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RESUMO
O objetivo deste artigo é definir e caracterizar a entrevista narrativa mediada a partir das experiências de
pesquisas em desenvolvimento humano, realizadas pelo grupo de pesquisa em Pensamento e Cultura,
da Universidade de Brasília. Para tanto, foram analisados doze textos: quatro dissertações de mestrado,
cinco teses de doutorado e três artigos. A entrevista narrativa mediada é uma técnica de pesquisa que
favorece o estudo de fenômenos em desenvolvimento humano por permitir o aprofundamento das
narrativas, com a inclusão de novos personagens e relações entre eles; além de vozes e posicionamentos
específicos, gerados pelo contexto de interação do/a participante com o artefato mediador.
O
objetivo deste artigo é definir e caracterizar a entrevista narrativa mediada a partir das
experiências de pesquisas sobre desenvolvimento humano realizadas pelo grupo de
Pesquisa Nome, vinculado à Universidade Nome, Brasil.
a) os fenômenos psicológicos são culturais, ou seja, são mediados por artefatos sociais na
medida em que seus conteúdos, modos de operação e relações dinâmicas são criados e
partilhados socialmente por um número de indivíduos, integrados com outros artefatos
sociais;
b) a explicação do desenvolvimento humano passa pela compreensão de como os sujeitos
humanos produzem significados por meio de múltiplas vozes, que se encontram
imersos em contextos interacionais variados;
Como animal narrador, toda cultura é tecida pelo contar histórias. A possibilidade de contar
histórias enfeitiça o ser humano, porque elas permitem a comunicação de emoções, idéias e lógicas de
pensar (Brockmeier & Harré 2003; Jovchelovitch & Bauer 2003). O gênero da narração é o que traduz
esta íntima relação do ser humano com a possibilidade de participar de histórias, modificá-las e recontá-
las. E é sobre este fato, o de produzir histórias que pensamos as entrevistas narrativas mediadas por
artefatos.
A narrativa é um tipo especial de discurso porque pode ser contada e re-contada, interpretada
e re-interpretada (Benjamin 1983). Ela organiza os fatos encadeados numa seqüência temporal: início,
meio e fim, porém, essa ordem não é rígida, podendo ser alterada pela vontade do/a autor/a em sua
relação com o/a interlocutor/a-ouvinte ou a audiência (Bakhtin 1992). As características que mais
qualificam o discurso narrativo, segundo Brockmeier and Harré (1997), são os personagens e um
cenário no tempo. Bruner (1997) concorda, destacando além da seqüencialidade e da narrativa ser um
espaço para a negociação de significados, a indiferença factual, ela pode ser real ou fictícia, e a
canonicidade. Por canonicidade, entende-se o fato de as narrativas focarem o comum, o usual, o mais
freqüente e aceitável na cultura.
Brockmeier and Harré (1997) são autores que ampliam a definição de narrativa por trazerem o
contexto social, histórico e cultural de sua produção. Para eles, as narrativas são um conjunto de
estruturas lingüísticas e psicológicas, transmitidas e transformadas pela cultura, construídas pelo nível
de conhecimento do indivíduo e suas características pessoais. A cultura constrói a narrativa e vice-versa.
as narrativas são formas inerentes em nosso modo de alcançar conhecimentos que estruturam
a experiência do mundo e de nós mesmos. Em outras palavras, a ordem discursiva através da
qual nós tecemos nosso universo de experiências emerge apenas como um modus operandi do
próprio processo narrativo (p. 10)
Apesar de os autores tentarem apresentar uma definição estruturada sobre o que é uma
narrativa, eles e outros (Amatuzzi et al. 1994; Brioschi & Trigo 1987; Bruner 1997; Queiroz 1987)
apontam, por outro lado, a dificuldade de defini-la. As dificuldades dizem respeito à:
ENTREVISTAS NARRATIVAS
Entrevistas são técnicas de pesquisa que prevêem, obrigatoriamente, a produção de
informações por meio da interação entre o/a pesquisador/a e o/a participante (Yin 2016), tratando-se,
portanto, de uma técnica fundamentada no relacionamento social em um determinado contexto. Para
Linell (1998), os contextos são fenômenos semióticos, repletos de significados construídos nas relações
sociais dos indivíduos e de seus grupos. Trata-se de um conceito multifacetado composto por aspectos
perceptivos, ligados ao espaço físico e abstrato, ao conhecimento prévio, às pessoas envolvidas, ao tipo
de encontro e de atividade e ao conhecimento geral sobre o mundo. São resultantes de um dialógico e
histórico em-sendo (Bakhtin 1995) e tornando-se de uma dada sociedade; são fluidos, estão sempre em
mudança, habitados por diferentes instrumentos, linguagens e jogos de construção de significados, e
diferentes relações de poder na consolidação desses significados. Neste sentido, contextos são
construídos e transformados pela ação social dos atores que também se transformam nas interações que
aí se processam.
