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Direito Penal II Aulas Práticas Godinho

Direito Penal II (Universidade de Coimbra)

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José Ferreira - Ano Letivo 2016/2017

Direito Penal II - Aulas Práticas (Godinho)

Aula 1 - 06/03/17

Introdução

De uma forma sintética, podemos considerar a seguinte “equação penal”:

Crime x = Tipo + (Ilicitude - Causas de Exclusão da Ilicitude) + (Culpa - Causas de Exclusão da Culpa)

No 1º semestre vimos a 1ª parte desta equação, mas não a equação toda. E portanto esta 2ª parte vamos começar a
estudar agora.

Se na construção do facto punível trabalhamos com os patamares em separado, em termos de construção dogmática
(conceção material do que é um crime), como já foi dito FARIA COSTA defende a figura do ilícito típico - porque o ilícito é
a tal precedência sobre o típico, porque o ilícito é que é o material (a tipicidade é uma categoria formal). Nesta
concepção o ilícito típico constitui o lado objetivo da infração (ainda não vimos nenhum afloramento de
subjetividade) - o ilícito típico é o objeto da responsabilidade jurídico-criminal (aquilo que se imputa ao agente).

Mas não pode haver responsabilidade penal sem culpa (não há responsabilidade objetiva em direito penal como há no
direito civil, p. ex.), e portanto a culpa é o lado subjectivo da infração - já não é o objeto da responsabilidade jurídico-
penal (aquilo que se imputa ao agente - imputa-se ao agente um facto ilícito típico objetivamente) o fundamento da
responsabilidade jurídico-penal (a razão pela qual se imputa ao agente, ou a razão pela qual se responsabiliza o
agente).

Num lado e noutro falamos numa ideia de desvalor - do lado objetivo temos a ideia de um facto desvalioso porque
ofensivo de um bem jurídico, e do lado subjectivo temos um facto desvalioso que assenta numa decisão livre.

Note-se que apesar de FARIA COSTA defender o ilícito objetivo, na sua construção (quer noutras construções) existem
sempre os dois desvalores (o de resultado e o de ação). O que acontece é que como FARIA COSTA defende uma
conceção normativista (portanto de ilícito objetivo), privilegia o desvalor do resultado dizendo que “eu preciso que haja a
ofensa a um bem jurídico, para me depois preocupar com a intenção do agente”, ou seja que primeiro ocorra um
resultado e depois é que importa o desvalor da ação (mas aceita os dois). Quem defende o ilícito pessoal diz o inverso,
e tendo em conta a Escola Finalista de Welzel (a ação é finalisticamente orientada, eu não consigo compreender uma
ação se não for para a obtenção de um determinado fim através da mesma), desenvolvendo e em algumas coisas
corrigindo esta conceção finalística do crime de Welzel, naturalmente que não pode fazer sobressair o desvalor de
resultado, porque o que interessa fundamentalmente “é o facto como um ato pessoal”, portanto o que interessa é o
desvalor de ação, mas depois vai-se para o desvalor do resultado - portanto há um privilegiamento do desvalor da ação
em função do desvalor do resultado, mas há a aceitação dos dois também. O ponto de onde cada uma das
conceções arranca é que é diferente - por isso é que na conceção teleológico-funcional de FIGUEIREDO DIAS, nós
surpreendemos o dolo no ilícito (encontramos subjetividade na própria lógica da ilicitude - ver infra).

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Depois do ponto de vista da construção do crime, isto tem consequências. Assim, enquanto que FARIA COSTA diz “não,
eu separo o facto punível (o crime como eu o compreendo) em dois momentos: um momento estritamente objetivo - o
que me legitima a ir invocar o direito penal, que é a ofensa ao bem jurídico que eu vou privilegiar -, mas
simultaneamente não posso prescindir de um lado subjetivo - portanto o fundamento”. FIGUEIREDO DIAS diz coisa
diferente, afirmando que “eu não posso conceber um facto que preencha um tipo de ilícito (portanto até as formulações
são diferentes: FARIA COSTA é o ilícito típico, FIGUEIREDO DIAS é o tipo de ilícito) se não vir manifestação de subjetividade
nessa mesma ação, portanto o dolo já entra no próprio ilícito. Portanto quando eu estou a aferir o próprio tipo de ilícito
(que é a conjugação entre a tipicidade e a ilicitude de outra maneira) já tenho de tecer considerações a propósito do
logo (algo que não fizemos no 1º semestre, porque seguimos o programa de FARIA COSTA - lado objetivo e lado
subjetivo)”.

Claro que se pode criticar a circunstância de o crime, na sua conceção material, não ser uma realidade divisível em
objetividade e subjetividade (ex.: porque quando eu dou um tiro, quis o tiro, tive vontade de atirar, etc…). Mas a verdade
é que o Direito é uma resposta a problemas, e portanto as conceções materiais de crime, tal como as respostas a
propósito dos fins das penas, procuram ser formas de responder a um determinado problema - nas palavras de INÊS
GODINHO, quando se pensa em direito “não é só uma cambada de batatas de matéria teórica, são coisas que são
aduzidas para resolver um problema. E neste caso o problema é o crime (é o facto de ter, p. ex. disparado contra
alguém)”. E assim, FARIA COSTA considera que não é obrigado a ter uma visão naturalística do facto punível - que tenha
de naturalmente trazer subjetividade para o ilícito típico. Se eu estou a criar categorias para resolver um problema, eu
posso perfeitamente separar a parte objetiva do crime, da parte subjetiva do crime. E portanto crime no ilícito típico
como parte objetiva, e culpa como parte subjetiva (a punibilidade veremos mais à frente).

Da mesma forma que em relação, p. ex., à ilicitude também vimos que tinha de ter o desvalor de ação e o desvalor de
resultado, também em relação à culpa tem de ter elementos para se poder afirmar. E como também podem haver
situações em que é excluída, como acontece na ilicitude, a propósito das causas de exclusão da culpa.

Mas isto interessa para quê? Na vida real há que dominar isto na ponta da língua - porque senão aparece-nos um
cadáver e um agente, e não sabemos como resolver o problema. Não há sentença de tribunal nenhum que não tenha
de percorrer todos os patamares do facto punível para condenar o agente. Portanto isto não são “lérias” - as
divergências de opinião, quer no direito penal, quer noutro ramo do direito, servem justamente para apresentar várias
possibilidades de solução (não quer dizer que uma esteja certa, e a outra esteja errada).

E relativamente à questão do dolo? Nada nos impede de seguir a conceção de FIGUEIREDO DIAS, mas temos de a
perceber também. Até porque se olharmos para o manual de FIGUEIREDO DIAS, ele quando trata o tipo de ilícito trata o
dolo - portanto ele trata o dolo num momento completamente diferente de FARIA COSTA. Mas não quer dizer que, afinal,
quando for digamos que para condenar o agente, quer alguém que defenda a conceção de um ou do outro não tenha de
afirmar o dolo ou a negligência, porque não há responsabilidade objetiva. O momento em que analisam é que é
diferente.

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Conceções de crime

Quando falamos em conceções de crime, não está em causa que tenham de existir sempre os patamares. Tem a ver é
a forma como nós os compreendemos. Não deixa de ser verdade, quer numa conceção quer na outra, que digamos que
aquela forma temática é comum a ambas. Depende é aquilo que “eu arrumo ou não” na ilicitude - ilícito típico ou no tipo
de ilícito. Mas tem de sempre dizer-se que o facto é típico, ilícito, culposo e punível para dizer que é um crime.

Retomando a matéria da espiral hermenêutica, eu posso olhar para a norma de vários pontos de vista diferentes (olhar
do ponto de vista da imputação do resultado à conduta, da ilicitude, etc), ou seja cada vez que olho para a norma passo
por sítios diferentes. E usa-se uma espiral porque a primeira vez que eu passo pela norma é justamente para afirmar
que o facto é típico (para aferir a verificação dos elementos do tipo - p. ex. se está morta a pessoa e se o resultado pode
ser imputado à conduta do agente). Mas não basta isto, preciso de dizer ainda se é ilícito, e assim dou outra volta na
espiral e vejo se naquela circunstância se verifica o desvalor de resultado e o desvalor de ação, e ainda se intercede
alguma causa de justificação - já não passo no mesmo sítio na norma desta vez. Se não intercedeu nenhuma coisa de
justificação da ilicitude tenho de continuar a analisar a norma, e tenho de indagar se foi uma condita culposa, e se
intercedeu ou não alguma causa de exclusão da culpa - e volto a olhar para um sítio diferente da norma. Desta forma,
cada vez que eu passo na norma tenho mais conhecimento, e nunca passo no mesmo sítio que passei da outra vez.
Portanto não passo pela norma em circulo, mas antes em espiral, cada vez enchendo mais até que chego a uma
altura em que completo a interpretação da norma, e a aplicação estipulativa da norma. E posso afirmar e
condenar o agente pelo crime em causa (no nosso exemplo de homicídio) porque o facto era típico, ilícito, culposo
e punível. As categorias aferem-se sempre ao mesmo facto - quando eu tenho um crime, estou sempre a passar
pela mesma norma, porque tenho de fazer várias perguntas relativamente àquela norma.

