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E ncruzilhadas filosóficas

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ENCRUZILHADAS
dados internacionais de catalogação na publicação (cip)

B732b Borges-Rosario, Fábio


Encruzilhadas filosóficas / Fábio Borges-Rosario, Marcelo José Derzi
Moraes e Rafael Haddock-Lobo (organizadores). Coleção X (Organização
Rafael Haddock-Lobo) – Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020.
FILOSÓFICAS
Organizadores Fábio Borges-Rosario Marcelo José Derzi Moraes Rafael Haddock-Lobo

360 p. ; 23 cm.

ISBN 978-65-86657-11-1  versão impressa

Inclui bibliografia.
1. Filosofia. 2. Filosofia Moral. I. Título. II. Autor.

CDD 170

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
editorial Ana Luisa Rocha Mallet - Universidade Estácio de Sá
Carolina Magalhães de Pinho Ferreira - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Carlos Dimas Martins Ribeiro - Universidade Federal Fluminense
Cinara Maria Leite Nahra - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Cristiane Maria Amorim Costa - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Daniel Abreu de Azevedo - Universidade de Brasília
C onselho

Diana I. Pérez - Universidad de Buenos Aires


Diogo Gonçalves Vianna Mochcovitch - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fabio Alves Gomes de Oliveira - Universidade Federal Fluminense
Guilherme Dias da Fonseca – Université Clermont Auvergne | França
Jefferson Lopes Ferreira Junior - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Maria Clara Marques Dias - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Martina Davidson - Universidade Federal Fluminense
Manuel Villoria Mendieta - Universidad Rey Luan Carlos | Espanha
Maria Andréa Loyola - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Michelle Cecille Bandeira Teixeira - Universidade Federal Fluminense
Murilo Mariano Vilaça - Fundação Oswaldo Cruz
Paula Gaudenzi – Fundação Oswaldo Cruz
Rafael Ioris – University of Denver | EUA
Rafael Haddock-Lobo - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Renata Ramalho Oliveira Ferreira - Instituto Nacional de Câncer
Rita Leal Paixão - Universidade Federal Fluminense
Suane Felippe Soares - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Vanessa Neitzke Montinelli - Instituto Nacional do Câncer & Universidade Federal do Rio
de Janeiro
Wallace dos Santos de Moraes - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Todos os textos aqui reproduzidos são de inteira


responsabilidade de seus autores.
Odara, morador da encruzilhada

S umário
Firma seu ponto com sete facas cruzadas
Filho de umbanda, pede com fé Padê
Pra Seu Sete Encruzilhadas que ele dá o que você quer
(Ponto de Exu Rei das Sete Encruzilhadas) 12 Quem te disse que a rua anda vazia?, por Luiz Antonio Simas

13 Toco, farofa e marafo, por Fábio Borges-Rosario, Marcelo José


Derzi Moraes e Rafael Haddock-Lobo
Mas ele é capitão da encruzilhada, ele é. Mas ele é ordenança de Ogum
Sua divisa quem lhe deu foi Oxalá, sua coroa quem lhe deu foi Omolu 19 Aqui, na encruzilhada, entoo um oríkì fún Èsù, por Carlos
Ô salve o sol, salve a estrela, salve a lua, Henrique Veloso - Olùkó Baba Ònà
Saravá Seu Tranca Rua, que é dono da gira no meio da rua
Inã Inã mojubá! Inã Inã mojubá!
Saravá Seu Tranca Rua que é dono da gira no meio da rua Parte I – Cruzos e giras
(Ponto de Exu Tranca Rua)
26 poema em cruzo, por Luciana Pimenta

29 Nas encruzilhadas com Derrida, por Fábio Borges-Rosario


Vi um menino sentado na encruza
Perguntei o que que foi, perguntei o que que faz 43 Uma conversa (por telefone) entre seu Sete Encruzilhadas e a
Eu vim aqui desmanchar feitiço polaca Sophia Fleishmann, por Fernanda Siqueira Miguens
Mas pra Calunga eu já vou voltar
Vi um menino sentado na encruza 48 Os gêneros das (e nas) ruas, por Rafael Haddock-Lobo
Perguntei o que que foi, perguntei o que que faz
Eu sou Exu Mirim e aprendi a trabalhar 62 Becos, ruas, marquises e esquinas, por Marcelo José Derzi Moraes
Quem me ensinou foi Seu Tranca Rua
O seu feitiço eu vou quebrar 81 O Maraca era nosso: o futebol em tempos de arenização, por
Vi um menino sentado na encruza Adriano Negris
Perguntei o que que foi, perguntei, o que que faz
Quero um marafo pra beber e um charuto pra fumar 103 Samba, composição e espiritualidade, por Felipe Ribeiro Siqueira
O seu feitiço eu mandei embora para nunca mais voltar
(Ponto de Exu Mirim) 113 Mosquinha, por Teresa Dantas
114 O país do subúrbio: natureza incendiária, indústria de despejos, 275 Pensando uma Estética Africana, por Naiara Paula Eugenio
fábrica de ruídos, por Claudio Medeiros, Marcos Nascimento e Sérgio
Ortiz de Inhaúma 280 Onde vive a tua ancestralidade?, por Katiúscia Ribeiro Pontes