Há diferentes tipos de entrevista: aberta, semi-estruturada, estruturada, como proposto por Gil
(2008), ou ainda, estruturada e qualitativa, como proposto por Yin (2016), entre outros. Neste artigo,
focamos as entrevistas narrativas, especificamente, a entrevista de história de vida e a entrevista
narrativa mediada. Usaremos entrevista de história de vida, por entendermos sua abrangência a este
contexto.
pode usar: “você estava falando sobre tal assunto”, ou ainda, movimentar a cabeça e
usar a linguagem gestual para indicar que está atento/a à narrativa. A análise da
narração se atém ao dito pela pessoa, considerando a forma e o conteúdo como ela
disse, suas categorias e ordem cronológica apresentada;
b) segunda variação: parece com a primeira exceto que se faz uma delimitação, ou seja,
pede-se à pessoa que narre sua história sobre um aspecto específico da vida, que pode
ser o trabalho, a família, o estudo, enfim, depende do objeto que se quer investigar. Um
comando para esta variação seria: "fale sobre o seu trabalho". A análise é idêntica à
anterior;
c) terceira variação: neste caso, há um misto entre um relato mais livre e um mais diretivo
porque se pretende obter o testemunho, o relato da pessoa sobre sua vivência em
alguma instituição. Assim, o relato de suas vivências é livre, porém ele deve estar ligado
a dados sobre as entidades. Esta técnica é um misto de história oral com relato de vida.
Um exemplo seria: "fale de suas vivências no sindicato X".
Todas as variações são válidas, sendo que o objetivo da pesquisa guiará a escolha de uma ou
várias delas, a depender do delineamento da pesquisa. O uso de diferentes estratégias de construção de
informações na pesquisa qualitativa é valorizado porque possibilita a triangulação de informações,
técnicas e delineamentos (Flick 2009) e, na pesquisa em desenvolvimento, esta valorização se dá pela
oportunidade que a pessoa entrevistada pode ter de se colocar em diferentes posicionamentos no
contexto da entrevista, entendendo por posicionamento as características, as funções e o lugar social
que a pessoa constrói e assume para si e para o outro ou os outros na interação interpessoal e/ou
intergrupal (Harré & Van Langenhove 1999). Dessa maneira, por exemplo, em uma entrevista narrativa
aberta, a pessoa pode narrar sobre como brincava de ser professora na infância e, num segundo tipo de
entrevista, mais diretiva, ela pode narrar como compreende, atualmente, como se sente e atua como
professora (Góis 2017).
A PESQUISA BIBLIOGRÁFICA
A pesquisa bibliográfica da qual tratamos neste artigo foi realizada a partir da seleção de
quatro dissertações de mestrado: Caixeta (2001), Carlucci (2008), Forcione (2013), e Gois (2017); cinco
teses de doutorado: Caixeta (2006); Borges (2006), França (2007), Carlucci (2013) e Sousa (2011) e três
artigos Caixeta and Barbato (2001) e Alves et al. (2016), Borges (2012) de pesquisadoras e de
pesquisadores participantes do Grupo de Pesquisa Nome, que utilizaram e desenvolveram a técnica da
entrevista narrativa mediada.
Para a análise, considerou-se o uso das entrevistas narrativas mediadas por artefatos utilizadas
nos trabalhos acadêmicos listados.