Mas para perceber isto1, temos de saber que há uma:

1. Conceção Normativa (seguida por FARIA COSTA)

2. E uma Conceção Teleológico-Funcional (seguida por FIGUEIREDO DIAS)

1. Logo nos pressupostos (digamos assim) das conceções reais de crime são diferentes. A grande ideia base de onde
parte FARIA COSTA é que o mundo do direito pertence ao dever-ser. Isto está na antecâmara da construção de
FARIA COSTA. Já para FIGUEIREDO DIAS as coisas são diferentes porque na sua construção a sua base é a
constatação da importância da política criminal na construção e na sua conceção de ciência geral de direito
penal (enquanto que a propósito da opinião de FARIA COSTA, no 1º semestre ouvimos que ele defende a ciência do
direito penal total, onde vamos arrumar o direito das contra-ordenações, e FIGUEIREDO DIAS arruma o direito das
contra-ordenações lá dentro - só tem lá dentro direito penal lato sensu, isto é processo penal e direito penal, política
criminal e criminologia). Temos de assim perceber, segundo FIGUEIREDO DIAS, a utilidade do direito penal,
sendo ela, e por isso é que é uma conceção funcional (o direito penal é funcionalizado a uma determinada ideia,
tem de desempenhar uma função), a que a política criminal tem uma prevalência sobre o direito penal e que
por isso este tem de seguir essa (enquanto que FARIA COSTA não concede prevalência a nenhuma, e se
prevalência houvesse seria dada ao direito penal). E assim, o direito penal deve é perseguir as finalidades da
política criminal (estabelecidas pelo Estado), e o direito penal deve partir desta ideia, e cumprindo a mesma

1 Isto não é ultra rigoroso - só para ter uma ideia.

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função que aquela defendida por FARIA COSTA (a proteção de bens jurídicos). Mas por outro lado ainda, não nos
podemos esquecer daquilo que são as finalidades jurídico-constitucionais, porque no fundo a constituição
“manda no direito penal” - portanto o direito penal também tem de fazer cumprir a constituição. Portanto daqui
tiramos a ideia de que os dois autores partem de conceções completamente diferentes (além de tudo aquilo que já
conhecemos da posição de FARIA COSTA).

2. Isto tudo significa que para FIGUEIREDO DIAS a ação no direito penal é a realização do tipo de ilícito. Mas não é
essa a noção de ação para FARIA COSTA - se ele é um objetivista, para ele a ação é um comportamento humano
causador de uma modificação exterior. Podemos ainda acrescentar que esta modificação, por um lado, é que vai
representar aquilo que é, para FARIA COSTA, a negação de valores - e portanto essa modificação é que nos habilita a
chamar de ilícito-típico (porque essa modificação é sempre num sentido desvalioso, para ser relevante) -, e por outro
lado permite-nos ainda dizer que o desvalor de resultado é igual à lesão ou afetação do bem jurídico. Porque é que
é igual à lesão ou afetação do bem jurídico? Porque para FARIA COSTA a própria colocação em perigo do bem
jurídico também pode ser concebida como um desvalor de resultado (isto é importante compreender, especialmente
quando se falar na tentativa).

3. A partir de aqui (não estamos a falar de patamares dogmáticos, mas antes de conceções de crime) a ilicitude para
FARIA COSTA é material, ou seja, a ilicitude é a lesão dos bens jurídicos protegidos pelo tipo a propósito do
que decorre do princípio da ofensividade (nós não conseguimos perceber a intervenção do direito penal se não
tivermos uma lesão ou uma afetação a um bem jurídico, na construção de FARIA COSTA). Para FIGUEIREDO DIAS as
coisas são diferentes, pois no facto punível temos logo de identificar 2 categorias: a) a categoria que se refere
ao tipo de ilícito - corresponde à caraterização central do conceito material de crime (temos assim aqui
incluídos a ofensa ao bem jurídico, a intenção do agente - a situação objetiva relativamente àquele bem jurídico -,
temos a citação da própria tipicidade formal. É como que um módulo) , e b) outra categoria que se refere ao tipo
de culpa - onde arrumamos a censurablidade do agente relativamente à realização do facto tipificado. Daqui
deriva que o ilícito não signifique exatamente o mesmo para FIGUEIREDO DIAS que significa para FARIA COSTA,
porque para FIGUEIREDO DIAS a ilicitude é uma categoria que exprime um certo/determinado/preciso sentido
de desvalor jurídico-penal, com aqueles pressupostos que referimos supra. Não esquecendo que há uma
prevalência do desvalor de ação - assim, do ponto de vista do ilícito temos de pensar no concreto comportamento,
naquela concreta situação em que a conduta é desconforme com o ordenamento jurídico-penal quer da perspetiva
objetiva, quer da perspetiva subjetiva. E portanto, para FIGUEIREDO DIAS a essência da ilicitude (ou da anti-
juridicidade) é justamente o facto se tratar, do crime se tratar de uma obra pessoal do agente - por isso é que
ele às vezes o chama de ilícito pessoal (porque é a pessoa, a personalidade daquela pessoa concretizada no facto
que se vai ajuizar - no tipo de ilícito -, como também se vai censurar - no tipo de culpa).

4. Para se perceber a verdadeira extensão das diferenças entre as duas conceções, para FIGUEIREDO DIAS, como
integra o dolo no tipo de ilícito (a personalidade ou a intenção do agente, a importância do desvalor ilícito pessoal
no próprio facto), este tem um elemento intelectual e um elemento volitivo (que se trata no patamar do tipo de
ilícito), e depois um elemento emocional (que eu vou avaliar no patamar da culpa). Para FARIA COSTA, como o
dolo só pertence à culpa, eu não preciso de acrescentar elementos nenhuns (porque o dolo não entra sequer
no ilícito-típico).

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5. Para FIGUEIREDO DIAS, a culpa é, na verdade, a circunstância de eu poder afirmar que o facto deve ser
pessoalmente censurável ao agente. Isto quer dizer, que a atitude interna do agente é juridicamente desaprovada,
é uma espécie de reminiscência de culpa na formação da personalidade - a personalidade do agente, que é
contrária ao direito, manifesta-se no facto que ele praticou. E qual é que é a lógica de culpa para FARIA COSTA? Já
percebemos que a culpa, desde logo, não sendo o objeto é o fundamento da responsabilidade jurídico-penal,
justamente porque na conceção normativa de culpa (perfilhada por FARIA COSTA) esta é, no fundo, um juízo de
censura que eu faço ao agente quando ele podia e devia ter agido de outro modo. O que é que isto quer dizer?
Quer dizer que a culpa, de forma simplificada para FARIA COSTA, é um mau uso da liberdade. Claro que para
eu poder afirmar esse mau uso da liberdade, tenho de poder afirmar que tenho capacidade de liberdade, ou seja
que não tenho nenhuma limitação endógena à minha liberdade - quer por razão de idade, quer por razão de
anomalia psíquica. Dito por outras palavras, tem de ser imputável, tem de ser capaz de culpa. Mas não me
basta ser capaz de culpa - eu posso ser capaz de culpa, e ter atuado ao abrigo de uma causa de exclusão da
culpa.

Desenvolvendo a doutrina de FARIA COSTA, sendo o dolo e a negligência manifestações de subjetividade, só encontram
lugar na culpa, e não do lado objetivo. E assim o dolo e a negligência são o segundo elemento da culpa que eu tenho de
conseguir afirmar, mas de forma simplificada - não tem lá um terceiro elemento emocional porque já não preciso dele
para arrumar o dolo na culpa (só preciso dos elementos, digamos que, tradicionais, do dolo). As duas formas de culpa
que eu tenho de exigir para poder dizer que há culpa são o dolo e a negligência.

E ‘finalmente2’ não posso ter a minha liberdade externa condicionada. Mas que raio é isto, liberdade externa e
interna? P.ex., no Titanic - o Jack Dawson não era menor de 16 anos, nem tinha nenhuma anomalia psíquica. Mas não
era uma circunstância normal para o agente ter a sua liberdade de forma não condicionada, escolher seguir ou não o
ilícito (não era que ele não tivesse capacidade de liberdade, mas as forças das circunstâncias condicionam a
sua liberdade externa de agir em conformidade com aquilo que é a ausência de limitações do ponto de vista
cognitivo ou etário; aquela circunstância era tão forte que diminuiu o âmbito de opções - o instinto de sobrevivência de
qualquer pessoa não é pôr-se a congelar, mas antes salvar-se). Portanto, será que o direito penal pode exigir, em
circunstâncias daquelas, que alguém se ponha a congelar na água? É evidente que não, e portanto aqui percebemos
que os 3 elementos para se poder afirmar que o facto é culposo são a imputabilidade, as formas de culpa e a
exigibilidade. E é justamente no contexto da exigibilidade que vamos estudar as causas de exclusão da culpa - são
situações, mais uma vez como acontece com as causas de exclusão de ilicitude, que determinam que, face ao
circunstancialismo, não é censurável ao agente ter praticado o facto.