133 O Severino e a produção ética da Severinilidade, por Francisco 287 O pensamento filosófico de Rosa Egipcíaca e Estamira. Ensaios de
Veríssimo um apocalipse colonial, por Ulysses Pinheiro e Fabiano Lemos

150 Traço Cego, por Ana Emília Lobato


Oló

Parte II – Descolônias e Ancestralidade 314 Vidas Rasteiras, por Alberto Pucheu

152 O testemunho de uma mulher Guarani Nhandewa, por Sandra 329 Primeiro gole é do santo e a saideira é verso que não termina, por
Benites Guarani Nhandewa Luiz Rufino

160 O ressoar das palavras antigas, por Lucas Munduruku


333 Referências
165 Quando o vulcão olhou para mim: sobre o meu encontro com os
Mapuche, por Karine L. Narahara 351 Sobre os autores

187 Temejakrekatê: do gnosecídio à afirmação dos saberes Akrãtikatêjê 357 Nota final
no vale do Tocantins-Araguaia, por Ronnielle de Azevedo-Lopes

207 Sonho como exercício da diferença: o protagonismo ameríndio no


questionamento do fim, por Thamara de Oliveira Rodrigues

221 O ronco (ab)surdo das batalhas silenciadas: Foucault e o


colonialismo, por Diego dos Santos Reis

239 O Quilombismo: Uma expressão da filosofia política


afroperspectivista, por Lorena Silva Oliveira

260 Notas sobre educação pluriversal: África & Afrodiáspora, por Aza Njeri
Aza Njeri dicar nossa humanidade ainda é objetivo básico para luta antirracista e
Á frica & A frodiáspora
antigenocida.
Além das referências supracitadas, utiliza-se como fio suleador dos
I. I ntroduzindo a problemática meus estudos as elaborações dos filósofos e intelectuais africanos e afrodiaspó-
ricos como Mogobe Ramose, B. Fu Kiau, Cheikh A. Diop, Bas’llele Maloma-
Na história [...] o Negro não tinha lugar neste lo, Kabengele Munanga, Marimba Ani, Molefi Kete Asante, Maulana Karen-
currículo. Ele foi retratado como um ser huma- ga, Bell Hooks, Wade Nobles, Frantz Fanon, Sueli Carneiro, Renato Noguera,
no de ordem inferior, incapaz de sujeitar a pai- Azoilda Trindade, Neusa Santos, Henrique Cunha Jr., Beatriz Nascimento,
xão ao motivo e, portanto, útil apenas quando Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez. Também recorro às contribuições de
fez a escultura de madeira e baldes de água para
Bakhtin, Theodor Adorno, Edward Said, Roland Barthes, Anibal Quijano,
outros. Nenhum pensamento foi dado à história
Alberto Costa e Silva, entre outros.
da África, exceto pelo fato de ter sido um cam-
po de exploração para o caucasiano. (Woodson, A minha formação em letras me levou a atuar como professora língua
2018, p. 39.) portuguesa. Passei, rapidamente, pela educação básica e em seguida me estabe-
leci no ensino superior. Essa trajetória me fez entender que os educadores do
Este artigo é fruto das minhas pesquisas de doutorado/UFRJ ensino básico tinham uma grande responsabilidade no gestar a potência daque-
sobre educação pluriversal :

em Literaturas Africanas e pós-doutorado/UFRJ em Filosofias Africa- les educandos e que muitas vezes, se sentiam enclausurados em um modelo de
nas sobre África e Diáspora ministrado em diversos formatos educacio- ensino limitador das suas próprias potencialidades enquanto educadores.
nais - cursos, palestras, conferências, roda de conversa, debates etc. - Acessando aos escritos de B. Fu Kiau e Lukondo-Wamba (2000) e a
para docentes, estudantes, pesquisadores, artistas - em diferentes partes filosofia do Kindezi presente na obra Kindezi: the Kôngo art of babysitting en-
do país e que foi ministrado no Seminário Encruzilhadas com o título tendi que Kindezi é a arte banto-congo de Acender o Sol interior das crianças
“África e diáspora: cultura, história e sociedade” e também faz parte como parte da responsabilidade comunitária. Seria
das discussões oriundas do Núcleo de Filosofia Política do Laboratório
Geru Maa que eu coordeno no IFCS/UFRJ. (...) basicamente a arte de tocar, cuidar e proteger a vida
da criança e do ambiente, Kinzungidila, em que o desen-
Pesquiso África desde a graduação em Letras na UFRJ no ano
volvimento multidimensional da criança ocorre. A pa-
de 2004. Primeiramente nas Literaturas Africanas - em que sou mestre lavra “Kindezi”, um termo da língua “Kikôngo”, deriva
e doutora -, mas logo o diálogo com a história, sociedade, culturas e do verbo raíz Ieia, que significa desfrutar de tomar e dar
artes africanas aconteceu de forma a tornarem indissociáveis na minha cuidados especiais.
atuação e na compreensão do desdobramento na afrodiáspora. Cuidar de crianças – Ieia, ou seja, dar cuidados especiais
Em 2017, com a necessidade de fomentar minhas reflexões - é, antes de tudo, uma forma de transferir padrões so-
artístico-filosóficas, iniciei o pós-doutorado em Filosofia Africana, ciais para os membros mais jovens da comunidade. E,
em segundo lugar, é a orientação da criança para a vida
sob a orientação do professor dr. Rafael Haddock Lobo, em que, a
que compreende orientações muito bem determinadas
partir da perspectiva afrocêntrica de Molefi Kete Asante (2009) e da de acordo com as normas e valores comunitários. (ANI,
N otas

afroperspectiva de Renato Noguera (2012) refleti, discuti, tensionei 2018, trad. livre)
acerca dos caminhos para a reumanização dos negros, já que reivin-