Do ponto de vista das narrativas, o grupo percebeu que o uso de artefatos nas entrevistas
narrativas em pesquisas sobre o desenvolvimento humano permitem aprofundamentos da narrativa,
que podem ser sucessivos, a depender do delineamento dos procedimentos, de forma que o/a
pesquisador/a, na interação com o/a participante e, na análise das informações construídas, pode
identificar os pontos de mudança do processo de desenvolvimento, exemplo: casamento, nascimento e
morte de filhos (Caixeta 2006; Góis 2017) ou assinatura de contrato de trabalho (Carlucci 2008; Góis
2017). Tais aprofundamentos da narrativa são possíveis porque provocam o/a entrevistado/a a pensar
sobre si e sobre o seu cotidiano, em tempos passado, presente e futuro, por meio de artefatos que vão
além do próprio artefato. Assim, por exemplo, uma entrevistada, guardiã da memória, na pesquisa da
Caixeta (2006), escolheu uma roupa de batizado para mostrar e para conversar sobre a peça. Nesse
encontro, ela se lembrou de como os filhos estranhavam o fato de terem sido batizados com roupas
que lembram roupas de mulheres:
Olga: Quando eu mostro pra eles, eles diz assim: - Mas mãe a gente batizava... a gente vestia
era essas roupinha de mulher? Eu falei: - É! Porque antigamente era tudo... a, os menino é...a
parte era azul né?! As menina, rosa. Mas era tudo igual. É, é, camisolinha, é! Era tudo assim.
Hoje em dia não, cada... a... também hoje em dia é, é assim. Cada um veste um macacãozinho,
quando é menina veste rosa né?! (risos) (Caixeta 2006 p. 158).
Do ponto de visto dos artefatos mediadores, eles são bem variados, podendo ser fotografias
(Caixeta 2001; 2006; Borges 2006), objetos (por exemplo, caixas, roupas, bonecas etc) (Caixeta 2006;
França 2007; Carlucci 2008; Góis 2017), filmes (Borges 2006; França 2007) e letras de RAP (Alves et al.
2016). Mas, independente de sua natureza, os artefatos, neste tipo de entrevista, tem a possibilidade de
provocar narrativa, porque situa a pessoa num contexto novo de resolução de problema: conte-me sua
história sobre este objeto ou esta fotografia, ou ainda, pode me explicar melhor sobre tal evento, ou
ainda, o que esta letra de RAP tem a ver com sua vida aqui na periferia? Os artefatos geram contextos
específicos de fala e cada contexto permitirá uma construção narrativa específica àquele momento
específico (Linell 1998; Brockmeier 1999), perpassando pelo cronotopo passado, presente e futuro, a
partir das lembranças e dos posicionamentos dos/as participantes na interação (Bruner 1987).
Quando, por exemplo, as participantes escolhem uma fotografia do álbum de família (Caixeta
2006) ou quando as próprias participantes produzem uma fotografia (Caixeta 2001; Borges 2006) e são
estimuladas a falar sobre elas, elas são colocadas num contexto de resolução de problemas porque são
estimuladas a falar de si, a construir significados por meio de imagens que se referem a sua própria vida
e, nesse momento, não é uma simples fotografia, é uma história que se concretiza e se sintetiza na
imagem impressa no papel fotográfico, no caso de nossas pesquisas, mas que ganha novos
entendimentos com a possibilidade da narrativa. Além disso, o próprio artefato mediador, como a
fotografia, está presente em uma história que faz parte da narrativa das entrevistadas. O ato de
fotografar é em si um momento ontogenético e filogenético, que compõe parte das narrativas. É
ontogenético, pois aconteceu em um momento vivenciado por aquela narradora; e filogenético porque
existe uma história da fotografia que regula comportamentos e valoriza o momento do fotografar,
mudando conforme as épocas. Todo esse entrelaçar de tempos e contextos gera significados
importantes para a pesquisa em psicologia do desenvolvimento humano.
Com isto, temos que a entrevista narrativa mediada supõe um delineamento metodológico
multimétodos (Góis 2017) ou multitécnicas, permitindo a triangulação de informações na pesquisa
qualitativa em desenvolvimento. Para Flick (2009), a triangulação é uma estratégia para se aprofundar o
estudo de determinado objeto. Dessa forma, os/as pesquisadores/as podem triangular teorias, métodos
de construção de informações e até eles/as mesmos/as no processo de construção de informações.