Voltando à questão da liberdade, e ao conceito de culpa que FARIA COSTA refere, muitas críticas têm existido no sentido
de dizer que não faz qualquer sentido nós querermos fazer assentar o conceito de culpa em liberdade, justamente
porque nós não somos livres. Nós somos determinados, e aliás basta perceber nos avanços das neuro-ciências que já
conseguem perceber que quando nós tomamos uma decisão invariavelmente já não temos por onde fugir (assim que
pensamos nessa decisão, tomamos essa decisão, executamos essa decisão), que não faz qualquer sentido assentar a
compreensão da culpa neste radical de liberdade. De facto biologicamente estamos todos determinados (ninguém
consegue viver sem comer, sem respirar ou sem ir à casa de banho). Quanto ao pensamento, que é a tomada de
decisão, também podemos estar determinados do ponto de vista neuronal, do ponto de vista do funcionamento do
nosso cérebro - verdadeiramente até podemos concordar cientificamente que é imposivel provar a liberdade. Mas o

2 Um finalmente a mentir.

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direito penal é direito científico? É biologia? O direito penal não é uma ciência, e não tem de responder às necessidades
de refutação que KARL POPPER exigia para todas as teorias científicas. Senão todos os penalistas estavam todos no
desemprego, se calhar… porque não se consegue comprovar nada. Nada se demonstra em direito, não é ciência exata
- não é demonstrável (não posso dizer que a + b = c). Eu preciso que a liberdade pressuposta para o direito penal seja
cientificamente comprovável? Não. E mesmo que eu negue a liberdade do ponto de vista científico, continua ou não a
haver liberdade para o direito penal? Continua. Aliás, a nossa vida é um contínuo exercício de liberdade (escolher a
camisola que visto, tirar apontamentos na aula ou não, escrever a computador ou à mão), são tudo opções que fazemos
na vida - não aceitamos que nós, como cidadãos, não podemos fazer opções. Desta forma, este argumento não colhe.
É preciso é saber que a liberdade a que nos referimos em direito penal, e a liberdade a qual se fala nas neuro-ciências
não é a mesma coisa.

Como é evidente, este radical de liberdade significa então que, percebendo nós como é que a culpa funciona,
conseguimos, no contexto das 2 caixas que FARIA COSTA constrói (ilícito-típico e culpa), em cada uma delas perceber,
justamnete porque estamos perante uma ciência normativa, mas com um fundamento ético, perceber 2 juízos de valor:
quanto ao ilícito-típico o juízo de valor refere a conduta propriamente dita aos bens, e um um outro juízo de
valor, que dá por nome juízo de censura, que tem a ver com a culpa, mas que no fundo refere a conduta, já não
ao bem jurídico mas à pessoa.

Fins das penas

Tudo o que foi previamente afirmado é importante porque no direito penal podemos estudar todos os caminhos que nos
levam à compreensão do que é o crime, podemos estudar as diferentes compreensões do conceito material de crime,
mas continua a haver uma resposta pela qual temos de sistematicamente continuar a encontrar resposta - porque razão
punimos? Senão toda a distinção que foi supra feita não faz qualquer sentido.

Sempre existiu ao longo da história sempre existiu, desde a antiguidade clássica, um movimento pendular entre as duas
formas de compreender as finalidades da punição. E portanto desde sempre que tivemos prevenção e retribuição. Mas
falando nos tempos mais modernos, o retribucionismo está profundamente, na sua conceção mais arcaica, associado à
lógica da Lei de Talião - “olho por olho, dente por dente”, “Cá se fazem, cá se pagam”, ao mal do crime corresponde-se
com um mal no presente.

Mas isto corresponde a uma versão antiga/arcaica do retribucionismo, e naturalmente porque as coisas têm sofrido na
sua história com o mecanismo, e porque ainda havia um certo predomínio das formas absolutistas de poder da
retribuição, a partir do Iluminismo começa de facto a ganhar preponderância a lógica da prevenção. O que é que
carateriza a prevenção? Para os defensores das teorias relativas (preventivas), eu puno o agente ou para prevenir as
outras pessoas da comunidade cometam mais crimes, ou para prevenir que aquele agente em concreto cometa mais
crimes. Mas como o princípio da culpa se afirma, eu não posso punir, ainda que com estas finalidades, para lá da culpa.
Portanto a culpa afirma-se como limite da pena - independetemente das necessidades preventivas que possam existir,
eu nunca posso ultrapassar (até por muito grandes que possam ser essas necessidades preventivas) a medida da culpa
do agente.

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Ora, “o resto do mundo” defende as teorias relativas, FARIA COSTA defende uma teoria absoluta. Mas naturalmente não
é retribucionismo na sua forma arcaica. Dito de outra forma, FARIA COSTA, na construção que faz do direito penal, é
fundamentalmente humanista, portanto ele procura em todas as soluções que encontra, por mais que elas pareçam
complicadas, limitar o poder punitivo do Estado. É esse o sentido da construção dele - o que FARIA COSTA quer é
restringir o direito criminal, e não permitir o seu alargamento (restringir a intervenção punitiva do Estado). E
portanto não faria qualquer sentido que um humanista, como FARIA COSTA, quisesse defender a Lei de Talião - o
retribucionismo dele é um retribucionismo moderno (neoretribucionismo).

O que é que isto quer dizer? Para as teorias relativas/preventivas a culpa acresce às necessidades, ou acresce à
pena - é qualquer coisa que aparece lá depois a limitar. Para FARIA COSTA tem de ser ao contrário - a culpa tem
de ser um prius, uma coisa antecedente a qualquer necessidade de punir. Justamente porque a culpa tem de
ser entendida como um uso indevido, um uso errado da liberdade, é por se ter usado mal a minha liberdade,
que eu posso legitimamente punir alguém (e não é o contrário, que é porque alguém manifestou a sua atitude
interna no facto típico que eu vou puní-la de acordo com as necessidades preventivas, utilizando a culpa para
limitar a medida da pena).

A doutrina maioritária é a doutrina preventiva, mas o movimento neoretribucionista está a ganhar cada vez mais força.

Para FARIA COSTA, nunca será pensável sequer ver a pena como daqui género do provérbio “ao mal que tu fazes, dou-te
eu o mal com que pagas”, porque entende que a pena tem de ser percebida como um bem:

1. Desde logo, nunca pode ser percebida como um mal porque a pena tem limites, ao contrário do mal
propriamente dito - um non-sense (do ponto de vista lógico, a partir do momento em que se estabelece o
nullum crimen sine culpa, estou a impor limites a uma coisa, portanto essa coisa nunca pode ser uma coisa
má - porque a maldade por definição não tem limites). Assim, num primeiro ponto a pena é um bem.

2. E qual é a grande crítica? Imaginemos uma moldura penal de 0-10 anos para o facto x (no 4º ano vamos
ver que não é bem assim). Vamos imaginar que o agente A pratica o facto x. É a primeira vez que este Sr.
comete um crime, não tem cadastro, é uma pessoa literata - é licenciada -, faz parte da sociedade, etc…
Se formos pela lógica preventiva da aplicação da pena/das compreensões da pena, de acordo com as
necessidades preventivas que cito, quer em termos gerais - em termos da comunidade, porque o crime não
é assim tão grave -, quer em termos especiais, vou fundamentalmente concentrar-me na primeira metade
da moldura penal, e dentro desta tenho de ver onde está a culpa para depois poder dizer “eu fico com esta
pena” . Passado alguns tempos, o Sr. A comete exatamente o mesmo facto x - do ponto de vista da
prevenção, o Sr. A é reincidente, e portanto se uma das lógicas da prevenção é prevenir que o Sr. A cometa
mais crimes, se ele é reincidente eu tenho maior necessidade de prevenção, e portanto vou olhar para a
segunda metade da moldura penal e vou tentar ver onde é que está a culpa em concreto. Até podemos
imaginar que a culpa é quase igual nos dois sítios, mas num caso vai ser punido pela primeira metade da
moldura penal, no segundo caso pela segunda - justamente atendendo às necessidades de prevenção em
causa. Qual é que é a lógica para FARIA COSTA? As teorias preventivas o que dizem é que “eu vou punir
para…”, portanto olham para a frente. No fundo, não olham apenas e exclusivamente para o facto pretérito
que é crime. O que é que isto quer dizer? Convocam para a determinação da pena considerações outras
que não têm exclusivamente a ver com o facto x e com o Sr. A - tem a ver com a prevenção da prática do

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facto x na comunidade e pelo Sr. A no futuro, mas estas ideias não têm nada a ver em concreto com a
situação que aconteceu (a prática do facto x pelo Sr. A no momento 1 e 2). Para FARIA COSTA, o princípio
da culpa determina que a culpa é uma coisa prévia à possibilidade de punir, é um prius que limita a
própria pena.

