) e não apenas espaciais (de região ou de
enfrentamento de duas culturas distintas). Portanto, uma antropologia
verdadeiramente humana, não pode se esquivar do árduo trabalho de superação
estrutural do capital.
Se devemos buscar a ideia na sua própria realidade,32 é na especificidade da
formação, produção e reprodução do capitalismo no Brasil que o antropólogo deve
situar seu objeto estudado. O conhecimento do objeto estudado não advém de
imediato, a certeza não provém da simples leitura ou do contato direito com o objeto.
É através, do desvelamento das diversas mediações que orbitam esse dado objeto
estudado, que a certeza pode surgir, após um longo caminho que se enceta no
questionamento da realidade posta; como ponto de partida tem-se a inicial incerteza
dos fatos.

                                                                                                                       
32
“Meu método dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo a ele inteiramente
oposta. Para Hegel, o processo do pensamento (...) é o criador do real, e o real é apenas sua
manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para a
cabeça do ser humano e por ele interpretado.” (MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política, p.
16).
27  
 

O pesquisador deve ultrapassar a aparência fenomênica (imediata) para


apreender a essência do objeto. O conhecimento inicia-se com a aparência, é do
imediatamente sensível que parte o pensamento. A teoria33 nada mais é do que a
reprodução, no plano do pensamento, do movimento real do objeto.
A percepção da ontologia em Marx fornece a Lukács os elementos
passíveis de estabelecer, de uma vez por todas, a ruptura com o
predomínio da gnosiologia e da epistemologia em nossos tempos. Suas
reflexões partem da crítica fundamental que postula que, em Marx, o tipo e
o sentido das abstrações, dos experimentos ideais, são determinados não a
partir de pontos de vista gnosiológicos ou metodológicos (e tanto menos
lógicos), mas a partir da própria coisa, isto é, da essência ontológica da
34
matéria tratada.
É fundante basear-se na realidade, na concretude dos fatos, pois é por meio
deles que apreendemos as contradições e as múltiplas determinações.
O concreto é concreto, porque é síntese de muitas determinações, isto é,
unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o
processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora
seja o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também
da percepção e da representação. No primeiro método, a representação
plena volatiza-se na determinação abstrata; no segundo, as determinações
35
abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento.
Dessa maneira o pesquisador, ao conduzir a análise de determinados fatos,
deve necessariamente realizar a viagem de volta ao objeto concreto. Ou seja, os
fatos só poderão ser compreendidos se situados historicamente, evidenciando assim
suas funções dentro dos movimentos do capital.
A orientação essencial do pensamento de Marx era de natureza ontológica
e não epistemológica (Lukács, 1979): por isso, seu interesse não incidia
sobre um abstrato “como conhecer”, mas sobre “como conhecer um objeto
real e determinado” – Lenin, aliás, sustentava, em 1920, que o espírito do
36
legado de Marx consistia na análise concreta de uma situação concreta.
A análise concreta de uma situação concreta do indígena explorado pela
expansão do capitalismo no Brasil deve possibilitar uma melhor compreensão da
realidade, fazendo com que esta ferramenta teórica implique diretamente na escolha
revolucionária das diferentes formas de ações concretas capazes de transformar a
realidade.

                                                                                                                       
33
“A abstração é a capacidade intelectiva que permite extrair de sua contextualidade determinada (de
uma totalidade) um elemento, isolá-lo, examiná-lo; é um procedimento intelectual sem o qual a
análise é inviável.” (NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx, p. 44).
34
VAISMAN, Ester; FORTES, Ronaldo Vielmi. In: LUKÁCS. G. Prolegômenos para uma ontologia do
ser social, p. 21.
35
MARX, Karl. Condições históricas da Reprodução Social, p. 63.
36
NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx, p. 27.
28  
 

Nessa guerra multissecular de extermínio sistemático dos povos indígenas, o


espantoso, como diria Darcy Ribeiro,37 não é que tantos índios morressem pela
eficácia das armas, dos vírus e dos ardis postos em cena, mas sim a incrível
sobrevivência de alguns povos até os dias atuais.
Se incrível foi a sobrevivência dos povos indígenas, a partir de hoje, sob a
dominação global do capital, revolucionárias têm que ser as armas teóricas, para
que revolucionária seja a emancipação indígena.
Segundo Mészáros, Marx “numa rejeição crítica da impotência das meras
interpretações filosóficas – de que o problema não surgiu do interior da
própria filosofia, mas do relacionamento entre ela e o mundo real, e que,
consequentemente, a solução estava na transformação desse mundo, ele
não defendeu a capitulação à fragmentação e parcialidade nem virou as
costas à busca filosófica da universalidade. Pelo contrário, insistiu que a
medida da emancipação deve ser o nível no qual a práxis social recupera
sua dimensão universal: uma tarefa que também chamou de ‘a realização
38
filosófica’”.

                                                                                                                       
37
Cf. RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil
moderno.
38
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social, p. 94.
29  
 

CAPÍTULO II

A Flor Exótica da Via Colonial.


30  
 

Fonte: PENEDO, Clécio. VW.


31  
 

2.1. A Farsa do Desenvolvimento Nacional


Assim, a antiga concepção segundo a qual
o homem sempre aparece (por mais
estritamente religiosa, nacional ou política
que seja a aparição) como objetivo da
produção parece muito mais elevada que a
do mundo moderno, na qual a produção é
objetivo do homem, e a riqueza, o objetivo
39
da produção.

Para conceber a sociedade e a história como processos requer-se conhecer


também o conjunto do universo como processo; é na totalidade em movimento que
podemos situar as singularidades concretas do real. Essa totalidade histórica de
processos interligados, tensionados por contradições e disputas de poder, torna
impossível pensar o mundo de hoje sem pensarmos na expansão do modo de
produção do capital.
Atentos às armadilhas teóricas que a simples transposição de conceitos pode
causar, devemos pensar o concreto no abstrato e não o contrário (“A cabeça pensa
onde os pés pisam”40). Ao pensar o abstrato no concreto adentramos num quebra-
cabeça de encaixes teóricos que nos força à adequação de conceitos distintos para
lugares diferentes. Ou seja, os conceitos nada mais são que abstrações razoáveis
que nos ajudam a situar e compreender o concreto estudado. Assim, um correto
pensamento concreto parte da particularidade situada em sua totalidade, e não
através de simples exportações de conceitos.

Como se deu a expansão capitalista no Brasil?


Qual a particularidade de sua consolidação?
Ou ainda, qual o significado de nossa via colonial?

Essas perguntas buscam em nossa formação a essência das atuais


contradições. É nesse exercício dialético que se abrirão as portas para se repensar
os povos indígenas na atualidade brasileira.
O estudo de nosso processo de industrialização,41 de nossa entificação no
modo de produção do capital, nos fornece pistas históricas de nossas atuais

                                                                                                                       
39
MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas, p. 80.
40
Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 2011.
41
“A polarização essencial do desenvolvimento é acelerar a industrialização e, em consequência,
favorecer e justificar a supremacia da burguesia industrial. Nesse processo, pois, está em jogo o
32  
 

contradições. É no processo de industrialização onde encontramos o principal ponto


de partida para as complexificações que surgirão em nossa contemporaneidade.
Isso não significa dizer que a concretização social do modo de produção capitalista
se dá de maneira homogênea nos mais diversos cantos do mundo, mas sim que
essa abstração razoável da formação capitalista no Brasil nos oferta um plano formal
que nos auxilia na leitura de um particular real.
Apesar dos inúmeros estudos sobre esse processo brasileiro, poucos autores
se debruçaram crítica e profundamente sobre nossas questões. Sem apagar as
particularidades de cada autor, destaco os estudos de Caio Prado Jr., Francisco
Oliveira, Florestan Fernandes, José Chasin, Octavio Ianni e Maurício Tragtenberg.
Representam a centralidade marxiana em que este estudo está ancorado.
O termo industrialização significa neste estudo o resultado de um processo de
acumulação de capital no qual as bases societárias em seu modo de produção
passam a ser dominantemente capitalistas, ou seja, a industrialização promove não
apenas a transformação da força de trabalho em trabalho assalariado, mas prepara
também os mecanismos sociais de sua reprodução e expansão.
Nosso atrasado processo de industrialização desabrochou de maneira
deformada nossa transição ao capitalismo, perpetuando e acentuando a dominação
imperialista no mundo. Longe de desafogar nossas finanças externas, o concurso de
capitais advindos da penetração imperialista no Brasil agravou ainda mais nossas
contradições internas e externas.42
O Estado, no modo de produção capitalista, tem por função zelar pela
manutenção das relações de produção dele derivadas. No Brasil, a
objetivação capitalista é tardia. Ela se realiza por meio da revolução
passiva, da revolução pelo alto. A evolução do capitalismo no Brasil não foi
precedida pelas realizações da cidadania e da comunidade democrática. A
burguesia industrial se ligou à antiga classe dominante por meio do
processo de conciliação; isso explica o fato de a Revolução Democrático-
Burguesa no país ser uma flor exótica, e a via colonial do desenvolvimento
capitalista ter permeado nossa formação econômico-social. O
desenvolvimento capitalista se realiza pela alavanca do Estado
intervencionista, de um Estado social fundado no esquema keynesiano. Não
é um Estado socializante nem representa uma solução além do modo de
43
produção capitalista.
A industrialização brasileira vem desacompanhada de uma Revolução
burguesa clássica. Ocorre no Brasil um processo de conciliação de consequências
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
destino do capital, isto é, a luta pela apropriação da mais-valia e das técnicas de capitalização. Ou
seja, estão em jogo as relações de classes determinadas pelas orientações da circulação do capital.”
(IANNI, Octavio. Estado e Capitalismo, p. 102).
42
PRADO JR., Caio. História do Brasil, p. 315.
43
TRAGTENBERG, Maurício. A falência da política, p. 185.
33  
 

perversas. Ou ainda, podemos afirmar que se desenvolve no Brasil um capitalismo


de tipo colonial.
O processo de industrialização brasileiro vem inexoravelmente atrelado a uma
ideologia do desenvolvimento.44 Uma intelectualidade desinteressada na busca do
real mantém misticamente a ideia do desenvolvimento como única via possível de
emancipação da sociedade brasileira. Essa colonização do pensamento, dominante
na cultura brasileira, impede-nos de construir formas alternativas de superação do
Capital.
Foi assim que o Presidente Getúlio Vargas, em nosso incipiente processo de
industrialização, à meia noite do dia 31 de dezembro de 1937, do Palácio da
Guanabara, pronuncia ao povo brasileiro:
A civilização brasileira à mercê dos fatores geográficos, estendeu-se no
sentido da longitude, ocupando o vasto litoral, onde se localizam os centros
principais de atividade, riqueza e vida. Mais do que uma simples imagem, é
uma realidade urgente e necessária galgar a montanha, transpor os
planaltos e expandir-nos no sentido das latitudes. Retomando a trilha dos
pioneiros que plantaram no coração do Continente em vigorosa e épica
arrancada, os marcos da fronteira territoriais, precisamos de novo suprimir
obstáculos, encurtar distâncias, abrir caminhos e estender fronteiras
econômicas, consolidando, definitivamente, os alicerces da Nação.

O verdadeiro sentido de brasilidade é a Marcha para o Oeste. No século


XVIII, de lá jorrou o caudal de ouro que transbordou na Europa e fez da
América o Continente das cobiças e tentativas aventurosas. E lá teremos de
ir buscar: - dos vales férteis e vastos, o produto das culturas variadas e
fartas; das entranhas da terra, o metal, com que forjar os instrumentos da
45
nossa defesa e do nosso progresso industrial.
Em agosto de 1940, na cidade de Goiânia, na inauguração da Associação
Cívica “Cruzada Rumo ao Oeste”, o mesmo Presidente reforça o mito do
desenvolvimento como salvação da nação brasileira:
Continuam, entretanto, os vastos espaços despovoados, que não atingiram
o necessário clima renovador, pela falta de toda uma série de medidas
elementares, cuja execução figura no programa do Governo e nos
propósitos da administração, destacando-se, dentre eles, o saneamento, a
educação e os transportes. No dia em que dispuserem de todos os
                                                                                                                       
44
“A industrialização de tipo capitalista, como ocorre no Brasil, produziu-se com o
desenvolvimentismo, que é seu ingrediente ideológico fundamental. Nacionalista ou associado ao
capital externo, esse desenvolvimento faz parte da corrente de ideias característica dessa etapa de
transição do sistema econômico-social nacional. No processo de conversão do capital agrícola,
comercial e bancário em capital industrial, essa doutrina constituiu-se como uma visão prospectiva da
civilização industrial. Exprime alguns conteúdos sociais e políticos dessa metamorfose, desse
processo civilizatório. Principalmente, exprime a conversão em que a hierarquia das classes sociais
se reordena em uma nova configuração. O Estado patrimonial se converte em Estado burguês.
Nessa concepção, desenvolvimento significa industrialização. Isto é, afirma-se que é geral
(desenvolvimento econômico, social, cultural, etc.) o que é, em primeiro lugar, particular (a
supremacia da produção industrial). É a ideologia da nova classe dirigente, na fase de ascensão do
poder.” (IANNI, Octavio. Estado e Capitalismo, p. 98).
45
VARGAS, Getúlio. No limiar do ano de 1938.
34  
 

elementos, os espaços vazios se povoarão. Teremos densidade


demográfica e desenvolvimento industrial. Deste modo, o programa de
“Rumo ao Oeste” é o reatamento da campanha dos construtores da
nacionalidade, dos bandeirantes e dos sertanistas, com a integração dos
modernos processos de cultura. Precisamos promover essa arrancada, sob
os aspectos e com todos os métodos, a fim de suprimirmos os vácuos
demográficos do nosso território e fazermos com que as fronteiras
econômicas coincidam com as fronteiras políticas. Eis o nosso imperialismo.
Não ambicionamos um palmo de território que não seja o nosso, mas temos
um expansionismo, que é o de crescimento dentro das nossas próprias
46
fronteiras.
Como consequência de nosso capitalismo colonial, eis nosso imperialismo.
Não desejamos expandir nosso território, nosso espaço vital é o próprio território
nacional, ainda em vias de uma colonização interna.
Essa crença no desenvolvimento baseada na salvação técnico-científica
camufla a ideologia capitalista da produção pela produção, da qual o fator humano é
excluído. O desenvolvimento da produção como chave mestra da prosperidade não
representa necessariamente uma prosperidade humana, mas essencialmente a
prosperidade do lucro. E a prosperidade do lucro sobre um elevado custo humano
não se faz exclusivamente pelo exercício da força, mas também pela inculcação.
A máquina estatal subordinada ao lucro é direcionada de maneira consciente
e determinada para que população brasileira absorva naturalmente a ideologia do
desenvolvimento. Consolida-se não apenas uma proposta de governo, mas as
bases míticas que unificarão e dotarão de sentido, material e subjetivo, o devir
brasileiro. Essa ideologia ultrapassa a esfera econômica, contamina a educação, a
saúde, as políticas públicas, o indigenismo, etc.
Torna-se um fim em si mesmo, porquanto advoga para si a prerrogativa de
ser condição para desideratos maiores, como bem-estar social, ou valores
simbólicos de vulto, como soberania nacional. Assim, o desenvolvimento
assume a configuração de uma utopia, um estágio superior a ser
47
conquistado, com patamar mais elevado da felicidade.
A mistificação do discurso desenvolvimentista ofusca a existência da luta de
classes, chama para si os holofotes da propaganda e lança-o como o único caminho
viável e possível para superação da miséria brasileira. Os bandeirantes que
historicamente eliminaram ferozmente os povos indígenas, agora são lançados a

                                                                                                                       
46
VARGAS, Getúlio. Cruzada rumo Oeste.
47
BASTOS, Pedro Paulo Zahluth; FONSECA, Pedro Cezar Dutra (orgs.). A Era Vargas:
desenvolvimentismo, economia e sociedade, p. 23.
35  
 

heróis míticos, e o povo, seja qual fosse o nome dado à sua democracia,48 continua
oprimido.
Essa nova simbologia,49 impulsionada por um concreto processo de
ampliação capitalista nos trópicos, desloca habilmente a análise crítica do real para
a propaganda harmônica do subjetivo, é através do colorido, das sensações
espetaculares que o interesse da classe dominante é disseminado como o interesse
de todos através de um espírito de cooperação. Temos como arquiteto da ideologia
dessa classe dominante a figura de Cassiano Ricardo, membro destacado do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
Não é possível pensar na democracia brasileira bandeirante sem a
organização hierárquica do grupo, que possibilita o aproveitamento de todos
os valores humanos pela capacidade viva de cada um e não pela igualdade
50
abstrata, irracional ou estandardizada.

O índio remador, caçador, flecheiro e policial explica-se claramente como o


negro lavrador e minerador. Também não seria necessária a violência para
que o branco fosse o homem de comando. Na divisão de trabalho como na
dos postos políticos cada elemento humano tinha seu papel, determinado
mais pela tendência de cada grupo do que pela violência ou imposição de
51
um preconceito racial.
Veja que o Estado Novo não buscava ampliar ou estimular a atuação política
do povo brasileiro, ao contrário, a este inculcava a passividade da aceitação e a sua
submissão à classe dominante. Um esforço gigantesco foi concentrado para atrair o
apoio das massas, um apoio inerte que não questiona ou duvida.
O projeto de desenvolvimento não é somente um jogo de palavras
propagadas pela ideologia burguesa, mas sim a manifestação simbólica do processo
de acumulação capitalista que se desenvolve no país. É no plano concreto e não
apenas na esfera da comunicação que o desenvolvimento gera suas mais ferozes
opressões – repousa na extração de mais-valia seu real motor. Esse discurso é o
resultado de formas concretas de dominação do capital-propriedade privada
assentado na real desigualdade social brasileira.
Em primeiro lugar, o imperialismo atua como um poderoso fator de
exploração da riqueza nacional; não outro seu objetivo que acaparar em
                                                                                                                       
48
“Tinha de ser assim porque a tendência “natural” num meio tropical, corporificado pelo indígena,
era um “comunismo selvagem” prevalecer. Somente o bandeirismo autoritário, antiliberal podia dar
ordem e impor a racionalidade a essa tendência, estabelecendo uma “democracia hierárquica”.”
(CASSIANO, Ricardo. Marcha para Oeste, p. 428).
49
“É como se a história do país se desenvolvesse em termos de signos, símbolos e emblemas,
figuras e figurações, valores e ideais; sem que se revelem relações, processos e estruturas de
dominação e apropriação com os quais se desvendam os nexos e movimentos da realidade social.”
(IANNI, Octavio. Tendências do pensamento brasileiro, pp. 55-74).
50
RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste, p. 324.
51
Ibidem, p. 324.
36  
 

proveito próprio a mais-valia do trabalho brasileiro ao seu alcance. Nisso ele


age como qualquer outra forma de capital, e não tem aí nada de
particularmente interessante. Mas o que o distingue é que tal exploração
não se faz em benefício de uma classe brasileira, uma burguesia indígena
(a não ser grupos insignificantes ligados diretamente ao capital financeiro, e
tão internacionais quanto ele), mas de classes e interesses completamente
estranhos ao país. Isso é muito importante, porque nesse processo não é
apenas a classe trabalhadora que se desfalca, mas o país em conjunto que
vê escoar-se para fora de suas fronteiras a melhor parcela de suas riquezas
e recursos. As contradições da exploração capitalista tomam assim caráter
muito mais agudo e extremo. Entre outros efeitos bem patentes estão a
deficiência e morosidade da acumulação capitalista brasileira
essencialmente débil. Falta assim ao país o elemento fundamental de
52
progresso econômico.
O Estado getulista desenvolve as condições concretas para o livre
desenvolvimento industrial na fase (hiper) tardia do capitalismo monopolista
brasileiro. Nessa nova reconfiguração brasileira, o governo federal não apenas
propaga uma ideologia do desenvolvimento, mas também aduba o seu interior,
instrumentalizando e estruturando as bases para o enraizamento do capital nos
rincões brasileiros. “O que ocorre é que o Estado, como instituição fundamental do
sistema global, está na base e na cúpula do sistema de apropriação e dominação.
Na ordenação das relações entre os homens, ele toma a iniciativa das
reordenações, controles, estímulos e assim por diante.”53
Esse desenvolvimento desigual e combinado camufla, hora aqui, hora ali, as
antigas contradições que solapam a vida no Brasil. Cedo ou tarde, muitas delas
ainda mais agravadas, voltam à tona, e outras novas são acrescentadas,
aprofundando-se em consequência, consideravelmente, a crise estrutural de nosso
Brasil – colônia.
É sabido que a mundialização do capital subsume formações sociais
distintas e engendra desenvolvimentos desiguais e combinados. A
universalização capitalista, não sendo uma expansão uniforme de lava
homogênea, mas a irradiação da lógica substantiva de um modo de
produzir, compreendem bom número de variações e índices de efetivação.
Com ela não se processa, a não ser formalmente, é óbvio, uma igualização
internacional, mas a constituição de uma cadeia de elos muito desiguais,
cuja dinâmica constitutiva, grau de configuração, capacidade de auto-
sustentação e potência reprodutiva são profundamente distintos.
Diversidade necessária pela própria legalidade do capital, uma vez que a
expansão em tela é uma forma de reprodução ampliada de certos capitais
circunscritos, que ultrapassam seus limites à procura de circunscrições mais
alargadas, para efeito de suas exercitações. Movimento, pois, que requer
campos receptivos ou que sejam configuráveis como tais, portanto, diversos
dos primeiros, embora com estes obrigatoriamente articuláveis. Em síntese,
espaços característicos da universalidade do capital, porém diferentes e

                                                                                                                       
52
PRADO JR, Caio. História Econômica do Brasil, p. 280.
53
IANNI, Octavio. Estado e Capitalismo, pp. 49-50.
37  
 

hierarquicamente dispostos, sem o que a conexão entre eles não atenderia


54
à finalidade que os combina.
A expansão da industrialização no Brasil se faz concomitantemente com a
consolidação de um tipo particular de capitalismo nos trópicos: o capitalismo colonial
brasileiro.
A evidente desigualdade de que se reveste que, para usar a expressão
famosa de Trotsky, é não somente desigual mas combinada, é produto
antes de uma base capitalística de acumulação razoavelmente pobre para
sustentar a expansão industrial e a conversão da economia pós-anos 1930,
que da existência de setores “atrasado” e “moderno”. Essa combinação de
desigualdades não é original; em qualquer câmbio de sistemas ou de ciclos,
ela é, uma presença constante. A originalidade consistiria talvez em dizer
que – sem abusar do gosto pelo paradoxo – a expansão do capitalismo no
Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações
55
arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global [...]
O acelerado ritmo pautado pelo processo de industrialização força a busca de
novas reservas para suprir as crescentes necessidades produtivas. O esgotamento
das reservas existentes lança a uma busca sem fim de novas reservas a fim de
atender os caprichos das elites imperialistas. Novas reservas (internas) devem ser
descobertas e, assim que transformadas em propriedade privada, prontamente
colocadas à venda.
Foi planejando, sistematizando e racionalizando as riquezas do Brasil para o
grande capital que João Alberto Lins de Barros,56 na função de coordenador da
Mobilização Econômica, baixou a Portaria No. 77, de 03 de junho de 1943, pela qual
ficava determinada a organização da Expedição Roncador-Xingu (ERX), entidade
logo depois tomada como de interesse militar – Decreto No. 5.801, de 08 de
setembro de 1943. Quatro meses após a criação da expedição, esta foi subordinada
à Fundação Brasil Central (FBC), adestrando dessa maneira nosso território para a
brutal expansão do capital-propriedade privada em nossas mais profundas
entranhas.57
A presente bandeira destina-se à descoberta de riquezas e à abertura de
roteiros. Estudará a criação de núcleos agrícolas que possam receber,
todos os anos, maiores contingentes de povoadores; tratará de

                                                                                                                       
54
CHASIN, José. A Sucessão na crise e a crise na esquerda, pp. 213-214.
55
OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco, pp. 59 – 60.
56
Primeiro presidente da Fundação Brasil Central, também foi ministro extraordinário da
Coordenação de Mobilização Econômica, presidente do Conselho de Imigração e Colonização (CIC)
e o representante brasileiro nas negociações dos chamados Acordos de Washington (1942).
57
“É que o processo capitalista de produção necessariamente acaba envolvendo as áreas pré-
capitalistas, integrando-as num todo. A expansão, sob suas diversas modalidades, é inerente à
dinâmica do sistema, quando já estruturado em certo grau. Em consequência, o capitalismo
transforma de algum modo os sistemas “marginais”, seja modificando-lhes as estruturas seja
anexando-os como apêndices.” (IANNI, Octavio. Origens Agrárias do Estado brasileiro, p. 100).
38  
 

possibilidade de exploração das imensas reservas minerais do planalto


central e, finalmente, abrirá estradas, construirá campos de pouso,
preparando o estabelecimento futuro de uma linha aérea que diminuirá, de
58
algumas horas, a ligação entre o centro político do sul e o extremo-norte.

Por onde passava a Expedição, primeiro construía-se um campo de pouso e


em seguida um rádio comunicador. Destas pistas desenrolaram-se pequenas vilas
que pouco a pouco se tornaram pequenas cidades. Resultando em 1.550 km de
picadas abertas, 1.000 km de rios percorridos, 43 vilas e cidades nascidas no roteiro
da marcha, 19 campos de pouso e 5.000 índios contatados.59
É fundamental lembrar que a ERX, apesar do humanismo dos irmãos Villas-
Boas, foi cada vez mais submetida a um poder que lhe é estranho, “um poder que se
torna cada vez maior e que se revela, em última instância, como mercado
mundial”.60 Nesse antagonismo de intenções, entre os Villas-Boas e as empresas
colonizadoras da FBC, prevaleceu a opressora força da segunda. Numa constante
luta de puxa empurra os desbravadores mitigaram no que puderam para preservar o
modo de vida pré-existente nos arredores do rio Xingu. Com muito esforço, pouco
puderam fazer; as consequências foram violentas e o desenvolvimentismo nefasto.
A região do Roncador/Xingu, transformada pela ideologia dominante num
entrave ao desenvolvimento brasileiro, foi caracterizada como um enorme vazio
demográfico a ser desbravado pelo espírito nacional-desenvolvimentista. O Brasil de
Vargas pretendia integrar ao país os demais hiatos de nosso progresso,61 buscava-
se à integração capitalista da hileia amazônica.
“O verdadeiro sentido de brasilidade é a Marcha para o Oeste”, bradou
Vargas. “No século 18, de lá jorrou o caudal de ouro que transbordou na
                                                                                                                       
58
REVISTA BRASILEIRA DE GEOGRAFIA. Expedição Roncador-Xingú, promovida pela
coordenação da mobilização econômica, pp. 514.
59
Cf. VILLAS-BOAS, Orlando. Marcha Para o Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-Xingu.
60
“Na história que se deu até aqui é sem duvida um fato empírico que os indivíduos singulares, com a
expansão da atividade numa atividade histórico-mundial, tornaram-se cada vez mais submetidos a
um poder que lhes é estranho (cuja opressão eles também representavam como um ardil assim
chamado espírito universal etc.), um poder que se torna cada vez maior e que se revela, em última
instancia, como mercado mundial.” (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia alemã, p. 40).
61
“No presente, devido à operação interna dos processos de concentração e centralização do capital,
aquelas descontinuidades foram retomadas interpretativamente pelo “desenvolvimentismo”, como
obstáculos à expansão industrial das forças produtivas. Todavia, os termos em que foram colocadas
(dois “brasis” ou suas variantes) revelam um entendimento mecanicista e a-histórico da realidade
nacional. O conceito de dualidade retira a historicidade da história, tomando o objeto presente em sua
existência manifesta. Por isso é que não ficamos sabendo por que a Amazônia se tornou um
problema nacional; em que medida o “ciclo” da borracha, determinado pelo capitalismo mundial, criou
o problema amazônico, traduzido em relações de trabalho escravizantes, numa alta concentração de
renda, etc. Apenas se afirma a existência do problema, sem que o diagnóstico recomponha a teia das
significações que reproduzem a realidade em toda sua riqueza. Em consequência, os fenômenos
guardam distancia entre si, como se fossem exteriores uns aos outros. Tomados superficialmente,
são discretos.” (IANNI, Octavio. Estado e Capitalismo, p. 73).
39  
 

Europa e fez da América o continente das cobiças e tentativas aventurosas.