Em nosso grupo, utilizamos e valorizamos a triangulação (Flick 2009), ou seja, usamos vários
tipos de entrevistas, com uso de artefatos mediadores para que os/as participantes possam aprofundar
suas narrativas. O uso dos artefatos mediadores costuma trazer informações imprevisíveis para o
processo de investigação dos significados, como aconteceu no estudo de Borges(2006), em que uma das
participantes escolhe trabalhar com uma foto que queimou no ato da relevação, mas cuja imagem-
imaginária ou imagem-pretendida estava presente, para a participante, no ato da narração de um evento
da sua história em que aquela imagem (não)aconteceu. Tal objeto pode significar um ícone mnemônico
de um fato que já não existe mais, como o fenômeno que a participante escolher fotografar. Ou ainda,
quando um participante traz um pincel de quadro branco e explica que aquele pincel representa a sua
voz, a sua voz como professor, que é seu instrumento de trabalho (Góis 2017). Nestes casos, por
exemplo, os participantes se relacionam com um artefato que é não-artefato, ou seja, não é,
necessariamente, o que queriam interagir naquele momento, mas foi o que conseguiram compor para a
interação e nesta intencionalidade aprofundaram suas narrativas, tecendo novos significados de si no
estudo sobre os processos psicológicos socialmente construídos.
produzido a partir de um tempo que ficou no passado. Assim, ao descreverem as fotografias, as/os
participantes trazem para o presente um fato passado. Ao rememorar o que aconteceu, constroem
novos significados que dizem respeito ao que foi e ao que ocorreu no momento, mas também ao que
está ocorrendo no presente, com a perspectiva do que poderá ocorrer no futuro. A imagem funciona
como mediadora de uma narrativa presente para um fato que esteve no passado e, desse modo,
colabora para a construção de novos significados sobre o que já havia sido construído. Falar de algo
que já foi indica uma construção dialética entre presente, passado e futuro em que cada fato possui
novas representações diferenciadas e transforma constantemente o pensamento verbal. Para Barthes
(1984), o registro fotográfico é a presentificação do morto: “O efeito que ela reproduz em mim não é o
de restituir o que é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de atestar que o que vejo de fato
existiu.” (p.123). Nesse sentido, sua função é dialética, porquanto através do registro do que já não
existe, há a possibilidade de presentificação, de manter vivo o instante passado. E, na captura do
instante, capturam-se também emoções e episódios completos, pois toda foto tem histórias e
interpretações possíveis. O instante apreendido na foto é mediador de uma memória abrangente e
contextualizada do que é apresentado. “A imagem traz informações (visuais) sobre o mundo que pode
ser conhecido de diferentes formas, inclusive em alguns de seus aspectos não-visuais” (Aumont 1993,
p.80).
mulheres, nas diversas interações sociais que tiveram ao longo das suas histórias e ao longo do processo
de construção de dados. Os posicionamentos foram: esposa, dona-de-casa, mãe/avó, filha, velha e
funcionária, onde existe uma forma de execução para cada posicionamento bem como conseqüências
para cada um deles e para o conjunto deles, sendo a maior consequência dos posicionamentos
femininos o cansaço.
Em um outro estudo sobre os significados do “ser professora” (Borges 2012), Joana, nossa
participante, trouxe para nós uma fotografia sobre um momento vivenciado na escola em que trabalha.
Neste estudo, o objetivo era de identificar os significados que as professoras possuíam em relação ao
que entendiam sobre ser professora, nesta interface investigou-se também como as relações entre o ser
mulher, o ser professora e o ser mãe interagiam. Como metodologia deste estudo, fizemos entrevistas
narrativas de histórias de vida e, logo após, foi pedido para que as participantes retratassem, por meio
da fotografia, quais os significados do ser professora. Foi escolhida uma das fotografias de nossas
participantes, Joana, para discutirmos como a fala mediada pela presença da fotografia pode construir
novos significados num jogo entre entrevistadora e entrevistada. O que se observou foi uma ampliação
das informações ocasionada pelo contexto semiótico da imagem apresentada.