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E Ndezi, aquele que pratica a Kindezi, seria o responsável por “ajudar cresçam com mais empatia, menos racistas e conscientes
esse ‘sol vivo’ a brilhar e crescer em seu estágio inicial” (ANI, 2018). Assim, ao de seu papel no mundo. (NJERI, 2019, p. 7)
pensarmos a educação a partir de eixos pluriversais (RAMOSE, 2011), pode-
mos utilizar a afroperspectiva do Kindezi para compreendê-la - não apenas a O que quero dizer é que, ao acessarmos exclusivamente uma educação
educação formal e institucional, mas também, todas as pluriformas de educar apenas de agência eurocêntrica universalizante, temos mais dificuldades em
- como possibilidade de acender o Sol interno dos nossos educandos para que resolver problemas de ordens plurais, já que a experiência para a resolução
eles tenham um livre caminhar na Vida. destes dramas parte de um único paradigma. Essa é sem dúvida, uma das
Esta compreensão me deu um fôlego para encampar uma perspectiva maiores questões da Universalidade Ocidental diante da Pluriversalidade das
emancipadora da educação. Agora, me entendo como uma Ndezi, aquela que nossas existências, sendo importante pontuar acerca da necessidade de pluri-
busca acender o Sol do outro, e que no meu o foco, é o Sol interno que con- diversificarmos as maneiras de Acender o Sol do outro. E é isso que pretendo
fere a nossa humanidade. neste artigo.
Quando me deparo, portanto, com a realidade histórico-social brasi-
leira, percebo que as falhas em acender o Sol das pessoas causam limitações
em seu livre pensar e nas suas livres escolhas, já que se retira as possibilidades
II. O que todos deveríamos saber sobre

de compreender a pluralidade de caminhos da Vida, apresentando, muitas das


Á frica e a afrodiáspora mas a escola não nos contou
vezes, trilhas para morte física, psicológica, cognitiva e espiritual.
É claro que o debate sobre educação libertadora não se esgota neste
artigo, mas pensar a pluriversalidade é tecer reflexões acerca do modelo limita- Você pode estudar a história como foi oferecida no nosso
sistema a partir da escola primária em toda a universida-
dor vigente praticado em nossa sociedade. Assim, esse artigo objetiva agregar
de, e você nunca saberia que os Africanos domesticavam
fôlego à discussão e não esgotá-la.
as ovelhas, as cabras e as vacas, desenvolveram a ideia
Uma educação emancipadora e dialogante com a contemporaneidade é de julgamento pelo júri, produziram os primeiros instru-
aquela que se preocupa com a pluralidade de formas de Ser e Estar no mundo, mentos de ferro. Você nunca saberia que antes da invasão
abandonando o único olhar excludente e homogeneizador universal da perspec- maometana cerca de 1000 dC, esses nativos no coração
tiva eurocêntrica sobre a compreensão de educar. Principalmente porque uma da África desenvolveram reinos poderosos que posterior-
educação que só apresenta uma forma de lidar com as problemáticas da Vida, mente foram organizados como o Império Songhai de
ordem como a dos romanos e se vangloriam de grandeza
tende a construir indivíduos limitados nas soluções de seus problemas.
semelhante. (WOODSON, 2018, p. 39)
Assim sendo, uma educação antirracista e emancipadora
deve preparar o sujeito negro para ser lúcido e crítico Molefi Kete Asante (2014) apresenta o paradigma da afrocentricida-
diante desta realidade, permitindo a sua autodetermina- de que pressupõe localização e a agência para uma mudança de paradigmas
ção e autoproteção enquanto ser humano, pois ele é o sociais: “Assim, a afrocentricidade é uma perspectiva filosófica associada com
alvo principal deste monstro e não pode ser alienado em a descoberta, localização e realização da agência africana dentro do contexto
relação a este fato. E, as crianças não-negras que acessa- de história e cultura” (Asante, 2014, p. 4). Agência significa que toda a ação
rão essa educação, compreenderão que o mundo não gira
que coloca na centralidade de seus fenômenos o olhar/interesse de seus agen-
em torno de si, seus valores e culturas, fazendo com que