3. E em termos de aplicação de penas, FARIA COSTA defende o direito a uma pena justa - em termos de
aplicação desta lógica na determinação da medida da pena diríamos que pelo facto x, praticado com a
culpa grau 1, aplicamos a pena a, independentemente das necessidades de prevenção (porque só
olhamos para o facto); e pelo mesmo facto x, praticado com a culpa grau 2, aplicamos a pena b. E
portanto todas as pessoas teriam exatamente a mesma pena, pela prática do mesmo facto, com a
mesma culpa - justamente porque não haveria a interferência de outras considerações, como as
necessidades de prevenção. A prevenção, na lógica de FARIA COSTA, não existe e não faz sentido (é
anti-prevenção). A crítica que faz às teorias prevencionistas é que estamos a instrumentalizar o
agente para finalidades que são alheias ao facto que ele cometeu (Ex.1.: pensemos no caso da
professora que foi presa por causa de um crime bagatelar - disse umas coisas em sala de aula que não
devia ter dito -, foi a chamada punição exemplar - fizeram dela exemplo. Ex.2: há muitos anos atrás,
quando estava em causa a discussão a propósito da despenalização da interrupção voluntária da gravidez
a pedido da mulher, basicamente não existiam condenações pelo crime de aborto - Portugal é um país de
brandos costumes, e “olhava-se para o lado”; entretanto começou-se a discutir esta despenalização, e
ainda antes do 2º referendo houve uma condenação exemplar de um conjunto de enfermeiras que levaram
a cabo interrupção voluntária da gravidez, e penas quase máximas - para mostrar que se punia, e para
evitar que a prática abortiva fosse considerada banal ou não punida). Isto na lógica de FARIA COSTA não
pode existir, justamente porque eu estou a instrumentalizar alguém - não estou a punir alguém de acordo
com a sua culpa, mas estou a instrumentalizá-lo para finalidades que não têm nada a ver com o facto que
ele concretamente praticou. Por isso é que para FIGUEIREDO DIAS a culpa é limite da pena, e para FARIA
COSTA a culpa é fundamento e limite da pena (não é o que limita, mas antes o que legitima a
aplicação de uma pena a alguém). A conceção de FARIA COSTA pretende ser mais humanista - eu nunca
vou acrescentar pena a ninguém que tenha em conta necessidades que não têm exclusivamente a ver com
a culpa do agente.

4. Qual é o problema? FARIA COSTA e FIGUEIREDO DIAS estão em total desacordo em relação aos fins das
penas (criticando-se mutuamente nos seus respetivos manuais), mas há uma coisa relativamente à qual
estão em acordo - é que o art. 40º CP nunca devia de existir tal como está. O art. 40º CP é uma clara
consagração das teorias preventivas, o que acaba por desvirtuar um bocadinho a eventual possibilidade de
aplicação da teoria de FARIA COSTA na vida prática. Mas não se deixou vencer por essas coisas de menos
importância (lel…), e portanto naturalmente se FARIA COSTA é neoretribucionista nunca vai falar na
reintegração do agente na sociedade - isso é algo que pertence às doutrinas preventivas, como está
explanado infra. A ideia de protecção dos bens jurídicos, da maneira com que está, tem a ver com a lógica
da prevenção geral, na versão moderna - o que quer dizer que FARIA COSTA ficou um bocadinho de mãos e
pés atados, mas acaba por considerar que se aplicam penas para cumprir a função do direito penal, que é
a proteção dos bens jurídicos, o que não tem a ver exclusivamente com prevenção. E fica com o problema/
batata quente na mão da reintegração do agente na sociedade. Como é que resolve o problema? De forma
muito simples, porque se defende o direito a uma pena justa como até um direito fundamental -

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afirma o direito de eu não ser instrumentalizado em função de outras finalidades que não a punição pelo
facto que eu cometi atendendo à minha culpa -, só através desta pena justa que me é aplicada, e do
cumprimento dessa pena, é que eu consigo ir repondo e remendando a primeva relação onto-
antropológica de cuidado-de-perigo que eu rompi com a prática do crime. E portanto, só quando eu
tiver essa relação completamente restabelecida através do cumprimento da pena, é que eu
verdadeiramente posso estar novamente “apta” a estar numa comunidade de relações de cuidado-de-
perigo - o agente é reintegrado formalmente na sociedade. Pode tudo isto parecer estranho, mas
imaginemos que estávamos a defender a professora exemplarmente condenada de há pouco - com base
em que teoria poderíamos afirmar que a pena é injusta se não há alternativa às teorias preventivas? Por
isso é que, estando ambos os autores em desacordo, ambos concordam que era preciso existir
duas soluções para o problema, e não considerar a consagração normativa de uma determinada
posição.

Em suma, conseguimos assim surpreender 2 grandes movimentos:

1. Teorias Relativas (preventivas) - Eu puno o agente ou para prevenir que os outros membros da
sociedade cometam crimes, ou que aquele agente em concreto cometa mais crimes. Mas a culpa afirma-se
como limite da pena, independentemente das finalidades preventivas da pena (nunca posso ultrapassar a
medida de culpa do agente). Porque alguém manifestou a sua atitude interna no facto típico, vou puní-la de
acordo com as necessidades preventivas, utilizando a culpa para limitar a medida da pena. A esmagadora
maioria da doutrina defende estas teorias.

2. Teorias Absolutas (retribuição, mas não de forma arcaica - neoretribucionismo). FARIA COSTA defende
esta doutrina minoritária, mas que está a ganhar cada vez mais força. Para FARIA COSTA a culpa tem de ser
um prius a qualquer intenção de punir - princípio da culpa (é por eu ter usado mal a minha liberdade que eu
posso ser que eu posso legitimamente punir alguém (e não é o contrário).

Aula 2 - 13/03/17

História dos fins das penas

Verdadeiramente só conseguimos perceber as finalidades das penas se percebermos previamente o fundamento do


direito de punir que lhes assiste, o que leva a uma consequência lógica da qual não podemos fugir - se o fundamento do
direito de punir é diferente, também a finalidade da doutrina que vai ser reconhecida também vai ser diferente.

Se pensarmos no direito de punir, temos:

1. Para as teorias relativas, o fundamento do direito de punir pode-se encontrar na própria preservação/defesa
da ordem jurídica. É por causa de ter sido atentada contra a ordem jurídica que o Estado pode intervir. Já na
perspetiva das teorias absolutas, a finalidade das penas que lhe vai ser reconhecida vai ser diferente da outra que
entende como fundamento do direito de punir, com KANT, um imperativo categórico de justiça.

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2. Assim, naturalmente se os direitos de punir são diferentes, as finalidades das penas para cada uma das formas de
pensar o direito de punir vai ser diferente. As teorias absolutas dizem que a finalidade das penas é, afinal, a
retribuição ao agente. (retribuição - neoretribucionismo de FARIA COSTA). Para as teorias relativas fala-se,
nomeadamente, em prevenção. No fundo, uma ideia muito simples/básica, eu aplico uma pena para que não
voltem a ser praticados mais crimes, para prevenir que sejam praticados mais crimes. Esta ideia de
prevenção pode ser pensada:

1. Em termos gerais - a prevenção geral. Segundo esta posição, eu aplico uma pena para que os membros
da comunidade se abstenham de praticar crimes, para prevenir que os outros da comunidade pratiquem
crimes. Não obstante, a prevenção geral, também ela pode ser pensada por duas maneiras diferentes:

(1) Prevenção Geral Negativa - Em termos históricos, faz mais sentido começar por aqui. No fundo,
a prevenção geral negativa assentava numa ideia de intimidação. Significa que “eu tinha de
conseguir que as penas refletidas relativamente a cada um dos tipos legais de crime significasse
um motivo suficientemente forte para motivar as pessoas a não praticar o crime”. Era a lógica da
intimidação para a prevenção. Como é evidente, esta forma de pensar suscita desde logo 2
dúvidas:

i) Em primeiro lugar, porque eu pensando assim, na verdade não preciso de conhecer


limites à pena - na verdade, se eu quiser intimar a sério, vou prever para o crime de
injúria a pena de morte (parece-me que é motivo suficientemente forte para as pessoas
se absterem de proferirem impropérios umas contra as outras).

ii) Mas por outro lado ainda também, esta ideia da prevenção geral negativa (quanto aos
fins das penas surge muito associada ao desenvolvimento do Iluminismo - vem daí)
assenta num ponto de partida que faz pouco sentido (quiçá até contraditória): a lógica da
construção da prevenção geral negativa ou da intimidação é justamente aquela que parte
do ideal de Homem que sai do Iluminismo que é o Homem racional, o Homem que
pondera sobre as vantagens e as desvantagens da prática do crime. Por outras palavras,
este Homem racional é o Homem bom - as pessoas de boa vontade (“as pessoas boas/
certinhas, mas no sentido religioso”), nas palavras do pensador da Idade Média SANTO
AGOSTINHO 3. Ora será que os principais destinatários das normas penais são os Homens
bons (neste sentido, as pessoas de boa vontade)? As pessoas de boa vontade, por
inclinação, violam as normas, matam pessoas, insultam os outros, batem em terceiros, e
se necessário for ainda furtam alguma coisa? Todos os crimes cometidos em estado de
afeto não são crimes racionais, da mesma forma que eu não posso considerar racional,
muitas vezes.

(2) Prevenção Geral Positiva - A prevenção geral negativa começou por ser ultrapassada por outras
construções que pensam na prevenção não a partir de uma ideia de intimidação, mas a partir da
ideia de “eu aplico uma pena na verdade para resolver o conflito social provocado pelo crime. E ao

3 Frequentemente utilizado por este autor, e que depois começa a ter muita difusão na Igreja Católica.

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aplicar a pena resolvendo o conflito social provocado pelo crime, eu acabo por reforçar a
confiança na validade das normas, e portanto volto a reafirmar a ordem jurídica no seu todo - a
inquebrantabilidade da ordem jurídica.