E lá teremos de ir buscar: dos vales férteis e vastos, o produto das culturas
variadas e fartas; das entranhas da terra, o metal, com que forjar os
instrumentos da nossa defesa e do nosso progresso industrial.” Os irmãos
Villas Bôas embrenharam-se no Brasil central com a missão assinalada pelo
presidente: “Encurtar distâncias, abrir caminhos e estender fronteiras
econômicas”. Construíram, por exemplo, 19 pistas de pouso ao longo de
1500 km de picadas que abririam. Isso encurtou as viagens do Rio para os
EUA, que, por falta de apoio em terra, eram bem mais longas, pois tinham
62
de margear o litoral.
A Fundação Brasil Central, gestora das áreas percorridas pela ERX, foi a
responsável por viabilizar a colonização interna dessa região, arando o terreno para
o desenvolvimento de grandes empresas privadas. Apesar de receber verba pública,
sua personalidade jurídica era de direito privado, chegando inclusive a criar
empresas como: Entrepostos Comerciais FBC Ltda., Usina Central Sul Goiana S/A,
Usina Fronteira S/A e Transportadora Amazonas Ltda. FBC. Esse caráter híbrido de
feições contraditórias convulsionou uma série pervertida de relacionamentos
corruptos, o Estado brasileiro não como representação da sociedade civil, mas sim
um meio para promoção individual de representantes da classe dominante.
Entre as empresas criadas pela FBC, figuravam usinas, transportadoras e
entrepostos comerciais. Também por seu caráter de exceção, a FBC foi
dispensada da exigência do artigo 35, do Decreto-Lei 1202/39, que regulava
as concessões de terras devolutas, podendo conceder, ceder ou arrendar
terras de área superior a quinhentos hectares sem expressa autorização da
presidência da Republica. O engenheiro Carlos Telles, ferrenho opositor da
entidade, mencionava em um livro uma área de dez milhões de hectares no
Pará. Situações similares ocorreram com o estado do Mato Grosso. Em
alguns momentos, a FBC parece ter-se envolvido diretamente na produção
e no comercio de minerais (tantalita e berilo) e no comercio do cristal de
63
rocha com os Estados Unidos.
Esse estranhamento de nosso capitalismo colonial também contaminou a
ERX. O relato de Firmino Peribañez, correspondente da United Press Association
afirma, por exemplo, que um dos objetivos da ERX era estudar e patrocinar a
exploração de cristal. De acordo com o Laudo Antropológico: a ocupação indígena
da região dos formadores e do alto curso do Rio Xingu64 de B. Franchetto, a ERX foi
a responsável pela construção de duas pistas de pouso (Carapu e Sete de
setembro) em 1946 – embriões dos primeiros postos militares do Xingu. Ou ainda,
segundo Silo Meireles, ex-funcionário da FBC, a cota mensal de 400 mil litros de
combustível atribuída à ERX pelo “Ministério da Mobilização Econômica, era

                                                                                                                       
62
CAPRIGLIONE, Laura. A missão.
63
OLIVEIRA, João Pacheco. Uma viagem ao Brasil profundo, pp. 24-25.
64
FRANCHETTO, Bruna. Laudo antropológico: A ocupação indígena da região dos formadores e do
alto curso do Rio Xingu.
40  
 

distribuída pelo agente local da Chevrolet, Sr. Ademar Margonari, mediante


gratificação mensal”.65
Importante salientar que nossa burguesia submissa aos centros hegemônicos
econômicos, incapaz de encurtar a desigualdade social e cega pelo discurso
desenvolvimentista, logra apenas encurtar a Rota Rio – Manaus – Miami, apertando
os grilhões da cadeia imperial.
Não passaremos nunca de retardatários cada vez mais distanciados, um
complemento periférico e simples apêndice daqueles centros. E se isso
pode ser situação aceitável para os reduzidos setores mais ou menos
internacionalizados da população brasileira que lograrem acolher-se ao
âmbito dos interesses imperialistas, não o será certamente para o restante
dela, e sobretudo para o país em conjunto.

Em suma, não é com empreendimentos imperialistas que podemos contar


para um real desenvolvimento. Ao contrário desse desenvolvimento, o que
os empreendimentos imperialistas determinam na atual conjuntura
brasileira, é um deformação e amesquinhamento do que deveria ser o
nosso processo de industrialização. E representam assim um reforçamento
do sistema colonial que é o principal responsável pelas nossas deficiências,
66
limitando o desenvolvimento aos acanhados horizontes daquele sistema.
Infelizmente, assim como outros exemplos de barbárie da civilização
capitalista brasileira, vive-se num país de histórias apagadas. Em 1967 um incêndio
destruiu quase a totalidade da documentação existente na FBC. Em cinzas jazem
relatórios, registros e falcatruas que seguirão desconhecidas ao povo brasileiro.
Era preciso preparar o terreno para que o capitalismo corresse livremente nos
trópicos. Em nossa particularidade, o capitalismo colonial fagocita ferozmente a terra
num ritmo desenfreado provocando um turbilhão de violências por onde passa. À
medida que avança ao centro-oeste, provoca uma reorganização social e uma
intensificação e subordinação das forças produtivas pré-existentes. Nesse processo
a terra é transformada em capital-propriedade privada. No galgar dos dias, os modos
de vida pré-existentes no Mato Grosso são submetidos aos centros econômicos do
país e do exterior.
A colonização e venda de terras no centro-oeste foi intensamente
propagandeada pelos jornais brasileiros. Um empreendimento altamente vantajoso,
não para pequenos agricultores, mas sim para investimentos que visavam lucrar
com a especulação, compra e venda de terras. A terra destaca-se de sua realidade
produtiva e aloja-se no centro da circulação de mercadorias, como qualquer outra,
não atendendo mais ao seu uso, mas simplesmente à sua troca.
                                                                                                                       
65
MEIRELES, Silo. Brasil Central, Notas e impressões, p. 220.
66
PRADO JR, Caio. História Econômica do Brasil, p. 329.
41  
 

De pequenos investidores paulistas às grandes empresas colonizadoras,


nacionais ou internacionais, todos, numa farta mesa de jantar imperialista, engolem
a garfadas o povo brasileiro, salgam as terras indígenas e adocicam a exploração
brasileira por meio de suas ideologias mistificadoras. A terra, entre lucros e goles de
vinho, passa do trabalhador para quem nela não trabalha.
Dá-se a metamorfose da terra em mercadoria. A produção para o consumo
modifica-se em produção para o mercado. Realiza-se o estranhamento, a
alienação, entre o produtor e a propriedade dos meios de produção. O
mesmo processo de apropriação da terra, polarizado entre uso e
propriedade, ou posse e domínio, compreende pendências e conflitos entre
índios, posseiros, grileiros e muitos outros. Com o desenvolvimento das
relações capitalistas de produção no campo, a terra se constitui como
propriedade privada; para o capital ou do próprio capital. Nesse processo,
as diversas metamorfoses da terra compreendem as diversas configurações
do trabalho. A humanização da terra, segundo as condições da sociedade
burguesa, compreende a sua transformação em relação social, relação de
produção, propriedade burguesa. A natureza transfigura-se em história na
67
trama das relações de produção, das contradições de classes.

2.2. Desterrados em suas Terras


Cidade de Deus – às vezes o casulo é tão
apertado
que as lagartas morrem
68
sem sonhar que podiam ser borboletas.

Em oposição a este complexo mercado do capital surge a heroica tentativa de


criar um parque de proteção ecológica como forma de conter o avanço predatório do
desenvolvimentismo industrial e assegurar um mínimo de espaço para povos que há
séculos vivem nessa região. O governo estadual do Mato Grosso, qual seja o partido
eleito, forma um único bloco de oposição à criação do parque e impulsionam,
quando podem, o livre mercado destas terras. Num total descaso com a proposta de
criação do Parque do Xingu, mas em total sintonia com os interesses de grandes
empresários, o governo estadual comercializa as terras destinadas à formação do
parque.
São as seguintes as companhias cujo contrato incide sobre a área prevista
para o Parque do Xingu: Imobiliária Ipiranga, Construção e Comércio
Camargo Correa S/A, Empresa Colonizadora Rio Ferro Ltda., Sociedade de
Agricultura e Colonização Araraquara Mato Grosso, Casa Bancária
69
Financial Imobiliária S/A, Colonizadora e Imobiliária Real.

                                                                                                                       
67
IANNI, Octavio. Origens Agrárias do Estado brasileiro, p. 174.
68
RÜSCHE, Ana. Rasgada, p. 31.
69
MENEZES, Maria Lucia Pires. Parque Indígena do Xingu: a construção de um território estatal, p.
157.
42  
 

Das companhias que participaram do loteamento no parque, duas detinham


mais 660 mil hectares: Imobiliária Ipiranga e Camargo Corrêa. A sociedade
de Agricultura e Colonização Araraquara – Mato Grosso adquiriu 200 mil
hectares integralmente dentro do perímetro do parque. Esta área situa-se
em torno do encontro dos formadores do Xingu, onde se localiza o Posto
jacaré, implantado pelos irmãos Villas Boas, quando chefiavam a expedição
70
Roncador-Xingu.

O que se observa é a classe política e o empresariado combinados na


forma de agilizar lucros com o mercado de terras. Para isto, lançam mão de
dispositivos legais que, na realidade, propiciam fraudes e mascaram de um
cunho oficial empreendimentos que estavam fadados ao insucesso. O
resultado é a especulação de terras sem nenhum empreendimento de
monta efetivamente concluído ou levado a termo, evidenciando apenas o
projeto de grupos políticos na gestão do estado ávidos por uma receita
originada na venda de terras devolutas. Em consequência valorizou-se o
71
preço das terras e, então, intensificou-se a sua venda.
Uma investigação realizada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1954
apurou que mais de seis milhões de hectares de terra haviam sido registrados em
cartório como propriedades particulares, fazendo com que mais de 75% da área
destinada para o Parque passasse para mãos privadas. Uma ala do SPI articulada
com os irmãos Villas Boas divulgou o absurdo dessa usurpação de terras e
pressionou o governo federal para que anulasse os títulos concedidos pelo governo
estadual, o qual acabou acatando a decisão superior.72
Na página seguinte podemos observamos o Mapa das terras pertencentes ao
Parque do Xingu vendidas pelo governo do estado do Mato Grosso em 1954.

                                                                                                                       
70
MENEZES, Maria Lucia Pires. Parque Indígena do Xingu: a construção de um território estatal, p.
189.
71
Ibidem, p. 165.
72
DAVIS, Shelton. Vítimas do Milagre: o Desenvolvimento e os Índios do Brasil, p. 77.
43  
 

MAPA 1. Mapa das terras pertencentes ao Parque do Xingu vendidas pelo governo
do estado do Mato Grosso em 1954.

 
Fonte: Serviço de Proteção ao Índio / SPI, Relatório, 1954.

Glebas Localização
1. Piratininga e Arraias Entre os rios Manitsuá-Missu
2. Atlântica Margem direita do rio Telles Pires
3. Colonizadora Norte de Mato Ambas as margens do rio Kuluene
Grosso
4. Colonizadora e representação Entre os rios Kurisevo e Kuluene
Brasil
5. Departamento Imobiliário Oeste Alto Xingu (até 55ºW)
Brasileiro Ltda.
6. Suiá-Missú Ambas as margens do rio Suiá-Missú
7. Formosa Margem direita do Telles Pires
44  
 

Buscando deter a farra das terras no Mato Grosso, ainda em 1952, o


Brigadeiro Raimundo Vasconcelos Aboim, Heloísa Alberto Torres, Orlando Villas
Boas e Darcy Ribeiro submeteram um documento legal ao Vice-Presidente pedindo
o estabelecimento do Parque Nacional do Xingu. No entanto, apenas em 14 de abril
de 1961 com o recém-empossado Jânio Quadros no governo federal, é que o
Parque Nacional do Xingu73 foi criado (Decreto 50.455)74.

                                                                                                                       
73
Área aproximada de 21.600 km²
74
O Parque foi regulamentado pelo Decreto n° 51.084 de 1961, sendo ainda alterado pelos Decretos
n° 63.082 de 1968 e nª 68.909 de 1971, sendo a demarcação de seu perímetro atual estipulada em
1978.
45  
 

MAPA 2. Mapa do Parque Nacional do Xingu

 
Fonte: Instituto Sócio ambiental / ISA, 2002

Acerca da criação do Parque, nos conta Darcy Ribeiro:


Feito meu de que me orgulho muito foi na criação do parque Indígena do
Xingu, em colaboração com os irmãos Orlando e Cláudio Villas-Bôas, com o
doutor Noel Nutels e com Eduardo Galvão. Os Villas-Bôas dedicaram todas
suas vidas a conduzir os índios xinguanos do isolamento original em que os
encontraram até o choque com as fronteiras da civilização. Aprenderam a
respeitá-la e perceberam a necessidade imperiosa de lhes assegurar algum
isolamento para que sobrevivessem. Tinham uma consciência aguda de
que, se os fazendeiros penetrassem naquele imenso território, isolando
46  
 

indígenas uns dos outros, acabariam com eles em pouco tempo. Não só
75
matando, mas liquidando as suas condições ecológicas de sobrevivência.
Sem apagar as contradições existentes no plano concreto, a antropóloga
Carmen Junqueira nos conta sobre a criação do Parque:
Não tardou que a nova região desbravada viesse a ser alvo de interesses
imobiliários. Sob as vistas da Fundação Brasil Central, a terra passou a ser
retalhada e vendida a particulares. Somente a reação enérgica dos líderes
da extinta expedição e do Serviço de Proteção aos Índios conseguiu sustar
a comercialização das terras indígenas. Finalmente, em 1961, é que se
logrou alcançar uma proteção mais definitiva desse território, com a criação
76
do Parque Nacional do Xingu.
Tentando abarcar a preservação não apenas ambiental, mas também das
populações indígenas, a administração do Parque foi entregue a Orlando Villas
Boas.
A política indigenista então instituída pelos Villas Boas em relação aos
povos da região do Xingu era voltada para a preservação física dos grupos
indígenas e seus padrões tradicionais de vida. Fazia parte dessa política
assegurar a posse da terra, controlar as relações entre índios e “brancos”,
mediar as relações entre os grupos indígenas, promover assistência
médico-sanitária e prover condições necessárias à sobrevivência, incluindo
o suprimento regular de artigos industrializados, em sua maioria ligados à
77
produção.
O Parque assegurou um território indígena que afastou, ao menos
inicialmente, a necessidade destes povos de venderem sua força de trabalho
enquanto trabalhadores assalariados. Não conseguiu, entretanto, evitar outros
efeitos nocivos. A mercadoria pouco a pouco driblou as fronteiras do Parque e
adentrou nas malocas, subjugando os índios a uma grande dependência econômica
em relação ao governo brasileiro.
Se em 1889 a República foi proclamada sob a bandeira “ordem e progresso”
e em 1930 bradou-se “nacionalismo e industrialização”, em 1964 a ascensão
golpista da ditadura Civil – Militar proclamou “segurança e desenvolvimento”.
Intensificaram-se os projetos imperialistas de colonização interna do Brasil. Os
incentivos financeiros e as parcerias entre o capital público e o privado formaram as
bases para o assentamento da dominação do modelo capitalista de produção na
região amazônica.
O que ocorreu na Amazônia, nos anos 1964-78, foi principalmente um
desenvolvimento extensivo do capitalismo. No extrativismo, na agricultura e
na pecuária, desenvolveram-se as relações capitalistas de produção,
juntamente com as forças produtivas. Esse foi o quadro geral no qual se

                                                                                                                       
75
RIBEIRO, Darcy. Confissões, p. 230.
76
CAMARGO, Cândido Procópio F. de; JUNQUEIRA, Carmen; PAGLIARO, Heloísa. Reflexões
Acerca do Mundo Cultural e do Comportamento Reprodutivo dos Kamaiurá Ontem e Hoje, p. 122.
77
JUNQUEIRA, Carmen. Os Kamaiurá e o Parque Nacional do Xingu, p. 76.
47  
 

integrou a política estatal de ocupação, inclusive a colonização dirigida,


oficial e particular. A rigor, a criação e a expansão da empresa de
extrativismo, agropecuária e mineração, da mesma forma que a política de
demarcação e titulação das terras devolutas, tribais e ocupadas, ao lado da
colonização dirigida, tudo isso expressa o processo mais ou menos amplo e
78
intenso de expansão das relações capitalistas na região.
Tanto na preparação e articulação do golpe de 64, quanto na consolidação e
desenvolvimento da ditadura, os latifundiários e empresários rurais tiveram uma
participação decisiva nos rumos de nosso Brasil. Esse sustentáculo rural vetou
qualquer tipo de reforma agrária para abraçar um modelo concentracionista da
propriedade. Ainda, no pós-golpe transferiu para toda sociedade brasileira os custos
da invasão capitalista na Amazônia. O golpe militar foi a solução encontrada pela
base rural empresarial para desestruturar os avanços sociais e políticos da classe
trabalhadora, aprofundando nosso capitalismo colonial.
Atolado em acusações e alvo de inúmeras investigações, em 1967 foi extinto
o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e substituído por um novo órgão do Governo,
a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).79 Na verdade, longe de buscar sanar os
desvios de conduta do SPI, a FUNAI foi criada como um órgão da política
econômica da ditadura brasileira. Ao lado da Superintendência de Desenvolvimento
da Amazônia (SUDAM), a FUNAI limpava o terreno para que os índios não se
tornassem um obstáculo para o progresso da nação: “Tomaremos todos os cuidados
com os índios, mas não permitiremos que entravem o avanço do progresso.”80
Alguns corajosos e íntegros indigenistas à parte, a FUNAI transformou-se num
instrumento do capital. Ou seja, serva inconteste do avanço do modo de produção
do capital, institucionalmente nada mais fazia do que um sistemático e agressivo
processo de amansamento e inculcação do indígena.
É nesse contexto econômico e político que se dá a expropriação crescente,
generalizada, frequentemente brutal, da comunidade indígena. O índio é
expropriado de sua terra, cultura e modo de vida. A FUNAI é mantida como
órgão “humanitário” mas inoperante, para não prejudicar os interesses de
grileiros, latifundiários e empresários representados na atuação do INCRA,
BASA, SUDAM e outros órgãos do poder federal. Assim, a FUNAI é
induzida a propor, justificar ou simplesmente realizar a “emancipação” do
índio e da comunidade indígena. Essa política indigenista serve
principalmente a dois processos econômicos simultâneos: expropriar índios
e comunidades indígenas de suas terras; e transformar o índio em força de

                                                                                                                       
78
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, p. 55.
79
A FUNAI foi criada pela lei nº 5.371 de 1967.
80
CAVALCANTI José Costa apud CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em Conflito com
o Latifúndio e a Marginalização Social, apud IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, p. 183.
48  
 

trabalho disponível e barata para os empreendimentos capitalistas


81
incentivados e protegidos, econômica e politicamente, pelo Estado.
Em 1968, o procurador da República, Jader Figueiredo, elaborou o Relatório
Figueiredo com o objetivo de investigar os crimes praticados contra os indígenas
pelo SPI.
Apesar de ter assumido uma feição persecutória e acusado falsamente alguns
desafetos do regime militar, o Relatório Figueiredo, se analisado criticamente,
mostra-nos a face violenta do SPI e ainda possibilita uma maior compreensão do
pantanoso terreno em que a FUNAI foi criada.
O documento de mais de sete mil páginas detalha as violências praticadas
pelo SPI. São levantadas denúncias de que agentes do Serviço e latifundiários
haviam usado armas biológicas e convencionais para exterminar aldeias indígenas
além de indicar a introdução deliberada de varíola, gripe, tuberculose e sarampo
entre povos da região de Mato Grosso, entre 1957 e 1963, por exemplo.
O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados,
que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de
condições de vida compatível com a dignidade da pessoa humana.

É espantoso que exista na estrutura administrativa do País repartição que


haja descido a tão baixos padrões de decência. E que haja funcionários
públicos, cuja bestialidade tenha atingido tais requintes de perversidade.
Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos
desumanos. Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos
82
suplícios, a título de ministrar justiça.
Arquivado pelo Ato Institucional número cinco, ficou desaparecido por mais de
quatro décadas, sendo redescoberto somente no ano 2013 nos arquivos do Museu
do Índio no Rio de Janeiro (RJ).
Importante ressaltar que não podemos estudar a atuação da FUNAI
desconexa de suas articulações e amarras institucionais dentro do governo ditatorial.
Assim, o estudo da atuação da FUNAI implica, também, uma análise crítica da
função da SUDAM na entificação capitalista brasileira.
Foi precisamente desde 1966 que se iniciou uma fase nova de
desenvolvimento extensivo do capitalismo na Amazônia. É verdade que a
SPVEA, o Banco de Crédito da Amazônia e a rodovia Belém-Brasília já
exerciam, desde os começos da década dos 60, algum efeito dinâmico
sobre as atividades econômicas de diferentes áreas da região amazônica.
Mas foi principalmente desde 1966 que se iniciou uma fase de expansão
mais acelerada das relações de produção e forças produtivas no
extrativismo, agricultura e pecuária da região. Nesse ano criou-se a
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), que
assumiu as funções e os meios da SPVEA, mas teve os seus próprios
                                                                                                                       
81
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, p. 245.
82
FIGUEIREDO, Jader. Relatório Figueiredo, p. 02.
49  
 

objetivos e meios desenvolvidos e dinamizados. E no mesmo ano criou-se o


Banco da Amazônia (BASA), que absorveu, ampliou e dinamizou as
funções e os meios do Banco de Crédito da Amazônia. Assim, a SUDAM e
o BASA, criados em 1966, marcam o início de uma nova fase de
desenvolvimento extensivo do capitalismo na Amazônia. Isto porque, a
partir desse ano, a região amazônica foi incluída, de uma forma cada vez
mais explícita e profunda, no contexto do “modelo econômico” adotado pela
ditadura instalada no País desde 1964. Ou seja, o segredo da nova fase de
expansão do capitalismo na Amazônia estava e está no tipo de capitalismo
dependente que o Estado brasileiro foi levado a adotar de uma forma mais
ostensiva e agressiva desde a deposição do Presidente Goulart, em abril de
1964. Pouco a pouco, desde essa data, no rearranjo das políticas estatais
relativas a questões econômicas e políticas, a Amazônia foi cada vez mais
ampla e dinamicamente integrada no “modelo” de capitalismo dependente
que a ditadura adotou e pôs em prática, de modo particularmente agressivo
83
e repressivo, em todas as regiões do País.
Começando com o programa de incentivos fiscais da SUDAM, em 1966, o
novo governo deixa claro seu interesse na condução política nacional: preparar a
base para o assentamento de grandes corporações nacionais e multinacionais na
bacia amazônica. Antes ainda de aumentar sua capacidade agroexportadora, o
governo investe maciçamente na fabricação de fazendas, ou seja, forja os meios de
produção a serem utilizados pelos capitalistas na produção de mercadorias
agroexportadoras.
A fundação de fazendas (ou de indústrias) na Amazônia era o meio de obter
os recursos dos incentivos fiscais. Mas isso dependia de mecanismos
atrasados e arcaicos de exploração do trabalho e acumulação de capital,
como a peonagem e a expropriação violenta dos ocupantes originais da
terra, os índios e posseiros. A expansão territorial do capital não podia
depender do capital propriamente dito, atraído para setores mais lucrativos,
restabelecendo-se mecanismos e processos de acumulação primitiva. A
ocupação da fronteira se inseria marginalmente no processo de reprodução
ampliada de capital. A expansão territorial do capital revelou-se, assim, uma
forma diversa e peculiar de sua reprodução ampliada. O objetivo da
expansão territorial não era a produção pecuária, mas a produção de
84
fazendas.

Esse desenvolvimento, principalmente extensivo, do capitalismo na


Amazônia, provocou uma espécie de “revolução” na questão da terra na
região. Em poucos anos, os indígenas viram suas terras serem invadidas e
o seu modo de vida prejudicado, revolucionado ou definitivamente alterado.
Frequentemente se viram pressionados, submetidos, expulsos ou
assassinados. Às vezes, esses índios eram prejudicados pelos posseiros
que chegavam e estabeleciam roças e criações em terras tribais. Outras
vezes, os índios, os caboclos amazonenses e os posseiros eram
pressionados e expulsos de suas terras pelos grileiros, latifundiários,
fazendeiros ou empresários, que chegavam com a proteção econômica e
política do poder estatal. Pouco a pouco, ou repentinamente, conforme a
área e a ocasião, índios, caboclos e posseiros viram uma transformação
social radical da terra. A terra dada, farta, do-sem-fim, tribal, ocupada ou
devoluta, pouco a pouco, ou de repente, transformou-se em mercadoria.
Para os próprios trabalhadores rurais, índios, caboclos, sitiantes e

                                                                                                                       
83
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, pp. 66-67.
84
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano, pp. 85-86.
50  
 

posseiros, nas margens e centros, a terra ficou diferente, estranha,


estranhada. Estava em curso um amplo e intenso processo de formação de
latifúndios, fazendas e empresas de extrativismo, agricultura, pecuária,
agroindústria e outras atividades, por meio do qual a terra se transformava
em propriedade privada, mercadoria, em conformidade com as exigências
do desenvolvimento extensivo do capitalismo na Amazônia. Essa foi a forma
pela qual o poder estatal foi levado a reativar, diversificar e desenvolver o
vasto enclave econômico da Amazônia, para servir à acumulação capitalista
85
nos centros dominantes, no Centro-Sul e no exterior.
Por que a economia capitalista brasileira não foi desenvolvida com base em
fazendas comerciais de camponeses? Por que ela se desenvolveu associando
grandes empresários a grandes propriedades? A organização social de pequenos
camponeses colocava obstáculos a instituições capitalistas, como a formação de um
mercado consumidor nacional, por exemplo. O trabalho camponês na terra é
permeado por uma teia de relações de valor de uso fortemente atrelada a vínculos
de parentesco. Assim, desde que a acumulação de capital nacional começou a
demandar um mercado doméstico cada vez maior, o governo passou a dinamitar
qualquer outra forma de organização social baseada no valor de uso e na divisão da
terra. A submissão do valor de uso ao valor de troca passa necessariamente pela
transformação da terra em fazenda, em mercadoria, e pela consequente
metamorfose do camponês em trabalhador explorado. Somente com propriedade
privada claramente delineada por cercas e leis é que o capitalismo pode se
reproduzir livremente nos trópicos.
Com a terra loteada em fatias privadas, o objetivo principal do programa de
incentivos da SUDAM passa a ser a mobilização de empresas, nacionais e
estrangeiras, para reinvestirem suas rendas tributárias em projetos agropecuários no
centro-oeste brasileiro.
Entre 1965 e 1977, a SUDAM aprovou um total de 549 projetos, para os
quais concedeu incentivos fiscais. Em média, os projetos receberam cerca
de 50% em incentivos. A maior quantidade dos projetos, precisamente 335,
coube à agropecuária. Os outros destinaram-se a empreendimentos
industriais, agroindustriais e de serviços básicos. Vale a pena observar que
os 549 projetos distribuíram-se de modo bastante desigual pelas diferentes
áreas da região amazônica. Tanto assim que os Estados de Mato grosso e
Pará atraíam o maior número, com 205 e 190, respectivamente. Entre 1965
e 1977, os projetos destinados à agropecuária receberam 49,70 por cento
do total dos incentivos fiscais liberados pela SUDAM. Ainda na
agropecuária, foram os Estados de Mato Grosso e Pará que receberam as
maiores parcelas desses incentivos. Esses e outros dados expressam o
modo pelo qual, em 1965-77, efetivou-se a crescente articulação entre o
86
estado e a empresa privada, nacional e estrangeira.

                                                                                                                       
85
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, pp. 78-79.
86
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, p. 75.
51  
 

Um exemplo emblemático da postura do governo brasileiro foi a aprovação da


imensa fazenda Suiá-Missú pela SUDAM, a qual, após contar com auxílio dos índios
Xavante para abrir picadas e pistas de pouso, em 1966 obrigou a transferência de
cerca de 260 Xavante residentes nessa terra que, transformada em mercadoria, não
serviria mais ao homem, mas apenas à produção de gado. Dias após serem
transferidos para a Missão Salesiana de São Marcos, oitenta e três Xavante
morreram de sarampo.
Outra companhia multinacional que investiu recentemente na Amazônia foi
a firma italiana Liquigás. No início dos anos 70, a Liquigás comprou uma
participação importante na grande fazenda Suiá-Missú, em Mato Grosso.
De acordo com a revista Fortune, a Liquigás estava planejando expandir o
rebanho de 68 mil vacas zebus da Suiá-Missú para 300 mil cabeças,
cruzando-as com reprodutores Chianina e Marchigiana importados da Itália.
Também se informou que ela estaria construindo uma pista de pouso tão
87
grande que comportaria jatos fretados.
A monopolização da propriedade privada não se faz sem seu antagônico
processo de resistência.88 Inexiste opressão livre de processos de resistência: sob o
capital, a cultura se articula, também, enquanto modo de luta. Num longo processo
de retomada, os Xavante se organizaram para reivindicar seu território original – a
Terra Indígena Marãiwatsédé:
Somos de Marãiwatsédé. Fomos expulsos de nosso território. Nosso Povo
sofreu muito longe da terra, muitos morreram. Agora resolvemos, não
89
vamos sair nunca mais da nossa terra. Estamos em guerra.
Apenas em 1998 os Xavante conseguiram a homologação da Terra Indígena
Marãiwatsédé e somente em 2013 a desintrusão foi concluída pela polícia federal.
Mesmo assim, os Xavante ainda não conseguiram recuperar a totalidade de seu
território; em 2014, suas terras foram novamente invadidas por não índios. Numa
total omissão do governo do Mato Grosso, o cacique Xavante Damião Paridzané,
reclama não apenas seus direitos, mas também os direitos do povo brasileiro:
Os políticos não estão preocupados em melhorar a vida nem dos índios
nem dos não índios. Será que o governador se preocupa com a situação do
povo hoje? Em todos os municípios daqui, o povo não tem água, não tem
                                                                                                                       
87
DAVIS, Shelton. Vítimas do Milagre: o Desenvolvimento e os Índios do Brasil, p. 160.
88
“São numerosos os movimentos sociais rurais, de base camponesa e operária, que expressam a
luta pela posse e uso da terra. Também comunidades indígenas fazem parte dessa historia. À medida
que se desenvolve o capitalismo, a partir da indústria, comércio e banco, ou da cidade, os muitos
núcleos de trabalhadores rurais e as muitas comunidades indígenas são induzidos a proletarizarem-
se ou seguir adiante, em busca de outras terra. Muitos são os que resistem, lutam. Lutam para
continuar em suas terras, ou para reconquistá-las. Em face do desenvolvimento extensivo e intensivo
do capitalismo no campo, compreendendo a monopolização da propriedade e exploração da terra,
índios, posseiros, arrendatários, meeiros, parceiros, sitiantes, moradores e outros são levados à
proletarização, busca de outras terras; ou lumpenizam-se.” (IANNI, Octavio. Origens Agrárias do
Estado brasileiro, p. 251).
89
XAVANTE Damião Paridzané.
52  
 

esgoto, não tem desenvolvimento. Ele, como autoridade de Mato Grosso,


tem a obrigação de atender as dificuldades do povo, mas ele não quer. Mas
os políticos preferem jogar o branco contra o índio, como se isso fosse
90
resolver alguma coisa.
Como se vê, muitos e poderosos são os meios econômicos, políticos,
jurídicos e ideológicos postos em marcha pela expropriação da comunidade
indígena. Empresários, nacionais ou estrangeiros, ambos articulados com
instituições públicas numa promíscua relação, levantam, bradam e fincam em solo
brasileiro a bandeira da expansão do modo de produção capitalista. Num agressivo
movimento alcançam, envolvem, submetem, absorvem, transfiguram ou suprimem o
modo de vida indígena, em sua terra, trabalho e cultura. Como afirmamos, no
entanto, o índio continua a resistir, a lutar e rearranjar sua cultura, seu modo de luta.
Muitas são as formas de resistência dessa luta, mas todas passam
impreterivelmente pela questão da terra, pela questão do modo de produção. “Para
produzir e reproduzir a sua vida, o seu modo de vida, o índio precisa trabalhar a
terra. É a terra, em sentido lato, chão, lugar, mata, rio, animais, aves, peixes, frutos e
magias, que constitui a base da comunidade indígena.”91
Infelizmente, a fazenda Suiá-Missú não era exceção, apenas confirmava a
regra histórica que se prolonga, ano a ano, no Brasil:
(...) ao norte da fazenda Suiá-Missú, a Volkswagen recentemente comprou
uma grande fazenda. A Fazenda Volkswagem fica em Santana do Araguaia
e, ao que se diz, cobre 22 mil hectares. Em 1982, a Volkswagem já planeja
estar cobrindo 110 mil cabeças de gado nessa fazenda, e portando carne
para os mercados da Europa, Japão e Estados Unidos. “Entramos na
indústria da carne”, disse um porta-voz da Volkswagem, “por motivos
econômicos, e em resposta ao apelo do Governo para que grandes
92
companhias participem do desenvolvimento da Amazônia.”
Na tabela seguinte podemos observar que o avanço da terra, enquanto
propriedade privada, se faz concomitantemente com a destruição da terra comunal
indígena; ou ainda, a expansão do modo de produção capitalista no Brasil se faz
atrelada a um violento processo de desapropriação da terra dos povos originários.