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tes. Isso quer dizer que, diante da realidade da afrodiáspora brasileira, seria 4. O Nilo, o mais longo rio do mundo, possui o nome original Hapi
interessante a aplicação da agência dessa população de forma a fazer cumprir ou Iteru2, cujas margens testemunharam o surgimento dos Impérios de Ke-
não só a lei 10639/03, mas sobretudo, a mudança de paradigma para uma met (Egito), Kush (Núbia) e Abissínia (Etiópia) há cerca de 5 mil anos a.e.c..
equidade racial. (Diop, 2012, 1974; Asante, 2015, Silva, 1992)
Desta forma, começo aqui algumas notas informativas do que deve- 5. O Egito fica no continente africano, sua população atualmente é
ríamos ter aprendido na escola, mas a educação eurocêntrica universal nos ne- miscigenada entre negros, brancos e árabes, mas na sua origem era um territó-
gou1. Vale ressaltar que Educação é uma complexidade que envolve sistemas, rio negro. Seu nome original é “Kemet” que em medu neter (língua kemética/
pessoas e lugares, não sendo foco deste artigo procurar culpados, mas sim, hieróglifos) significa Terra Negra. (Diop, 2012, 1974). Kemet foi fundada a
convidar a todos a refletirem em conjunto sobre quais caminhos podemos nos partir da unificação de 42 cidades do Alto e Baixo Kemet, em uma confede-
lançar para a melhoria da Educação de maneira geral, e a educação escolar de ração pelo faraó Nemer em 3150 a.e.c.3. Sabe-se que em 3000 a.e.c. havia
forma específica. em Kemet cidades com até 100 mil habitantes, desenvolvidas, muitas vezes,
1. Raça é um conceito político e não biológico, já que biologicamente em torno de alguma construção artístico-arquitetônica como a esfinge ou as
somos pertencentes ao conjunto denominado Homo Sapiens. Sendo um conceito pirâmides, conforme descobertas arqueológicas que apontam a existência de
sócio-político, trago a definição de Molefi Asante (2010) acerca do racismo: cervejarias, padarias, casernas e áreas coletivas em torno do Complexo de Kar-
nak e das Pirâmides de Gizé, que até o século XIX foi a maior construção da
Racismo é uma estrutura de poder que privilegia uma humanidade com os seus 146 metros de altura e 240 metros de base.
raça em detrimento de todas as outras, desta forma,
6. Os núbios ou cuxitas são outro povo que desenvolveu experiência
pessoas brancas se beneficiam, mesmo que inconscien-
urbana, sua existência data de 1700 a.e.c. a 600 a.e.c.., fundado a partir da
temente, desta estrutura de poder e cabe a todos nós en-
tendermos tal dinâmica e combatê-la a fim de chegarmos união dos reinos de Kush e Meroë (Asante, 2007). Localizado à margem leste
a uma igualdade” (Asante, 2010, p. 17) do rio Nilo, onde hoje encontra-se o Sudão, a Núbia possuía uma rede de
distribuição de água do rio para as suas cidades, sobretudo Meroë (Napata), a
2. Diante da percepção da pluriversalidade da educação (Njeri, 2019), capital, onde se encontram as 117 Pirâmides de Meroë.
parece mais interessante desvincular da perspectiva cristã ocidental a marcação
temporal secular a.C. (antes de Cristo) e d.C. (depois de Cristo), para adotar Aquela cidade, que fica também com o nome de Napata,
devia, já então, ser o término da rota caravaneira de Mehei-
uma forma ampla e neutra a partir do A.E.C para Antes da Era Comum e
la. Vindo de Kawa, esse caminho reduzia a viagem entre as
E.C., Era Comum. Que em termos ocidentais, ainda tem o marcador tempo-
duas urbes (...) Napata pode ter sido importante escalada
ral zero (ano 0) no nascimento de Jesus Cristo, mas simbólica e linguistica- comercial para os produtos que, do sul da Núbia e das ter-
mente questiona a perspectiva cristã adotada na contagem do tempo. ras que lhe ficavam além, iam ter ao Egito, e dos antigos
3. A paleontologia já aponta evidências fósseis do surgimento do ser hu- egípcios vindo de volta. Foi também um ponto de partida:
mano (homo erectus) estar localizado no leste do continente africano a cerca de 2 do outro extraído das minas próximas à Quarta Catarata ou
milhões de anos e a espécie que pertencemos, Homo Sapiens, também compro- que se espalhavam entre Abu Hamed e o Mar Vermelho.
E um pólo de atração e chegada. (Silva, 1992, pp. 97-98)
vadamente surgiu na África Oriental a cerca de 200 mil anos. (Diop, 2012, 1974)

1 Essa notas são exemplos da omissão de África e Afrodiáspora no currículo escolar, estando muito 2 Nomes do rio em Medu Neter, a língua de Kemet (Egito). Asante, 2007.
longe de encerrar o debate ou esgotar as possibilidades de exemplificação. 3 a.c.e equivale a “antes da era comum”, termo que vem substituir a.c., antes de cristo.