2. E a Prevenção Especial - Qualquer uma das variantes da prevenção geral sofreram variadas críticas.
Quer dizer que começou-se a pensar que não se podia fazer assentar a finalidade da pena nesta ideia de
comunidade, mas antes tem de se olhar para o próprio delinquente. E afirma-se então, assim, a prevenção
especial. Também a prevenção especial pode ser:

(1) Prevenção Especial Negativa - Parte também da ideia de intimidação, “eu aplico a pena ao
agente com vista a intimidá-lo o suficiente para que ele não pratique mais crimes”. Está quase
associada a esta ideia uma outra, que é a correção do agente - através da aplicação da pena
consegue-se intimidá-lo o suficiente que ele se corrige, e não volta a violar as normas. Mas
naturalmente que a correção do agente é uma utopia, bonita como qualquer outra mas também
igualmente impossível como qualquer outra - a ideia de correção do agente não faz qualquer
sentido. E a constatação desta ideia começou a fazer/abrir caminho para a construção da
prevenção especial positiva.

(2) Prevenção Especial Positiva - A finalidade da pena é a ressocialização do agente. Já não é


intimidá-lo, não é corrigi-lo, mas antes ressocializá-lo.

Claro que a problemática das finalidades das penas acompanha o direito penal desde a sua origem, portanto tem
sofrido uma evolução histórica milenar, e o que temos podido observado ao longo dos tempos é uma espécie de
movimento pendular entre prevenção-retribuição.

Hoje, eu consigo identificar no art. 40º/1 CP a finalidade preventiva da pena (a lógica de proteção de bens jurídicos
enquanto possibilitação da afirmação da confiança da comunidade na validade das normas jurídicas), e como bem
refere o mesmo art., a reintegração do agente na sociedade. Portanto, o art. 40º/1, 1ª parte, faz um afloramento à
prevenção geral positiva, e na sua 2ª parte à prevenção especial positiva.

Mas, justamente porque o movimento é pendular, por um lado, e por outro lado como é pendular significa que nenhum
deles está absolutamente certo.

• A, professora de direito, num gesto de revolta contra o sistema fiscal português, resolve não entregar a sua
declaração de rendimentos. E, nessa sequência, de forma quase automática, acaba por praticar um crime de fraude
fiscal - crime punível com pena de prisão. O juiz, tal qualmente como aconteceu no caso supra explanado que disse
umas coisas e acabou presa, acha que é importantíssimo deixar uma mensagem clara que professores de direito não
podem praticar crimes de fraude fiscal. E portanto julga e condena A a uma pena de prisão efetiva de 1 ano.
Certamente quando sair da prisão não terá o seu emprego garantido (apesar de tudo ensinar direito depois de ter ali
“cartão de visita na choldra num ano, e ter trazido t-shirt de souvenir”, não parece o melhor cartão de visita para
arranjar emprego), e a não ser que A tenha uma mudança de carreira, a reintegração profissional parece estar em
risco, pelo menos naquilo que é a profissão de professor de direito. Parece igualmente em risco a sua integração
familiar, bem como as suas relações amorosas/de amizade. Surge a necessidade acrescida de fazer novos amigos na

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prisão, e começa a conhecer uma e outra: i) “isso de ser preso por fraude fiscal não lembra a ninguém, olha eu
conheço um tipo que sabe fazer as coisas de uma maneira em que se tu fizeres assado, cozido e frito ninguém
percebe, portanto se quiseres eu tenho ali uns connects fora, é só dar-lhe uma telefonadela para a próxima vez, não
tenhas problemas”; i) “ah já percebi que vais ter de mudar de carreira, se quiseres eu arranjo umas cenas para ti, vais
ter com os teus ex-alunos agora que és cool e já não dás aulas né nem dás notas, e arranjas umas cenas, tipo uns
apontamentos de contrabando de direito penal”; iii) “epá mas isto de fraude fiscal não dá com nada, isso o que tu tens
de fazer agora é escalar o patamar seguinte, crias ali uma off-shore que garante certamente um certo movimento
circular dos capitais”. Ao fim de um ano, desempregada, ostracizada e sozinha, A volta para a sociedade, certamente
ressocializada e reintegrada, e com uma miriade gigante de “novas oportunidades profissionais”. Quer isto dizer que,
ridicularizando um pouco as coisas, hoje já se questiona a própria função ressocializadora da pena. É importante
saber isto porque a doutrina maioritária defende a prevenção, o art. 40º CP em termos formais consagra
normativamente a prevenção positiva - quer a normal, quer a especial -, mas se mudar o CP é bom pensar de forma
diferente (coisa que já aconteceu ao longo da história, de um lado para o outro).

Imputabilidade (capacidade de culpa)

Uma das coisas que temos de perceber, é que nós pensamos na inimputabilidade de 2 formas:

1. Relacionada com a/Em razão da idade - Trata-se de um juízo geral e abstrato de


inimputabilidade, feita pelo legislador penal, no art. 19º CP, segundo o qual todas as pessoas com
idade inferior a 16 anos não têm capacidade de culpa, portanto são inimputáveis. O que releva é o
limite dos 16 anos - Todavia, há 2 coisas que a história do art. 19º CP nos conta:

(1) Este corte corresponde a uma ficção do legislador - estabelece uma idade em que aí corta o
significado da conduta das pessoas. Até aí considera-se que as pessoas não podem ser sujeitas
do juízo de censura que a culpa representa, a partir daí já lhes reconhece capacidade de culpa em
termos gerais. O que significa que o legislador não vai apreciar em concreto se aquele jovem de
15 anos afinal até tinha mais maturidade do que o outro de 7 - um critério formal. Porque é que
chegamos a esta ideia de que não é imputável? Há não muito tempo, a idade a partir da qual se
era capaz de culpa eram os 14 anos, e ANA RITA ALFAIATE defende inclusive uma alteração do
modelo de imputabilidade em razão da idade. Não é um corte desde sempre e para sempre -
corresponde àquilo que vão sendo as perceções do que pode ser considerado a maturidade
de alguém. E é um juízo geral quanto à inimputabilidade em razão da idade - não se analisa as
diferentes capacidades dos diferentes agentes, mas antes só se olha para a sua idade
independentemente da sua cor de cabelo, daquilo que vestem, do seu sexo, do seu
enquadramento social, doentes ou saudáveis, se tiverem menos de 16 anos são inimputáveis.

(2) Todavia, há casos em que um jovem de 14 anos pega numa pistola porque viu num jogo de
computador, entra numa escola e começa a disparar. Eu tenho de conseguir estabelecer uma
espécie de linha lógica em que vá percebendo a forma de resolver os problemas suscitados pela
prática de factos de jovens em diversas idades (“se quiserem matar alguém ou pedir para matar
alguém a um menor, façam tudo até aos 12 - até aí estão à vontadinha”), porque o direito penal

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considera que até aos 12 anos não tem legitimidade para intervir junto da criança - não está em
situação, o Estado, de substituir ou de ajudar na integração junto da criança. Os factos
praticados por menores de 12 anos são considerados quase como “danos colaterais”
suportados pelo legislador, não têm consequências (ex.: se uma criança com menos de 12
anos matar alguém o estado não faz nada, não responsabiliza, assume como perda - algo que
não era suposto ter acontecido e aconteceu).

• Também há as situações em que um jovem comete um crime, e tem mais de 12 anos, mas
menos de 16 - não tem capacidade de culpa, mas aproxima-se a passos cavalgantes de ter
capacidade de culpa. E o Estado pergunta o que deve fazer?

i) A resposta não podia ser mais simples: educar para a responsabilidade, é essa a
perspetiva do Estado. Neste período, aplica-se a Lei Tutelar Educativa - é uma lei
que não pretende responsabilizar o jovem/criança entre os 12 e os 16 anos, mas
que visa educá-lo para essa mesma ideia de responsabilidade. E portanto não se
aplica penas a quem não tem capacidade de culpa, mas antes medidas tutelares, que
podem ir desde a admoestação (o ralhete pelo procurador - pode ficar assustado), até
naturalmente, em sentido gradativo, as medidas podem ir até ao internamento em centro
educativo (consoante o facto praticado, consoante as necessidades da criança).

ii) Esta Lei nº 166/99 não é, todavia, o único instrumento, que o Estado dispõe para abordar
problema destas crianças. Vamos imaginar um jovem A de 15 anos, completamente
normal (de enquadramento social normal - vive com os pais, tem um teto, não passa
fome, vai à escola) por brincadeira furta qualquer coisa - pratica um facto relevante para
o direito penal, e pode suscitar a intervenção da Lei Tutelar Educativa que no máximo, a
ser aplicada, daria origem à admoestação. Mas agora imaginemos o jovem B que furtou
um arroz de pato no supermercado porque tinha fome, o pai está preso e a mãe é
toxicodependente e não tinha nada em casa para comer. Será que o Estado deve tratar o
jovem A e o Jovem B da mesma maneira? Como é evidente que não - se no caso do
jovem A, a prática do facto é o que determina a aplicação da lei porque lhe corresponde
uma educação para a responsabilização, não faz sentido educar para a
responsabilização o jovem B; o que faz sentido o estado fazer em relação ao jovem B
é protegê-lo. E portanto entramos na lógica da Lei da Proteção de Crianças e
Jovens em Perigo - esta lei cujo o único motivo de aplicação não é a prática de um
facto tipificado (o facto de ele ter furtado alguma coisa pode ser aquilo que me leva
a descobrir que ele está em situação de perigo, mas também podem existir outras
circunstâncias que não tenham necessariamente nada a ver com factos penais que
também me levem a perceber que ele está em perigo). Se estiver em causa a
aplicação desta lei, pode ser prolongada até aos 21 anos a proteção a essa criança/
jovem (começamos a ter uma dilatação do prazo deste regime, que pode ter origem na
prática de um facto).