                                                                                                                       
90
CIMI. Polícia Federal retorna à Terra Indígena Marãiwatsédé (MT) para conter invasão de não
índios.
91
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, pp. 195-196.
92
DAVIS, Shelton. Vítimas do Milagre: o Desenvolvimento e os Índios do Brasil, p. 160.
53  
 

QUADRO 1. Setor de Negócios Agrícolas

Financiamento
Corporação Invasão de Terras
Superfície Internacional e
Agrícola indígenas
Assistência Técnica

Jari Florestal e Fazenda e rancho de


9 aldeias Apalaí
Agropecuária: D. Keith 60 mil hectares dos rios Banco Mundial:
(Aparaí) ao nordeste e
Ludwig/National Bulk Pará e Jari. Território empréstimo de US$ 60
a oeste
Carriers do Amapá milhões para
melhoramento da
indústria de criação de
gado (1974), dois
Swift-Armour-King empréstimos anteriores
ranch: fusões e Fazenda de gado de 72 de US$ 76 milhões para
Reservas indígenas
compras recentes pela mil hectares, nos limites produção de carne
Tembe / Urubu-Kaapor
Deltec International do Pará com Maranhão (1967-1972)
Packers Ltd. e Brascan

USAID: empréstimo de
US$ 11,9 milhões ao
Fazenda de gado de
Várias tribos Caiapós Inst. Des. Regional do
Volkswagen do Brasil 22.400 hectares no
do norte Amapá, para
Araguaia, Pará
pesquisarem agricultura
e criação de gado.

USAID: empréstimo de
US$ 32 milhões para o
Fazenda de gado de
Inst. Int. de Pesquisa
Fazenda Suiá-Missu, 560 mil hectares Parque Nacional Xingu
(parcialmente
de propriedade da paralela ao rio Suiá- (norte) Xavante (sul e
financiado pela Fund.
Liquigás (Itália) Missu, no nordeste de leste)
Rockfeller), para estudo
mato Grosso
da produção de arroz
tropical na Amazônia.

Blue Spruce
66 companhias de terra International e
e gado em S. Paulo: International Research
área de grandes Municípios de Barra do Tapirapé, Parque Institute: projeto para
propriedades rurais de Garças e Luciara, Mato Indígena do Araguaia, 5 vender o herbicida 2, 3,
Stanley Amos Sellig Grosso reservas xavantes 5-T (Agente Laranja) ao
(empresário norte- governo brasileiro, para
americano de imóveis) desflorestamento da
Amazônia.

Fonte: MARTINS, Edilson. Índios: quando a liberdade é negada, apud IANNI, Octavio. Ditadura e
Agricultura, p. 185.
54  
 

Buscando combinar o fluxo de capitais no Brasil foram construídas rodovias e


ofertados subsídios às atividades agropecuárias e agroindustriais. Vários projetos de
colonização são aprovados pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária), sejam públicos ou da iniciativa privada. O Estado intensificava sua
função de promover o desenvolvimento do capital privado, através da criação de
uma infraestrutura básica para expansão imperialista em solo nacional.
O gaúcho Carlos Aloysio Weber, ex-comandante do 5º batalhão de
Engenharia e Construção, um dos primeiros a instalar-se na Amazônia na ditadura
civil-militar, assim definiu a tática do governo para expansão para o oeste:
Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo
licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam
licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo que
93
fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho.
Surgem o Plano de Integração Nacional de 1970, DNER – Departamento
nacional de Estradas de Rodagem (reorganizado em 1969) e o projeto RADAM
(Radar Amazônia, 1970), um gigantesco esforço com auxilio monetário dos Estados
Unidos (pela USAID) para fotografar e mapear os recursos hidrominerais da bacia
amazônica.
O Plano de Integração Nacional (PIN) foi criado pelo decreto-lei n° 1106, de
junho de 1970 no governo Médici. Tratava de dinamizar o desenvolvimento
extensivo e agressivo do capitalismo na região amazônica de acordo com as
exigências de nosso capitalismo colonial, ou ainda, de acordo com as determinações
verticais das potências imperialistas no globo. Uma vez consolidada a terra
enquanto propriedade privada, o governo prontamente procurou “modernizar” nossa
economia primária exportadora. A pretexto de efetivar a “vocação do Brasil grande”,
do “Brasil potência”, a terra é transformada em mercadoria, a pequena agricultura
familiar subordinada à grande indústria, nacional e internacional, e nossa burguesia
colonial submete-se, ainda mais, às elites imperialistas. Eis nosso desenvolvimento
colonial.
Desse modo, ao longo dos anos 1964-78 dinamizou-se e modificou-se
internamente a estrutura econômica da Amazônia. O binômio Estado-
Empresa privada produziu resultados cada vez mais notáveis, em termos de
dinamização das forças produtivas ou expansão do capitalismo na região.
Praticamente começou-se a criar ali um setor industrial, ao mesmo tempo
que também começou-se a formar um setor agropecuário preponderante
nas atividades rurais. Isto é, o setor de subsistência, ou camponês,
começou a ser recoberto pela agropecuária mercantil, e de grandes
proporções. É verdade que subsiste na região, às vezes recriado, um
                                                                                                                       
93
BRUM, Eliane. A ditadura que não diz seu nome.
55  
 

segmento sócio-econômico de autoconsumo. Da mesma forma, subsiste ali


o extrativismo vegetal, animal e mineral. Mas todas as atividades
preexistentes na região estão sendo redefinidas, ou rearticuladas, em
função da crescente expansão e diversificação dos empreendimentos
privados, nacionais e estrangeiros. Como o poder público (federal, estadual,
territorial e municipal) engajou-se abertamente na dinamização e
diferenciação da economia da Amazônia, esses anos representam a época
em que essa região ingressou no que parece ser peculiar à economia do
século XX: a expansão da grande empresa privada, com amplo apoio e
94
proteção do poder público, sob comando do capital monopolista.
Um gigantesco esforço é empreendido com vista à colonização dirigida da
região amazônica. É uma colonização, organizada, racionalizada, planejada e
arquitetada. Uma colonização com objetivos claramente definidos. Centenas de
projetos agropecuários, agroindustriais, empresariais foram semeados nos confins
do Brasil. Precisamente, foi à partir do PIN que tivemos uma acentuada aceleração
de nossa colonização interna. Com base num moderno sistema de mapeamento dos
recursos nacionais foram implementados diversos eixos de penetração rodoviária no
campo, como, por exemplo, a Transamazônica.
Segundo o Ministro do Interior, Costa Cavalcanti, a FUNAI já tem pronto um
levantamento de todas as tribos existentes na área da Transamazônica.
São 29 ao todo: 1) Grupos intermitentes: Apinagé, Suruy, Xikreim, Djore,
Gorotire-Kaiapó, Kubemkrain-Kein, Frankraimôro, Pakaas-Novas e
Frigptapsá; 2) Grupos isolados: Araraas, Assunrini, Akakôa-Ty, Araraskarib,
Juruna, Kararaô-Kaiapó, Apiaká, Kain-Akorê, Suvá, Cintas-Largas e
Nanbikuaras; 3) grupoes integrados: Munduka, Maués, Kanumã, Mura-
Parintintin, Palmari, Katukina, Apuriñas e Parecis.

Desses três grupos, segundo o diretor da FUNAI, general Osmar Jerônimo


Bandeira de Melo, os isolados – completamente arredios, que podem ou
não ser agressivos – representam cerca de 90%. Desses, 2.800 não têm
contato com o branco, a não ser esporadicamente em encontros com
caçadores de peles, garimpeiros, seringueiros e outros moradores do
95
interior das matas.
Apresentado como “segurança interna”, “defesa nacional” ou “segurança e
desenvolvimento” a intensificação da construção de rodovias tinha como objetivo
central combinar os desiguais fluxos de capitais circulantes na nação brasileira,
interligando-os ao modo de produção do capital-propriedade privada. Destacamos
principalmente “a Transamazônica, com cerca de 2.300 quilômetros de extensão;
Perimetral Norte, com aproximadamente 2.450 quilômetros; Cuiabá-Santarém, com
cerca de 1.320; Manaus-Fronteira da Venezuela, com 800; e mais de uma dezena
de outras de razoável extensão”.96 Na grande maioria dos casos, é inegável que a
construção de rodovias viola diretamente o modo de exteriorização da vida de
                                                                                                                       
94
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, pp. 75-78.
95
MORAIS, Fernando; GONTIJO, Ricardo; CAMPOS, Roberto de Oliveira. Transamazônica, p. 89.
96
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, p. 130.
56  
 

muitos povos indígenas, através da selvagem expropriação de suas terras


comunitárias.
Efetivamente, qual a grande razão para a abertura das rodovias
amazônicas? Em um momento de ufanismo desbragado, falou-se em que
uma dessas estradas, a Transamazônica, destinava-se a conduzir, “homens
sem terra para uma terra sem homens” (a). Constatamos hoje que os párias
nordestinos não tiveram, na malograda “colonização” da Amazônia, a
mesma sorte que os bois dos empresários do Sul e estrangeiros que hoje
engordam nos pastos formados onde deveriam estar as lavouras dos
“homens sem terra”. Pastos que, muitas vezes, ocuparam, também, o chão
dos legítimos “homens da terra”, indígenas que ali já habitavam desde
tempos imemoriais – como os xavantes do Mato Grosso, expulsos da área
que habitavam pelos proprietários da Agropecuária Suiá-Missú, hoje
vendida à Liquigás.

Como explicar a invasão do Parque do Xingu pela Agropecuária Santa


Rosa, que penetrou pelo menos 24 quilômetros no limite Leste dessa área?
Como compreender a profanação desse mesmo Parque pela BR-80, em
1971, sem que parte da área desmembrada, ao Norte, permanecesse
totalmente na posse dos índios, ou revertesse “à posse e domínio pleno da
União”, como determina a Lei 0001 (Estatuto do Índio), em seu artigo 2? Ao
invés disso, como se sabe, essa área foi ocupada por fazendas, que
poderão entrar em conflito com os índios txucarramãe, que não
concordaram em abandonar seu território.

Como justificar a entrega da terra nhambikwara a várias fazendas, no Vale


do Guaporé, Mato Grosso, pela própria FUNAI, mediante a expedição de
certidões negativas de presença de índios na área?

Somente no Vale do Guaporé, há umas duas dezenas de fazendas


instaladas: Firmas com autorizações fornecidas pela FUNAI:

1. Leo Maniero – FUNAI/5ª/2331/70.


2. Agropecuária União S.A. – FUNAI/5ª/185/71.
3. Agropecuária Guaporé-Galera S.A. – FUNAI/BSB/686/71.
4. Nhambibikwara Lta. – FUNAI/BSB/160/71.
5. Kanaxuê Agropecuária – FUNAI/5/2199/70.
6. Agropecuária Tapicuu S.A. – FUNAI/BSB/319/71.
7. Agrorio – Agropecuária do Rio S.A. – FUNAI/5/2072/70.
8. Cerro Azul – FUNAI/5/0719/71.
9. Cia. Guaporé Agropecuária-Bonguapé –
FUNAI/BSB/FUNAI/5/2072/70.
10. Bagua S.A. – Agropecuária da Bacia do Guaporé –
FUNAI/5ª/2072/70.
11. Agropecuária Cabixi – FUNAI/5ª/2518/70.
12. Galera S.A. – Agropecuária comércio e Indústria –
FUNAI/BSB/2556/70.
13. Edmundo José Rodrigues – FUNAI?5ª/597/71.
14. Sape Agropecuária S.A. – FUNAI/Gab/395/69.
15. Agropecuária Vale do Guaporé – FUNAI/Gab/406/69.
Obs.: Novas fazendas vêm se instalando na mesma área após essas
autorizações.

Hoje os nhambikwara que sobrevivem às mudanças compulsórias


efetuadas pela FUNAI perambulam em suas próprias terras.

Melhor sorte não tiveram os suruí de Rondônia que, pela demora em se


definirem as suas terras, sofreram drástica redução populacional: de 4.000,
aproximadamente, existentes em 1969, restam hoje, quando muito, 250.
Eles iam ser transferidos para o parque do Aripuanã, onde ficariam com os
57  
 

cintas-largas, zorós e cabeças secas (b). Este parque, porém, apesar de


demarcado pela FUNAI, está quase todo loteado para particulares,
conforme mapa cadastral do Município de Aripuanã.

Outras invasões em Mato Grosso: os xavantes da aldeia dos Areões têm


dentro de sua área uma fazenda; os Pimentel Barbosa foram enganados
pelos fazendeiros vizinhos que, com alguns presentes, levaram-nos a
aceitar uma demarcação lesiva aos mesmos.

Os bororos também têm problemas. Embora os de Meruri. No Município de


General Carneiro, tenham conseguido uma demarcação satisfatória,
pagando, para isso, com a vida de um missionário e um índio, o mesmo não
ocorreu com os da Colônia Teresa Cristina, em Rondonópolis. Esse grupo,
que ter o primeiro mapa de sua área desenhado por Rondon, viu reduzirem-
se para 26 mil os 65 mil hectares da reserva, que acabou sendo demarcado
com uma fazenda incrustada dentro, ocupando as melhores terras. Essa
fazenda, localizada bem no centro da área, pertence a José de Figueiredo
97
Ferras, membro de conhecida família paulista.

(a) Discurso do Presidente Emílio G. Médici, anunciando o início da


construção da rodovia Transamazônica.

(b) Situação dos índios suruís, munxor (cabeça seca) e cintas-largas;


Relatório do “Simpósio sobre o Futuro dos índios cintas-largas”, Cuiabá,
março de 1973.
O antropólogo norte americano Shelton Davis endossa a análise acima
realizada por Dom Tomás Balduíno, que relata a política indigenista do governo
brasileiro em sua obra intitulada – Vítimas do Milagre, o desenvolvimento e os índios
do Brasil:
Em 1970 o Governo brasileiro começou a construir mais três estradas na
Bacia Amazônia: a Transamazônica com 5 mil quilômetros, correndo de
leste a oeste através da Amazônia, do Nordeste do Brasil à fronteira com o
Peru; a BR-165, ou Rodovia Santarém-Cuiabá, de norte a sul, atravessando
a região Centro-Oeste; e a BR-174 ligando Manaus a Boa Vista
(RORAIMA), ao longo da fronteira setentrional coma Venezuela e Guiana.
Com exceção da BR-174, todas essas estradas estavam prontas em
98
1974.

Em 1971, por exemplo, um periódico brasileiro informou que mais de 6 mil


homens estavam trabalhando oito horas por dia, derrubando árvores ao
longo da Transamazônica. Ao mesmo tempo, mais de 50 mil homens eram
usados em operações de limpeza de terras, em conexão com os projetos de
criação de gado da SUDAM no Brasil Central, e outros 45 mil homens
cortavam madeira comerciável nas florestas adjacentes às novas estradas.
De acordo como uma estimativa, mais de 300 mil hectares de floresta
99
virgem foram limpos na Bacia Amazônica, somente em 1970.

Finalmente, várias companhias multinacionais da Europa e dos Estados


Unidos forneceram ao governo brasileiro equipamento pesado de
terraplanagem para a construção das estradas amazônicas. Entre essas
companhias, uma das maiores era a subsidiária da Caterpillar Tractor
Company. Entre 1970 e 1972, a Caterpillar do Brasil vendeu mais de 700

                                                                                                                       
97
BALDUÍNO, Dom Tomás. O CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e a terra dos índios, apud
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, pp. 186-188.
98
DAVIS, Shelton. Vítimas do Milagre: o Desenvolvimento e os Índios do Brasil, p. 89.
99
Ibidem, p. 177.
58  
 

peças de maquinaria no valor de 47 milhões de dólares aos batalhões de


Engenharia do Exercito e às sete companhias privadas contratadas para
construir a Transamazônica. Em 1972, a Caterpillar controlava sozinha
cerca de 70% do mercado de 125 milhões de dólares da terraplanagem do
Brasil. Um executivo da Caterpillar do Brasil disse a um repórter da
Business Week que “nosso mercado crescerá, frequentemente, mais rápido
que o PNB de um país, dependendo de como esse país aloca seus
recursos. Isso é particularmente verdadeiro no Brasil, onde tanto está sendo
100
feito em estradas, aeroportos, mineração e projetos hidrelétricos.”
Em 1970, aproximando a terra aos mercados, a FUNAI ao PIN, e o
desenvolvimento aos empresários, um ex-oficial da inteligência militar, o General
Oscar Jeronimo Bandeira de Mello, foi nomeado presidente da FUNAI submetendo
as diretrizes do órgão indigenista ao Plano de Integração Nacional. Ao retomar a
importância da construção da BR-080, o General Bandeira de Mello proferiu as
seguintes palavras: “O índio não é cobaia, nem propriedade de meia dúzia de
oportunistas. Não se pode deter o desenvolvimento do Brasil por causa do Parque
Xingu.”101
Junto ao incessante trabalho das máquinas de pavimentação, temos a
propagação do mecânico processo de inculcação impulsionado pelo Estado
brasileiro. O já citado agente ideológico de Vargas, o escritor Cassiano Ricardo, em
1970 na 4ª edição de sua obra Marcha para o Oeste, reafirma nossa vocação de
grandeza, na qual os modernos bandeirantes deverão ser guiados pelo governo
ditatorial em seu compromisso com o desenvolvimento: “A grandeza do Brasil exige
o espírito bandeirante para sua própria conquista – dado o imperialismo brasileiro,
que é nosso ‘expansionismo interno’ – e o fenômeno bandeira não terá, portanto,
deixado de existir.”102
Esse discurso é o resultado de formas concretas de dominação e, como
sabemos, onde há exploração há resistência. Aquele que não se sujeitasse ao
compromisso do Brasil grande, aquele que obstaculizasse o compromisso com o
desenvolvimento haveria de receber os piores castigos de nosso governo ditatorial.
Qualquer ação emancipadora que desvirtue o caminho de nosso capitalismo colonial
será duramente reprendida, eis nosso desenvolvimento, ostensivo e agressivo.
Foi assim que, no dia 25 de setembro de 1969, determinou-se a criação da
Guarda Rural Indígena (GRIN) pela portaria 231/69, cujo objetivo principal era
executar o policiamento ostensivo das áreas reservadas aos silvícolas.

                                                                                                                       
100
Ibidem, p. 92.
101
DAVIS, Shelton. Vítimas do Milagre: o Desenvolvimento e os Índios do Brasil, pp. 86-87.
102
RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste, p. 622.
59  
 

Foi assim que em 1970 no Batalhão-Escola Voluntários da Pátria, da Polícia


Militar de Minas Gerais, em Belo Horizonte, compareceram figuras ilustres como
José da Costa Cavalcanti (ministro do Interior e um dos signatários do AI-5), Israel
Pinheiro (governador de Minas Gerais), José Maria Alkmin (vice-presidente de
Castelo Branco e deputado federal) e José Queirós Campos (presidente da FUNAI)
para a formatura da primeira turma da GRIN.103
Os novos recrutas foram alistados em diferentes aldeias do Brasil e sob as
ordens do capitão da polícia militar, Manuel dos Santos Pinheiro, aprenderam
instruções gerais de continência, educação moral e cívica, lutas de defesa e ataque,
patrulhamento, abordagem, condução e guarda de presos e ainda técnicas de
tortura, como o pau de arara.
O mesmo capitão Pinheiro, já em 1969, era o administrador responsável pelo
Reformatório Agrícola Indígena Krenak, em Resplendor (MG). Poucas são as
informações sobre o Reformatório, encontramos apenas uma nota em um boletim
informativo da FUNAI de 1972 que mencionava a função do lugar: “reeducação de
índios aculturados que transgrediam os princípios norteadores da conduta tribal, e
cujos chefes, quando não conseguem resguardar a ordem na tribo, socorrem-se da
Funai visando restaurar a hierarquia nas suas comunidades.”104
Várias foram as denúncias humanitárias feitas por indigenistas nacionais e
internacionais contra a ditadura brasileira. Pouco a pouco a maquiagem
desenvolvimentista escorria ante as pressões internacionais, evidenciando a
verdadeira face brasileira e explicitando as cicatrizes impostas ao povo. Apesar da
crescente pressão internacional acusar o governo brasileiro de praticar
sistematicamente um genocídio indígena, este, ciente de seus atos, negava seu
envolvimento na perpetuação do massacre aos povos indígenas.
Um exemplo disso é a confecção em 1970 do chamado Livro Branco ou da
Verdade105 a pedido do então ministro da Justiça do governo Médici (1969-1974),
Alfredo Buzaid, na tentativa do governo em provar junto à Organização dos Estados
Americanos (OEA) que a ditadura brasileira não violava os direitos humanos. A
sessão indígena do nefasto livro foi escrita pelo jurista Danton Jobim, que procurou
encobrir e mistificar a existência de um genocídio indígena no Brasil articulado com

                                                                                                                       
103
CAPRIGLIONE, Laura. A missão.
104
CAPRIGLIONE, Laura. A missão.
105
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Livro da Verdade.
60  
 

o projeto de desenvolvimento do chamado “milagre” econômico. Pouco antes de sua


publicação, entretanto, o livro foi arquivado justamente por chamar demasiada
atenção aos casos mais escabrosos de violações de direitos humanos,
permanecendo silenciado entre os arquivos da ditadura durante décadas. Preferiu o
governo, assim, o dissimulado silêncio, nutrindo-se da mentira no enfrentamento da
realidade.

FIGURA 4. O problema do índio e a acusação de genocídio.

Fonte: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Livro Branco da Verdade


61  
 

Assim, da seguinte maneira, encerra-se O problema do índio e a acusação de


genocídio de Danton Jobim, parte integrante do Livro da Verdade:
Conclusão:

O objeto do presente processo é apurar se existe ou não uma política de


genocídio sustentada ou esposada pelo governo brasileiro.

A resposta é não. O Governo federal mantém uma política de proteção ao


silvícola brasileiro e procura defendê-lo, embora nem sempre o órgão
especializado consiga desempenhar com eficiência essa missão.

Conflitos se repetem na chamada “frente pioneira”, numa sucessão de


ataques e represálias, entre brancos e índios, mas a ação do órgão de
assistência aos silvícolas atua no sentido de evitar e resolver esses
106
conflitos, tutelando o interesse e os direitos do índio.
Também, o jurista Miguel Reale, autor do atual Código Civil (2002), buscava
mistificar a violência genocida de nossa ditadura:
Num País como o nosso, que é plural por sua própria natureza, e unitário
por sua destinação histórica, estamos em condições de instaurar uma
Democracia Social, com base na realidade da maior Democracia Racial da
História, a fim de podermos superar os antagonismos sociais e econômicos
sem incidirmos no erro de confundir ‘socialização’ com ‘estatização’.
Socializar, no sentido autêntico desta palavra, significa tornar o povo em
geral partícipe do progresso, e não transferir os meios de produção para o
Estado. É somente graças a uma pluralidade de processos sociais e
políticos que lograremos integrar na civilização o espaço vital representado
por nosso território, sobre cujas riquezas atuais e potenciais só a nós nos
107
cabe decidir.
O espirito desenvolvimentista estimulado pelos juristas acima mencionados
impregnou não somente o senso comum nacional, mas também nosso ordenamento
jurídico pátrio. Nessa esteira, em 1973 o governo interviu diretamente na autonomia
dos povos indígenas ao declarar, através do artigo 20 do estatuto do índio,108 que
poderia intervir em área indígena e transferir grupos indígenas em situações
específicas, como para “realizar obras públicas, isto é estradas de interesse do
desenvolvimento nacional”, e “explorar, do subsolo, depósitos valiosos, isto é,
minérios de grande interesse para a segurança nacional e o desenvolvimento”.
Regionalmente o estado do Mato Grosso também estimulou os projetos de
colonização desenvolvimentistas através da Codemat (Companhia de
Desenvolvimento do Estado do Mato Grosso). Nesse período, após 1968, a maior
parte de arrecadação do Mato Grosso foi da capitalização de terras. A incorporação
de novas áreas, numa expansão cada vez maior da produção capitalista de grãos,
destinada à exportação, articulou-se com grandes companhias nacionais e
                                                                                                                       
106
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Livro Branco da Verdade, p. 13.
107
REALE, Miguel. Problemas Institucionais do Estado Contemporâneo, p. 45.
108
BRASIL. Lei Nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973.
62  
 

internacionais que passaram a atuar na região, como Bunge, a Cargill, ADM e


Amaggi.
Inicialmente, existiram algumas oportunidades para pequenos agricultores. No
entanto, com o passar do tempo a falta de apoio do governo a esses camponeses
fez com que essas pequenas terras fossem incorporadas109 por gigantescas
fazendas para criação extensiva de gado ou para a monocultura de grãos, ou ainda,
simplesmente abandonadas, terras ociosas destinadas à especulação imobiliária. A
colonização direcionada representa uma reforma agrária do capital, uma vez que os
grandes empresários, nacionais e estrangeiros, despossuídos de terras no centro-
oeste brasileiro, mas amparados pelo ordenamento jurídico, passam a deter
formalmente milhares de hectares de terra na forma de propriedade privada
legalmente constituída. Assim, ilegitimamente, mas legalmente os posseiros, índios
e camponeses são retirados de suas terras e excluídos socialmente.
Ao calor dessas práticas novas, passou a ser invocado pelos grupos
socialmente mais fortes o formalismo jurídico. O Direito Civil, a legislação
dos registros públicos, as certidões cartorárias, as medições de superfície e
uma série de práticas formais inusitadas se generalizaram. Isso tudo
determina uma alteração profunda do conceito provinciano de propriedade
imobiliária.

O homem rural residente na área não estava preparado para uma mudança
tão radical de conceitos e valores; em geral, não lhe passava pelo espírito a
necessidade de revestir sua posse física do imóvel com um título de
propriedade legalmente reconhecido. A posse, para ele, já constituía todo o
direito necessário para deter a terra, nela morar e trabalhar.

Ocorre que a mudança de conceitos, no caso, é ditada por interesses bem


precisos daqueles que desejam estender o mais possível o controle sobre a
terra. E, assim, o formalismo jurídico, cuja justificação social última seria a
proteção de direitos efetivos, é utilizado como um instrumento de expansão
do domínio fundiário dos grupos mais fortes, já que o caboclo não se acha
em condições sequer intelectuais de resistir com argumentação de cunho
jurídico.

De fato, o que a lei positiva estabelece é que posse não provada é posse
não tida. E como, em última análise, a prova da posse deve ser judicial –
portanto, dependente de uma estrutura complicada, cara e praticamente
ininteligível para o caboclo – este se vê de repente em total insegurança. Se
tenta recorrer ao aparelho burocrático do judiciário, sua vida em breve se

                                                                                                                       
109
“Essa expropriação se realiza através da grilagem, mas entendo grilagem não simplesmente como
artimanha de papéis de cartório, de títulos falsos; a grilagem também como prática de violência
privada, como uma técnica da apropriação econômica. Jagunço e pistoleiro fazem parte de processo
de transformação da terra devoluta, tribal, ocupada, em propriedade privada, com título jurídico
formalmente correto. Nesse sentido temos, não simplesmente uma etapa final do processo de
acumulação primitiva, mas talvez uma etapa final de esgotamento da fronteira interna. Pouco a
pouco, as terras estão se transformando em propriedades, monopolizadas, como “reservas de valor”.
Se isso de fato está ocorrendo, podemos prever que breve estará esgotada a fronteira de expansão
da sociedade brasileira. Então, uma nova realidade econômica, social e política pode se abrir”.
(IANNI, Octavio. Origens Agrárias do Estado brasileiro, pp. 146-147).
63  
 

transforma num pesadelo kafkiano. Na esmagadora maioria dos casos, não


há possibilidade de recurso ao judiciário. A estrutura atual e os padrões de
funcionamento da justiça comum não respondem à dinâmica dos conflitos
na terra.

Há uma ética da posse, e essa ética exige que a posse mansa e pacífica
seja respeitada. Quando a legislação civil europeia consagrou a posse
mansa e pacífica como base de domínio, não estava senão
institucionalizando uma relação ética entre indivíduos humanos. Se esse
conteúdo ético perdido, se a pratica social conduz o formalismo jurídico e a
titulação a atuarem contra a posse pacífica; se o funcionamento de certos
organismos monta armadilhas contra o possuidor e erige em verdade a
ilusão, o sistema positivo de proteção dos direitos entra em antagonismo
com a ética da posse. Na verdade, entra em conflito com a ética, em geral e
110
passa a coonestar razões de poder dos grupos mais fortes.
Como podemos observar no quadro a seguir, essa captura do Estado pela
empresa privada proporcionou uma rápida concentração das terras do oeste
brasileiro nas mãos dos empresários. Muitas empresas possuíam nomes nacionais,
mas seu controle acionário era estrangeiro. A desnacionalização do território
brasileiro abriu as portas para uma ampla penetração imperialista no Brasil.