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7. Abissínia é o nome original da região ao sul do Egito que os gregos 12. Em 760 a.e.c. a maior marinha mercante e bélica do mundo era
chamaram de Etiópia, e passou, a partir do século I e.c.4, a praticar a fé cristã Núbia. (Diop, 2012; Asante, 2015)
copta. A Etiópia também é herdeira do reino de Punt, constantemente refe- 13. Os Olmecas, descendentes de núbios que se estabeleceram no Mé-
renciado pelos Keméticos, principalmente no período da importante per-aat xico, são uma sociedade mesoamericana, cuja cosmovisão é africana e que
(faraó) Hatshepsut do século XV a.e.c., que constantemente enviava expe- desenvolvia comércio e possuía estrutura social semelhante à encontrada em
dições a este reino, sobretudo para trocas comerciais. E no século IV e.c.. o África. Além disso, construíram pirâmides como as encontradas em Moröe
território torna-se parte do Reino de Axum, um grande império africano que que circundam as cabeças olmecas, um conjunto de esculturas em pedra úni-
durou até século XII e.c.. (Asante, 2015; Silva, 1992) ca de basalto, no formato de cabeças com fenótipo negro portando elmos
8. Na região de Kemet, Kush e Abissínia surgiram a escrita, literatura, semelhantes aos usados pelos núbios. (Sertima,1976).
filosofia, matemática - que origina da palavra, categoria filosófica-espiritual e 14. O Império de Ghana/Wagadu (830ª.e.c./1235 e.c.) foi detentor
deusa da Justiça, Maat - yoga kemética, astronomia, medicina. (Diop, 1974) de uma grande reserva de ouro, estabeleceu comércio com povos norte-afri-
9. Imhotep ou “aquele que vem em paz” viveu no século XXVII a.e.c. canos, asiáticos e europeus. Essa história está registrada pelos historiadores
e foi um polímata de Kemet. Atuou como vizir do per-aa (faraó) Djoser da árabes, Ibn-Khaldun (1332 e.c.), Ibn-Hawkal (Séc.X e.c.), Ibn-Batouta (1302
Terceira Dinastia e como sumo-sacerdote do deus-sol Rá, em Heliópolis. Ele e.c.). A origem desse império remonta ao povo Soninke (mandê) e ao rio
é considerado o primeiro engenheiro, arquiteto e médico da história, embo- Níger, cuja palavra Gana, em sua língua, significava o título de rei supremo
ra dois outros médicos, Hesi-Rá e Merite-Ptá, tenham sido contemporâneos e, por serem negociadores de sal e ouro, o reino de Gana recebe a alcunha
seus. (Asante, 2015; Diop, 1974; Silva, 1992) de “Kaya Maghan”, isto é, o mestre do ouro. Este reino, também conhecido
10. Hatshepsut foi a primeira rainha da humanidade que se tem notí- como Império Uagadu, controlava e regulamentava a exportação de ouro,
cia, filha de Amenófis II e Akhoptou II, neta de Tutmósis I. Ela ocupou o pos- possuindo vigoroso comércio com outros povos da região como os Wolof,
to de faraó (per-aat) durante 21 anos, entre 1479 a.e.c. e 1458 a.e.c. (Diop, Serer, Amazighs e outros, além de ser reconhecido por sua habilidade em co-
1974, 2012; Asante, Mazama, 2010) mércio, negociação e guerra. A capital do império era Cumbi-Salé, localizada
11. Os gregos, assim como outras pessoas de diferentes regiões, estu- na atual Mauritânia, que
davam nas escolas keméticas desenvolvedoras de saberes filosóficos, artísticos
e matemáticos desde o século XXVII a.e.c.. Essas escolas eram compreendi- foi uma cidade de mercadores ricos, um grande centro
comercial com entre 15 e 20 mil habitantes. (...) As ca-
das como templos de sapiência e evolução. O George James na obra “Stolen
sas, muitas delas de dois andares, são sólidas, de paredes
Legacy” (1954), aponta a relação dos filósofos clássicos gregos com o Egito.
grossas , com nichos triangulares e retangulares, seme-
lhantes aos encontrados em Tegdaoust. Deviam estar re-
Em relação à Sócrates e Aristóteles e a maioria dos filó-
vestidas por um reboco amarelo e polido, que há ainda
sofos pré-socráticos,a história parece ser omissa sobre a
poucos restos. Algumas moradias eram grandes. Uma
questão da sua viagem para o Egito, (...) com o propósito
tinha 19,8m por 12,6m e sete cômodos, distribuídos em
de sua educação. É o suficiente dizer que, neste caso, as
dois pavimentos, ligados por excelente escada. Outra,
exceções provaram a regra, que todos os estudantes, que
nove quartos. Desvendaram-se também umas ruínas de
tinham os meios, foram para o Egito para completar sua
mesquita e amplas áreas de palhoças e pequenas casas de
educação. (JAMES, 1954, p. 53, trad. livre)
barro - as habitações mais pobres. (Silva, 1992, p. 253)
4 e.c. equivale a “era comum”, termo que vem substituir a d.c., depois de cristo.