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• A mesma circunstância pode levar, consoante o enquadramento da criança ou jovem em causa à


aplicação de legislação diferente - aquilo que se exige da intervenção estadual não pode ser a
mesma, apesar da conduta em si poder ser equiparada (o contexto do agente é completamente
diferente).

• Note-se que não existe a lógica de antecipar a imputabilidade em termos de idade - o momento
relevante para a formulação da imputabilidade do agente é o momento da prática do facto (art. 3º
CP), ou seja o momento em que o agente atua, e se quando ele atua tem 16 ou mais anos, pode-se
ver se está em perigo porque a aplicação dessa lei pode ir até mais tarde, senão já se pode aplicar
a lei penal porque já é imputável.

2. Relacionada com a/Em razão da Anomalia Psíquica:

a) Temos de começar por perceber o paradigma de onde parte o art. 20º/1 CP, e esse é o paradigma
normativo, ou seja, eu aceito que seja indicada a existência de uma anomalia psíquica, mas sou
eu, enquanto jurista/aplicador do direito que vou fazer o juízo normativo sobre a relevância
dessa mesma anomalia psíquica para o facto praticado. Constitui uma evolução relativamente ao
paradigma anterior, quer era o paradigma biológico - alguém nos dizia que aquela pessoa x tem uma
anomalia psíquica, e o jurista não iria contraditar e dizia que então era inimputável - isto não chega,
não basta, não é suficiente. Portanto ao primeiro degrau que é a verificação da existência de uma
anomalia psíquica, segue-se o segundo degrau necessário/subsequente a este, que é o juízo
normativo relativamente à anomalia psíquica em causa. Quais são as anomalias psíquicas relevantes?

(1) Psicoses:

i) Orgânicas - aquelas que têm a ver com o facto de existir uma sintomatologia física/uma
afetação física efetiva que determina aquela anomalia psíquica (ex.: o professor de liceu
que de repente começa a consumir pornografia infantil, e a partir daí começa a praticar
atos de pedofilia; começa o problema da responsabilização deste agente e ele vai-se
queixando de umas dores de cabeça absolutamente dilacerantes; é examinado e fazem
uma ressonância e descobre-se que ele tem um tumor, tumor esse que afeta o seu
sistema límbico - responsável por controlar os impulsos, o instinto quase animal, os
impulsos primários, e normalmente temos filtros que controlam esse sistema; se o tumor
lhe afetava o sistema límbico, os impulsos mais básicos não estavam controlados;
entretanto foi operado e retiraram-lhe o tumor, e ele voltou a ficar normal).

ii) Funcionais - aquelas que se prendem com a ausência de uma sintomatologia física
em sentido próprio, mas que têm todavia uma patologia identificável através dos
sintomas externos (ex.: os esquizofrénicos não têm um braço torto, ou um pé com mais
dedos, não têm nada físico digamos assim que possa ilustrar aquilo que é a doença que
eles têm; não obstante tem sintomas próprios que a permitem identificar).

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iii) Tóxicas - o nosso sangue é influenciado pela ingestão de líquidos com um grau de teor
alcóolico, e se eu ingerir acima de uma certa quantidade de álcool, na verdade o meu
organismo reage. Também podem ser estupefacientes. Tudo o que sejam toxinas que
alterem o funcionamento do organismo.

(2) Personalidade com anomalia:

i) Oligofrenia - a fraqueza mental/intelectual (“um insulto tecnicamente correto”):

(a) Alguém com a maturidade de uma criança de 6 anos, chama-se a essa pessoa
de idiota;

(b) Alguém tem o desenvolvimento/maturidade mental de uma criança no início da


pobredade, chama-se a essa pessoa imbecil;

(c) Alguém tem o desenvolvimento/maturidade mental de uma criança no final da


pobredade, chama-se a essa pessoa débil;

ii) Psicopatias - a psicopatia é um fenómeno que surge em pelo menos 50% da população
mundial, segundo os estudos. As intensidades/gravidades da psicopatia é que podem ir
crescendo, e o da série “Mentes Criminosas” são os que estão no grau quase máximo da
psicopatia. É algo normal. Por vezes pode ter origem nas neuroses e nas anomalias
sexuais.

Teste de classificação da psicopatia (encurtado para efeitos


pedagógicos); resposta sim ou não (responder afirmativa ou
negativamente não indicam necessariamente qualidades
positivas ou negativas da pessoa):

1 - Tem incapacidade de conformação com normas sociais? (a sociedade evolui


porque existem pessoas com incapacidade de conformação com normas sociais)

2 - Acham-se falsos?

3 - São impulsivos?

4 - São irritáveis?

5 - Têm desconsideração pela vossa própria segurança? Ex.: o senhor idoso que
atravessa na passadeira devagarinho, em cima de uma curva, e quando ouve um
carro a acelerar vindo no sentido contrário.

6 - Assumem ou não as consequências pelos vossos atos? Não é aqueles casos em

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que é obrigado a assumir porque “alguém me catou”, é aqueles casos em que por
natureza, como pessoa, assumo responsabilidade (“em vez de estar ali a ver se
consigo olhar para alguém e dizer foi ele”), independentemente de os atos serem
positivos ou negativos.

7 - Preocupam-se com aquilo que outros acham de nós?

SOLUÇÃO: De acordo com o modelo adotado pelo teste, a indicação de psicopatia corresponde à resposta afirmativa a 3
questões. 5 positivas é uma forma mais acentuada de psicopatia, e 7 positivos = marcar consulta.

iii) Perturbações profundas de consciência - não há aqui grande consenso no que pode
aqui entrar. Relativamente a duas perturbações profundas de consciência como é o caso
do estado de hipnose e da fadiga extrema (burnout) existe um consenso maior, mas
aquilo que são os estados de afeto (o crime pacional - cometido por amor, ódio, raiva)
há alguma divergência doutrinal de facto sobre se devem ou não ser incluídos no
contexto das anomalias psíquicas.

• Chegados aqui, e depois de afirmarmos que o agente tem uma anomalia psíquica, surge o tal juízo
normativo que temos de levar a cabo para perceber a relevância que aquela anomalia psíquica tem/deve
ter no contexto da capacidade de culpa ou não do agente. O que é que isto significa? Este juízo
normativo, o tal segundo passo, o juízo que o jurista já vai fazer sobre o impacto daquela anomalia
psíquica, é chamado juízo duplamente concreto - primeiro olha para aquele concreto agente
naquele concreto momento (basta pensar na esquizofrenia, que é sem dúvida alguma uma psicose,
mas é suscetível de medicação - se ele estiver medicado está normalizado; não basta que alguém me
diga que aquele agente é esquizofrénico, importa também saber se no momento em que ele praticou o
facto, aquele agente, estava ou não com medicação; e se ele estava com medicação não tem motivo
nenhum para dar efetiva relevância àquela anomalia psíquica no contexto do facto); e o outro momento
de cobertura do juízo é especificamente quanto ao facto (ex.: o exemplo do cleptomaníaco/
cleptómano, tem um impulso irresistível para se apropriar daquilo que não é dele, ou seja, ainda que até
lhe possa ser reconhecida a capacidade de perceber o sentido da sua conduta - ele perceber que um
livro não era dele e pensar “queeeeroooo” -, mas atendendo à sua anomalia psíquica não tem
capacidade para se determinar/orientar a sua conduta de acordo com a avaliação que o próprio fez
relativamente à ilicitude do facto; mas isto relativamente a crimes contra o património - quanto ao furto -,
pois a cleptomania não afeta a capacidade de perceber que está a matar alguém, a bater alguém, a
insultar alguém, a violar alguém; portanto ainda que eu possa conceber que aquela pessoa, naquele
momento, era portadora de uma anomalia psíquica - a cleptomania -, a anomalia psíquica em causa não
releva para efeito do facto típico concretamente praticado, não afetando a capacidade de culpa do
agente relativamente a este facto concreto, e relativamente a este facto em concreto é imputável - se for
homicídio, injúria, ofensa à integridade física).

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b) Segue-se o problema da imputabilidade diminuída, ou seja, são aqueles casos em que


verdadeiramente o agente ainda se considera imputável, mas está na fronteira para a
inimputabilidade. Não são aquelas situações evidentes como no nº1. Quem o está a julgar tem de
tomar a decisão sobre se o julga como inimputavel (em vez de lhe aplicar uma pena, aplica-lhe uma
medida de segurança), ou se o julga como imputável, ou seja, como capaz de culpa e lhe aplica uma
pena. O nº2 refere-se a estes tais casos de fronteira - o agente ainda não é inimputável, mas não
lhe é reconhecida a imputabilidade plena.