                                                                                                                       
110
SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira, Sistema de Propriedade e Relações de Trabalho no Meio
Rural Paraense, apud IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, pp. 96-97.
64  
 

QUADRO 2. O capital estrangeiro compra nossa terra com nosso dinheiro.


Recursos Doação
Ano da
Área Próprios (incentivo
Nome Nacional Controle País Estado Aprovação
(ha) (em s) da
do Projeto
milhões) Sudam
Cia. Vale do Volkswagen 140.00
ALE PA 38,8 116,4 69
Rio Cristalino 0
Agropecuária
Família Davis EUA 98.000 PA 3,4 10,2 74
Água Azul
Liquifarm
670.00
Agrop. Suiá- Liquifarm ITA MT 85,8 257,6 76
0
Missu
Amazônia
Georgia 400.00 Isenção de impostos (de renda,
Mad. e EUA PA
Pacific 0 de importação e exportação)
Laminados
Brunyzeel NV;
Bruynzeel HOL; 200.00
Bethlehem PA 2,9 8,8 66
Madeiras S.A. EUA 0
Steel
Georg M.
Fazenda Nova Markof;
ÁUS - MT 5,2 18,6 74
Viena BCN
(nacional)
Participação
BCN
do Barclays ING - MT 18,4 55,2 76
Agropastoril
Bank
Superfine 300.00
Toyo Menka JAP PA 6,6 17,3 72
Madeiras S.A. 0
Agrop. Duas
Henblein Inc. EUA - MT 3,5 10,5 72
Âncoras
Cia. Agrop. do King Ranch + EUA;
163.00 PA 46,2 126,8 76
Pará Swift-Armour CAN
Sifco
Cia. Agrop. Do Industries Inc;
EUA 30.260 PA 0,5 1,7 68
rio Inajá Hobin Holie
Mac
Glohn +
Magesa EUA 300.00 - 2,3 7,1 68
Georgia Pacif
Agrop. Pirâmides
EUA - MT 8,9 26,8 -
Mirassol Brasília S.A.
Produtos
Intern. –
Drury’s Fiel
Controlado EUA - MT 7,1 21,4 73
S.A. Agrop
pela henblein
Inc.
Colorado
Marubeni Co. JAP - PA 0,5 1,5 70
Agropecuária
Mitsui Agrop.
Mitsui Co. JAP - PA 0,6 1,9 70
Ltda.
Twik
Novos
Agricultural Isenção de
Horizontes EUA 63.122 GO 73
and Industrial Impostos
S.A.
Developers
Frigorífico
Isenção de
Araguaína Idem EUA - GO -
Impostos
65  
 

Doação
Área Recursos Próprios (incentivos
Nome Nacional Controle País Estado
(ha) (em milhões) ) da
Sudam
Agrop. Sul do Ester
Panamá 5.000 PA 1,0 3,0 68
Pará Research Co.
Cofap-com
Cia. Nova participação
Fronteira da TRW EUA - PR 6,6 20,0 73
Thompson do
Brasil
Agrop. Toshio
Toyobo do
Cia. Ás de BrasilBco.
JAP - MT 3,1 9,8 73
Ouro Mitsubishi-
Yakult do
Brasil
Refrigeradores
Cônsul com
participação
da Brastemp
Agrop. Cônsul EUA - MT 4,2 12,6 72
que tem
capital da
Whirpool
Corporation
Agrop. Barra Part. Singer do
EUA - MT 17,0 51,0 -
dos Garças Brasil
Bradesco com
Cia Rio Capim
participaçãoda JAP 40.986 PA 13,3 54,9 76
Agrop.
Nichimen
Agropastoril John W.r. de
Suíça - MT 0,6 3,08 71
Nova Patrício Buys Rossingh
Imobiliária e
Desenvolvime
nto Sul-
Americana +
Piraguassu
Cia. Ianmar JAP 52.373 MT 17,2 50,1 76
Agrop.
Dit. De Maq. –
controlada
pela Lamaoka
Reality
Agropecuária Tsuzuki
JAP - GO 0,7 2,2 72
Araguaçu Spnnig
Frigorífico Union
ING 664.00 MT Desconhecidos -
Anglo International
National Bulk
Jari Florestal e Carriers 3.500. Isenção de
EUA PA -
Agrop. (Daniel 000 Impostos
Ludwig)
Fonte: HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Capitania da Volkswagem, apud IANNI, Octavio. Ditadura e
Agricultura.
66  
 

QUADRO 3. Setor de Mineração


Corporações Financiamento
Mineral e Área de Invasões de Terra
Multinacionais na Internacional e
Exploração Indígenas:
Área Assistência Técnica
Amazonas Export-Import Bank:
Mineração: empréstimo de US$ 5,5
Minério de ferro: Xicrin-Caiápo,
associação da milhões à ICOMI para a
serra dos Carajas, nordeste do Parque
empresa estatal Vale usina de pelotização do
Pará Nacional do Xingu
do Rio Doce com a manganês da serra do
United States Steel Navio
Overseas Private
Indústria e Comércio
Manganês: serra Investment Corporation
Sul de Palikur, de Minérios:
do Navio, (EUA): seguro para os
Karipuna, Galibi- associação de
Território do investimentos da Alcoa,
Marwôrno CAEMI de Antunes e
Amapá W. R. Grace e Hanna
da Bethlehem Steel
Mining
ALCOA, ALCAN
Earth Satellite
(braço canadense da
Parque Indígena Corporation (EUA):
Bauxita: ALCOA), Kailser,
Tumucumaque, pesquisas minerais do
concessão ao Aluminium, National
Pianokoto-Tirió, Projeto Radan na Bacia
longo do rio Bulk Carriers,
Warikyana-Arikiéna, Amazônica, para o
Trombetas, Pará Pechiney, Alusuisse,
Parukoto-Charúma governo brasileiro e
Rio Tinto Zinc, Hanna
empresas privadas
Mining
Cia. De Mineração
ferro União:
Billiton/Royal Dutch US Geological Survey: 21
Shell; Cia. Estanífera projetos de exploração
do Brasil: W. R. mineral e geológica em
Cassiterita ou Grace/Patiño; Cia. colaboração com o Dep.
estanho: Parque Indígena Brasileira de de Pesquisa Mineral
concessões no Aripuanã, Cintas- Metalurgia: (DNPM) e a empresa
Território de largas, Suruí Rockfeller-Moreira estatal Centro de
Rondônia Salles/Molybdenium Pesquisa de recursos
Corp.; Mineração Minerais (CPRM), sob
Aracazeiro: patrocínio do governo
Itaú/National Lead brasileiro e da USAID
industries/Portland
cement
Fonte: MARTINS, Edilson. Índios: quando a liberdade é negada, apud IANNI, Octavio. Ditadura e
Agricultura.

Enquanto no Sul do país, o tamanho médio das fazendas de gado era de 800
a 900 hectares de terra, tendo sua maior fazenda com cerca de 6 mil hectares, no
Mato Grosso a realidade era contrastante. Apenas uma única fazenda no Mato
Grosso com 15 mil cabeças de gado, propriedade de Orlando Ometo, rico produtor
de açúcar de São Paulo, cobria 695.843 hectares, o tamanho do estado norte-
americano de Connecticut.111
Articulado na desigualdade social brasileira, a política de colonização interna
passou a ser um instrumento de desarticulação de mobilizações e conflitos rurais.

                                                                                                                       
111
DAVIS, Shelton. Vítimas do Milagre: o Desenvolvimento e os Índios do Brasil, p. 62.
67  
 

“As contradições do real projetam-se nas atividades políticas dos homens, dividindo-
os ou aglutinando-os.”112
Em nossa ditadura Civil-Militar era prioritário controlar os movimentos sociais
do campo que já levantavam a bandeira da reforma agrária, principalmente os da
região sul do país. O sobrecarregamento das fronteiras do centro-sul e o surgimento
incipiente de uma organização social questionadora de ordem através do discurso
da reforma agrária alimenta a frente de expansão no centro-oeste. Como forma de
manter a estrutura agrária brasileira e afastar qualquer tentativa de democratizar o
acesso à terra, a burguesia afasta da política a reforma agrária e investe na
colonização interna do Brasil, através do estímulo migratório.
Ao gerar essa contradição, a divisão do trabalho provoca a crise e
desorganização de comunidades e personalidades, levando estas, muitas
vezes, a formas extremas de ressocialização. Tomadas em conjunto, essas
populações representam, em grande parte, o estoque de trabalhadores com
o qual conta o capitalismo industrial para expandir-se, bem como preservar
ou elevar a taxa de lucro. A aceleração da industrialização no Sul, a
construção de Brasília, das rodovias Belém-Brasília, Transamazônica e
outras, bem como a invenção da fronteira amazônica e o impulso a
agroindústria em geral, nas décadas de 60 e 70, contaram sempre com as
reservas de trabalhadores dispersos em núcleos de subsistência e
mercantilizados nas diferentes regiões do país. Na totalidade que é o
sistema nacional, a heterogeneidade dos níveis econômico, sócio-político e
cultural não pode ser tomada senão como desigualdades concretas
113
integradas.
É nesse contexto, desigual e combinado, que se afirma nossa colonização
oficial. Os sem números de trabalhadores enviados para o Mato Grosso não eram
contemplados com um projeto de reforma agrária, mas ao contrário, eram
violentamente impedidos de realizar uma colonização espontânea e popular. De
acordo com o senso realizado pelo IBGE (2006), 42,5% da população mato-
grossense é natural de outros estados da federação.
Para a ditadura, com seu modelo agressivo e repressivo, as diversidades
regionais constituem as bases de nosso desenvolvimento, desigual e combinado. Ou
seja, o desenvolvimento de nosso capitalismo colonial está assentado na articulação
de fluxos de capital e força de trabalho de nossas desigualdades regionais.
Trabalhadores rurais de diversas regiões do Brasil, sem condições pela falta
de terra, pela falta de emprego, mudam-se para regiões de terras virgens.
Vão procurar uma nova terra, uma nova residência. Levam a família, muita
coragem e, sobretudo, muita esperança.

A caminhada é longa e sofrida. Há informações de terra boa e barata, mas


não se tem certeza. Pode ser até má intenção daqueles que querem ter
                                                                                                                       
112
IANNI, Octavio. Estado e Capitalismo, p. 171.
113
Ibidem, p. 74.
68  
 

mão-de-obra abundante e barata. Tem que se ir procurando, fazendo


paradas, até longas, trabalhando como assalariado ou parceiro, para, no
final, se estabelecer numa área que dizem ser do Governo do Estado ou do
governo Federal.

Nessa caminhada a família pode diminuir; perde-se um filho por falta de


assistência e por desnutrição.

Na nova terra, o posseiro se anima, abre picadas na floresta virgem,


desmata, ergue sua casa, constrói estradas, faz roça, estabelece
benfeitorias.

O futuro parece sorrir para ele, apesar de tudo. A expectativa parece


compensar os sacrifícios da família, da caminhada e do próprio local.

Em muitos lugares eles construíram povoados e fundaram cidades. Sempre


se preocuparam em estabelecer sua família e levar o progresso para a
região. O que ganharam com a produção (apesar dos intermediários)
gastaram e aplicaram ali mesmo. Assim, os posseiros deram sua
contribuição para o desenvolvimento da região. Seguros de sua contribuição
para a Nação visam a permanecer na terra e produzir, e não se preocupam
com a legalização das terras.

Isso tem acontecido de há muitos anos e continua a ocorrer nas áreas de


ocupação.

Mas acontece que ultimamente tem havido abertura de grandes estradas na


Amazônia; as terras têm-se valorizado bastante e, ainda mais, o Governo
concede incentivos fiscais para os grandes capitais se instalarem na região.

Então, esses grandes investidores ocupam, requerem ou compram milhares


de hectares de terras do Estado ou da União, a preço baixo, e lá encontram
os posseiros.

O drama se inicia. Os posseiros ali residem e produzem há muito tempo,


mas não têm título da terra. Começam os despejos ou ameaças de
despejos. As grandes firmas ou empresas agropecuárias querem o terreno
livre de ocupantes.

Chegam a usar violência: contratam capangas, queimam casa, destroem


construções com trator, quebram cercas, botam fogo na roça dos posseiros,
ameaçam ou chegam mesmo a prender os posseiros que procuram
defender a sua posse.

Algumas firmas entram com ação na Justiça contra os posseiros e têm, a


seu dispor, advogados, transportes rápidos (aviões), recursos financeiros e
influência. Enquanto que os posseiros são intimados para saírem das terras
por uma pequena promessa de indenização, que nunca se realiza, até que
os posseiros deixam a terra, amedrontados.

Cria-se, então, uma tensa situação social: os posseiros sabem que sem a
terra perderão a fonte de renda familiar e se tornarão desempregados. Se
procurarem outras áreas sem o título legal, correm o mesmo risco de
despejo.

De um lado a justa expectativa dos posseiros de possuírem a área


desbravada ou de receberem a indenização devida pelas benfeitorias e, de
outro lado, o avanço dos agropecuários, com atitudes, frequentemente,
ilegais, geram conflitos que exigem a efetivação da Justiça Social.

Áreas de Tensão – A Amazônia legal, com os investimentos oficiais de infra-


estrutura, especialmente estradas e comunicações, e os incentivos fiscais,
69  
 

têm atraído grupos econômicos, nacionais e estrangeiros, tendo estes como


motivação também a explosão de um rico patrimônio em madeiras e
perspectiva segura de especulação de grandes áreas de terra, ocupadas
simplesmente ou adquiridas a um preço quase simbólico.

As esferas de decisão estadual, mais sensíveis ao envolvimento político e


com pouco planejamento na ocupação das terras do estado, não têm sido
bastante eficientes para evitar conflitos entre posseiros que cultivam a terra
de longa data e os grandes beneficiários dos incentivos fiscais.

O Governo Federal, com sábia visão social para evitar a indiscriminada de


vastos latifúndios privados em terras públicas e, para que se realizasse uma
colonização de cunho social, através do Decreto-lei 1.164/71, declarou
indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais terras
devolutas situadas na faixa de cem quilômetros de largura em cada lado do
eixo das rodovias na Amazônia Legal.

Entretanto, ao arrepio da lei e das diretrizes oficiais, grupos econômicos


têm-se apossado, sem licença de ocupação, de grandes áreas de terra,
tanto na área do Decreto-Lei 1.164/71, quanto na área da faixa de fronteira.
Tais atitudes chocam-se contra o artigo 171 da Constituição Federal e da
Lei 2.597/55 que respectivamente exigem que a alienação ou concessão de
terras públicas com área superior a três mil hectares seja feita com a
aprovação do Senado Federal e que na faixa de fronteiras não exceda a de
dois mil hectares. A sensibilidade social do Governo Federal, diante dos
conflitos e despejos dos posseiros, declarou que estes não poderão ser
desalojados das terras que cultivam, em áreas pioneiras ou de incentivos
fiscais, sem a prévia consulta do Ministério da Agricultura, conforme Decreto
de número 70.430/72.

Entretanto, essas determinações não têm sido observadas pelos grandes


empresários, e eventualmente, por autoridades do Poder Judiciário.

As áreas de maior tensão são principalmente ao longo das rodovias,


construídas ou em construção, nos vales úmidos, em áreas férteis ou de
florestas ricas em madeira de lei.

As principais áreas são:

Complexo Xingu-Araguaia, situado no Nordeste de mato Grosso e Sul do


Pará, onde grandes projetos pecuários se desenvolvem, sob influência das
BRs 242, 158 e 080. Abrange as regiões de São Felix do Araguaia, Suiá-
114
Missú e Conceição do Araguaia.
Vejamos, no quadro seguinte, os conflitos de terra ocorridos no ano de 1976.
Importante ressaltar o destaque de Mato Grosso, um dos estados que mais
receberam financiamentos do governo também é o estado com o maior índice de
conflitos.

                                                                                                                       
114
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA (CONTAG),
“Problemática dos Posseiros”, Reforma Agrária, apud IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, p. 145.
70  
 

QUADRO 4. Distribuição geográfica do total de conflitos e dos conflitos graves


(1976)
Estado / N.º total de Conflitos graves
Território conflitos N.º total Mortos Feridos

Acre 07 02 - 07
Amazonas 10 03 04 01
Roraima 02 01 - 03
Pará 15 03 08 02
Amapá - - - -
Maranhão 17 08 02 17
Piauí 01 - - -
Ceará - - - -
Rio grande
- - - -
do Norte
Paraíba 01 - - -
Pernambuco 02 - - -
Alagoas 02 - - -
Sergipe 01 - - -
Bahia 13 03 01 08
Espírito
01 - - -
santo
Rio de
- - - -
Janeiro
Guanabara - - - -
São Paulo 12 01 01 -
Paraná 06 01 - 13
Santa
- - - -
Catarina
Rio Grande
01 01 01 -
do Sul
Minas
02 - - -
Gerais
Goiás 02 02 05 02
Distrito
- - - -
Federal
Mato
19 07 07 06
Grosso
Rondônia 12 02 02 -

Total 126 34 31 59
Fonte: RODRIGUES, Vera L. G. da Silva; SILVA, José Gomes da. Conflitos de terras no Brasil, apud
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura.
*Em algumas das notícias, ao invés de dizer-se o número exato dos mortos e feridos em determinado
conflito, dizia-se apenas “vários”. Para efeitos de tabulação, consideramos 3 o número de mortos ou
feridos em tais casos.

Como o desenvolvimento brasileiro é consequência da produção pela


produção sem levar em conta os fatores humanos desse processo, mais um novo
projeto foi elaborado. Anunciado pelo presidente Geisel, o Polamazônia
71  
 

compreendia 16 polos de desenvolvimento na região amazônica, os quais


receberiam uma série de empreendimentos, novamente, nos setores da
agropecuária, mineração e extração de madeira.
Outro projeto desenvolvimentista foi o Polonoroeste, mediante o qual o
governo federal contraiu um empréstimo de aproximadamente 500 milhões de
dólares junto ao Banco Mundial (BIRD) com o propósito de asfaltar a BR-364 entre
Cuiabá e Porto Velho. A execução da obra foi realizada a toque de caixa com o
apoio incondicional dos governos federal, estadual e municipal. Mais uma vez,
amplia-se a exploração dos recursos naturais em terras brasileiras, enquanto os que
nela residem são subjugados e violentados em seus direitos (homicídios, roubos de
madeira, desmatamento, invasão de terras indígenas e outros crimes). A brutalidade
foi tamanha com os povos indígenas da região que o repasse financeiro chegou a
ser paralisado. Se no curto prazo as consequências foram genocidas, no longo
prazo se configuraram etnocidas: surgiram inúmeras pequenas e médias cidades
sem qualquer infra-estrutura, Rondônia foi invadida por uma leva de migrantes que
se amontoavam sem condições dignas nos novos povoados, a terra foi cada vez
mais concentrada na mão de grileiros e posteriormente na de fazendeiros e
empresários.
Para integrar o modelo capitalista é necessário desintegrar os diversos
modelos tradicionais existentes na região. Para tanto, a relação baseada no valor de
uso deve ser subordinada por uma nova relação, a do valor de troca.
Se examinarmos o conteúdo histórico-estrutural do desenvolvimentismo,
verificamos que se trata de uma ideologia da transição, isto é, de
consolidação do predomínio da burguesia industrial. Todavia, como
nenhuma ideologia de classe pode restringir-se ao âmbito da própria classe,
já que esta é dominante, o desenvolvimentismo engloba outras classes.
Implica a afirmação de que a indústria é superior à agricultura, que o capital
industrial é mais fecundo que o agrícola. Nesse sentido, contem uma
valorização do investimento produtivo (industrial) e, simultaneamente, da
poupança. Implica um ascetismo, na medida em que o comportamento
econômico se organiza em termos de mercado, de valores de troca. Ou
melhor, a prática da “abstenção” precisa ser incorporada pelos homens num
universo que ainda contém segmentos comunitários. É preciso reduzir as
esferas em que predominam relações fundadas no valor de uso, para que a
racionalidade característica da hegemonia do valor de troca se consolide.
Ela faz a apologia da mecanização de toda a produção, já que a máquina se
transforma no símbolo do sistema, da racionalidade máxima alcançada pela
organização da produção. Isto implica a modernização das condições de
vida, em todas as esferas. Assim, a maquinização transcende a fábrica,
invade a agricultura, penetra na casa. A felicidade do homem, agora, se
mede pelo numero de objetos mecanizados que ele tem a seu dispor, para
uso pessoal, em médio. O automóvel e a televisão, ambicionados por
setores cada vez mais amplos da população, simbolizam um estagio
superior da civilização industrial. Neste sentido, envolve os alvos próximos
72  
 

ou remotos do comportamento e das ambições do proletariado e da classe


media, em sintonia com a visão do mundo da burguesia. É uma ideologia da
115
mobilidade social geral e permanente.
Assim, as transformações em curso no oeste brasileiro, estão impregnadas,
dominadas pelo modo de produção e reprodução capitalista global. As mutações
foram durante anos intensivamente adubadas pelas agências do governo (por
exemplo: SUDAM, BASA, INCRA, FUNAI, entre outras), as quais aceleraram e
dinamizaram as relações do capital-propriedade privada na região. O capitalismo
desenvolvido no Brasil, ao tempo que produz cada vez mais excedentes para os
mercados estrangeiros, passa também a impor local e regionalmente a lógica do
mercado sobre os caboclos, posseiros, colonos e indígenas. Estes, agora são
acorrentados no mercado, no valor de uso. “Pouco a pouco, ou de repente, o
consumo de produtos manufaturados passa a ser importante, ou essencial, nos
centros, margens, lugares, vilas, núcleos indígenas.”116
O trabalhador rural, para dar conta das novas exigências do mercado,
submete-se mais e mais à lógica do trabalho assalariado, seja vendendo sua força
de trabalho, seja intensificando seu próprio tempo trabalho. Aos poucos, o tempo
livre, de que dispunha, é expropriado e o trabalhador passa progressivamente a
trabalhar mais e mais na busca sem fim de mais e mais mercadorias. Os utensílios
que antes fabricava artesanalmente em seu tempo livre hoje precisam ser
comprados pela falta de tempo que lhe resta, e assim, sem outra fonte de recursos
que o próprio salário recebido, o trabalhador percebe um agravamento de suas
condições de vida, e consequentemente de sua liberdade e, portanto, de sua
humanidade.
Dia a dia, o desenvolvimento feroz do capitalismo no campo implica a
crescente negação da autonomia do trabalhador rural, seja ele operário, meeiro,
parceiro, arrendatário, colono, migrante, caboclo, posseiro ou indígena, praticamente
todo trabalhador rural que estabelece alguma conexão com o mercado passa a ser
subordinado aos movimentos do capital industrial e seu futuro não mais lhe
pertence.
Mesmo populações indígenas, que estão em reservas, podem estar
subordinadas ao capital, produzir excedentes que são comercializados.
Esse pequeno excedente, que pode ser 5%, já implica uma subordinação
formal do trabalho ao capital, na medida em que sem esses 5% o
trabalhador não compra açúcar, sal, sem os quais não vive. Portanto, está
                                                                                                                       
115
IANNI, Octavio. Estado e Capitalismo, p. 105.
116
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, p. 73.
73  
 

subordinado ao mercado. Vejam bem que o problema não é quantitativo. É


ilusório pensar que aquele que consome 90% do seu produto tenha uma
economia independente, auto-suficente, autônoma. Os 10% que vende, já o
atrelam ao mercado, já o articulam com as exigências da produção
mercantil. Como consequência, esses 10% são cruciais para comprar a
enxada, enxadão e outros elementos indispensáveis para a continuidade da
117
economia.
Quando o indígena consegue extraordinariamente sobreviver a ataques
genocidas, torturas, estupros e assassinatos, se vê subjugado, submetido e
dominado. Agora seu futuro está intimamente associado às intempestividades do
capital. Tudo isso não representa um passado distante, não é só um passado
recente, mas sim, a atual realidade. Jornais registram a cotidianidade dos conflitos
indígenas, nos quais geralmente são massacrados por grileiros, jagunços,
pistoleiros, policiais, advogados, latifundiários, fazendeiros, empresários nacionais e
estrangeiros e funcionários governamentais.
À medida que se desenvolve extensivamente o capitalismo na Amazônia,
intensificam-se e generalizam-se as contradições sociais. É principalmente
a luta pela terra que gera pendencias e conflitos entre índios e posseiros,
índios e grileiros, posseiros e grileiros, ou índios, posseiros, grileiros,
latifundiários, fazendeiros e empresários. Nessas pendencias e conflitos,
entram também jagunços, pistoleiros, policiais, advogados e outros
membros da burocracia privada e publica. Em geral o resultado das lutas é
a expansão da grande propriedade, com a expulsão ou subordinação de
118
indígenas, posseiros, sitiantes e colonos.
Basta conferir o artigo publicado por Dom Erwin, no relatório anual de
violência emitido pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI):
Também em 2010, o governo não se importou com a causa indígena. Pelo
contrário. Ignorou constantemente os povos indígenas, seus apelos, seus
protestos, seus projetos de vida. Atropelou os seus direitos e tem falhado na
proteção de suas comunidades. Belo Monte, alicerçada na ilegalidade, na
força e na negação de diálogo com as populações atingidas, é talvez o mais
emblemático, mas apenas um entre tantos casos.

As violências contra os povos indígenas, denunciadas por este relatório,


não são “acidentes”, ocorrências imprevistas a lamentar. São fruto de um
ideologia diametralmente oposta ao projeto de vida dos indígenas. A
ideologia do desenvolvimento a qualquer preço, da expansão contínua, da
119
maximização do lucro, já é, por natureza, predatória e violenta.
Os índios continuam a ser massacrados.
Passados mais de quatro séculos, a conquista ainda não se deteve. Os
métodos se alteraram, mas os objetivos continuam praticamente os
mesmos: inviabilizar as formas de existência comunitária, de modo a
dissolver os povos indígenas na massa pobre da sociedade brasileira,
incorporar suas terras no regime de produção dominante ou simplesmente
expô-los a condições de extrema penúria, sem defesa contra inimigos mais
                                                                                                                       
117
IANNI, Octavio. Origens Agrárias do Estado brasileiro, p. 149.
118
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, pp. 95-96.
119
KRÄUTLER, Dom Erwin. As cruzes permanecem erguidas, mas a utopia do Bem Viver persiste, p.
07.
74  
 

imediatos, de modo a acelerar o extermínio. É fácil encontrar exemplos que


120
ilustram essa política.
Em pouco tempo, as mercadorias passaram a ilustram o cotidiano dos povos
indígenas. Incialmente doce como o açúcar e brilhante como o metal, agora as
mercadorias atingem também as intimidades do cotidiano na aldeia, seja pela
presença do rádio ou da televisão. O avanço do capitalismo no Brasil em seu ritmo
incontrolável não permitiu ao índio um saudável contato cultural, mas ao contrário,
proporcionou uma acelerada destruição do seu modo de vida tradicional. “À rapidez
da ocupação e ao dinamismo empresarial, o Estado responde com medidas
assistenciais morosas, burocratizadas, que significam de fato uma política de
extermínio programado.”121 Com um processo de tal intensidade, não foram poucas
as consequências nefastas para os povos indígenas, que sofreram e sofrem
inúmeras mutações e metamorfoses em sua cultura e em seu modo de vida e de
resistência.
Um exemplo dessa política de extermínio programado é a atual base
econômica do estado de Mato Grosso, por exemplo. A vida econômica no Mato
Grosso não é função de fatores internos humanos, de demandas de quem nessa
terra habita; mas de diretrizes empresariais internacionais. Atualmente a base
econômica de Mato Grosso é a monocultura de grãos e a criação extensiva de gado
para corte sob um enorme custo humano e ambiental. Trata-se de um modelo
agropecuário extremamente capitalizado que utiliza um elevado conhecimento
técnico e máquinas modernas. São poucos os proprietários aptos a tal investimento,
os pequenos produtores marginalizados são obrigados a abandonarem suas terras,
as quais se concentram nas mãos dos grandes produtores. É um modelo de alta
produtividade devido ao uso intensivo de insumos (fertilizantes e sementes
transgênicas, por exemplo), o que gera um elevado impacto socioambiental. Essa
política não extermina apenas o índio, mas também toda nossa autonomia nacional.
Economia de exportação, constituída para o fim de fornecer gêneros
alimentícios e matérias-primas tropicais aos países e populações das
regiões temperadas da Europa e mais tarde também da América, ela se
organizará e funcionará em ligação íntima e estreita dependência do
comércio ultramarino em função do qual se formou e desenvolveu. Será
essencialmente uma economia colonial, no sentido mais preciso, em
oposição ao que denominamos de economia “nacional”, que seria a
organização da produção em função das necessidades próprias da
população que dela participa. Esta é a circunstância principal que tornará o
Brasil tão vulnerável à penetração do capital financeiro internacional quando
                                                                                                                       
120
JUNQUEIRA, Carmen. A questão indígena, p. 123.
121
Ibidem, p. 124.
75  
 

o capitalismo chega a esta fase do seu desenvolvimento. O país far-se-á


imediata e como que automaticamente, sem resistência alguma, em fácil
122
campo para suas operações.
Um exemplo disso é que a produção de soja deve somar entre 87,6 milhões e
89,72 milhões de toneladas batendo novo recorde, representando uma expansão de
7,5% a 10,1% em relação à colheita passada. Enquanto o estado do Mato Grosso
puxa o crescimento da oleaginosa no país, o Brasil caminha pra se tornar um
importador regular de produtos básicos como arroz e feijão.123
Em 2003, Blairo Maggi,124 “o rei da soja”, tomou posse no governo do estado
de Mato Grosso pelo Partido da República (PR). Em total promiscuidade público
privada, ao passo que Mato Grosso consolidou-se como o maior produtor nacional
de soja, o Grupo Amaggi, do qual Blairo faz parte, passou a liderar a produção
nacional deste grão e em pouco tempo ocupou a posição de maior produtor privado
do mundo.
Seguindo com louvor a cartilha do desenvolvimentismo, Mato Grosso, além
de ser considerado o estado que mais desmata a floresta Amazônica, é também o
estado que apresenta um dos maiores índices de concentração fundiária de acordo
com os dados colhidos em 1995 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística:

QUADRO 5. Situação Fundiária de Mato Grosso (1995)


Categoria dos produtores Em relação ao número de Em relação à área do estado
rurais imóveis (%) (%)

Pequenos (até 100 ha) 59,5 3,3


Médios (de 100 a 1.000 ha) 30,3 14,5
Grandes (acima de 1.000 há) 10,2 82,2
Fonte: IBGE, 1995.