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15. O islã, a partir da expansão almorávida nos séculos XI e XII, passa o Mali. Neste convite, chega Abu Ishaq Ibrahim al-Sahili responsável pela am-
a dominar a região do Gana, Mali e Mauritânia, estendendo-se pelo Marro- pliação e construção de mesquitas de Gao (Songai) e Timbuktu, empregando
cos, atravessando o Mediterrâneo até chegar ao centro da Península Ibérica, tijolos pela primeira vez nessa parte do mundo, mesclando com toda uma
influenciando permanentemente as culturas, concepções filosóficas, linguísti- tradição milenar arquitetônica de construção destes povos, criando assim, o
cas e tecnológicas de todos os povos dessas geografias. que a História atribuiu chamar de arquitetura sudanesa: “(...) novo estilo ar-
quitetônico, dito sudanês, com suas torres em forma de pirâmides truncadas,
A empresa almorávida deixara no Sael marcas permanen- suas pequenas janelas, seus extensos terraços” (Silva, 1992, p. 297).
tes. Em primeiro lugar, porque contribuiu para a isla-
18. As invasões europeias ao continente africano vão ocorrer a partir
mização de grande parte das populações do Sudão Oci-
das grandes navegações e da lógica do dividir para conquistar (Fanon, 2005) e
dental, (...) depois, porque destruiu o equilíbrio entre a
agricultura e a pecuária existente do Sael. (...) Em 1203 terão como consequência o início do sequestro do Atlântico, onde foram reti-
ou 1204, os sossos [povo mandinga] tomaram militar- rados oficialmente de África cerca de 20 milhões de pessoas, sendo 11 milhões
mente Gana. Cumbi, se a ela correspondem realmente as destinados à Amérikkka6. Acredita-se que 2/4 dos sequestrados morriam na
ruinas de Koumbi Saleh, continuaria, porém, a ser uma travessia e ⅓ dos navios tumbeiros sofriam rebeliões e eram destruídos e afun-
importante urbe até o século XV. (Silva, 1992, p. 260). davam. “A escravidão do Atlântico é a única voltada para um grupo étnico
específico, mesmo que se convertessem ao cristianismo” (M’Bokolo, 1998).
16. As invasões árabes ao continente africano são as introdutoras do
19. A escravidão árabe tinha como foco principal o ouro sudanês e as
regime de escravidão em África. A colonização árabe na região baseia-se na
especiarias africanas e era utilizada para fins domésticos; a escravidão europeia
miscigenação e islamização, confrontando-se diretamente com o matriarca-
tinha como foco o comércio de pessoas como foco na objetificação de seres
do africano. Cerca de 13 milhões de africanos foram escravizados pelos rei-
humanos para obtenção de lucro. (M’Bokolo, 1998; Asante, 2015)
nos muçulmanos e 4 milhões por árabes e orientais. (Moore, 2012; Diop,
20. Toda a Europa se beneficiou da cadeia escravista e compartilhou
2012,1974; Asante, 2015).
de seu espólio: França, Inglaterra, Portugal, Holanda, Espanha, Dinamarca,
17. O Império do Mali (séc. XIII – XVI e.c.) foi fundado por Sun-
Itália, Suécia e Brandemburgo; Rússia e países balcânicos receberam seu con-
diata Keita, homem pertencente a linhagem clânica dos caçadores Keita, cuja
tingente de escravos através do Império Otomano.(Asante, 2015)
história é envolta de aura mitológica, digna de epopéia5. Este império é cheio
21. Escravidão dentro do continente africano cresceu junto com o
de histórias de mansas (soberanos) desbravadores como Mansa Abubakari II
comércio do Atlântico. Assim como há o alinhamento de africanos à prática
(ou Mansa Gao) que “mandou preparar uma frota com 2000 canoas, metade
escravista, em muito maior proporção foram as guerras de resistência a esse
das quais com água e provisões. E partiu ele próprio numa delas. Nada mais se
sistema como a Guerra dos Marabus e Movimento Iorubano no século XVII.
soube da expedição” (Silva, 1992, p. 294), ou o Mansa Musa, seu filho, que é
(Asante, 2015; Silva, 1992)
considerado o rei mais rico da história da humanidade, passando a figurar na
22. Portugueses se envolveram diretamente nas redes africanas de
cartografia mundial como o rei que em sua viagem à Meca, distribuiu ouro, de
guerra e comércio e trocavam seres humanos por rifles, pólvora, ferragens,
tal forma “que o metal se desvalorizou, durante muitos anos, no Oriente Pró-
panos, conhaque etc.. (Asante, 2015; Silva, 1992)
ximo, em relação à prata.” (Silva, 1992, p.295). Ao retornar de Meca, Mansa
23. Nzinga Mbande é um dos símbolos de resistência às invasões eu-
Musa convida artistas, intelectuais, arquitetos e engenheiros para desenvolver
6 Utilizando da faceta semiótica da linguística, utilizo a grafia de Amérikkka como referência ao
5 Referência à obra de Djibril T. Niane chamada “Sundjata Ou a Epopéia Mandinga”. Ocidente supremacista, materializado no símbolo da Ku Klux Klan.