A pesquisa de doutorado de Borges (2006) cujo objetivo foi analisar a construção do conceito
de Olhar em mulheres. Neste estudo, defendemos que os significados são construídos histórica e
culturalmente nas atividades sociais em uma dinâmica polifônica em que estão em jogo as relações entre
os conhecimentos contextualizados anteriormente e as atividades de co-construção de novos
conhecimentos. Para se alcançar esse objetivo, utilizamos a fotografia, o filme “Janelas da Alma” (2001)
e entrevistas narrativas, episódicas e mediadas. Os procedimentos de construção dos dados e a análise
dos dados seguem o paradigma qualitativo, utilizando-se a análise temática dialógica da conversação
para tratamento das entrevistas de história de vida e mediadas por fotografias e pelo filme. Participaram
do estudo quatro mulheres de Goiânia (Sol, Dama-da-Noite, Estrela e Lua), sendo duas casadas e duas
separadas e com pouco hábito de ir ao cinema. As mulheres que participaram do estudo trabalhavam e
eram mães. A exibição do filme foi designada como atividade principal, porque era uma atividade
diferenciada que introduziria novas informações sobre o conceito de Olhar, uma vez que o
documentário discute esta questão. Um outro fato é que a atividade do filme permitiu investigar quais
aspectos pontuariam as mudanças sobre o conceito discutido. Apesar do foco do trabalho partir da
leitura que as participantes teriam do documentário, toda atividade propiciou modificações do
indivíduo. Assim, as entrevistas e a feitura das fotos, mesmo sendo instrumentos para se entender o
objeto de estudo, o Olhar, também eram atividades que participaram da construção, modificando e
reforçando o significado do Olhar nessas mulheres. Foi solicitado às participantes que fizessem
fotografias antes e depois de assistirem ao filme. Após as fotografias feitas, procedeu-se à entrevistas
mediadas por elas.
Os resultados indicaram que as atividades sociais exercidas pelas mulheres orientavam seus
conceitos iniciais sobre o Olhar. Houve uma íntima relação entre suas atividades principais e sua
concepção do que é o Olhar. Mesmo que não exercessem o posicionamento de esposa, como Sol e
Dama da Noite, este posicionamento foi constantemente abordado como característica feminina. Da
mesma forma, a sensibilidade, a religiosidade e o sexto sentido também foram atribuídos à
individualidade feminina. As características da “nova mulher” misturaram-se com os valores antigos,
destacando-se a circularidade da cultura.
Assistir ao filme “Janelas da Alma” foi uma atividade que possibilitou a mudança dos
significados que compõem o conceito de Olhar. As mudanças não são descontextualizadas das
experiências das participantes, ao contrário, foram suas vivências que possibilitam uma nova
composição dos significados que incluiu significados aprendidos na atividade de assistir ao filme. O
fotografar também possibilitou uma nova reflexão sobre o Olhar mediada pela máquina de fotografia.
a) no primeiro encontro, antes de se iniciar qualquer conversa e gravação, foi lido o termo
de consentimento para participação em pesquisa. Após este procedimento e a aceitação
formal da participante, demos início à construção dos dados propriamente ditos, por
meio da técnica do relato de vida. Neste momento, pedíamos a cada senhora que nos
contasse a sua vida, da forma como desejasse.
b) O segundo encontro foi destinado para a entrevista episódica, que tinha o objetivo de
conhecer a função de guardiã da memória da família e os guardados de cada senhora.
Para tanto, foi utilizado o roteiro de entrevista. Apresentamos, aqui, as perguntas
realizadas: a senhora me disse que guarda algumas coisas (como: fotografias, roupas,
objetos, cartões, cachinhos de cabelo, citar, se necessário). Que coisas a senhora
guarda? A senhora pode me mostrar? (Caso a senhora faça coleção de fotografia, será
pedido que ela mostre o álbum, se possível, e escolha 10 fotografias para serem
estudadas com mais detalhamento); 2- Quando a senhora olha para o passado, a
senhora se lembra de quando foi a primeira vez que guardou essas coisas? A senhora
pode me contar como foi?; 3 – A senhora pode me dizer como é que escolhe se vai
guardar ou não determinada coisa. A senhora pode relatar uma situação em que teve
que fazer essa escolha?; 4 – Com quem a senhora compartilha esses guardados? A
senhora mostra para alguém? Em que ocasiões?; 5 – A senhora gostaria de acrescentar
alguma coisa? Como a senhora está se sentindo?; 6 – A senhora quer passar esses
guardados para alguém? Quem?