Em um mundo contraditório, contraditórias são suas consequências. De um


lado, em 2004, o Greenpeace conferiu ao governador Blairo Maggi, o prêmio de
“Motosserra de Ouro”. De outro, em 2013 Blairo, agora como Senador da República,
assumiu a presidência da Comissão de Meio Ambiente, Fiscalização e Controle.

                                                                                                                       
122
PRADO JR., Caio. História do Brasi, p. 270.
123
BARROS, Betina; CAETANO, Mariana et al. Soja deve garantir novo recorde na produção de
grãos.
124
Blairo Borges Maggi é um dos proprietários do Grupo Amaggi (Grupo André Maggi), companhia
fundada pelo seu pai André Maggi. A revista norte americana Forbes, em 2014, estimou sua fortuna
em torno de R$ 2,3 bilhões. Disponível em: <www.forbes.com/sites/kerapoza/2014/04/10/for-brazil-
farmer-gift-of-the-maggi-worth-a-billion-bucks/>
76  
 

Esse nosso desenvolvimento combinado que une governo e empresários, que


conecta regiões desiguais atingiu os quatro cantos de nosso Brasil. O capitalismo
não se faz autonomamente no Mato Grosso, mas sim incrustado com o
desenvolvimento capitalista de outras regiões. Essa nossa verdadeira integração – a
do capital.
De uma sala no coração do centro empresarial paulistano, Arlindo Moura,
64, comanda 290 mil hectares de soja, milho e algodão plantados em
Minas, Mato Grosso, Goiás, Bahia e Piauí – a área equivalente a quase
duas vezes a cidade de São Paulo.

Além do lucro na operação, as empresas ganham com a valorização da


terra. Seguindo a Informa Economics FNP, o preço da terra de alta
produtividade em Uruçuí (PI), uma das principais áreas do Mapitoba, subiu
256% de 2003 a 2013.

Quanto mais elevado o preço da terra, mais difícil para o médio produtor
encontrar área para produzir. Para o pequeno, nem se fala. O mercado
125
acabou dando preferencia a empresas maiores.

Contraditoriamente dando continuidade aos projetos desenvolvimentistas de


nossa Ditadura Civil-Militar, o Partido dos Trabalhadores (PT) com assento na
presidência da republica, que deveria representar uma nova política brasileira,
negocia com o velho e intensifica nosso dependente capitalismo colonial. Listando
uma série de grandes obras para o desenvolvimento do capital no país, o Partido
dos Trabalhadores programou e ordenou a realização, tanto do Plano de Aceleração
do Crescimento, o PAC1, como, de sua segunda etapa, o PAC2.
Somente na Amazônia Legal está prevista a construção de 13 hidrelétricas
correspondentes ao PAC: Belo Monte, rio Xingu, PA; Colíder, rio Teles Pires, MT;
Dardanelos, rio Aripuanã, MT; Estreito, rio Tocantins, MA/TO; Ferreira Gomes, rio
Araguari, AP; Jatobá, rio Tapajós, PA; Jirau, rio Madeira, RO; Santo Antônio do Jarí,
rio Jarí, AP/PA; São Luiz do Tapajós, rio Teles Pires, MT; e Teles Pires, rio Teles
Pires, MT/PA.

                                                                                                                       
125
FREITAS, Tatiana. “Megafazendas” lideram crescimento no Cerrado.
77  
 

MAPA 3. Usinas que impactam comunidades indígenas.

Fonte: INESC. Plano Decenal de Energia 2012.

Direta e/ou indiretamente, todas estas obras afetam mais de um povo


indígena. Vejamos: Belo Monte impacta índios Arara, Juruna, Arawaté,
Xipaya, Kuruaia, Xikrin, Apiterewa, Assurini, Parakanã e Kayapó Kararaô,
além de grupos isolados. Dardanelos afeta Arara e Cinta-Larga. São
Manoel, Teles Pires e Colíder impactam em terras Munduruku, Apiacá e
Kayabi. Estreito, terras Apinajé e Krahô, no Tocantins, e Krikati e Gavião, no
Maranhão. Jirau e Santo Antonio afetam as terras indígenas Karitiana,
Karipuna, Urueu-Wau-Wau, Katawixi, Parintintin, Tenharim, Pirahã, Jiahui,
Tora, Aripunã, Mura, Oro Bom, Cassupá e Salamãi, além de grupos de
índios isolados. A BR-163 impacta as Terras Indígenas Mekrãgnoti, Paraná,
Praia do Mangue e Praia do Índio, e a BR-319 impacta outras 36 Terras
Indígenas dos povos Mura, Kanamari, Parintintin, Aripunã, Munduruku e
126
Tora.

Dos projetos do PAC2, o mais caro (R$ 30 bilhões) e também o mais


polêmico deles é a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte,127 às margens

                                                                                                                       
126
GLASS, Verena. PAC 2: acelerando a tristeza na Amazônia, pp. 129-130.
127
“Em 2010, quando ocorreu o leilão de Belo Monte, o vencedor Consórcio Norte Energia era
composto pela Chesf, Construtora Queiroz Galvão S/A, Galvão Engenharia S/A, Mendes Junior
Trading Engenharia S/A, Serveng-Civilsan S/A, J. Malucelli Construtora de Obras S/A, Cetenco
Engenharia S/A, Gaia Energia e Participações (Grupo Bertin) e Contern Construções. Entre 2010 e
78  
 

do rio Xingu no Pará. Esta obra faraônica (terceira maior hidrelétrica do mundo) é
construída vorazmente, nem um segundo pode ser desperdiçado, 25 mil operários
são alocados em turnos e returnos ininterruptos. Intensificam-se as produções,
maximizam-se os trabalhadores. A humanidade não participa dessa equação.
Qualquer reivindicação de direitos, como a greve, deve ser duramente repelida, as
máquinas não podem parar.
No judiciário, Belo Monte já foi objeto de dezenas de ações judiciais.
Das 15 Ações Civis Publicas do MPF contra Belo Monte, algumas ainda
aguardam julgamento em primeira instância porque os juízes da Altamira e
Belém se negam a apreciar casos ligados à usina. Já no TRF-1, ações
referentes a hidrelétricas raramente têm seus méritos avaliados. Na grande
maioria dos casos, as decisões pela paralisação das obras são derrubadas
através de Suspensão de Segurança, instrumento criado originalmente pela
ditadura militar que utiliza o argumento de "segurança nacional" para
128
invalidar decisões judiciais.
Em 2011 o governo brasileiro foi interpelado pela Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH), órgão pertencente à Organização dos Estados
Americanos (OEA), da qual o Brasil faz parte. A comissão pressionava para que o
governo realizasse consulta prévia às comunidades afetadas pela usina de Belo
Monte, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) ratificada pelo Brasil. Raivosamente, o governo reagiu contra a
instituição, retirando a indicação do ex-ministro dos Direitos Humanos Paulo
Vanucchi para a CIDH e ameaçando cortar as contribuições brasileiras à comissão.
Os indígenas afetados, certos de seus valores, são veementes contra a
construção da Hidrelétrica. Para Leôncio Arara, pajé da aldeia Arara da Volta
Grande:
Tudo começa na raiz. Raiz; é o que são os meus avós. É o que foi deles, e
que passaram para mim. É a mata onde tenho os remédios pra tudo. Por
isso nada importa além de consolidar nossas raízes no chão. Assim como a
substância da árvore é a raiz (...). Progresso é bom pro pessoal que tem
dinheiro, (...) pro índio, se hoje enchem seu bolso, amanhã ele não tem
nada. Na rua é triste a condição, não vejo vantagens. O que tem lá não
quero aqui. Progresso pra mim é manter a terra e o lugar onde nascemos;
ninguém briga, ninguém esculhamba ninguém, temos o que comer, temos
os nossos remédios. Se nos oferecerem trabalho, a minha ideia, que

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
2011, porém, parte das empresas privadas deixou o Consórcio, sendo substituídas por estatais e
fundos de pensão. Atualmente, a Norte Energia é composta por Eletrobrás, Chesf, Eletronorte,
Petros, Funcef, Caiza FIP Cevix, Cemig, Light, Neoenergia S.A, Vale Sinobras e J. Malucelli Energia
(estas últimas com participação de 1,00% e 0,25% respectivamente). Andrade Gutierrez, Camargo
Corrêa, Odebrechet, Queiroz Galvão, OAS, Contern, Galvão, Serveng, JJ. Malucelli e Cetenco
formaram o Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), responsável pelas obras orçadas em mais de
R$ 25 bilhões”. (GLASS, Verena. PAC 2: acelerando a tristeza na Amazônia, p. 141.
128
GLASS, Verena. PAC 2: acelerando a tristeza na Amazônia, p. 140.
79  
 

acredito ser a de todos, é que vamos ficar na floresta. Aqui estão todos
129
livres.
Também para o guerreiro povo Munduruku, vítimas da corrida do ouro e ex-
soldados da borracha, a construção de Belo Monte representa a negação de sua
existência física e espiritual:
Hoje o Munduruku está mostrando a cara. Porque o governo entrou em
conflito com a população indígena Munduruku. E a população Munduruku
não vai ficar de braços cruzados dizendo que não aconteceu nada. Então
temos que mostrar para o povo, para a sociedade que governo brasileiro
não está fazendo uma coisa certa pra sociedade. Temos que sensibilizar a
sociedade também. Refletir tudo que estamos passando aqui. Porque essa
luta não é só nossa, essa luta não é do Munduruku nem do Kayapó, é de
toda nação, indígenas e brasileiros. Porque o governo tá com outra
intenção, esse progresso que ele tanto fala não tem planejamento. O
governo tá sempre apressado numa coisa que não favorece a sociedade.
130
Só favorece a eles e os que comem na sua panela.

Vocês inventam que nós somos violentos e que nós queremos guerra.
Quem mata nossos parentes? Quantos brancos morreram e quantos
indígenas morreram? Quem nos mata são vocês, rápido ou aos poucos.
Nós estamos morrendo e cada barragem mata mais. E quando tentamos
falar com vocês trazem tanques, helicópteros, soldados, metralhadoras e
131
armas de choque.
Mas não só em nível nacional o capitalismo se articula. Em uma sistemática
sem fronteiras, no seu desenvolvimento desigual e combinado, Argentina, Brasil,
Bolívia, Chile, Equador, Paraguai, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e
Uruguai se juntaram sob a batuta da ordem econômica internacional para
elaborarem uma gigantesca iniciativa de Integração de Infra Estrutura Regional Sul-
Americana (IIRSA). O objetivo não poderia ser outro que não o lucro a curto prazo. A
intenção, ampliar a exportação de commodities através de aumento considerável da
exploração de recursos naturais. Em uma imposição do efêmero, busca-se no menor
espaço de tempo o maior lucro possível, atropelando direitos humanos e ambientais.
Serão construídas hidrelétricas, linhas de transmissão, portos, aeroportos, rodovias,
hidrovias, pontes, gasodutos e ferrovias, tudo isso para garantir o “direito” de ir vir
das mercadorias. Ainda hoje se repete o discurso ideológico do vazio populacional
conjugado com o atraso econômico para justificar o repasse de grandes áreas ricas
em recursos naturais para as mãos de grandes empreendedores privados.
(...). Mudou o tamanho da economia e o tamanho dos problemas, mas a
natureza das questões é a mesma. E a pergunta fundamental continua
armada pelo mesmo desafio – como resgatar a parcela da humanidade que
habita suas fronteiras. Em sua expressão elementar, todavia vital e
                                                                                                                       
129
GLASS, Verena. PAC 2: acelerando a tristeza na Amazônia, p. 134.
130
MUNDURUKU. apud FAGGIANO, Daniel. Manifestações Munduruku: primeiras hipóteses, p. 121.
131
Carta do povo Munduruku distribuída durante a ocupação do canteiro central de Belo Monte, no
dia 02 de maio de 2013.
80  
 

incontornável, o resgate se resume simplesmente a safar do barbarismo da


fome. No mundo reluzente do capital, o emprego da palavra fome tornou-se
manifestação de mau gosto e o generalizado conservantismo bem-pensante
prefere tratar de mistérios e angústias metafísicas, ou se entregar à
lapidação da perversidade do pragmatismo de ponta. Em sua expressão
mais elevada, o universal pela desobstrução dos caminhos que permitem,
ideal e praticamente, retomar a construção da liberdade, ou seja, de nós
132
mesmos.
Mas porque, passados mais de 500 anos, o índio continua sendo tratado
como um estrangeiro em terras brasileiras? Não é sua língua, seu traje ou seus
deuses que incomoda ao nacional. Ao contrário, esses tópicos, ainda despertam o
interesse de muitos antropólogos preocupados com o folclórico. O colorido, a
música, a pintura são constantemente registrados pela etnologia do exótico.
A diferença fundamental do indígena, que realmente irrita ao nacional, é a
forma de ser do índio, ou seja, é sua forma de trabalhar a natureza, a sociedade e o
sobrenatural. O que torna o indígena um estrangeiro é seu modo de trabalho, de
exteriorizar a vida. O que realmente agride ao nacional é a forma do índio se
relacionar e trabalhar a terra. “A sua maneira de trabalhar a terra e o trabalho, a sua
maneira de produzir e reproduzir a sua vida, material e espiritualmente, é isto que
leva o ‘nacional’ a classificar o índio como ‘índio’, ‘silvícola’, no sentido de diferente,
esquisito, exótico, estranho, estrangeiro.”133
Quanto ao empresário, representante dos valores capitalistas, este é
conacional. “Não fala a mesma língua, possui outros trajes, tem outros hábitos, mas
tem a mesma noção do que é a terra, a propriedade privada, o trabalho produtivo, a
acumulação, etc.”134 Estes que vêm de fora recebem carinhosamente de nosso
governo as terras que antes eram dos de aqui. Pouco a pouco ou de repente, o
estrangeiro passa a dominar física e ideologicamente nossa região Amazônica. A
terra não pertence mais àqueles que sempre a cultivaram, mas agora, àqueles que
nela podem lucrar.
E o indígena somente é considerado “integrado”, “civilizado”, “brasileiro”,
“cidadão” quando abandona seu modo de vida, seu modo de luta, sua cultura, ou
seja, o indígena somente será reconhecido como nacional quando abandonar seu
modo de ser. O índio integrado é aquele que é destituído de seu modo de vida,
aquele que desterrado em sua terra passa a vender sua força de trabalho. O

                                                                                                                       
132
CHASIN, José. A Sucessão na crise e a crise na esquerda, pp. 212-213.
133
IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura, p. 221.
134
Ibidem, p. 221.
81  
 

indígena integrado não somente compra mercadorias, mas vende-se a si mesmo


como uma.
82  
 

CAPÍTULO III

Senhoras e Senhores de seu Trabalho


83  
 

ALDEIA  DE  IPAVU135  

   

                                                                                                                       
135
Fotografias da Aldeia Kamaiurá de Ipavu, por Daniel Lopes Faggiano, julho/agosto de 2013.
84  
 

 
85  
 
86  
 

* Takumã Kamaiurá, Carmen


Junqueira e Chico Kamaiurá, sinceros
amigos da Aldeia de Ipavu.  
87  
 

3.1. Os Índios de Ipavu

Pouco se sabe da história antiga do povo Kamaiurá,136 suas origens


permanecem desconhecidas. Carecemos não apenas de pesquisas arqueológicas,
registros antropológicos e estudos migratórios das populações indígenas no Brasil,
mas também de uma intelectualidade verdadeiramente brasileira, que trabalhe pelo,
com e para o povo brasileiro. No dia em que deixarmos de administrar o Brasil para
os outros e assumirmos nossa história, teremos em nossas mãos todas as
ferramentas que necessitamos para edificar um novo Brasil. Enquanto a realidade
indígena continuar marginalizada, cresceremos inconscientes de quem somos e
facilmente ludibriados pela falsa história “oficial”. Essa tarefa de descobrir quem
somos é crucial no amadurecimento da população brasileira, certos de que para
transformar, é preciso, primeiro, entender.
Contamos com poucas informações sobre o passado do povo Kamaiurá. Na
tentativa de ilustrar sua formação e movimentação social, recorrerei ao registro oral
dos mais velhos, os quais, intimamente conectados com seus antepassados podem
nos dar a dimensão histórica do povo Kamaiurá. Utilizarei como referencia central o
relato do pajé Takumã coletado pela linguista Lucy Seki.137
Havia um tempo antigo quando se chamavam Jamyrá e viviam junto com os
Tapirapé. De lá, acossados por ataques de índios bravos e afugentados pelo avanço
violento de expedições brancas, fugiram através do rio Auaiá Missu atingindo o rio
Xingu.
Subindo o rio Xingu por etapas, embrenhando-se em território dos temidos
Suyá, sofrendo constantes ataques destes e também, dos Juruna, os Kamaiurá,
passando por Morená,138 encontraram-se com os Waurá, que os convidaram para se
juntar a eles.
Juntos partiram para um lugar chamado Jamutukuri, onde se instalaram.
Pouco tempo depois, os Waurá deixaram os Kamaiurá e migraram para o Batovi.
Nessa época vivam junto com os Kamaiurá mais quatro subgrupos,139 com os
quais realizavam trocas matrimoniais. Do Jumutukuri, partiram juntos para o outro
lado da lagoa de Ipavu, assentando quatro aldeias nesse novo local, essas mesmas
                                                                                                                       
136
O povo Kamaiurá, pertencente à família Tupi-Guarani (tronco Tupi).
137
SEKI, Lucy. O que habitava a boca dos nossos ancestrais, pp. 48-50.
138
Os Kamaiurá passaram a se denominar Apyap desde sua passagem por Morená.
139
Kara’ia’ip, Ka’atyp, Arupatsi e Mangatyp.
88  
 

aldeias foram encontradas em 1887 pela expedição etnográfica organizada por Karl
Von den Steinen.140
Ficava mais próxima da bela laguna dos kamayurá. Da praça, avistava-se
um lindo panorama: passando por sobre um juncal vicejante, o olhar se
141
estendia até à água azul iluminada pelos raios solares.
Dizimados por uma forte epidemia de gripe, as quatros aldeias foram
reduzidas a uma única aldeia (Jawaratymap), onde se aglutinaram os sobreviventes.
Sucessivos ataques dos Suyá e dos Juruna dispersam os Kamaiurá em três
territórios denominados Jawyrypywana Kwat,142 Aimakauku e Tuatuari.
Em 1947, quando o indigenista Orlando Villas Bôas conheceu pela primeira
vez a aldeia Kamaiurá, esta estava localizada a cerca de um quilômetro da lagoa de
Ipavu.143 Em 1968, quando Carmen Junqueira os visitou pela primeira vez, os
Kamaiurá já haviam iniciado a construção de uma nova aldeia a quinhentos metros
da lagoa de Ipavu (mudaram em 1971).144 Em 2013, em minha primeira visita, a
aldeia localizava-se a cerca de duzentos metros da lagoa de Ipavu.145
A seguir, podemos observar o Mapa Kamaiurá (segundo os Kamaiurá)
indicando a rota seguida pelo grupo em sua vinda para o Alto Xingu:

                                                                                                                       
140
Do ponto de vista cientifico, a região do Alto Xingu foi visitada pela primeira vez em 1884, pelo
etnógrafo alemão, Karl Von den Steinen (Índios do Brasil Central, 1940). “Von den Steinen, que
entrou em contato com os alto-xinguanos em fins do século passado, ao mesmo tempo que relata a
trama de relações intertribais pacíficas e cooperativas, registra o clima de tensão existente em alguns
grupos, decorrente de incursões guerreiras realizadas principalmente pelos suyá, trumai e kamaiurá.”
(JUNQUEIRA, Carmen. Os Índios de Ipavu: um estudo sobre a vida do grupo Kamaiurá, p. 13).
141
DEN STEINEN, Karl Von. Entre os Aborígenes do Brasil Central, p. 148.
142
Nome Kamaiurá do atual Posto Indígena Leonardo que significa “Toca das Ariranhas”.
143
A lagoa de Ipavu localiza-se cerca de nove quilômetros do rio Kuluene e a doze do rio Tuatuari.
144
Em 1971, viviam perto da lagoa de Ipavu, em sete casas, perfazendo um total de 131 pessoas.
(JUNQUEIRA, Carmen. Os Índios de Ipavu: um estudo sobre a vida do grupo Kamaiurá, p. 13).
145
Atualmente, além desta, existem duas outras aldeias Kamaiurá. Segundo a pesquisadora Vaneska
Taciana Vitti em estudo realizado em julho de 2013, a aldeia de Morená possui 10 casas com 67
habitantes, enquanto a aldeia de Jacaré possui 02 casas com 21 habitantes.
89  
 

MAPA 4. Mapa Kamaiurá.

Fonte: SEKI, Lucy. Gramática do Kamaiurá: língua Tupi-Guarani do Alto Xingu, p. 50.
Atualmente (2013) os Kamaiurá da lagoa Ipavu têm uma população de 351
habitantes divididos em 22 casas. Dispostas ao redor de um pátio circular, elas
circunscrevem o centro da aldeia onde está localizada a Casa das Flautas -   Tapyyj
(espaço destinado tradicionalmente ao encontro e diálogo dos homens). As casas,
medindo entre 20 e 15 metros de comprimento, abrigam uma família extensa; no seu
interior, as redes de dormir, antes feitas de fibra de buriti e algodão, hoje
90  
 

manufaturadas, são armadas em leque, a partir dos dois esteios centrais para os
lados.
A lagoa de Ipavu está situada no Alto do rio Xingu, região dos formadores do
rio Xingu,146 zona de transição entre cerrado dominante na parte sul, e floresta
tropical amazônica, ao norte, com matas ciliares, rios e lagoas. O relevo é
majoritariamente plano com duas estações bem definidas, a chuva (inverno –
outubro/março) e a seca (verão – abril/setembro). Nessa região, os Kamaiurá
mantêm uma constante relação intertribal com nove outros povos:
a) Ywalapiti, Waurá e Mehinako (família Aruak)
b) Kuikuro, Kalapalo, Matypu e Nahukwa (família Karib)
c) Aweti (tronco Tupi)
d) Trumai (tronco Tupi)
Não temos informações suficientes para determinar as raízes desses contatos
intertribais, os quais, apesar das diferenças linguísticas, forjaram no Alto Xingu uma
“uniformidade cultural” muito semelhante entre os povos que ali residem. Uma
uniformidade não apenas ergológica, mas também mitológica e social, formando um
complexo sistema de parentesco. Eduardo Galvão denominou a área cultural do Alto
Xingu como “área do uluri” em referência a uma pequena peça da indumentária
feminina presente exclusivamente nos povos do Alto Xingu.
Conforme destacamos em nossos estudos iniciais sobre o conceito de cultura,
não podemos jamais circunscrever e isolar determinada cultura. Devemos, ao
contrário, alargar suas fronteiras, borrar seus limites e ampliar sua história em
contexto. Ou seja, a região do Alto Xingu, deve ser compreendida como um sistema
aberto, composto por diversos sistemas culturais em contínua relação entre si. Ao
mesmo tempo em que esta interação grupal proporciona uma difusão cultural e sua
consequente uniformidade, estimula a permanência de elementos distintivos de
caráter indentitário e exclusivos.
Cada povo, sempre que possível, destaca as qualidades intrínsecas ao seu
grupo, valorizando sua particularidade grupal e assim distanciando-se dos demais
povos vizinhos. Um exemplo disso é a especialização tecnológica que encontramos
nessa região, mas não apenas, os índios alto xinguanos sempre que possível

                                                                                                                       
146
A bacia dos formadores do rio Xingu localiza-se na região centro-oeste brasileira, entre os
paralelos 11 e 13 e os meridianos 52 e 55 W.G.
91  
 

procuram exaltar as características de seu povo. Cada grupo procurar destacar a


fartura de suas festas, o vigor físico de seus lutadores e a sabedoria de seu povo.
Apesar de unidos por vínculos estreitos e, mais ainda, participando de uma
cultura relativamente similar, os alto-xinguanos não permitem que pairem
dúvidas no tocante à sua identificação tribal. Fazem empenho em divulgar a
ausência de predicados de seus vizinhos e em apontar seus defeitos mais
característicos: “briguentos”, “moles”, “fracos”, “preguiçosos”, “avarentos”,
“gatunos”, etc. Reservam para si qualificativos elogiosos e justificam sua
situação privilegiada como obra de heróis civilizadores.

As ideias e o comportamento dos índios sobre essa realidade social são,


assim, expressas de modo ritual, através de várias formas culturais que, à
primeira vista, parecem ser mutuamente exclusivas. Em algumas situações
exibem sua interdependência; em outras, reafirmam a solidariedade ou
hostilidade que permeiam suas relações. Essas manifestações, quando
estudadas em conjunto demonstram o equilíbrio do relacionamento entre as
147
aldeias e nada mais são que uma idealização da realidade social.
As especializações tecnológicas, além de proporcionarem uma integração dos
distintos povos, através da troca, também agem como fator distintivo desses grupos.
As especializações manufatureiras podem ser classificadas da seguinte maneira:
Waurá (cerâmica); Kuikuro (colar de placa de caramujo); Kamaiurá (arco preto);
Kalapalo (cinto de disco de caramujo). Enquanto alguns grupos se destacam como
produtores especializados, outros desenvolveram a atividade de intermediários de
troca.
Dessa forma, a especialização técnica favorecia ao ajustamento intertribal
e, ao mesmo tempo, bloqueava as possibilidades de mudanças em outras
direções. Em outras palavras, contatos regulares favoreceram a difusão de
várias técnicas, mas alguns outros artesanatos ou serviços e bem
adaptados ao ambiente alto-xinguano. Para eles a mudança poderia ser
desvantajosa desde que o meio físico e cultural permanecesse sem
alteração significativa. Ilustra a explicação o exemplo dos kamaiurá, exímios
na produção de arco. Esta especialização permitia-lhes manter vínculos
econômicos com outros grupos e assegurava-lhes lugar definido no
148
conjunto das relações intertribais.
Repare que a relação de troca não está destacada das demais relações
sociais. Ou seja, as decisões individuais são permeadas por valores e hierarquias
sociais. Sobre este tema temos o excelente estudo do antropólogo Karl Polayni em
sua obra: A Grande Transformação (1944).
O que Polanyi descobre é que, nas sociedades antigas, a economia é
submetida a um projecto político unificado e não às decisões individuais e
diversas dos empresários. Descobre que, numa sociedade estatutária, o
movimento das riquezas é subordinado às estruturas hierárquicas e à sua
renovação, que estas constituem os canais segundo os quais os bens
devem ser escoados a fim de que a sua circulação não perturbe as relações
sociais estabelecidas mas pelo contrário as reforcem. A economia, por esta
razão, parece-lhe integrada no tecido social, e não, como na sociedade de
                                                                                                                       
147
JUNQUEIRA, Carmen. Os Índios de Ipavu: um estudo sobre a vida do grupo Kamaiurá, p. 28.
148
Ibidem, p. 25.
92  
 

mercado, surgir daquele para ocupar um domínio que lhe seria próprio e
149
submetido às suas próprias leis.
O Alto Xingu situa-se na área que, em parte, foi incluída no território do
Parque Indígena do Xingu.150 O Parque, além de assegurar a posse da terra, busca
assegurar a sobrevivência dos povos indígenas que nele habitam ou a ele foram
transferidos. O Parque contem dois Postos Indígenas; o Posto Leonardo Villas Boas
(assiste aos Kalapalo, Kuikuro, Nahukwá, Matipuhy, Waurá, Mehinako, Iawalapiti,
Kamaiurá, e Aweti) e o Posto Diawarum (assiste aos Trumai, Suyá, Cayabi, Juruna).
O Posto Indígena dedica-se centralmente na preservação do bem estar físico
do índio. Conta com programas médicos de combate de epidemias, de vacinação e
acompanhamento preventivo, mas não só, também desenvolve atividades que visam
o aumento nutricional dos recursos alimentares.
Mas, garantir a sobrevivência dos índios não é apenas zelar por sua saúde
física. Da mesma forma que o alto xinguano foi atingido pelas doenças
transmitidas pelo civilizado, também o foi – por instrumentos de metal,
armas de fogo, machados, enxadas, etc., seja pela troca, saque, ou ainda,
ganhos como presente do civilizado, firmaram-se dentro do contexto cultural
nativo e hoje fazem parte de seu instrumental de trabalho. Estabelecido
esse novo tipo de necessidades que não podem ser satisfeitas pelos
próprios recursos técnicos do índio, cabe ao Posto a tarefa de repor,
regularmente, em todos os grupos, o equipamento de metal de que
necessitam. Ao lado dos objetos de ferro essenciais à produção indígena,
outros artigos também alcançaram as populações alto xinguanas e são hoje
fornecidas pelo Posto: miçangas de porcelana, linhas de náilon para pesca,
anzóis, corantes químicos para tingimento do fio de algodão, laminas de
151
barbear, etc.
Assim, boa parte dos instrumentos de trabalho indígenas, foi substituída por
mercadorias tecnologicamente superiores, as quais possibilitavam ao índio um maior
rendimento de seu trabalho. À medida que as relações econômicas entre índio e
Posto são estreitadas, isto é, à medida que o índio passa a depender mais do
fornecimento de artigos civilizados, diminui a importância econômica das relações
entre os diversos grupos alto xinguanos.152
O caso dos kamaiurá (...) não escapou para se manter, tornou-se
dependente do fornecimento de bens realizado por uma agência externa. E

                                                                                                                       
149
MEILLASSOUX, Claude. Mulheres, Celeiros & Capitais, pp. 17-18.
150
“Instala-se uma nova ordem no Brasil Central. Grupos agressivos são neutralizados, hostilidades
intertribais são contidas. Metal, nylon, corantes deixam de ser bens escassos. Chegam os remédios,
os médicos e a possibilidade de novo equilíbrio demográfico. Os índios fazem seu ingresso na
História do homem civilizado. Reproduzem suas condições de existência, submetidos a uma política
protecionista que lhes assegura a relativa tranquilidade de uma vida de reserva, de uma vida sob
tutela.” (JUNQUEIRA, Carmen. Os Índios de Ipavu: um estudo sobre a vida do grupo Kamaiurá, pp.
29-30)
151
JUNQUEIRA, Carmen. Os Kamaiurá e o Parque Nacional do Xingu, p. 32.
152
JUNQUEIRA, Carmen. Os Kamaiurá e o Parque Nacional do Xingu, p. 75.
93  
 

o poder, outrora distribuído entre líderes nativos, centralizou-se,


153
deslocando-se para fora dos limites do grupo.