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ropeias, viveu entre 1583 e 1663 e foi governante do reino dos Reinos Ndon- sas de reação ideológica, social, político-militar” (...) “O quilombo foi uma
go e Matamba (Congo-Angola). Ela resistiu aos portugueses a partir de estra- forma de organização política e social com implicações ideológicas muito for-
tégias militares e alianças, sendo uma delas a conversão para fins políticos ao tes na vida do negro no passado e se projeta, após a abolição, no século XX”
cristianismo, sendo batizada de Ana de Souza. Entretanto a aliança foi rompi- (Nascimento, 2018, p. 74/98). Ou seja, quilombos eram mais do que lugares
da e um longo processo de guerra se estabeleceu. Após a sua morte em 1663, para onde fugiam os negros escravizados, eram espaços de reontologização
cerca de 7 mil soldados de seu reino foram encarcerados e sequestrados para africana dentro do território da América.
o brasil7, onde Nzinga passou a figurar memória em várias manifestações 28. Quilombo dos Palmares, cujo nome original é Ngola Jaga ou
culturais como folguedos da festa de reis dos negros do Rosário, na congada e Angola Janga, foi a primeira república africana dentro do território da
no candomblé angola. (Silva, 1992; Nascimento, 2018) Amérikkka. A historiadora Beatriz Nascimento (2018) aponta que essa
24. Kimpa Vita (1684/1706) é outra figura de destaque na resistência república chegou a ter 20 mil pessoas em seu auge e foi construída em
em África. Foi uma profetiza e líder política no Congo, que desafiou o cris- formato de 7 cidades de modelos africanos, cuja capital era chamada de
tianismo questionando a figura de Jesus e localizando-o como um homem Macaco. Após a destruição de Palmares, os remanescentes fundaram qui-
negro. Foi acusada como herege e queimada viva sob a alcunha de D. Beatriz. lombos menores que foram ao longo do tempo se deslocando para o norte
(Asante;Mazama, 2010) e sudeste do Brasil.
25. A diáspora africana surge desse processo que Marimba Ani chamou de 29. Com o fim da escravidão, os europeus passaram a olhar o conti-
Maafa, isto é, o grande desastre/holocausto negro que se moderniza a cada século. nente africano com fins de colonização e apropriação/exploração de riqueza.
A descolonização do continente se dá a partir da segunda metade do século
O processo ontológico pelo qual passaram as pessoas XX após longos períodos de guerra colonial. (Asante, 2015; Unesco,2010,
negras durante os últimos 500 anos causou uma fratura
Fanon, 2005),
epistêmico-ontológica que se reflete em um permanente
30. Outros nomes importantes da resistência africana à invasão e colo-
desenraizamento de sua subjetividade. A diáspora africa-
na, cortada de seus laços-pilares como família, cultura, nização europeia ao continente: Shaka Zulu, Ngungunhane, Yaa Asantewaa,
história, saberes, é um produto da Maafa (Ani, 1994) Titina Silá, Patrice Lumumba, Steve Biko, Kwame Nkrumah, Amílcar Ca-
- holocausto negro -, que em sua complexidade, abarca e bral, Samora Machel, Graça Machel, Thomas Sankara, Jomo Kenyatta Win-
descarrila (Nobles, 2009) o ser e o estar do sujeito negro. nie Mandela, Nelson Mandela.
A escravidão iniciada no continente africano pelos inva- 31. A escravidão no brasil termina oficialmente em 1888, não por
sores árabes (Diop, 2014) é sofisticada e potencializada
conta do mito da Princesa Isabel, mas pelo árduo trabalho organizado pelos
pelos brancos europeus, que a utilizaram como a base
próprios negros. Nomes como Luís Gama, Maria Firmina dos Reis, Machado
de seu enriquecimento, exploração e dominação. (Njeri;
Sisi; Aziza, 2018, p. 120) de Assis, André Rebouças e José do Patrocínio recebem destaque, mas muitos
outros anônimos construíram este momento histórico.
26. Data de 1538 o primeiro registro da chegada de africanos ao terri- 32. Com o fim da escravidão não se criaram políticas públicas para
tório brasileiro iniciando a rota de destino para mais de 5 milhões de seques- absorver a parcela da população brasileira, levando-os ao descaso e abandono.
trados e originando a maior diáspora africana do mundo. (Nascimento, 2018) O regime brasileiro também criou leis como a da vadiagem que encarcerou
27. Quilombo, que em bantu significa união, “são tentativas vitorio- homens negros capoeiristas e aqueles que não tinham emprego formal.(Sch-
7 Utilizando a faceta semiótica e política da linguística, utilizo a grafia brasil com letra minúscula. warcz, Starling, 2015)

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33. O Brasil república adotou uma política de embranquecimento da Apesar deste cenário, a população negra, agarrada em seu conjunto de
população brasileira que incentivou a imigração europeia a fim de miscigenar crenças e valores civilizatórios, resiste a séculos de violências genocidas atua-
e clarear a população. Nina Rodrigues é um dos nomes importantes dessa lizando-se nas estratégias de sobrevivência. Sendo relevante que a educação
política. (Schwarcz, Starling, 2015) lance um olhar nutridor para essas experiências a fim de incorporá-las tam-
34. Surge o mito da democracia racial brasileira enfatizada e defendi- bém como possibilidades para si, não só porque, cerca de 54% da população
da pelo lusotropicalismo de Gilberto Freire. brasileira se declara negra e parda, mas sobretudo, porque quanto mais plu-
riperspectivas na educação, melhor é o processo de acendimento do sol dos
E (...) nos localizamos na maafa brasileira, que, como educandos para o seu livre caminhar na Vida, pois a ampliação de seu olhar
alertam Abdias Nascimento (2017) e Lélia Gonzalez
para a Vida é imprescindível para a resolução dos problemas da existência. A
(2018), é ultrassofisticada no grau de alienação negra.
educação, portanto, não deve perder de vista que a escrevivência8, perpassa
Estabeleceu-se uma cegueira racial por parte dos negros
e pardos a partir de uma crença imposta na propaganda estar vivo no sentido integral do termo.
da democracia racial e de um recorte focado em classe
ou gênero, colocando-se em segundo plano o item ver-
tebral de discussão que é a raça. (Njeri; Ribeiro, 2019, III. P luripráticas e P luriperspectivas : reflexões
pp. 598-599)