c) o terceiro encontro foi destinado à entrevista mediada propriamente dita. Nela, foi
priorizada a fala sobre as imagens e os objetos escolhidos. Neste momento, a
pesquisadora pedia para que a guardiã falasse sobre as suas escolhas: por que este
objeto/esta imagem e não outro/a? e, ainda, o que significa este/a objeto/imagem,
para você?
d) No último encontro, as guardiãs eram convidadas a acrescentar o que quisessem as suas
narrativas e processo de construção das informações com as guaridas era encerrado.
Para a análise das informações, utilizamos para a análise das fotografias: a análise dialógica da
imagem parada (Penn 2003) e, para as informações linguísticas, a análise temática dialógica (Caixeta
2001; Caixeta & Barbato 2004; Fávero & Mello 1997; Amatuzzi et al. 1994).
Os objetos mediadores tiveram triplo impacto sobre a atividade narrativa das guardiãs.
Primeiro, eles funcionaram como mapas de eventos, orientando as narrativas de si nos diferentes
tempos da narrativa: tempo do ciclo de vida, tempo das gerações, tempo da vida e da morte e nos
diferentes espaços: geográfico, social e afetivo (Caixeta 2006). Segundo, funcionaram como provas da
existência de pessoas e eventos vividos. Terceiro, acrescentaram novas experiências de vida, incluindo
diferentes práticas de colecionar, portanto, diferentes posicionamentos como guardiã, informações
relevantes para um estudo sobre identidade e memória e 4º. demonstraram que o posicionamento
guardiã da memória é dinâmico, intencional e criativo. As narrativas a seguir tem o objetivo de
exemplificar essas conclusões:
Júlia: levei e arrumei [as coisas do meu pai] (...), depois eu trouxe tudo de volta, comprei as
pastas, aí trouxe de volta e mostrei pra cada um, cada um teve uma reação super legal. (...)
[Meu irmão] teve uma reação surpreendente que ele começou a chorar assim a coisa abalou
mais que todo mundo porque eu por ter esse todo esse material assim já a gente vai se
acostumando. Eu trouxe as pastas organizadas do meu pai do álbum da minha mãe, fica ali no
quarto de TV e qualquer um que sentar ali, sempre fica mexendo já viu mais está sempre
vendo o álbum, remexendo porque ta próximo, então, senta e gosta de ver, né.” (Caixeta 2006
p. 162).
Ana: Uma vez eu descobri um desenho que um tio meu fez quando era adolescente, um
desenho mais maravilhoso do mundo, ele desenhava bem pra caramba. Mandei enquadrar mas
alguém veio: “Como esse desenho foi parar com a Ana?”; eu não faço ideia! Não sei se eu
roubo porque era um desenho muito famoso na família e porque que eu o tinha. Não me
pergunta porque eu não sei, acho que eu vou olhando e vou me encantando, de repente, acho
que ele é meu. Faz parte de mim (Caixeta 2006 p.163)
E continua...
Ana: momento de decidir, ah, este eu não sei não. É um momento assim do meu lado frio,
determinado que eu posso me desfazer de alguma coisa. Term a ver com a minha capacidade
de guardar mesmo, espaço, não tenho muito espaço, e às vezes não é isso não, às vezes é
capítulo, esse capítulo eu quero mudar, sabe. Ficar muito apegada a algum objeto que às vezes
me remete a uma falta de vontade de mudar, de tomar outros rumos (...). É que eu coleciono
tanta coisa que acho difícilimo, a parte mais difícil é desfazer, não é só com o espaço, mas é
principalmente vontade de mudar. Então, eu vejo que alguns objetos são estruturantes, estes
têm que ficar, são estruturantes da minha história, da minha pessoa: cartas; algumas dessas
coisas estão guardadas de forma aleatória, não estão organizadas bonitinhas não. Eu só
organizado quando pego um desafio. Como eu nunca peguei o meu, ainda está assim. Imagens,
fotos, pra mim, são fundamentais. (Caixeta 2006 p. 175).
moradores de bairro periférico e duas professoras. Como técnica de pesquisa, utilizou-se a entrevista
narrativa mediada por letras de RAP, cujo roteiro de entrevista foi composto por apenas uma pergunta,
antecedida pela leitura de trechos de músicas de RAP: Qual a relação desta letra de RAP com suas
vivências? Para a análise das narrativas, usamos a análise temática dialógica (Fávero & Melo 1997).