• O nº3 constitui um critério de desempate, que tem particular relevância nos casos em que o
agente é reincidente (ex.: se o agente com imputabilidade diminuída pratica o facto 1, é julgado como
imputável, é condenado a uma pena de 1 ano de prisão, sai cá para fora e comete o facto 2 que é
igual ao 1, é caso para o julgador se perguntar se compensa aqui voltar a aplicar a pena, ou mais vale
tratar o agente aplicando uma medida de segurança, atendendo à sua condição física e depois tendo
também em consideração a sua eventual perigosidade).

c) O nº4 trata um dos problemas mais complicados do ponto de vista da imputabilidade. Porquê?
Vimos à pouco que o juízo de imputabilidade é feito/referido no momento da prática do facto. E o art. 3º
CP diz-nos que o momento da prática do facto é quando o agente atuou - porque é relativamente à
ação do agente que entendo de ver se passou ou não considerá-lo, quanto à ação materializada no
facto praticado, capaz de culpa pelo facto que ele praticou. Mas agora consideremos a seguinte
hipótese: Asdrúbal que matar a mulher, e tem receio que a coragem lhe falhe no momento de disparar
o gatilho. E portanto antes de chegar a casa, e depois de decidir que aquele era o dia, passa pela
tasca, emborca uma garrafa de vinho, e quando abre a porta de casa, assim que a mulher lhe surge à
frente, considerando-se senhor deste mundo e do próximo, não tem falta de coragem para puxar o
gatilho, disparar e matar a mulher. O problema é que aplicando de forma linear a ideia de que o juízo
de imputabilidade deve-se referir ao momento da prática do facto, ele quando leva a cabo a ação
disparar sobre a mulher está no âmbito de uma psicose tóxica - está embriagado, logo estaria
inimputável. E ficaríamos com um problema - ainda que eu perceba que o Asdrúbal ordenou o seu
estado de inimputabilidade à prática do facto, percebo também que seguindo o critério rígido do juízo
de imputabilidade eu terei necessariamente de o declarar inimputável (não lhe permitindo responder
pelo facto efetivamente praticado, no caso o homicídio). Deste ponto de vista, este nº4 dá-nos uma
ajuda e diz-nos que “A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo
agente com intenção de praticar o facto.”. Corresponde àquilo que se designa actio libera in causa

(“ação livre na causa”). Quais é que são as varias mensagens que nos transmite este nº4?

(a) Em primeiro lugar, transmite-nos a mensagem de que ficciona o início da ação


relevante num outro momento - não no momento do disparo, mas no momento em que o
Asdrúbal se encharca em tintol para ter a certeza que dispara; e no momento em que
começa, antes de ter posto a garrafa à boca, a sua ação foi livre na causa (ele não estava
condicionado quando tomou a decisão de se embriagar para disparar sobre a mulher). Se eu
de facto puder afirmar/determinar que a ação foi livre na causa (a causa que lhe deu origem
foi a decisão de se embriagar e matar a mulher, ainda que ele estivesse inimputável no
momento do tiro), que não foi forçado a beber, o que resulta é que não se afasta a

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imputabilidade do agente quanto ao facto por ele concretamente praticado (o nosso amigo
Asdrúbal será julgado pelo crime de homicídio). Antecipo o momento do juízo de
imputabilidade, dizendo que aquela ação do disparo foi livre na causa, e declaro-lo
imputável relativamente ao facto que ele praticou, fazendo-o responder pelo facto
concreto (o homicídio neste caso). Bebi para praticar o facto.

(b) Todavia, situação diferente desta é aquela prevista no art. 295º CP - B, sportinguista
ferranho, depois de mais uma derrota, resolve ir à tasca para beber até esquecer os seus dias
de amargura. Depois de ter bebido várias doses do liquido delicioso, B sai da tasca e vê
aquele C que odeia desde sempre (não pode com ele nem pintado a ouro), quanto mais não
seja porque é benfiquista. Ora, sabemos que a psicose tóxica afeta o sistema límbico e tira os
filtros, de repente a pessoa vê-se com coragem para dizer e fazer aquilo que não teria, e
portanto B chega-se a C e dá-lhe um arreal de porrada. Este art. diz-nos, no seu nº1, que
“Quem, pelo menos por negligência, se colocar em estado de inimputabilidade derivado da ingestão ou
consumo de bebida alcoólica ou de substância tóxica e, nesse estado, praticar um facto ilícito típico é

punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.”. Aqui a prática de um

facto ilícito típico, ocorre em situação de inimputabilidade (porque a pessoa está


bêbada), mas neste caso não pré-ordenou o seu estado de embriaguez à prática do
facto. O que acontece é que a pessoa, por estar mais solta, foi livre quanto à auto-colocação
em estado de embriaguez, e portanto responde é por essa condução de vida perigosa, e a
prática do facto ilícito típico funciona aqui como condição de punibilidade, ou seja, havendo
sorte a pessoa pode estar bêbada que nem um cacho, conquanto não pratique nenhum facto
ilícito típico, não lhe acontece nada. Agora se a prática de um facto ilícito típico é
condição de punibilidade, isto significa que o facto ilícito típico concretamente
praticado é completamente irrelevante para efeitos do art. 295º CP - aqui a prática do
facto funciona como condição objetiva de punibilidade (eu quando pratico o facto estou
inimputável, eu não tenho consciência do facto que pratiquei - não tenho capacidade de culpa
relativamente ao facto que pratiquei). Naturalmente, o que depois releva para determinação
da moldura penal é o facto da intensidade da subjetividade quanto à colocação naquele
estado de embriaguez (se o agente quis mesmo ficar completamente bêbado só porque sim,
ou porque foi por falta de cuidado). Pratiquei o facto porque bebi.

Aula 3 - 20/03/17

Caso Prático 1

A, frequentador assíduo da taberna do bairro, bebe imensurávelmente na véspera de S. João, e à medida que vai
bebendo, vai dizendo entre dentes “aquele animal do B vai ter o que merece”. B era inimigo confessado de A, e que B
veio a ser descoberto morto nesse mesmo dia.

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Em tribunal vem-se a provar que o autor do facto, em termos de imputação objetiva, era A. Agora resta saber se A é
culpado ou não. O que está aqui em causa?

Resolução:

Está aqui em causa saber se A é ou não imputável. Quando é que eu faço o juízo de imputabilidade? No momento da
prática do facto, que é, de acordo com o art. 3º CP, o momento da ação. O agente, no momento da ação, estava
inimputável pois estava “bêbado que nem um borracho”, e não pré-ordenou o seu estado de embriaguez relativamente
ao crime por ele praticado de homicídio.

Desse ponto de vista, eu vou-lhe aplicar o art. 295º CP, um tipo legal de crime. Mas o que lhe vou acrescentar mais? Ele
estava imputável relativamente a quê? Para puder responsabilizar o agente por esse tipo legal de crime, tem de estar
imputável - estou a puni-lo pelo crime previsto no art. 295º CP, e não de acordo com. E se eu digo que A estava
imputável relativamente ao crime de homicídio, tenho ainda assim que conseguir que ele estava imputável relativamente
ao facto de embriaguez ou intoxicação. Relativamente a esse facto, quando ele começa a beber não estava inimputável
(ele tomou a decisão de começar a beber), e a prática do crime de homicídio funciona aqui como uma condição objetiva
de punibilidade (é a tal prática do facto ilícito típico, porque justamente quando ele pratica o facto ilícito típico, estando
inimputável, nunca pode ser culposo).

Mas se pensássemos relativamente a este caso prático circunstância diferente, ou seja, se pensássemos nas
afirmações que ele profere, e as fundamentássemos como sendo uma lógica de pré-ordenação à prática do facto de
homicídio. Aqui já não seria o art. 295º CP, mas antes o art. 20º/4 CP - há uma antecipação do juízo de imputabilidade
ao momento em que o agente se coloca em estado de inimputabilidade, pré-ordenado à prática do facto. E neste facto,
vou punir A pelo crime de homicídio - declaro-o imputável ao crime que ele praticou, ainda que em estado de
inimputabilidade, porque pré-ordenou essa inimputabilidade à prática desse facto, e de acordo com o art. 20º/4, faço o
juízo de antecipação da imputabilidade, e não excluo a imputabilidade “a ação foi livre na causa”.

Caso Prático 2

A é cleptómano. Numa visita a casa de B furta um quadro. Nessa mesma ocasião, em casa de B, A e B começam a
discutir por motivos futebolísticos, e A acaba por proferir palavras ofensivas da honra de B.

Neste caso, por que facto(s) posso ou não punir A?

Resolução:

Está aqui em causa um juízo de inimputabilidade simples. O paradigma normativo está previsto no art. 20º/1 CP - existe
anomalia psíquica, que é o primeiro requisito exigido por este art.

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1. Relativamente ao crime de furto, esta anomalia psíquica, que eu procedo ao tal juízo normativo que faço depois de
me dizerem que ele tem a anomalia psíquica. Esta anomalia psíquica, como diz o art. 20º/1 CP, a capacidade de
determinação de acordo com a avaliação da ilicitude do facto ou não? Interfere, portanto eu mesmo fazendo esse
juízo normativo, a cleptomania é uma anomalia psíquica que interfere com a capacidade de determinação do agente
de acordo com o juízo que ele faz da avaliação da ilicitude do facto.