35. Wade Nobles (2009) nos apresenta a metáfora do descarrilamento O que agora os negros estão sendo ensinados não guia
africano e afrodiaspórico, isto é, a violência desumanizadora da imposição suas mentes em harmonia com a vida (...).
europeia sobre os negros africanos foi tamanha que retirou essas pessoas de (Woodson, 2018)
seu trilho civilizatório, e que, como um trem, esses seres humanos se descar-
O desafio do século XXI é fazer com que sejamos seres humanos mais
rilaram e passaram a vagar pelos séculos a margem de seu próprio eixo, sem
conscientes e responsáveis pelo nosso papel enquanto agentes neste mundo e
sua própria agência.
isso só será possível no momento em que a educação se permitir olhar a partir
A metáfora do descarrilamento é importante porque de outros ângulos os fenômenos e as leituras que ela comporta. Assim, interes-
quando isso ocorre o trem continua em movimento sante observar a matemática a partir das geometrias das tranças nagôs (Santos,
fora dos trilhos; o descarrilamento cultural do povo 2013), ou estudar geologia com práticas e saberes ameríndios, ou ainda cantar
africano é difícil de detectar porque a vida e a expe- cantigas de jongo e capoeira na educação infantil.
riência continuam. A experiência do movimento (ou Lançar mão de recursos audiovisuais também é interessante. Por meio
progresso) humano continua, e as pessoas acham difícil
do cinema conhecemos a história e nos inspiramos em personalidades de des-
perceber que estão fora de sua trajetória de desenvol-
vimento. A experiência vivida, ou a experiência dos
taque, como o filme “Malcolm X” de Spike Lee fez comigo criança; com po-
vivos, não permite perceber que estar no caminho, se- dcast podemos discutir os livros da Carolina Maria de Jesus ou os quadrinhos
guindo sua própria trajetória de desenvolvimento, pro- de Marcelo D’Salete; pelas músicas refletimos sobre problemas sociais como
porcionaria a eles uma experiência de vida mais signifi- nas letras de Emicida e Racionais. Toda arte é material de educação e podemos
cativa. (Nobles, 2009, p. 284) fazer uso livremente disso.
8 Conceito elencado por Drª Conceição Evaristo ao longo de sua obra literária.

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Desta forma, acessaríamos, ainda nas fases da aprendi- 1
Naiara Paula Eugenio

E stética A fricana
zagem infanto-juvenil, informações sobre grandiosidade
do Império do Mali, tal qual aprendemos sobre o im- Considerando o questionamento sobre a existência de uma es-
pério romano; leríamos nas creches as obras infantis de
tética no continente africano apontamos os estudos da doutora Ka-
Lívia Nathália, Ondjaki, Bell Hooks assim como lemos
as de Ruth Rocha e Ana Maria Machado; aprenderíamos
riamu Welsh-Asante acerca das numerosas discussões sobre o assunto:
geometria a partir da etnomatemática; além de cantar-
A ciência da percepção sempre existiu na África.
mos no recreio canções de jongo junto da “ciranda-ci-
Se você define a estética como uma ciência da
randinha”. Acredito que os ganhos de conhecimento de
percepção, então uma discussão sobre a estética
mundo e a aprendizagem aguçam-se a partir da multipli-
na arte africana pode começar. Uma definição
cidade de abordagens e faz com que tanto crianças negras
funcional de arte precisa ser empregada para
e pardas, quanto as brancas tornem-se respeitadoras, éti-
nossos propósitos aqui. Eu gosto desta definição:
cas, empoderadas e tolerantes. (Njeri, 2019, p. 8)
‘Onde quer que materiais recebam forma, onde

uma
quer que o movimento tenha direção, onde quer
A própria concepção de educação deve ser tensionada para que novos
que a vida tenha, por assim dizer, linha e com-
cenários e práticas pedagógicas possam ser integradas no fazer escola. Uma posição, lá temos inteligência e então temos essa

P ensando
educação plural, portanto, é aquela que também escuta as epistemologias não transformação de um determinado caos em uma
eurocêntricas e constrói saberes a partir de plurivisões, permitindo que en- ordem desejada e desejável,’ Novamente, se você
contremos soluções mais adequadas e criativas aos problemas impostos pela usa essa definição, a arte existirá na África tra-
contemporaneidade. dicional.2
Pensar novos olhares paradigmáticos nas relações ensino-aprendiza-
gem e escola-professor-aluno significa questionar certas verdades históricas Na África tradicional, mais especificamente na Iorubalândia
e adotar novos comportamentos que visam a ampliação de saberes e, conse- tradicional, para onde direcionamos essa parte do estudo, todas as coi-
quentemente, novas redes de solidariedade entre os seres humanos. sas são avaliadas esteticamente: comidas, comportamentos, ensinamen-
tos da tradição, um objeto de arte, elementos naturais… Para garantir
que cada coisa esteja em perfeito equilíbrio social existe um indivíduo
chamado Amewa, o conhecedor de beleza, o estudioso da beleza, aquele
que procura a beleza nas coisas. O Amewa é um filósofo das artes e do
comportamento humano; ele especula sobre o belo e procura pelo belo

1 Nesse texto escolho não notificar a acentuação Iorubá por motivos técnicos.
2 WELSH-ASANTE, Kariamu. The African Aesthetics: Keeper of the Traditions. Londres:
Praeger, 1994, pp. 1-2. Tradução nossa: “The science of perception has always existed in
Africa. If you define aesthetics as a science of perception then a discussion about aesthetics
in African art can begin. A working definition of art needs to be employed for our purposes
here. I like Edman’s definition, wherever materials are given form, wherever movement has
direction, wherever life has, as it were, line and composition, there we have intelligence and
then we have that transformation of a given chaos into a desired and desirable order. Again
if you use Edman’s definition of the arts then art exists in traditional Africa.”

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