O uso de trechos de letras de música de RAP nesta pesquisa foi essencial para: a) aproximar
os/as pesquisadores/as da realidade vivida pelos/as entrevistados/as, especialmente, porque os/as
entrevistados/as, moradores/as da periferia, foram abordados/as na rua e não conheciam previamente
os/a pesquisadores/a; b) apresentar o objeto da pesquisa que se trata de um tema delicado: gangue; c)
permitir o contexto narrativo adequado para a narração de experiências complexas vividas na periferia,
como, por exemplo, a submissão à lei silenciosa das gangues, haja vista que a análise identificou que o
lugar periferia apresenta especificidades quanto a sua construção sociocultural que só pode ser
entendida a partir das relações humanas que lá se estabelecem. O lugar não é simplesmente um espaço
físico, senão um espaço social de construção de si e do outro, numa relação contínua de troca. Nestas
relações, as leis são tecidas de forma a orientar comportamentos neste espaço periférico, com base em
razões que são construídas pelas próprias gangues. Desta forma, a periferia experiencia, num estado de
direito, a contradição de viver sob a égide da lei marginal que define territórios, crenças e
comportamentos; que, por outro lado, reage por meio da arte, a arte da rua, do RAP, que denuncia a
exclusão social e as possibilidades de transformação social que emergem do confronto e do encontro
com as pessoas marginalizadas e não somente marginais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando a entrevista como um momento privilegiado de construção de conhecimento
sobre um tema específico entre participante e pesquisador/a, defendemos o uso dos artefatos
mediadores como elementos capazes de fomentar a reflexão e o posicionamento das pessoas sobre as
diferentes temáticas da pesquisa em desenvolvimento humano. Para isso, defendemos a entrevista
mediada como aquela que possibilita o aprofundamento das narrativas de si, porque problematizam a
situação narrativa, apresentando novos contextos que estimulam falar de si.
Além disso, entendemos que a técnica da entrevista narrativa mediada pressupõe o uso de
diferentes técnicas de pesquisa, garantindo a triangulação referente à utilização de uma variedade de
estratégias de construção de informações, o que favorece a construção de conhecimento em psicologia
do desenvolvimento. A expansão da consciência, provocada pelo contexto dos artefatos mediadores
das entrevistas, faz com que a produção de informações seja ampliada e traz novas polarizações nas
discussões estabelecidas entre os/as interlocutores/as. Este processo é favorecedor das investigações
sobre o sujeito na construção de si mesmo/a e sobre o outro.
As entrevistas mediadas propiciam um avanço das técnicas de entrevistas uma vez que vem
ampliar a possibilidade de informação e ao mesmo tempo um aprofundamento dos contextos
informativos através dos quais os/as interlocutores/as interagem e geram novos significados. Portanto,
vem ao encontro de solucionar um dos maiores problemas das pesquisas humanas e, em especial, as de
psicologia, que é o acesso a conteúdos subjetivos que nem sempre aparecem nas entrevistas narrativas
apenas pela linguagem, sendo necessária a presença de artefatos, que são capazes de mediar a interação
pela ampliação de contextos que viabilizam e enriquecem a produção de significados sobre si mesmo/a,
os outros e suas relações.
AGRADECIMENTOS
CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; CAPES -
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; FAPITEC – SE – Fundação de Apoio
à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe; Instituto Bancorbrás de Responsabilidade
Social.
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ABSTRACT
The purpose of this article is to define and characterize the narrative interview mediated from the
experiences of research in human development, carried out by the research group in Thought and
Culture, University of Brasilia. For that, twelve texts: four master's dissertations, five doctoral theses
and three articles were analyzed. The mediated narrative interview is a research technique that favors
the study of phenomena in human development by allowing the deepening of the narratives, with the
inclusion of new characters and relationships among them; In addition to specific voices and positions,
generated by the interaction context of the participant with the mediator artifact.