Ser colonizado para uma sociedade significa simplesmente que da noite


para o dia sua soberania é anulada e usurpada por outros, neste caso o
154
Estado colonial.
Novos hábitos são difundidos. Inicialmente chegaram o açúcar e o metal. O
doce da cana e a facilidade do trabalho com o metal seduz rapidamente o povo
Kamaiurá, o qual se apropria de seu valor de uso. Sabemos que uma mercadoria é
uma unidade que sintetiza valor de uso e valor de troca, ou seja, sua dimensão de
valor de uso está intimamente ligada à sua capacidade de venda (valor de troca).
Portanto, o acesso às mercadorias vem atrelado a diversas mediações mercantis,
uma delas a imposição do valor de troca sobre o valor de uso, assim, uma
mercadoria jamais é neutra, ela carrega consigo os valores do modo de produção a
qual foi submetida. Inicialmente, esses valores podem passar despercebidos, mas à
medida que a mercadoria expande seu mercado na aldeia, também seus valores
tendem a ser valores dominantes. Essa e não outra a finalidade essencial do capital,
“expandir constantemente o valor de troca, ao qual todos os demais – desde as mais
básicas e mais íntimas necessidades dos indivíduos até as mais variadas atividades
de produção, materiais e culturais, – devem estar estritamente subordinados”.155
A antropóloga Carmen Junqueira, acredita ainda, na resistência da cultura
Kamaiurá frente à expansão desestruturante do capital. Produzem ainda, os
mesmos objetos, mesmo que sob o uso de novas tecnologias.
Apesar de todas essas consequências, talvez não previstas pela política do
Parque, pode-se constatar que esse processo de mudança não teve, até o
momento, efeitos desintegrativos. O mesmo acontece com as mudanças
estruturais, advindas do deslocamento do foco do poder, que não acarretam
desorganização do grupo atingido. Deve-se isso ao fato de as relações de
produção, que servem de base à formação econômico-social kamaiurá,
terem sido preservadas, ainda que a estrutura econômica como um todo só
pudesse se manter através dos vínculos de subordinação à sociedades
156
nacional.

Se o capital não consegue apropriar-se dos meios de produção ou do


trabalho, acaba dominando através do mercado capitalista, o que é
suficiente para reforçar as condições de controle e submissão dessas
relações de produção não-capitalistas, bem como de suas respectivas
categorias sociais, aos interesses maiores do capital (sua própria
reprodução ampliada). É assim que o capital não só domina essas relações

                                                                                                                       
153
JUNQUEIRA, Carmen. Os Índios de Ipavu: um estudo sobre a vida do grupo Kamaiurá, p. 21.
154
GODELIER, Maurice. Comunidade, sociedade, cultura: três modos de compreender as identidades
em conflito, p. 55.
155
MÉSZÁROS, István. Para além do capital, p. 14.
156
JUNQUEIRA, Carmen. Os Índios de Ipavu: um estudo sobre a vida do grupo Kamaiurá. 2ª ed. São
Paulo: Ática, 1978, p. 21.
94  
 

de produção, como acaba enquadrando estas categorias sociais na


157
estrutura social da sociedade capitalista.
No decorrer do processo histórico, os Kamaiurá vão sendo mais e mais
dominados pelo capital, submetendo assim todo um povo aos interesses da classe
dominante. No entanto, o capitalismo não se desenvolve igualmente nas diferentes
partes do globo, mas sim de acordo com as particularidades históricas de cada
lugar. Dominados, mas ainda não organizados pelo capital, os Kamaiurá vivem o
drama da afirmação tradicional frente à opressão universal. Como pode o Kamaiurá
continuar sendo Kamaiurá?
Particularmente na última década, o povo Kamaiurá vem presenciando
profundas transformações em sua cultura, em seu modo de ser, materialmente e
subjetivamente. Para compreender melhor as mudanças provocadas pelo contato
capitalista, iremos inicialmente estudar o modo de produção dominante
tradicionalmente entre os Kamaiurá, para depois, sob a nova dinâmica capitalista,
entender o rearranjo Kamaiurá e seus desdobramentos.
Esse modo de produção não deve ser considerado meramente sob o
aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é, muito
mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada de
exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal
como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que são
coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também
com modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das
158
condições materiais de sua produção.

O fato é, portanto, o seguinte: indivíduos determinados, que são ativos na


produção de determinada maneira, contraem entre si estas relações sociais
e políticas determinadas. A observação empírica tem de provar, em cada
caso particular, empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou
especulação, a conexão entre a estrutura social e política e a produção
159
[...].
O trabalho como exteriorização da vida e atividade humana sensível, segundo
a posição marxiana, apreendido como condição de existência do homem,
independente de quaisquer formas de sociedade, eterna necessidade natural de
mediação do sociometabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida humana, é
a condição necessária da produção em geral.160 Desta feita, as perguntas que se
colocam nesta particularidade que adentra por uma singularidade que não é isolada

                                                                                                                       
157
IANNI, Octavio. Origens Agrárias do Estado brasileiro.
158
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 87.
159
Ibidem, p. 93.
160
“Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de
existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de
mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida humana.” (MARX, Karl. O
capital. Crítica da economia política, p. 50).
95  
 

de seu momento genérico é: Como trabalham os Kamaiurá? De que modo


exteriorizam sua vida? Quais as relações de trabalho? Quais forças ordenam e
determinam a organização do trabalho? Qual seu modo de produção? Qual seu
modo de vida?

3.2. A Organização do Trabalho

Para Marx, o trabalho é o princípio originário161 do desenvolvimento humano,


ou seja, é no trabalho que reside a atividade central das relações humanas. O
homem, ao trabalhar, modifica a natureza, e ao modificar a natureza modifica a si
mesmo. Essa contínua realização de posições teleológicas na objetividade mundana
insere o homem em seu devir histórico.
Cuidando para não interpretar o pensamento de Lukács como uma simples
extensão do pensamento de Marx, encontramos no primeiro, apesar de suas
particularidades, uma rica fonte de estudo do pensamento marxiano. Lukács, através
da recuperação da teleologia hegeliana, à partir da obra de Marx, analisa o
desenvolvimento da história humana.
Considerando que nos ocupamos do complexo concreto da socialidade
como forma de ser, poder-se-ia legitimamente perguntar por que, ao tratar
desse complexo, colocamos o acento exatamente no trabalho e lhe
atribuímos um lugar tão privilegiado no processo e no salto da gênese do
ser social. A resposta, em termos ontológicos, é mais simples do que possa
parecer à primeira vista: todas as outras categorias dessa forma de ser têm
já, em essência, um caráter puramente social; suas propriedades e seus
modos de operar somente se desdobram no ser social já constituído;
quaisquer manifestações delas, ainda que sejam muito primitivas,
pressupõem o salto como já acontecido. Somente o trabalho tem, como sua
essência ontológica, um claro caráter de transição: ele é, essencialmente,
uma inter-relação entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgânica
(ferramenta, matéria-prima, objeto de trabalho etc.) como orgânica, inter-
relação que pode figurar em pontos determinados da cadeia a que nos
referimos, mas antes de tudo assinala a transição, no homem que trabalha,
162
do ser meramente biológico ao ser social.
Todo trabalho, constituindo modelo163 da práxis social, é uma decisão entre
alternativas em dada concretude objetiva. Eis o motivo de Lukács pontuar, sobre a
temática, que “o trabalho, enquanto base dinâmico-estruturante de um novo tipo de

                                                                                                                       
161
“[...] a sociabilidade, a primeira divisão do trabalho, a linguagem etc. surgem do trabalho, mas não
numa sucessão temporal claramente identificável, e sim, quanto à sua essência, simultaneamente.”
(LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social, 2, p. 44).
162
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social, 2, pp. 43-44.
163
“O ser social – e a sociabilidade resultante elementarmente do trabalho, que constituirá o modelo
de práxis – é um processo, movimento que se dinamiza por contradições, cuja superação o conduz a
patamares de crescente complexidade, nos quais novas contradições impulsionam a outras
superações.” (NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx, p. 31).
96  
 

ser”,164 também “é um ato de pôr consciência e, portanto, pressupõe um


conhecimento concreto, ainda que jamais perfeito, de finalidades e meios
determinados”. 165
Ao possibilitar o caminho do ser puramente biológico para o ser social através
do trabalho, que sempre exige prévia ideação consciente para sua eficaz
exteriorização, o homem surge articuladamente com a sociedade humana.
Sociedade e indivíduo são, assim, apenas expressão plural e singular de um mesmo
ser.166 No entanto, sob a dominação do capital, a organização do trabalho se
encontra estranhada na raiz de seu modo de produção. À medida que este trabalho
estranhado degrada o próprio homem, a consciência que este possui, se
desenvolve, em consequência estranhadamente.
Assim, “a consciência que o homem tem do próprio gênero se transforma por
meio do estranhamento de tal maneira que a vida genérica se transforma para ele
em meio”.167 Ou seja, a sociedade se transforma em mero meio para a
sobrevivência individual, ao invés de reproduzir-se enquanto campo de interatividade
social para o desenvolvimento de seres livres e conscientes.
Uma vez que o trabalho alienado 1) aliena a natureza do homem, 2) aliena
o homem de si mesmo, a sua função activa, a sua actividade vital, aliena
igualmente o homem a respeito da espécie; transforma a vida genérica em
meio da vida individual. Em primeiro lugar, aliena a vida genérica e a vida
individual; em seguida, muda esta última na sua abstração em objectivo da
168
primeira, portanto, na sua forma abstracta e alienada.

Assim, o seu modo próprio de ser homem parece somente como um meio
de se manter enquanto indivíduo abstrato. A vida individual apartada da
generidade se volta para si mesma enquanto sobrevivência física imediata e
toda produção humana tem apenas o objetivo de manter o homem físico
individual vivo. A autêntica essência humana se transforma assim em meio
da existência individual abstrata. A individualidade separada do gênero é
uma abstração porque transforma em meio a essência última do homem e
169
em fim os meios de sobrevivência.
Desse modo, a tarefa de uma ontologia materialista consiste em descobrir
historicamente a gênese, o crescimento e as contradições dentro desse
desenvolvimento processual unitário, entre o homem como produtor de si (como ser
individual) e, ao mesmo tempo, como produtor da sociedade (como ser genérico).

                                                                                                                       
164
LUKÁCS, György. O jovem Marx e outros escritos de filosofia, p. 228.
165
Ibidem, p. 233.
166
MARX, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos.
167
MARX, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos, p. 85.
168
MARX, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos, p. 164.
169
COSTA, Mônica Hallak M. da. A exteriorização da vida nos manuscritos econômico-filosóficos de
1844, p. 180.
97  
 

Portanto, no caso especifico Kamaiurá, nos debruçaremos a seguir; primeiro


sobre o modo de produção, em seu determinado modo de exteriorização vital, para
depois aprofundarmos nas contradições geradas pela proliferação capitalista no
interior da aldeia de Ipavu.

3.3. Modo de Produção Ordenado segundo o Parentesco

Lévi-Strauss, em seu estudo sobre as estruturas elementares do


parentesco,170 equivocadamente naturaliza a proibição do incesto. Longe de ser uma
lei universal, a proibição do incesto, nada mais é do que uma proibição social
transvestida de proibição sexual.
Por outras palavras, o incesto é uma noção moral produzida por uma
ideologia ligada à elaboração do poder nas sociedades domésticas como
um dos meios de domínio dos mecanismos da reprodução, e não uma
proscrição inata que seria nesse caso a única da sua espécie: o que é
apresentado como pecado contra a natureza é na verdade senão pecado
171
contra a autoridade.
O parentesco, portanto, não é uma natural regulamentação biológica, mas, ao
contrário, é uma construção social ideologicamente atrelada à determinada
organização do trabalho.
Esse sistema de parentesco bilateral, com tendência a acentuar de fato a
residência patrilocal, corresponde às necessidades impostas pelas técnicas
de aproveitamento do meio, que forçam à cooperação nas atividades de
produção. Dá, outrossim, estrutura e coesão ao grupo economicamente
significativo, à família extensa, e satisfaz ao ajustamento do indivíduo no
grupo social, permitindo-lhe escolha de associação e garantindo-lhe apoio
172
econômico ou social.
A forma básica de organização familiar Kamaiurá é o agrupamento em
famílias extensas, cada uma delas ocupando uma das grandes casas ovaladas
dispostas ao redor do pátio central da aldeia. As famílias extensas funcionam,
relativamente, como esferas autônomas de produção dos meios de subsistência.
Apesar de possuírem certa autonomia, as famílias extensas se relacionam
constantemente numa cooperação mais ampla e necessária para o aumento da
riqueza genericamente produzida, seja na vida econômica, religiosa ou social. Um
exemplo disso, segundo o antropólogo Eduardo Galvão, é o fato dos líderes de
famílias extensas se corresponderem pelo termo “irmão”. É evidente que os líderes

                                                                                                                       
170
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco.
171
MEILLASSOUX, Claude. Mulheres, Celeiros & Capitais, p. 28.
172
GALVÃO, Eduardo. Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil, p. 111.
98  
 

de família extensa sabem da especificidade biológica do termo “irmão”, mas no caso


transformam socialmente a natureza na busca de ampliar os laços de colaboração.
Parentesco pode então ser entendido como um meio de comprometer o
labor social com a transformação da natureza mediante apelos à filiação e
ao casamento e à consanguinidade e afinidade. Dito de maneira mais
simples, pelo parentesco o labor social é “trancado” ou “incrustado” em
determinadas relações entre as pessoas. Ele só pode ser mobilizado pelo
acesso às pessoas, e tal acesso é definido simbolicamente. O que é feito
destranca o labor social; a maneira como é feito envolve definições
simbólicas sobre parentes e afins. O parentesco envolve, portanto (a)
elaborações simbólicas (“filiação/casamento; consanguinidade/afinidade”)
que (b) colocam continuamente atores, nascidos e recrutados, (c) em
relações sociais uns com os outros. Essas relações sociais (d) permitem
que as pessoas, de maneiras variadas, solicitem compartilhar do labor
social desempenhado por cada uma delas, a fim de (e) efetuar as
173
necessárias transformações da natureza.
Vejamos que estas relações sociais estão intimamente relacionadas às
relações de produção e reprodução Kamaiurá. É nessa mútua relação entre o modo
de produção e o modo de vida que se perfaz a história do povo Kamaiurá. Nessa
linha, denominaremos o modo de produção Kamaiurá como modo de produção
ordenado segundo o parentesco.
A “abrangência” do parentesco, portanto, não é a mesma do parentesco no
nível da filiação e do casamento; ela se preocupa com a alocação legal dos
direitos e reivindicações, e, em consequência, com as relações políticas
entre as pessoas. No nível da filiação e do casamento, o parentesco
estabelece ligações individualizadas entre os que compartilham o labor
social; já o parentesco extenso organiza o labor social em organizações
comuns de trabalho e estabelece controles sobre a transferência do
174
trabalho de uma dessas organizações para outra.
Essa ordenação segundo o parentesco, não apenas distribui a força de
trabalho Kamaiurá, mas inclui ou exclui pessoas que podem reivindicar direitos e
posições privilegiadas na vinculação social do trabalho.175 Ou seja, o parentesco,
mais do que uma regra de acasalamento, é uma regra de filiação.

                                                                                                                       
173
WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História, pp. 123-124.
174
WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História, p. 125.
175
“[...] Esses mapeamentos preenchem inúmeras funções. Em primeiro lugar permitem que os
grupos reivindiquem privilégios com base no parentesco. Em segundo lugar, servem para permitir ou
negar às pessoas o acesso aos recursos estratégicos. Em terceiro lugar, organizam a troca de
pessoas entre grupos que têm um pedigree, por meio de suas definições sobre os laços de
parentesco por afinidade; o casamento, em vez de ser um relacionamento que se dá unicamente
entre a noiva e o noivo, torna-se um nexo de aliança política entre grupos. Em quarto lugar, os
mapeamentos permitem que se deleguem funções gerenciais a determinadas posições na
genealogia, distribuindo-as assim de maneira desigual no campo político e legal, quer se trate dos
mais velhos em relação aos mais jovens, das linhas dos primogênitos em relação às linhas dos
caçulas ou das linhas de hierarquia mais elevada em relação às de hierarquia mais baixa. Nesse
processo o parentesco, no nível legal-político, inclui e organiza o parentesco no nível familiar-
doméstico, tornando as relações interpessoais sujeitas a mapeamentos que servem para uma
inclusão ou exclusão categórica.” (Ibidem, p. 125).
99  
 

Essa organização tanto é social que os Kamaiurá ao se deparam com minha


chegada à aldeia de Ipavu, trataram logo de definir meu lugar dentro de seu sistema
de parentesco. Kaiti, uma das mulheres do atual cacique, passou a me tratar e
denominar de filho. E como filho, não deveria apenas denominá-la de mamãe, mas
também era dotado de direitos e deveres condizentes com minha posição social na
aldeia. Ou seja, foi através de uma regra de filiação que me conectei à comunidade.
O modo de produção ordenado segundo o parentesco, intrínseco à
organização do trabalho, também é submetido à interpretação cultural Kamaiurá, a
qual distribui ideologicamente a teia social deste povo. Ou seja, o trabalho social é
apropriado politicamente através dos laços de parentesco, ou ainda, o modo de
produção ordenado pelo parentesco constitui, também, um elemento ideológico na
alocação do poder político dentro da aldeia.
Fortes assinala duas grandes fontes de poder no modo de ordenado
segundo o parentesco: o controle sobre os poderes reprodutivos da mulher
e a ascendência. Ambos operam transgeracionalmente; ambos designam
as pessoas diferentemente para posições de poder e influencia. O primeiro
concede direitos sobre o labor social, encarnados nas mulheres, na prole e
nos parentes por afinidade; o segundo define não apenas a descendência
mas também a colateralidade, isto é, a gama genealógica de aliados
mobilizáveis. A terminologia do casamento e da filiação é usada para
transmitir informações sobre as capacidades diferenciais para mobilizar o
labor tendo em vista o trabalho e o apoio, isto é, sobre a mutável
176
distribuição do labor social entre grupos litigantes.
A primeira hierarquização do trabalho surge na oposição entre homens e
mulheres,177 na qual as relações políticas do parentesco relegam à mulher o papel
de testemunhas de alianças operadas socialmente no casamento. “O objetivo do
casamento é superar divergências e ganhar aliados, apostando no nascimento de
netos como fator de integração.”178 Depois, temos uma diferenciação geracional na
organização e divisão do trabalho, cabendo geralmente aos mais velhos o mando e
o gerenciamento dentro e fora da aldeia.
A repartição sexual das tarefas – será necessário dizê-lo? – é um facto
“cultural” e não da “natureza”. Se pode observar que se estabelece uma
divisão das tarefas, de maneira variável aliás, entre homens e mulheres –
ou pelo menos entre aqueles que respondem às definições sociais de
“homem” e de “mulher” – e que fazem da mulher (ou do escravo) a serva do
homem, esta repartição é posterior à submissão prévia da mulher e não a
distintas capacidades imaginárias. O parto e o aleitamento respeitam
apenas às mulheres capazes. Ora esta especialização natural explicaria

                                                                                                                       
176
WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História, p. 126.
177
“O casamento, além das funções de procriação e de natureza sexual, torna-se igualmente
necessário por razões econômicas, decorrentes da divisão sexual do trabalho.” (JUNQUEIRA,
Carmen. Os Índios de Ipavu: um estudo sobre a vida do grupo Kamaiurá, p. 31).
178
JUNQUEIRA, Carmen. Disputa Política na Sociedade Kamaiurá, pp. 223.
100  
 

apenas o acasalamento em função da reprodução ainda que as mulheres,


uma vez fecundadas, se bastassem a si próprias económica e socialmente.
Na verdade, nada na natureza explica a repartição sexual das tarefas, nem
instituições como a conjugalidade, o casamento ou a filiação paternal.
Todas são infligidas às mulheres pela força, todas são portanto factos
inerentes à civilização que devem ser explicados e não servir de
179
explicação.
Longe de ser uma sociedade estática, a ordenação pelo parentesco, por ser
socialmente produzida, é passível de transformações. Líderes habilidosos e capazes
de contrair casamentos e, portanto, alianças estratégicas, podem com o tempo
modificar linhagens e sucessões. Socialmente limitado, o poder não constitui
propriedade eterna de um ou outro grupo.
Os agrupamentos sociais estruturados na base do parentesco de modo
algum estão isentos da diferenciação interna e das pressões externas para
que haja uma mudança. As alocações diferenciais quanto à participação no
labor social podem favorecer a emergência de dirigentes influentes; ao
mesmo tempo, o contato com outros grupos pode conceder importância a
pessoas capacitadas para lidar com as diferenças de interesse e com os
possíveis conflitos. Essas tendências às desigualdades na função são
grandemente acentuadas quando grupos ordenados segundo o parentesco
passam a se relacionar com as sociedades tributárias ou capitalistas. Tais
relacionamentos oferecem oportunidades para a apropriação e transferência
dos excedentes, indo além daqueles que estão disponíveis no modo
ordenado segundo o parentesco. Os chefes podem então usar esses
recursos externos para imobilizar o funcionamento da ordem estruturada a
partir do parentesco. É por isso que os chefes se revelaram notórios
colaboradores dos comerciantes de pele e traficantes de escravos europeus
nos dois continentes. A conexão com os europeus proporcionava aos
chefes o acesso às armas e bens valiosos e, portanto, aos seguidores que
180
não estavam inseridos na teia de parentesco e desembaraçados dela.
Buscando aprofundar o assunto, estudaremos criticamente o poder que
compete socialmente aos líderes de famílias extensas Kamaiurá. Especificamente,
analisaremos as alternâncias quantitativas e qualitativas do poder dos líderes de
famílias advindas do contato Kamaiurá com o modo de produção capitalista da vida.
Como apresentamos acima, cada família extensa é representada por um
dono – líder familiar masculino. Um líder familiar deve ter a capacidade de organizar
o trabalho doméstico, possuindo influência direta no comportamento de seus
parentes.181 Uma vez organizado o trabalho familiar, compete ao líder da família
                                                                                                                       
179
MEILLASSOUX, Claude. Mulheres, Celeiros & Capitais, p. 42-43.
180
WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História, p. 128.
181
“O homens-capitães são poucos, e seu número, via de regra, coincide com o chefe de famílias
extensas, quatro a seis em cada aldeia. Esses indivíduos não se distinguem dos demais por qualquer
tatuagem ou distintivo especial. Apenas observamos o uso, por parte do capitão da aldeia, de uma
braçadeira feita do couro de onça preta. Suas prerrogativas são, porém, definidas: participação no
conselho diretor da aldeia, autoridade sobre os camára de seu grupo familiar, orientação ou função,
destacada na organização dos cerimoniais. Estas são, todavia, de alcance limitado. O prestigio e
autoridade de um capitão se baseiam no controle efetivo de seu grupo de parentesco imediato e em
suas qualidades pessoais de liderança e habilidade política. Os grupos xinguanos não possuem uma
101  
 

harmonizar o equilíbrio social, redistribuindo objetos internamente quando


necessário. Ter uma família grande significa ter uma ampliação da capacidade de
trabalho e, portanto, se traduz em maior prestígio e poder.
Isso, apesar dos Kamaiurá se dividirem entre os Morerekwat182 (título
hereditário transmitido de homem [morerekwat] / mulher [nuitu] aos seus
descendentes) e os Kamara (gente comum). Como já afirmamos, a relação de
parentesco é socialmente construída; as famílias, portanto, longe de serem flexíveis,
tampouco se constituem petrificadas. Cabe ao líder de família não apenas a
descendência Morerekwat, mas também atributos como generosidade, carisma e a
capacidade de atrair e coordenar parentes. “Pessoas irascíveis, temperamentais e
impulsivas têm poucas possibilidades de se tornarem líderes de muitos parentes.”183
Inexiste um posto de chefia formal que assegure por si só a liderança de uma
unidade familiar. Conforme afirmamos, o líder precisa ter inúmeras qualidades
pessoais e afastar possíveis vícios sociais, como por exemplo, o mando. O líder de
uma unidade familiar não se confunde com a figura de um comandante. As relações
são permeadas pelo conselho, pela ponderação e pelo argumento, sendo visto como
hostil e antissocial qualquer tentativa direta de mando; a nenhuma pessoa da aldeia
cabe o dever da obediência servil.
Os líderes de família, no fim de tarde, se encontram no centro da aldeia para
conversar sobre a vida e o modo de vida Kamaiurá. Fumando cigarros, conversam
sobre o cotidiano da aldeia e do Alto Xingu, planejam ações coletivas e afirmam sua
cultura e seu determinado modo de vida.184 É no dialogo do consenso entre as
lideranças que se ajusta politicamente o povo Kamaiurá.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
instituição de chefia ou autoridade fortemente centralizada. As próprias regras que determinam a
sucessão ou transmissão do status de capitão (chefes de grupos familiares e chefe da aldeia) nos
pareceram frouxas. O capitão é, na realidade, o cabeção de um grupo. (...) É um acontecimento
frequente nas aldeias xinguanas, o de os capitães pronunciarem longas exortações para a realização
de uma tarefa. Se estão de acordo, os outros capitães repetem a exortação, dirigindo-se
especificamente ao grupo que comandam. Endossam desse modo, a autoridade central. Por outro
lado, a iniciativa e a realização dessas tarefas depende de combinações e trocas de pontos de vista
realizadas com antecedência pelos diversos líderes, e, mesmo pelos camára influentes. Essas
reuniões, de caráter semiformal, muito se aproximam da ideia ou conceito de um conselho de
chefes.” (GALVÃO, Eduardo. Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil, pp. 91-92).
182
Para Ayron Rodrigues, morerekwat significa “o que faz a gente/o povo viver consigo”, apud
JUNQUEIRA, Carmen. Disputa Política na Sociedade Kamaiurá, pp. 215-233.
183
JUNQUEIRA, Carmen. Os Kamaiurá e o Parque Nacional do Xingu, p. 64.
184
“É provável que no século XIX as conversas girassem em torno de guerra, defesa e cerimonias,
hoje incorporam preocupações quanto à obtenção de dinheiro, abertura de estrada para facilitar
viagens à cidade, educação escolar e serviço de saúde.” (JUNQUEIRA, Carmen. Disputa Política na
Sociedade Kamaiurá, pp. 227).
102  
 

Uma das importantes tarefas do chefe da casa, no desempenho de seu


papel de líder econômico, é esta de coordenar o trabalho de seus parentes
para promover a produção regular de alimentos. Utiliza para isso a
autoridade de chefe, amenizada pelo tom de aconselhamento de suas falas.
E o anoitecer é a ocasião mais propicia para os seus longos discursos.
Concluído mais um dia de trabalho, os homens de maior prestígio, chefes
ou não, sentam-se em bancos ou troncos de árvores tombadas, distribuídos
pelo pátio da aldeia. É a hora de fumar. Muitos se aproximam para ouvir as
conversas. Esse é um encontro só de homens, do qual as mulheres
tradicionalmente não participam. Comentam-se os principais eventos do dia
que passou, contam-se histórias do povo Kamaiurá; planejam-se futuras
atividades. Uma constante permeia essas falas, tornando-a veículo de
reafirmação do comportamento indígena ideal: é a imagem do Kamaiurá
trabalhador e incansável. Em sua forma direta, ela aparece como atributo
integrante da personalidade dos heróis ancestrais. Indiretamente, surge
pela narração de fatos que demonstram a falta de sucesso que sofrem
aqueles privados dessas qualidades. Uma reiteração dessa imagem ideal
do homem Kamaiurá é feita em discursos, as vezes formais, e mesmo em
histórias que o chefe, de sua rede, narra aos moradores da casa, quando
185
todos já se recolheram para dormir.
Obviamente inexiste um consenso absoluto, pois muitas lideranças
apresentam diferentes pontos de vista; no entanto, as oposições são manifestadas
discretamente e nunca na presença do opositor. A disputa por maior influência
(poder) é constante na aldeia, mas os valores Kamaiurá impulsionam os pretensos
líderes a se comportarem de maneira serena e generosa como qualidades
essenciais do bom líder. Entendemos que o diálogo do consenso, longe de ser uma
graça deste povo, é um mecanismo de regulamentação política, assim como a
serenidade e a generosidade. A organização do trabalho Kamaiurá apresenta uma
dimensão ao mesmo tempo econômica e política.
Nessa íntima relação entre o indivíduo Kamaiurá e seu povo (entre prestígio e
generosidade) inexiste a exploração do homem pelo homem no trabalho. Ou seja,
não existe concentração do excedente produzido, uma vez que o modo de produção
do parentesco inclina o líder de família a redistribuir os produtos acumulados para
que possa manter seu status de líder familiar.
Não se deve, entretanto, entender a distribuição como mero mecanismo que
emerge diretamente da busca de maior prestígio. Tampouco deve essa
prática ser reduzida a simples recurso compensatório frente à ameaça de
penúria imprevisível. A ajuda mútua que aqui expressa no plano econômico
permeia toda vida social como se fosse o único comportamento possível
186
para o ser humano.

Em contraste com o modo ordenado segundo o parentesco, os modos


tributário e capitalista dividem a população sob seu comando em uma
classe de produtores de excedentes e uma classe de apropriadores de
excedentes. Ambas requerem mecanismos de dominação para garantir que
os excedentes sejam transferidos numa base previsível de uma classe para
                                                                                                                       
185
JUNQUEIRA, Carmen. Os Kamaiurá e o Parque Nacional do Xingu, pp. 62-63.
186
JUNQUEIRA, Carmen. Os Índios de Ipavu: um estudo sobre a vida do grupo Kamaiurá, p. 46.
103  
 

outra. Essa dominação pode envolver em um momento ou outro uma vasta


panóplia de sanções baseadas no temor, na esperança e na caridade; não
pode, entretanto, ser assegurada sem o desenvolvimento de um aparato de
coerção que mantenha a divisão básica em classes e defenda a estrutura
daí resultante contra o ataque externo. Portanto, os modos tributário e
capitalista são caracterizados pelo desenvolvimento e instalação desse
187
aparato, isto é, o estado.
Interessante observarmos que o modo capitalista de produção cria um
distanciamento social entre governantes e governados. Ou ainda, no modo de
produção capitalista temos uma divisão da sociedade em classes sociais
antagônicas, ligadas por uma relação violenta de exploração. O Estado aparece
como instrumento legitimador que permite que a classe dominante explore
continuamente o restante da população. Dessa maneira, surge na sociedade,
através do Estado, um estranho abismo entre governantes dominantes e
governados explorados.
Nos Kamaiurá, a ideia de indivíduo, entretanto, não se faz autonomamente e
em contraste com a ideia de gênero Kamaiurá. A força do indivíduo depende
intrinsecamente da força comunitária, compondo um jogo dialético de fluxo
constante. Qualquer desvio, como a concentração vertical de um poder, é entendido
como prejudicial ao harmônico desenvolvimento da comunidade, e em
consequência, assim também o é para o indivíduo.
(...) Nessa visão da chefia, o status e o poder são alocados por uma
hierarquia diferenciada no seio de uma genealogia comum, sem que isso,
no entanto, implique um acesso diferenciado aos meios de produção. O
chefe e sua linhagem de elevada hierarquia são vistos como pessoas que
agem em beneficio de um todo social, coordenando atividades
especializadas, planejando e supervisionando obras públicas, administrando
188
a redistribuição e liderando a guerra.
Existe em Ipavu uma verdadeira troca entre indivíduo e comunidade:
Mas o Kamaiurá não trabalha simplesmente para se assemelhar ao tipo
ideal culturalmente aprovado. Esse é um, dentre vários outros estímulos. A
recompensa que se obtém, expressa em termos de reconhecimento social,
constitui a grande força que induz o individuo ao trabalho. Maior quantidade
de trabalho ocasiona maior reconhecimento social. Entre o individuo e a
comunidade se estabelece uma verdadeira troca. Enquanto o trabalho
proporciona a sobrevivência do grupo, o prestigio social maior garante
acesso mais fácil às áreas de decisão da aldeia. O que o individuo dá, em
força de trabalho, recebe em força política. Embora possa ser uma troca
vantajosa, nem todos querem dela participar. Talvez a grande maioria dos
índios se contente em cumprir suas tarefas, em atendimento à cooperação
prescrita pela relação de parentesco que o liga ao chefe e ao princípio de
189
solidariedade que deve necessariamente existir entre liderados e líder.

                                                                                                                       
187
WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História, p. 133.
188
WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História, p. 128.
189
JUNQUEIRA, Carmen. Os Kamaiurá e o Parque Nacional do Xingu, p. 63.
104  
 

Em contraste, o modo de produção capitalista se reproduz sem nenhuma


orientação humana (com o ser genérico subordinado às necessidades de expansão
do capital). Em sua reprodução, o valor de troca detém hegemonicamente o controle
sobre o valor de uso, ou seja, impõe às autênticas necessidades humanas as
inautênticas necessidades do mercado. A supremacia das necessidades
reprodutivas do próprio capital borram nossas orientações humanas destacando do
indivíduo sua concepção genérica do ser social (humanidade).
O povo Kamaiurá pode não entender as conexões macroeconômicas do
modo de produção capitalista, mas, sem dúvida, percebem o profundo abismo
existente entre seu modo de vida e trabalho do modo capitalista de reprodução
social. Percebem, mesmo sem o conhecimento das categorias científicas, a
individualidade egoísta do modo de produção do homem branco e sua civilização.
Longe dos Kamaiurá vestirem o manto angelical da pureza, é no seu modo de
produção e vida ordenado segundo o parentesco que devemos buscar este
enleamento entre ser individual e ser genérico. Este modo de produção determinado
implica, pois, uma orientação atrelada não somente à sobrevivência individual do
ser, mas, também, à sobrevivência genérica do modo de ser do povo Kamaiurá.
Na   aldeia   de   Ipavu,   pode-­‐se   com   facilidade   observar   ainda   hoje   o  
movimento   regular   da   dádiva   na   circulação   de   alimentos   entre   casas,  
presentes  entre  amigos  próximos  e  familiares,  ajuda  mútua  na  abertura  de  
roça,  construção  de  casa,  pescarias  etc.  Configura-­‐se  aí  uma  relação  que  se  
ampara   naquilo   que   Sahlins   definiu   como   reciprocidade   generalizada,   ou  
seja,  baseada  num  grau  alto  de  solidariedade.  Talvez  essa  seja  a  faceta  que  
mais   chame   a   atenção   em   meio   ao   conjunto   das   relações   comunitárias,   por  
revelar   que   na   redistribuição   continuada   de   bens   reside   o   principal  
mecanismo   que   garante   um   alto   grau   de   igualdade   social.   Ao   atribuir  
prestígio   e   reconhecimento   social   à   prática   da   generosidade,   a   comunidade  
estimula   e   valoriza   o   desprendimento   material,   ao   mesmo   tempo   em   que  
cria  um  importante  obstáculo  à  acumulação  privada  de  bens.190    

3.4. Arranjos e Rearranjos Kamaiurá

A alimentação Kamaiurá concentra-se basicamente em um único produto


agrícola191 – a mandioca brava (Manihot utilíssima Pohl). O cultivo da mandioca está

                                                                                                                       
190
JUNQUEIRA, Carmen. Revisitando a cultura Kamaiurá, p. 42.
191
Atualmente podemos encontrar dentro da aldeia produtos alimentícios industrializados
(especialmente açúcar refinado, sal, café, feijão, arroz e macarrão). Os quais pouco a pouco vem
ocupando cada vez mais destaque na alimentação Kamaiurá. Tal alteração repercute num aumento
105  
 

intimamente ligado à sobrevivência deste povo e sua produção atrelada, ao menos


incialmente, ao modo de produção ordenado segundo o parentesco.
A terra é ao mesmo tempo objeto e meio de trabalho Kamaiurá. A técnica
utilizada na limpeza das áreas destinadas ao cultivo é a derrubada e a queimada.
Essas atividades preliminares eram antigamente discutidas no centro da aldeia, na
qual o vigia do mato (yuikaaretsakat) indicava o melhor terreno para realizar a
atividade proposta e o pajé velava pelo bom andamento do trabalho, afastando,
quando possível, eventuais espíritos (mama’e) que pudessem prejudicar o
trabalhador. Atualmente, apenas comunicam, no centro, a localização do terreno
escolhido para o plantio. As decisões entre alternativas são escolhidas de maneira
cada vez mais individualizada, embora ainda se reportem ao coletivo para chancelar
a decisão particular.
Após a realização da queimada que antecede o período das chuvas (outubro),
é iniciado o plantio do tubérculo. No início da seca (maio) a mandioca é colhida e
transportada para as respectivas casas. Uma vez na aldeia, a mandioca é ralada e
em seguida é espremida com o auxílio de uma esteira de talo de buriti. Esse
processo liberta da mandioca o seu suco venenoso e a habilita para o consumo
humano. A massa (separada em pães) e o polvilho resultantes desse processo são
postos ao sol para secagem. Findo este processo os produtos são armazenados
para posterior consumo de beiju.192
Tanto a colheita como o preparo do polvilho é realizado coletivamente
somente pelas mulheres de um grupo familiar. Logo cedo, de minha rede, ainda por
despertar, já escutava o ralar da mandioca. Durante toda minha estadia na aldeia as
mulheres trabalharam arduamente nesse processo de colher mandioca e fazer beiju.
Esse processo não constitui uma esfera técnica isolada das demais relações
sociais Kamaiurá, ao contrário, é também o espaço onde as mulheres se encontram
e confidenciam. Nesse espaço, as mulheres apresentam seus questionamentos e
fortalecem o gênero feminino dentro da aldeia. As meninas novas iniciam seu
aprendizado não apenas na técnica fria do trabalho, mas, enquanto preparam seu
beijuzinho, aprendem a situar esse processo em sua realidade, aprendem sua

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
da incidência de diabetes, acompanhada do aumento no número de indivíduos com sobrepeso ou
obesidade.
192
O beiju pode ser consumido à maneira do nosso pão, estando presente em quase todas as
refeições Kamaiurá, ou, misturado com água, na forma de mingau (Kauím).
106  
 

posição na aldeia e as consequências sociais de seu pertencimento ao gênero


feminino.
Esse aprendizado não é apenas técnico, mas também serve como um
estreitamento do laço existente entre ser individual e ser genérico, pois com a
transmissão de técnicas manufatureiras particulares dá-se conjuntamente a
transmissão intergeracional de experiências sociais. Este processo de trabalho
funciona como um fio condutor de uma sabedoria comum Kamaiurá, aproximando o
indivíduo de sua coletividade.
Não um há comando central vertical na educação Kamaiurá. Na aldeia as
crianças vão lentamente assimilando os modos de ser, agir e pensar socialmente
aceitos pelos mais velhos. É através do aconselhamento, do diálogo, do exemplo
prático que se transmitem os conhecimentos.
Em oposição, nossa tradição escolar capitalista está fortemente ancorada na
disciplina do corpo e no saber letrado:
(...) em pouco tempo, [a criança] estará apta a frequentar escolinhas
maternais, onde uma “tia” zela para que ela dê continuidade ao seu
aprendizado de respeitar o horário das atividades recreativas. Esta criança
se tornará um adulto com as habilidades básicas exigidas pelo trabalho,
com compreensão do valor da obediência hierárquica e muitas outras
aquisições sociais que permitirão integrar-se adequadamente ao modo de
193
vida desenvolvido pela sociedade urbana capitalista.

A carreira universitária nesse contexto transforma-se em mera estrutura de


domesticação da mão de obra, onde uma nova pedantocracia de doutores e
livre-docentes, sem serem docentes livres, garante a hegemonia do saber
dominante como sendo o único “legítimo”, desclassificando os outros tipos
de saber como “ilegítimos”, na medida em que não absorvem a retórica
194
dominante na área do conhecimento específico.
Assim, o ensino formal ocidental, pretensamente universal, provoca um
distanciamento entre o ser individual e o ser genérico. O conhecimento no ensino
escolar, ao contrário do dinamismo existente na educação tradicional Kamaiurá, é
apresentado como estático, supostamente “neutro” e sem contradições. A
informação dos livros e das apostilas é depositada verticalmente nos alunos,
afastando-se a presença humana do conhecimento apresentado como um rol de
palavras mortas que devem ser absorvidas fragmentária e individualmente. A
tradição escrita do ensino bancário195 nega, pois, qualquer outro conhecimento que

                                                                                                                       
193
JUNQUEIRA, Carmen. Crianças Kamaiurá, p. 01.
194
TRAGTENBERG, Maurício. A delinquência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder, p.
09.
195
Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 2011.
107  
 

não o chancelado pelos livros. A educação capitalista, ao invés de emancipar,


escraviza suas próprias crianças.
Superado um longo período de resistência, existe desde 2010 uma escola
indígena dentro da aldeia, a Escola Estadual Indígena Central Mavutsinin. As aulas
são lecionadas pelos próprios indígenas Kamaiurá, o que representa um maior
controle sobre a circulação de informação dentro da aldeia. No entanto, a falta de
preparo dos professores repercute numa pedagogia confusa e desorientada. Tal fato
agrava-se ainda mais com a utilização de apostilas genéricas que, além de
apresentarem uma realidade distinta da existente na aldeia, não se aprofundam nas
verdadeiras questões indígenas.
O aprendizado escolar dentro da aldeia é fundamental para que as novas
gerações se apropriem de outros conhecimentos e ganhem maior autonomia nas
relações com os não índios. Motivo pelo qual se faz urgente que surjam novas
pesquisas ancoradas concretamente e em diálogo com os Kamaiurá. Somente
através de uma análise crítica desta realidade, numa combinação de conhecimentos
indígenas e não indígenas, é que será possível reestruturar humanamente o modelo
escolar na aldeia.
Pois bem. Retomando a questão agrícola, podemos notar que as mulheres
mantêm seu trabalho de forma pouco alterado após contato com a sociedade
industrial. Adotaram quase que unicamente o uso de bacias de metal para o
transporte da mandioca e tampas de latas que são utilizadas como raspadores de
mandioca.
Apesar dessas inovações, não houve alteração significativa no tempo de
trabalho das mulheres, que durante a estação da seca (maio a setembro)
cobre grande parte do dia e se distribui em idas à roça, colheita e
processamento da mandioca, preparo de refeições, cuidados com os filhos,
além da confecção de fio de buriti e de algodão, tecelagem de redes de
196
dormir, de esteiras e outras atividades ocasionais.

Os homens, por outro lado, passaram a diversificar suas atividades a cada


nova aquisição tecnológica. Uma das primeiras mercadorias externas que tiveram
contato foi o metal, sob a forma de enxada, machado ou facão, por exemplo. Do
ponto de vista interno da aldeia, a lógica é a de assimilar recursos externos –
domesticá-los a favor da reprodução social Kamaiurá. À medida que chegam novas

                                                                                                                       
196
JUNQUEIRA, Carmen. Revisitando a cultura Kamaiurá, p. 31.
108  
 

mercadorias externas, os Kamaiurá tentam enquadrá-las dentro de seu valor de uso,


ou seja, dentro de seu referencial cultural.
Percebamos que não surgiram novos instrumentos de trabalho, mas sim
instrumentos tecnologicamente superiores aos existentes na aldeia (do machado de
pedra ao machado de metal, por exemplo). Inicialmente, como essas mercadorias
eram distribuídas com relativa fartura pelo Posto Indígena, os Kamaiurá não tiveram
que recorrer ao uso do dinheiro para adquirir tais ferramentas. Dessa forma, o modo
de trabalhar a terra permaneceu praticamente o mesmo, acrescido, apenas, de uma
maior produtividade. É claro que os Kamaiurá se encantaram com a superioridade
produtiva dos machados de metal, mas não para produzirem mais no mesmo tempo,
e sim para produzirem o mesmo no mesmo tempo, apenas com menos esforço
físico. Mesmo após contato com a sociedade industrial, o tempo de trabalho
culturalmente definido permaneceu estável entre os Kamaiurá.
Até meados de 1970, segundo Carmen Junqueira, o modo de vida Kamaiurá
permanecia praticamente regido pelos mesmos valores e sua vida ainda estava
intimamente ligada ao modo de produção ordenado segundo o parentesco.
Referindo-se particularmente aos Kamaiurá, vemos que o sistema de
relações sociais mais amplo, que avança para além dos limites de seu
grupo e envolve os demais grupos indígenas da região, parece não
provocar modificações em sua estrutura social. Os elementos fundamentais
de organização que expressam a estrutura social, não se evidenciam
necessariamente em apenas um padrão de comportamento, - mas
permeiam as relações que se desenvolvem dentro do sistema. Vejamos
alguns desses elementos estruturais do sistema econômico Kamaiurá:
economia de subsistência, isto é, produção destinada basicamente para o
consumo interno (ausência de excedente econômico significativo);
circulação de bens regida por reciprocidade pouco diferenciada (ausência
de mecanismos de mercado); exploração da terra e de recursos naturais
aberta a todos (ausência de propriedade individual ou familiar da terra, rios,
lagos, florestas). No sistema de poder podemos identificar a existência de
grupos familiares detendo direitos e privilégios basicamente iguais
(ausência de estratificação marcada); distribuição de poder político entre
vários chefes de grupos familiares (inexistência de foco de poder nativo
197
único e centralizado).
Se a vinda do metal não acarretou alterações na forma de organizar o
trabalho, nem criou grupos especializados, por estar o kamaiurá
desvinculado do processo de sua fabricação, definiu o grau de dependência
da economia nativa, é irreversível por ser impraticável o retorno ao
198
machado de pedra ou a reprodução local do machado de ferro.
Mesmo não alterando significativamente o modo de vida Kamaiurá, a
mercadoria os faz refém do modo capitalista. Pouco a pouco são consumidos
enquanto consomem. Despossuídos dos meios de produção capitalistas, os
                                                                                                                       
197
JUNQUEIRA, Carmen. Os Kamaiurá e o Parque Nacional do Xingu, p. 83.
198
JUNQUEIRA, Carmen. Os Índios de Ipavu: um estudo sobre a vida do grupo Kamaiurá, p. 38.
109  
 

Kamaiurá estão impossibilitados de produzir o metal de que necessitam. As


mercadorias, pouco a pouco, ganham espaço na realidade Kamaiurá e aumentam a
dependência externa do grupo.
De consequências avassaladoras, as mediações das mercadorias derrubam
qualquer muralha e se reproduzem num vicioso ciclo de dependência externa. A
mercadoria, ponta de lança do capital penetra nos espaços mais privados da vida
Kamaiurá, invade sua moradia e aconchega-se junto ao índio em sua rede.
O preço da satisfação das novas necessidades que criamos para os índios
é sua submissão final ao nosso sistema de produção. E isto significa quase
sempre a escravização do índio, sua sujeição sob as condições mais
escorchantes, a desintegração da vida tribal, a desmoralização e o
199
desaparecimento.

Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante


progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente
da civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos
preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as
muralhas da China e obriga à capitulação os bárbaros mais tenazmente
hostis aos estrangeiros. Sob pena de ruína total, ela obriga todas as nações
a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar a
chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria
200
um mundo à sua imagem e semelhança.
No modo de produção ordenado segundo o parentesco, o cerne do processo
de trabalho é o próprio trabalhador. A força de trabalho é dominante no processo de
produção Kamaiurá. Todavia, a submissão criada pelas mercadorias, ou ainda, a
ausência dos meios de produção capitalistas, tende a reduzir a força de trabalho
Kamaiurá a uma posição subordinada. Ou seja, surge uma tensão dominante entre
valor de troca e valor de uso. A ascensão do valor de troca tende a colocar a
mercadoria acima do trabalhador. “Com a valorização do mundo das coisas aumenta
em proporção directa a desvalorização do mundo dos homens.”201 O trabalhador
ainda hoje ocupa um lugar central no modo de produção Kamaiurá, no entanto, em
dadas atividades a mercadoria (a produção pela produção), enquanto valor de troca,
disputa e ocupa cada vez mais seu espaço.
Um exemplo dessa estranha confusão é o caso peculiar da tradicional
tatuagem Kamaiurá destinada unicamente a grandes chefes, sendo vedada aos
demais Kamaiurá. Hoje em dia, estranhada e destacada de seu lastro real, qualquer
branco pode mediante pagamento em dinheiro obter essa tatuagem. Desvaloriza-se

                                                                                                                       
199
RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil
moderno, p. 232.
200
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista, p. 44.
201
MARX, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos, p. 159.
110  
 

a presença humana da tatuagem e valoriza-se seu valor mercantil, seu valor de


troca. A tatuagem tradicional, forte símbolo morerekwat, generalizou-se e igualou-se
a qualquer outra tatuagem; a tatuagem tradicional, hoje, confunde-se com mais uma
mercadoria disponível no mercado.
O frenético avanço tecnológico das mercadorias capitalistas seduz o jovem
Kamaiurá para a esfera subordinada do valor de troca implícita nas mercadorias.
Enquanto os mais velhos teimam em resistir e reafirmam constantemente a
importância das relações generosas, os mais jovens são hipnotizados e
individualizados pelo espirito do consumo e da produção mercantil.
Nos últimos anos, podemos observar um rápido avanço das mercadorias
enquanto matrizador de relações sociais, como nos ensina Junqueira no artigo
escrito em 2003 – A antropologia fora da Universidade:
As mudanças do modo de vida xinguano são relativamente lentas, por força
das dificuldades de acesso, mas tornaram-se evidentes ao longo do tempo.
Quase sem exceção, todos têm entre seus pertences roupas
industrializadas, rádio a pilha, um ou outro aparelho de televisão, bicicleta e
uma variedade de novidades da cidade. A alimentação também sofreu
modificações, com o consumo recorrente de sal, arroz, macarrão e
enlatados, substituindo uma dieta rica em peixe e caça. A introdução de
novos hábitos parece também ter enfraquecido o cuidado com que antes se
distinguiam as pessoas mais velhas, agora relativamente isoladas num
mundo “pré-moderno”. Novos interesses e desafios surgem no horizonte
dos jovens produtores, estimulando processos de renovação que afetam o
202
delicado arranjo das relações sociais e do equilíbrio alimentar.
Atualmente, podemos ver jovens Kamaiurá adornados de mercadorias. Hoje,
no pátio da aldeia não se joga mais futebol descalço, na lagoa de Ipavu a canoa não
é mais utilizada e talvez, até o ato de sonhar, importante atividade Kamaiurá, já
esteja em metamorfose – os espíritos que antes percorriam os sonhos talvez
estejam lentamente se afastando para darem lugar a novos: os desejos de consumo
capitalistas.
O contato mais estreito com o mercado capitalista, a maior facilidade com
que podem alcançar cidades vizinhas ao Parque do Xingu, as idas às
grandes metrópoles para tratamento médico, a entrada de aparelhos de
televisão na aldeia e a ausência de uma visão crítica dos programas
comumente assistidos estimulam o imaginário indígena e têm sido
responsáveis pelo aumento continuado de novas necessidades.
203
Necessidades que só podem ser satisfeitas com acesso ao dinheiro.    
Acompanhemos abaixo estudo completo feito por Carmen Junqueira acerca da
solicitação de presentes efetuadas pelos Kamaiurá, entre 1966 e 2003, bem como
sobre as mercadorias existentes em 2005 na Aldeia de Ipavu.
                                                                                                                       
202
JUNQUEIRA, Carmen. Antropologia fora da Universidade, p. 24.
203
JUNQUEIRA, Carmen. Revisitando a cultura Kamaiurá, p. 44.
111  
 

É possível observar a tendência da mudança que tem lugar na aldeia


através da comparação entre as solicitações de presentes feitas a mim
pelos Kamaiurá nos anos 1966, 1968, 1970 e 2003, que mostra resultados,
embora de alcance limitado, mas que de alguma forma servem de
indicadores do processo lento mais continuado de transformação. Os
pedidos feitos nessas diversas ocasiões foram classificados em três grupos,
de acordo com a destinação do uso: trabalho, adorno e novidades. O
primeiro reuniu instrumentos de trabalho ligados à pesca, agricultura,
artesanato e tarefas domésticas; o segundo, artigos relacionados ao
embelezamento do corpo e o terceiro continha uma variedade grande de
itens, que ia desde elétricos e eletrônicos, CDs, malas, despertador até
cachorros, leques e dicionários e expressava, de certa forma, não
necessidades estabelecidas, mas desejos.

Como se vê no Gráfico 1, os pedidos agrupados no item Trabalho tendem a


declinar, os do item Adorno superam os demais, mantendo um volume
estável nos quatro anos investigados. Finalmente, as Novidades, que
204
aparecem pela primeira vez em 1968, mostram crescimento.

70  

60  

50  

40   Trabalho  

Adornos  
30  
Novidades  
20  

10  

0  
1966   1968   1970   2003  
 
Gráfico 1: Solicitação de presentes, por destinação de uso.

No item Trabalho foram agrupados equipamentos de pesca (anzol, linha de


náilon, isca artificial, rede de pesca), ferramentas (grosa, formão, enxó,
serrote etc.) armas de fogo, munição e artigos de cozinha (caldeirão,
canecas etc.) Em relação aos demais, esses pedidos sofrem redução
grande nas listagens de 1970 e 2003.

O item Adorno, que tem maior número de pedidos nas quatro listas
examinadas, reúne uma variedade grande de objetos ligados ao vestuário e
costura (tecido, roupas, linha de costura e agulha), ao uso pessoal (lâminas
de barbear, navalha, espelho, pinça, pente, canivete, tesoura, cobertor, rede
de dormir) e adornos propriamente ditos (linha de algodão para confecção
de braçadeiras, joelheiras, novelos de lã, miçangas, contas, guizos) que, em
205
todo esse conjunto, são os presentes mais apreciados.

                                                                                                                       
204
Ibidem, pp. 33-34.
205
JUNQUEIRA, Carmen. Revisitando a cultura Kamaiurá, p. 34.
112  
 

Um aspecto que chama a atenção é que, com poucas exceções (tecido,


roupa e espelho), os artigos solicitados nesse item preenchem o espaço de
similares tradicionais, alguns em desuso, como lâminas de osso e de
taquara, guizos e colares feitos de semente e outros ainda produzidos, mas
usados principalmente na confecção de artesanato para venda, como os
fios de algodão e de buriti. Pode-se dizer que caso esses pedidos de
presente fossem atendidos não ocorreria introdução significativa de novos
itens, mas basicamente um processo de substituição. Mas, no decorrer do
tempo, a preferencia continuada por produtos industrializados certamente
coloca em desuso não apenas o similar nativo, mas a prática de
determinados trabalhos manuais e a perda de habilidades técnicas.

É no item Novidades que se encontram alguns artigos pouco comuns na


vida da aldeia (walk-man, gravador, rádio, discos, CD, K7, despertador,
dicionário da língua portuguesa, caderno, leque, livro de músicas, gramática
da língua Kamaiurá, cachorrinho de raça, fotos antigas) mas também alguns
de uso mais corrente, como pilha, lâmpada para lanterna, lona plástica,
bola, bico para câmara de ar, mala etc. Esses pedidos começaram a ser
formulados em 1968 e aparecem de modo mais expressivo nas listas de
1970 e 2003. Perfazem um total de 25 pedidos, cada qual feito por um
pessoa diferente, e parecem indicar uma gradual ampliação da curiosidade
e do desejo.

Em 2005, constatou-se que existiam na aldeia os seguintes artigos


industrializados: gerador, trator, caminhão, motor de popa, barco de
alumínio, fogões a gás (em apenas duas casas), aparelhos de televisão,
rádios, aparelhos de som com gravador, máquinas de costura, espingardas
(calibre 28 e 20), bicicletas e filmadoras de vídeo. Do rol de objetos de
menor valor constava: bacias de plástico e de metal, recipientes de plástico
para água, pratos, copos, panelas, caldeirões, talheres (garfo, colher,
escumadeira, concha), tesoura, arame, guizos, facão, grosa, machado foice,
enxada, prego, alicate, lima, serrote, enxó, furadeira manual, lanterna,
pilhas, cartuchos 28 e 20, pólvora, rede de pesca, anzol, fio de náilon, bola
de futebol, corda náilon, banco, lona de plástico, folha de zinco, miçanga,
cobertores e redes de dormir. Vestuário: calças masculinas, camisas,
paletó, suéter, vestidos, bonés, chapéu de palha, sandália havaiana, meio,
tênis e chuteira. Foram encontrados ainda alguns alimentos industrializados:
óleo de cozinha, sal, arroz, macarrão, café, molho de tomate e leite, que
constam de modo bastante irregular pelas diferentes casas, mas a prática
do empréstimo mútuo permite que quase todos tenham acesso a muitos
206
deles.
Portanto, dentro da crescente invasão de mercadorias no Alto Xingu, uma se
destaca por seu caráter universal especial.
A partir de 2010, aumentou muito o número de contratações de índios como
trabalhadores assalariados – professores indígenas, monitores de saúde, pilotos e
proeiros de lanchas, monitores para a produção de artesanato, assistentes de
enfermagem entre outros cargos oferecidos no Posto Indígena. Em pesquisa da
UNESCO207 realizada na aldeia de Ipavu no ano de 2010, registraram-se os
seguintes trabalhos assalariados: seis funcionários da escola, três agentes
indígenas de saúde, um funcionário da FUNAI, um agente indígena de saneamento
                                                                                                                       
206
JUNQUEIRA, Carmen. Revisitando a cultura Kamaiurá, p. 36.
207
VITTI, Vaneska Taciana. Estudos Etnoecológico da lagoa de IPAWU, p. 53.
113  
 

e um agente indígena de saúde bucal; além de onze aposentados. Atualmente


podemos acrescentar o crescente número de indígenas que passaram a beneficiar-
se de auxílios pecuniários do governo federal como o programa bolsa família, por
exemplo.
Internamente, o dinheiro praticamente não circula. As relações ainda são
dominadas pelo valor de troca. Entretanto, pudemos observar alguns raros
pagamentos em dinheiro dentro da aldeia, tanto na prestação de serviços como na
compra e venda de mercadorias. Embora a troca tradicional do moitará ainda seja a
regra, o dinheiro já começa a circular, hora aqui, hora ali; ainda tímido, mas cada vez
mais incrustado nas relações sociais Kamaiurá.
Por outro lado, externamente, jovens e adultos frequentam com maior
regularidade a cidade de Canarana (MT), situada a cerca de duzentos quilômetros
do limite do Parque, e a cada dia familiarizam-se mais com a mercadoria dinheiro.
A maior familiaridade com o uso do dinheiro fez com que os Kamaiurá
estabelecessem valores médios para a comercialização do artesanato, com
base no tempo de trabalho gasto na produção, na relativa escassez das
matérias primas e no custo de linhas de algodão e de lã industrializadas por
vezes utilizadas em detrimento de similares nativos. Mas basta ocorrer uma
208
premência de dinheiro para que esses valores sejam rebaixados.    
Podendo ser acumulado privadamente, o dinheiro, enquanto valor de troca,
subverte as relações sociais tradicionais estabelecidas entre os Kamaiurá.
A quantidade do dinheiro torna-se progressivamente a sua única
propriedade importante; assim como ele reduz toda a entidade a uma
abstração, assim se reduz a si no seu próprio desenvolvimento a uma
209
entidade quantitativa.
A acumulação quantitativa financeira tende a desprender o indígena
qualitativamente de seu modo de vida e produção ordenado segundo o parentesco.
Isso porque o indígena assalariado encontra uma fonte de poder fora da aldeia.
Tendo um acesso constante a uma fonte de riqueza fora dos limites da aldeia, o
indígena não necessita mais se submeter às regras do parentesco. Não precisa
necessariamente distribuir generosamente seus pertences para articular apoio
político, seu poder vem de fora e tende a estabelecer sobre os outros um poder
social estranho, pois passa a satisfazer individualmente suas necessidades.
Na posse do dinheiro, o indígena se afasta de suas qualidades genéricas e
passa a ter um prestigio quantificado na acumulação individual de capitais. Marx

                                                                                                                       
208
JUNQUEIRA, Carmen. Revisitando a cultura Kamaiurá, p. 45.
209
MARX, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos, p. 208.
114  
 

muito bem nos apontou a perversidade da força social do dinheiro, a “subverter” a


quantidade em qualidades:
O que para mim existe através do dinheiro, aquilo que eu posso pagar, isto
é, o que o dinheiro pode comprar, sou eu, o próprio possuidor do dinheiro. O
poder do dinheiro é o meu próprio poder. As propriedades do dinheiro são
210
as minhas – do possuidor – próprias propriedades e faculdades.

Shakespeare sublinha duas propriedades do dinheiro: 1) ele é a divindade


visível, a transformação de todas as qualidades humanas e naturais no seu
oposto, a universal confusão e inversão das coisas; 2) ele é a prostituta
211
universal, a universal alcoviteira dos homens e dos povos.

Uma vez que o dinheiro, enquanto conceito de valor existente e activo,


confunde e permuta todas as coisas, é a confusão e a transposição
universal de todas as coisas, portanto, o mundo invertido, a confusão e a
212
transposição de todas as qualidades naturais e humanas.
Por ora, ser apontado como sovina dentro da aldeia resulta em grande
desprestígio. A imagem generosa do povo Kamaiurá (em seu ser genérico) ainda
impõe ao indígena (particularizado) uma inicial oposição à acumulação de capitais.
O controle ainda é exercido pelos mais velhos como representantes da tradição e
dos valores do modo de ser genérico do Kamaiurá, no entanto, os mais jovens,
seduzidos pela possibilidade de consumo ofertada pelo dinheiro, estão cada vez
mais inclinados à ilusão de uma vida melhor na cidade por meio das ofertas de bens
do mercado capitalista.
Talvez num futuro próximo, generoso não será mais aquele que distribui seus
pertences, mas aquele que pode comprar mercadoria para todos. Vejamos que,
caso isso aconteça, o elo entre ser individual e o modo de ser genérico não será
mais a generosidade, e sim, mercadorias e sujeitos portadores de mercadorias.
Dessa maneira, tendencialmente, a relação entre indivíduo e gênero na aldeia, ou
seja, a sociabilidade Kamaiurá, seu modo próprio de exteriorizar a vida, se
desenvolverá mais e mais de modo estranhado.
Resta saber o que pode vir a ocorrer quando se alinham padrões de
comportamento tradicional relativo à dádiva, no estreito círculo de parentes
e amigos, e novos padrões monetários que aos poucos os Kamaiurá
adotam em decorrência do período de transição por que passam. A função
primeira do dinheiro de possibilitar a aquisição de mercadorias na cidade já
penetrou nas trocas internas de certa forma imprimindo mudanças nas
antigas trocas diretas de bens de uso tanto no âmbito da aldeia como entre

                                                                                                                       
210
Ibidem, p. 232.
211
Ibidem, pp. 232-233.
212
Ibidem, p. 234
115  
 

aldeias. Mas ainda predomina no conjunto da vida comunitária uma intensa


213
circulação de dádivas.

Até recentemente, era possível, segundo Junqueira, encontrar os líderes de


família extensa sentados em círculo no centro da aldeia. Discutiam a realidade,
problemas sociais e políticos e, ainda, reafirmavam suas origens e mitos através de
longos e emocionantes relatos históricos. Discutiam, também, as mudanças
enfrentadas pelo povo Kamaiurá. Exaltavam a sociabilidade Kamaiurá na busca de
minimizar as perversidades advindas do contato com o homem branco e sua
civilização.
Saber falar é um atributo sempre apontado como fundamental para o
exercício da liderança da aldeia. Em tempo recuado, o ritual da fala do
chefe era bastante elaborado, contam os velhos. (...) O chefe Arupatsi,
dizem, caminhava com passos pausados em direção ao pátio central da
aldeia, onde os homens o aguardavam. Trazia nas mãos arco e flechas e
iniciava suas exportações, relembrando a todos os deveres de um homem
correto: “Vocês precisam abrir boas roças, pescar com assiduidade, não
devem brigar com os filhos, não bater na esposa ...” A cada conselho ou
advertência atirava uma flecha na terra. Terminado o discurso, retornava a
sua casa com os mesmos passos pausados, portando o arco. A seguir, dois
homens recolhiam as flechas e iam até sua casa devolve-las. Dele recebiam
então uma grande panela com mingau (kauin), que traziam para o pátio
214
para que todos os homens bebessem.
Hoje, com praticamente um aparelho televisivo por casa e a possibilidade de
obtenção quase que diária de cerca de 3 horas de energia elétrica, a televisão
adentrou na intimidade Kamaiurá. Sabemos que a banalização de mercadorias
visuais permeia como eixo comum a todas as notícias, sem diferenciar significados.
E é essa vala comum da televisão que hoje ocupa o começo da noite na aldeia de
Ipavu. Velhos e anciões são silenciados, aumenta-se o volume da novela, esquece-
se do passado e narcotiza-se o presente.
[...] Na medida em que isso narcotiza o povo, reforça o poder de quem o
explora: nenhuma classe dominante dispensou o ópio para legitimar seu
poder. Hoje, a TV atua como ópio do povo. Em suma, quem contribui para
iludir o povo, engabelá-lo, fazê-lo esquecer de seus problemas reais é um
215
antipovo, está a serviço dos donos do poder.
O modo como os velhos aprenderam a viver está cada vez mais distante dos
padrões adotados pelos jovens. Estes, cada vez mais inseridos no mundo
capitalista, já não estranham a acumulação, a propriedade privada e o
individualismo. Estão cada vez mais imersos na novidade do capital. Os velhos e a

                                                                                                                       
213
JUNQUEIRA, Carmen. Revisitando a cultura Kamaiurá, p. 47.
214
JUNQUEIRA, Carmen. Disputa Política na Sociedade Kamaiurá, p. 225.
215
TRAGTEMBERG, Maurício. Sobre educação, sindicalismo e política, p. 150.
116  
 

tradição são apresentados, cada vez mais, como algo pertencente ao passado, algo
que já foi, superado, obsoleto.
O presente se apresenta, assim, mistificado e em transição. Quanto ao futuro,
sob o risco de ruir antes do tempo, este só existirá com a superação total da
sociabilidade do capital que subordina o modo de ser Kamaiurá.
 
117  
 

CONSIDERAÇÕES FINAIS
118  
 

Que fazer? Quisera para o Brasil uma antropologia


descolonizada. Se possível, uma antropologia que trate
logo de devolver aos índios o que aprendeu deles.
(Darcy Ribeiro)

Eu prefiro morrer lutando ao lado dos índios em defesa


de suas terras e seus direitos do que viver para amanhã
vê-los reduzidos a mendigos em suas terras. (Apoena
Meirelles)

É bem verdade que o capitalismo adentrou na selva amazônica e chegou aos


confins da humanidade.
Reinou o pânico e o genocídio indígena no oeste brasileiro: multiplicaram os
investimentos, brotaram estradas, germinou o lucro do grande capital e disseminou-
se a barbárie da civilização capitalista. “Homens que nunca na sua vida tinham
sentido verdadeira necessidade de qualquer coisa viam a chama da necessidade
arder nos olhos dos homens das estradas.”216
As distintas formas de produção pré-existentes ao modo capitalista de
exteriorização da vida passam cada vez mais a gravitar articuladamente com a
produção mercantil. A terra já não é a mesma, chegaram os proprietários e suas
escrituras, e deles, vingam cercas e muros. A miséria do capital infectou a terra,
tornando-a consumível, alienável.
Os avanços do capitalismo na fronteira amazônica tanto têm destruído, pura e
simplesmente, como têm criado e recriado formas familiares e comunitárias de
produção e reprodução social. No conjunto, generaliza-se a subordinação formal e
real do trabalho ao capital, do valor de uso ao valor de troca.
Com a crescente submissão ao modo de produção do capital, intensificam-se
também as articulações entre os povos indígenas e as classes sociais
subalternizadas de outras regiões do país e exterior. Agora, as contradições
prevalecentes nos centros hegemônicos do imperialismo reverberam profundamente
no centro-oeste brasileiro. O desenvolvimento e a generalização capitalista no globo
desenvolveram e aglutinaram também as contradições de classes locais, regionais e
internacionais. Ou seja, ao mesmo tempo em que se desenvolveu intensiva e
extensivamente o capitalismo no campo, desenvolveram-se e aguçaram-se as
contradições de classe e suas explosivas consequências no mundo rural.
À medida que o capitalismo subordinou e transformou a aldeia de Ipavu, a
aldeia reentrou no mundo como parte de um todo, de modo agora que, por ser parte,
                                                                                                                       
216
STEINBECK, John. As vinhas da ira, p. 294.
119  
 

carrega em si também a totalidade da realidade contemporânea em movimento.


Agora, os Kamaiurá não estão mais lá longe. Reentraram na história, classificados.
Este reentrar na história não pode apenas ser vivido, mas também deve ser
apreendido, estudado e compreendido pelo próprio Kamaiurá. Essa e não outra é a
verdadeira tarefa da antropologia descolonizada de que falava Darcy Ribeiro, a da
edificação de um processo contínuo de conscientização humana do mundo. Na
trilha, pois, a caminho de uma ontologia materialista tornada histórica:
Tarefa de uma de uma ontologia materialista tornada histórica é, ao
contrário, descobrir a gênese, o crescimento, as contradições no interior do
desenvolvimento unitário; é mostrar que o homem, como simultaneamente
produtor e produto da sociedade, realiza em seu ser-homem algo mais
elevado que ser simplesmente exemplar de um gênero abstrato, que o
gênero, nesse nível ontológico, no nível do ser social desenvolvido, não é
mais uma mera generalização à qual os vários exemplares se ligam de
modo “mudo”; é mostrar que tais exemplares, ao contrário, elevam-se até o
ponto de adquirirem uma voz cada vez mais claramente articulada, até
alcançarem a síntese ontológico-social de sua singularidade (convertida em
individualidade) com o gênero humano (convertido neles em algo
217
consciente de si).
Ipavu vive tempos de mudança e não muito longe dali, na cidade de
Canarana (MT), o sol já não mais nasce no mesmo horário. O matinal alvoroçar dos
pássaros é emudecido pelo estalar dos relógios. O ritmo da natureza cede lugar ao
ritmo do mercado. Do nascer do sol à madruga, o tempo se converte em mercadoria
e dinheiro. A organização das atividades diárias é distribuída racionalmente em
pautas e calendários. O novo tempo do mundo, agora do mercado, reorganiza
nossas vidas nas engrenagens frenéticas da produção incessante de mercadorias.
Observa-se uma mudança radical no tempo, agora subordinado aos ditames do
capital e sua reprodução social em escala ampliada.
Assim também entende o historiador Edward Thompson ao estudar a
formação da classe operária na Inglaterra, a despeito das distintas particularidades
dos modos de produção pré-capitalistas nos casos inglês e brasileiro.
O “passar do tempo” desprendendo-se de qualquer concepção de lazer, traz
agora a ideia de que a tudo se deve somar. O produto do trabalho não é
mais o resultado da dedicação, da criatividade, e sim produto do esforço, do
cansaço e da obrigatoriedade. Assim, tudo se volta para a aceleração da
vida, do trabalho e da produtividade: a organização da produção, mesmo a
218
do tipo familiar, ajusta-se ao tempo da máquina, do banco, e do patrão.
Vivemos um período de profundas contradições na reprodução ampliada do
capital. As forças produtivas, os meios de produção, se desenvolvem mais rápido

                                                                                                                       
217
LUKÁCS, György. O jovem Marx e outros escritos de filosofia, pp. 240-241.
218
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum, p. 33.
120  
 

que a capacidade social de apropriação humana das riquezas genéricas. Afogamos


nossa humanidade em um oceano de mercadorias, sendo essa a contradição de
nosso tempo, um total descompasso histórico entre o progresso das coisas e o
progresso humano.
Nas últimas décadas o capitalismo se desenvolveu consideravelmente no
Brasil, alargou sua fronteira, impôs seu modo produtivo e reprodutivo a todo o globo.
Impossível retroceder ao passado. Esse avanço desenfreado esmagou
barbaramente os povos indígenas do Brasil, consolidando e derramando miséria
dentro das aldeias.
O índio, obviamente, não é mais o mesmo. Este, que foi açoitado durante
anos pela barbárie da civilização capitalista, agora faz parte subalternizada dessa
mesma civilização que planeja seu fim diante de seus “progressos”. Ressurge agora
o indígena em articulação com o modo de produção e reprodução do capital.
Articulação que a cada dia nega mais e mais o indígena em seu modo determinado
de vida e cultura, negação que expropria como um golpe tendencialmente mortal a
humanidade ainda presente nestes povos de modo não mercantil.
Mas isso não é tudo; este não é o fim da história.
Ainda temos tempo. Apesar de curto.
Há aqueles que creem no fim do mundo indígena, no desaparecimento total
destes povos ante à máquina produtivista do capital. Acreditam que o indígena
somente poderá pleitear a superação do capital quando deixar completamente de
ser índio e passar a ser exclusivamente um trabalhador assalariado em seu modo de
exteriorização da vida. Estes calculam e projetam em quantas décadas a terra
indígena passará às mãos da burguesia e quanto tempo mais terão de esperar.
Não sei se temos tempo para tanto.
Marx, contrariando essa perspectiva unilinear, evolucionista e eurocêntrica, ao
estudar as comunas rurais (agrícolas) na Rússia no século XIX nos aponta para a
possibilidade (histórica) de outro caminho possível.
Mas isso quer dizer que, em todas as circunstancias, o desenvolvimento da
“comuna agrícola” deve seguir esse mesmo curso? De modo algum. Sua
forma constitutiva admite a seguinte alternativa: ou o elemento da
propriedade privada implicado nela prevalecerá sobre o elemento coletivo
ou este último prevalecerá sobre o primeiro. Essas duas soluções são
evidentemente, que haja ambientes históricos completamente díspares.
121  
 

Tudo depende do ambiente histórico em que a comuna se encontra


219
localizada.
Não existe uma teleologia previamente inscrita na história de uma vez por
todas, o futuro dos povos indígenas está em aberto, e existem possibilidades
históricas no vir a ser humano. No entanto, uma vez desaparecido o elemento
coletivo das terras indígenas, também desaparecerão os diversos modos indígenas
de exteriorização da vida humana, e assim desaparecerão o próprio índio e suas
possibilidades históricas.
A contemporaneidade do modo de vida indígena com a produção capitalista
abriu aos povos indígenas a possibilidade de se apropriarem do desenvolvimento
genérico das forças produtivas geradas através da barbárie do capital, antes que
sejam extintos ou destituídos pelo capitalismo.
Nesse sentido, na possibilidade de trocar de pele sem precisar se suicidar,
Marx evidência no plano do pensamento essa alternativa histórica às comunas
russas:
Falando em termos teóricos, a “comuna rural” russa pode, portanto,
conservar-se, desenvolvendo sua base, a propriedade comum da terra, e
eliminando o princípio da propriedade privada, igualmente implicado nela;
ela pode tornar-se um ponto de partida direto do sistema econômico para o
qual tende a sociedade moderna; ela pode trocar de pele sem precisar se
suicidar; ela pode se apropriar dos frutos com que a produção capitalista
enriqueceu a humanidade sem passar pelo regime capitalista, regime que,
considerando exclusivamente do ponto de vista de sua duração possível,
conta muito pouca na vida da sociedade. Porém, é preciso descer da teoria
220
pura à realidade russa.
No caso brasileiro, estudamos nos capítulos anteriores sua entificação
capitalista através da via colonial, forjando nos trópicos um capitalismo colonial. Mas
em que tempo se reproduz nosso capitalismo colonial?
A permanente sucessão de crises, colapsos financeiros cada vez mais
agudos, a destruição do meio ambiente, o desemprego estrutural crescente e as
constantes guerras, são sintomas mundiais de nossa crise estrutural do capital.221
Não vivemos o fim dos tempos, mas tempos de crise aguda na civilização capitalista.
Os povos indígenas, na presente crise estrutural do capital, dada a sua
particularidade de inserção no mundo capitalista, têm a possibilidade de romper as
correntes da propriedade privada e transmutar para “uma forma superior do tipo

                                                                                                                       
219
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Rússia, p. 93.
220
Ibidem, p. 96.
221
MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital.
122  
 

arcaica de propriedade, isto é, pela propriedade comunista”.222 Ou seja, o elemento


coletivo da terra indígena possui uma mola propulsora capaz de fecundar
humanamente nosso futuro.
O comunismo é a abolição positiva da propriedade privada enquanto auto-
alienação humana e, deste modo, a real apropriação da essência humana
pelo e para o homem. É, portanto, o retorno do homem a si mesmo como
ser social, quer dizer, verdadeiramente humano, retorno esse pleno,
consciente, que assimila toda a riqueza do desenvolvimento anterior. O
comunismo enquanto naturalismo integralmente evoluído = humanismo,
enquanto humanismo plenamente desenvolvido = naturalismo, constitui a
resolução autêntica do antagonismo entre o homem e a natureza, entre o
homem e o homem. É a verdadeira solução do conflito entre a existência e
a essência, entre a objectivação e a auto-afirmação, entre a liberdade e a
necessidade, entre indivíduo e espécie. É a decifração do enigma da
223
História e está consciente de ele próprio ser essa solução.
Para que a aldeia de Ipavu persista ao longo dos anos é necessário que os
próprios Kamaiurá, inseridos em seu devir histórico, encontrem alternativas não
apenas Kamaiurá, mas também humanas (genéricas) de superação da sociabilidade
do capital. Cientes da liberdade como produto da atividade humana
autodeterminada, os Kamaiurá devem abrir caminhos no complexo de complexos
societário e criar as condições materiais e ideológicas necessárias para que a
realidade seja encarada conscientemente e que o desejo de transformação social
seja exteriorizado, de fato, em um amplo campo de possibilidades históricas para
além dos tempos do capital. Não resta outra possibilidade aos Kamaiurá que não
seja a de abrir, humanamente, caminhos por entre as trevas da barbárie que
avistamos em nosso horizonte histórico.

                                                                                                                       
222
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Rússia, p. 104.
223
MARS, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos, pp. 192-193.
123  
 
124  
 

Bibliografia

BARROS, Betina et al. Soja deve garantir novo recorde na produção de grãos. Valor
Econômico, São Paulo, 10 de out. de 2013. Agronegócios, B12.

BASTOS, Pedro Paulo Zahluth; FONSECA, Pedro Cezar Dutra (Orgs.). A Era
Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Unesp, 2012.

BRUM, Eliane. A ditadura que não diz seu nome. El Pais. Brasil. 31 mar. 2014.
Disponível em:
<brasil.elpais.com/brasil/2014/03/31/opinion/1396269693_200037.html>. Acesso em:
20 Jul. 2014.

CAMARGO, Cândido Procópio F. de; JUNQUEIRA, Carmen; PAGLIARO, Heloísa.


Reflexões Acerca do Mundo Cultural e do Comportamento Reprodutivo dos
Kamaiurá Ontem e Hoje. In: PAGLIARO, Heloísa; AZEEDO, Marta Maria; SANTOS,
Ricardo Ventura dos. (Orgs.). Demografia dos Povos Indígenas no Brasil. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2005.

CAPRIGLIONE, Laura. A missão. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 de nov. de 2012.


Disponível em: <http://folha.com/no1182605>. Acesso em: 20 Jul. 2014.

CASSIANO, Ricardo. Marcha para Oeste. São Paulo: Edusp, Rio de Janeiro: José
Olympio, 1970.

CHASIN, José. A Sucessão na crise e a crise na esquerda. In: CHASIN, José


(Org.). A miséria brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social. Santo André
(SP): Estudos e Edições Ad Hominem, 2000.

______. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,


2009.

CIMI. Polícia Federal retorna à Terra Indígena Marãiwatsédé (MT) para conter
invasão de não índios. 28.01.2014. Disponível em: <www.cimi.org.br/site/pt-
r/index.php?system=new&action=read&id=7350>. Acesso em: 20 Jul. 2014.

COSTA, Mônica Hallak M. da. A exteriorização da vida nos manuscritos econômico-


filosóficos de 1844. In: CHASIN, José (Org.). Ensaios Ad Hominem. N. 1, Tomo IV,
Dossiê Marx. Santo André: Estudos e Edições Ad Hominem / Ijuí (RS): Ed. Unijuí,
2001.

DAVIS, Shelton. Vítimas do Milagre: o Desenvolvimento e os Índios do Brasil. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 1978.

DEN STEINEN, Karl Von. Entre os Aborígenes do Brasil Central. São Paulo:
Departamento de Cultura, 1940, p. 148.
125  
 

EVANS-PRITCHARD, Edward. Antropologia Social. Lisboa: Edições 70, 1985.

FAGGIANO, Daniel. Manifestações Munduruku: primeiras hipóteses. In: FAGGIANO,


Daniel; LUCHIARI, Valéria (Orgs.). A questão indígena. Brasília: Gazeta Jurídica,
2013.

FERNANDES, Florestan. A investigação etnológica no Brasil e outros


ensaios. Petrópolis: Vozes, 1975.

FIGUEIREDO, Jader. Relatório Figueiredo. Brasília: Procuradoria da República,


1968. Disponível em: <pt.scribd.com/doc/142787746/Relatorio-Figueiredo>. Acesso
em: 20 jul. 2014.

INESC. Plano Decenal de Energia 2012. Disponível


em: <pibsocioambiental.org/anexos/23198_20120928_143934.pdf>. Acesso em 20
jul. 2014.

FRANCHETTO, Bruna. Laudo antropológico: A ocupação indígena da região dos


formadores e do alto curso do Rio Xingu.Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

FREITAS, Tatiana. “Megafazendas” lideram crescimento no Cerrado. Folha de S.


Paulo, São Paulo, 06 de nov. de 2013. Disponível em: http://folha.com/no1352463.
Acesso em: 20 jul. 2014.

GALVÃO, Eduardo. Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1979.

GLASS, Verena. PAC 2: acelerando a tristeza na Amazônia. In: VENTURI, Gustavo;


BOKANY, Vilma (Orgs.). Indígenas do Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2013.

GODELIER, Maurice. Comunidade, sociedade, cultura: três modos de compreender


as identidades em conflito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 55.

HELLER, Agnes. Para Mudar a Vida. São Paulo: Brasiliense, 1982.

IANNI, Octavio. Estado e Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2004.

______. Origens Agrárias do Estado brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 2004.

______. Pensamento social no Brasil. São Paulo: Edusc, 2004.

______. Tendências do pensamento brasileiro. In: Revista de Sociologia. São Paulo:


Edusp, Novembro, 2000.
126  
 

______. Revolução e cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

______. Ditadura e Agricultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Mapa Parque Indígena do Xingu. 2002. Disponível


em <http://pib.socioambiental.org/pt/povo/xingu/1539>. Acesso em 20 de Jul. 2014.

JUNQUEIRA, Carmen. Disputa Política na Sociedade Kamaiurá. In: Revista


Brasileira de Linguística Antropológica, vol. 1, 2010.

______. Revisitando a cultura Kamaiurá. In: PAREDES, Eugênia Coelho. Cultura


Kamaiurá (org. Eugênia Coelho Paredes). Cuiabá: EdUFMT; FAPEMAT, 2008.

______. Crianças Kamaiurá. São Paulo: mimeo, 2006.

______. Antropologia fora da Universidade. In: SILVA, Ana Amélia da; CHAIA,
Miguel (Orgs.). Sociedade e Cultura Política. São Paulo: PUC-SP, 2003.

______. A questão indígena, in: D’INCAO, Maria Angela (Org.). O saber militante.
Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: Unesp, 1987.

______. Os Índios de Ipavu: um estudo sobre a vida do grupo Kamaiurá. 2ª ed. São
Paulo: Ática, 1978, p. 13).

______. Os Kamaiurá e o Parque Nacional do Xingu. Tese de Doutorado, Unicamp,


Rio Claro, 1967, p. 32.

KRÄUTLER, Dom Erwin. As cruzes permanecem erguidas, mas a utopia do Bem


Viver persiste. In: CIMI. Relatório – Violência contra os povos indígenas no Brasil.
Brasília: CIMI, 2010.

LABATISDA, Jaime. O Objeto da História, in Marx Hoje (org. José Chasin). São
Paulo: Ensaio, 1987.

LECLERC, Gérard. Crítica da Antropologia. Lisboa: Estampa, 1973.

LENIN, Vladimir Ilitch. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo:


Expressão Popular, 2012.

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social, 2. São Paulo: Boitempo, 2013.

______. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 2


ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
127  
 

______. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2009.

MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do


humano. São Paulo: Contexto, 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Rússia. São Paulo: Boitempo,
2013.

______. A Ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

______. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2005.

MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. 07 ed. São Paulo: Paz e Terra,
2011.

______. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2010.

______. Manuscritos Económicos-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989.

______. Condições históricas da Reprodução Social. In: IANNI, Octavio (Org.). Karl
Marx: Sociologia. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1984, p. 63.

______. O capital. Crítica da economia política. Livro I, vol I, Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1968.

MEILLASSOUX, Claude. Mulheres, Celeiros & Capitais. Porto: Afrontamento, 1977.

MEIRELES, Silo. Brasil Central, Notas e impressões. Rio de Janeiro: Biblioteca do


Exército Editora, 1960.

MENEZES, Maria Lucia Pires. Parque Indígena do Xingu: a construção de um


território estatal. Campinas, SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial,
2000.

MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2009.

______. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Boitempo, 2008.

______. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Livro da Verdade. Brasília, 1970. Disponível em:


<pt.scribd.com/doc/211046686/Livro-da-Verdade-do-ministro-Buzaid-pdf>. Acesso
em: 20 jul. 2014.
128  
 

MORAIS, Fernando; GONTIJO, Ricardo; CAMPOS, Roberto de


Oliveira. Transamazônica. São Paulo: Brasiliense, 1970.

NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo:


Expressão Popular, 2011.

OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo,


2003.

OLIVEIRA, João Pacheco. Uma viagem ao Brasil profundo. In: VILLAS-BÔAS,


Orlando. Marcha para o Oeste: A epopeia da Expedição Roncador-Xingu. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.

PENEDO, Clécio. Série “Comei-vos uns aos outros” A CEIA – grafite sobre papel –
33 x 47,5 cm – 1991.

______. “VW” – grafite e colagem sobre papel – 50 x70 cm – 1980.

PRADO JR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2012.

______. História do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2012.

REALE, Miguel. Problemas Institucionais do Estado Contemporâneo. in Arquivos do


Ministério da Justiça, Rio de Janeiro, vol. 29, n. 124, 1972.

REVISTA BRASILEIRA DE GEOGRAFIA. Expedição Roncador-Xingú, promovida


pela coordenação da mobilização econômica, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 3, 1943.
Disponível em:
<biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/rbg_1943_v5_n3.pdf>. Acessoo
em: 20 Jul. 2014.

RIBEIRO, Darcy. A América Latina existe? Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro;
Brasília: Ed. UnB, 2010.

______. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

______. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil


moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste. 4ª ed. São Paulo: Edusp, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1970.

RÜSCHE, Ana. Rasgada. São Paulo: Selo Quinze & Trinta, 2005.

SARTRE, Jean-Paul. Prefácio à edição de 1961. In: FANON, Franz. Os condenados


da terra. Juiz de Fora: UFJF, 2005.
129  
 

SEKI, Lucy. Gramática do Kamaiurá: língua Tupi-Guarani do Alto Xingu. Campinas,


SP: Unicamp; São Paulo, SP: Imprensa Oficial, 2000.

SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO. Relatório 1954. In: ROCHA, Leandro


Mendes. A política indigenista no Brasil: 1930-1967. Goiânia (GO): UFG, 2003.

STEINBECK, John. As vinhas da ira. Rio de Janeiro: Record, 2001.

TAUSSIG, Michael T. O diabo e o fetichismo da mercadoria na América do Sul. São


Paulo: Unesp, 2010.

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das


Letras, 1998.

TRAGTENBERG, Maurício. Sobre educação, sindicalismo e política. São Paulo:


Unsep, 2004.

______. A delinquência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder. São
Paulo: Rumo, 1979.

______. A falência da política. São Paulo: Unesp, 2009.

TYLOR, Edward Burnett, A ciência da cultura. In: CASTRO, Celso. Evolucionismo


cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

VAISMAN, Ester; FORTES, Ronaldo Vielmi. In: LUKÁCS. G. Prolegômenos para


uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2010.

VARGAS, Getúlio: Cruzada rumo Oeste. Disponível na Biblioteca da Presidência da


República: <www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/getúlio-
vargas/discursos-1/1940/25.pdf/download>. Acesso em: 20 Jul. 2014.

______. No limiar do ano de 1938. Disponível na Biblioteca da Presidência da


República: <www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/getúlio-
vargas/discursos-1/1937/08.pdf/download>. Acesso em: 20 Jul. 2014.

VILLAS-BOAS, Orlando. Marcha Para o Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-


Xingu. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

VITTI, Vaneska Taciana. Estudos Etnoecológico da lagoa de IPAWU. São Paulo:


UNESCO, 2010.

WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História. São Paulo: Edusp, 2005.

XAVANTE, Damião Paridzané. Relato Disponível em: <


http://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-mato-grosso-tensao-aumenta-entre-
130  
 

xavantes-e-latifundiarios-em-terra-cobicada-por-agronegocio/>. Acesso em: 20 jul.


2014.

Você também pode gostar