2. Relativamente ao crime de injúria já não se pode fazer a mesma coisa, porque apesar de continuar a existir a
cleptomania, de acordo com o juízo normativo tenho de dizer que, não obstante a existência da anomalia psíquica, a
mesma não afeta a capacidade do agente de avaliar a ilicitude do facto, ou de se determinar de acordo com esse
mesmo juízo/avaliação.

Nesse sentido, ele será imputável quanto ao crime de injúria, e inimputável quanto ao crime de furto, por mera aplicação
do art. 20º/1.

Caso Prático 3

A a caminho da taberna esmurra B. Entra na taberna, bebe que nem um cacho, sai da taberna (já completamente
embriagado) e mata C.

Resolução:

Fazendo o juízo de imputabilidade referido ao momento da prática do facto (art. 3º CP), ele não é portador de nenhuma
anomalia psíquica. É imputável relativamente ao facto ofensa à integridade física.

O caso continua: ele entra na taberna, enfrascou-se, saiu e matou C. Aplica-se o art. 295º CP, pois neste caso o
homicídio funciona como condição objetiva de punibilidade - tenho de fazer o juízo de imputabilidade não no momento
em que ele mata, mas antes quando começa a beber.

Formas de culpa

O que estivemos a ver até agora foi a capacidade de culpa do agente - a imputabilidade (a circunstância de eu ver se
existe ou não algum condicionamento da liberdade endógena do agente, que o impeça naturalmente de poder ser
censurado). A partir do momento em que eu afirmo esta capacidade de culpa, eu tenho de perceber quais é que são as
formas possíveis através das quais o agente pode actuar. E desse ponto de vista, eu tenho 2 formas.

Quais são as formas possíveis através das quais o agente pode atuar?

1. O dolo

2. A negligência

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A circunstância de só existirem estas 2 formas de culpa é também um reflexo da vertente garantística do direito penal -
só autoriza 2 formas de subjetividade. Portanto se for a “pseudo-culpa”, ou a “mera culpa” não interessa, porque se não
estão normativamente assumidas como formas de culpa, não tem relevância jurídico-penal. Também o é o art. 10º/3, um
reflexo do princípio da legalidade - vem prever quais as formas de culpa que o direito penal aceita.

Do ponto de vista do direito penal, o que interessa mais é a vontade do agente de querer ofender um bem
jurídico. É a vontade referida ao facto - o dolo, que é a forma de culpa na qual eu consigo identificar uma vontade
propriamente dita do agente.

Mas eu só posso ter vontade relativamente a uma coisa em concreto - eu só poso fazer referir a minha vontade a um
respetivo facto. Era possível eu querer praticar os crimes do CP assim, “tipo ya”? Parece lógico, já agora querer tudo ao
mesmo tempo? Como é evidente que não, eu só posso fazer preferir a minha vontade a certos factos, não posso ter
vontade a praticar “crimes”.

Por outro lado, eu só posso conseguir fazer formar vontade relativo ao facto, uma vontade desaprovada pelo direito
penal, se eu fizer um desenho na cabeça/conhecer os elementos/circunstâncias correspondentes ao facto que depois
eu hei-de querer praticar:

• Ex.1: Eu para ter vontade de ficar com a garrafa de água com girafas da colega, no sentido de me apropriar dela,
eu naturalmente tenho de representar que esta garrafa não é minha, porque se fosse minha não estava a
apropriar-me de nada que não fosse meu - tenho de ter vontade de lhe surripiar a garrafa de água;

• Ex.2: Portanto, eu para ter vontade relativamente ao facto homicídio, eu tenho de ter na cabeça que quer matar
uma pessoa (não quero matar uma formiga).

O que se exige para eu poder afirmar o dolo, enquanto forma de culpa volitiva, é que esteja verificado o elemento
intelectual - o conhecimento da factualidade típica, i. é., a representação dos elementos tipo, que são relativos a um
determinado tipo legal de crime (e não “dos crimes do CP”).

Fazendo uma ponte para outra matéria do direito penal, para uma matéria que já conhecemos. Existem elementos:

1. Objetivos (o que mais nos interessam aqui);

2. Descritivos - pessoa;

3. Normativos

Aqui, uma vez mais, o critério que se exige, não é que o Sr. das couves seja um jurista formado, que consiga aferir, nos
termos do CC, se a coisa é móvel e se é alheia ou não. Mas o Sr. das couves, como qualquer cidadão, sabe que couves
é que são dele e que couves é que são do vizinho (então se forem galinhas - “galinha do vizinho é sempre melhor do
que a minha”) - temos esta noção do que é meu e do que é teu. Significa isto que, do ponto de vista normativo, em
termos de representação, também o que se exige é a designada valoração paralela na esfera do leigo - não é a

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valoração jurídica (o conceito de coisa móvel alheia é um conceito jurídico - para saber se uma coisa me é minha, tenho
de saber o direito de propriedade). Por um lado tinha as suas vantagens, mas repare-se o que seria exigir uma
valoração jurídica de um elemento normativo do tipo - significava que quem podia cometer crimes que tivessem
elementos normativos seriam os juristas e mais ninguém (e não são poucos os tipos legais de crime com elementos
normativos - basta pensar no crime de furto, que é a coisa mais bagatelar/corriqueira que existe).

Também há elementos que, na maior parte das vezes são elementos descritivos, mas por vezes assumem relevância,
são os elementos atinentes ao processo causal quando e apenas quando se trate de um crime de execução vinculada
(se for um crime de execução livre, o processo causal é irrelevante). Ex.: voltando ao crime de homicídio, diz quem
matar, não diz como; não diz qual é que tem de ser o processo causal que leva à morte da pessoa, e se eu já tiver dado
um tiro, mas afinal ele só tiver morto em circunstância de o ter atirado pela ponte abaixo, isso é completamente o
mesmo - o processo causal não está integrado na descrição típica da conduta. E portanto é a partir do momento em que
eu tenho o conhecimento/representação destes elementos do tipo, que eu posso formar a minha vontade relativamente
ao facto típico propriamente dito, e portanto que posso fazer referir a vontade aos elementos.

O dolo, não obstante ser a forma de culpa que representa a existência de uma vontade referível ao facto, basta nós
olharmos para o art. 14º CP, para percebermos que é uma forma de culpa que admite gradação - posso aceitar como
dolo uma vontade mais direta ou menos direta, uma vontade mais forte ou menos forte, conquanto que seja ainda
vontade cairá ainda na lógica do dolo. Este art. define normativamente as 3 formas de dolo:

1. Dolo direto - naturalmente é aquela que é mais evidente. Ex.: eu represento outra pessoa, represento
matar, quero matar outra pessoa, pego num revolver, aponto e disparo. A realização do facto é a finalidade
da minha conduta - eu quero realizar aquele facto (p.ex., matar outra pessoa). É o nº1.

2. Dolo necessário - Todavia, se olharmos para o art. 14º CP, e virmos com atenção o que lá vem escrito, ali
já não se diz que a realização do tipo é a grande finalidade da conduta. Diz-se antes que é uma
consequência necessária da conduta - Ex.1: A quer matar B, mas sabe que a única altura em que a apanha
à mão é no sítio x às horas y, portanto decide que a melhor forma de resolver o problema é pôr uma bomba
lá no meio, e fá-la voar; depois o que acontecer é uma consequência necessária da sua conduta, que ainda
assim leva a cabo, mas na verdade só tem dolo direto em relação à morte de B. Ex.2: A quer destruir
através de um incêndio a casa de B; todavia sabe que em casa de B está uma senhora acamada, sem
saúde, que não consegue fugir nem mexer-se; portanto tem dolo direto quanto ao crime de dano (a
destruição do edifício), mas sabendo que lá está a senhora acamada, acaba por ter dolo necessário
relativamente à sua morte (é uma consequência necessária do facto de ele atear fogo àquela casa).

• Quer o dolo direto, quer o dolo necessário são formas de dolo intencional - formas mais fortes de dolo.

3. Dolo eventual - O nosso CP ainda prevê uma 3ª forma de dolo, ou seja, ainda há vontade mas não é tão
intensa. Na verdade, do ponto de vista daquilo que acontece em termos de linha intelectual, é que o agente
representa a realização do facto como a consequência possível - já não é aquilo que ele quer, já não é a
consequência necessária, é neste caso a consequência possível da sua conduta. É a lógica do “meh,
paciência”, é uma certa passividade/astenia relativamente a essa possibilidade de realização do facto
típico. Ex.: alguém que vai sair a uma 5ª à noite, que é a noite super aqui em Coimbra, não consegue

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cumprir o objetivo de 1,2l álcool/g de sangue, mas chega aos 0,7/0,8; depois tem de ir para casa - o que é
que ele faz? O que qualquer português faria: pega no carro e vai a conduzir; mas se ainda só está com
0,7/0,8 ainda não está completamente incapacitado vá (para não dizer outras palavras) - há uma diferença
entre dizer “bem eu se calhar não estou muito bem, é melhor ter cuidado para não ir contra alguma coisa,
mas também se for fui” (não tem uma vontade intencional, “mas se for fui”), do que dizer “agora vou com
cuidado, mas de certeza que não vai acontecer nada, não pode acontecer nada, verdadeiramente não vai
acontecer nada“ - são formas de lidar com a possibilidade, do ponto de vista da subjetividade,
diferentes. Porque é que é importante dizer que no dolo eventual já não há uma verdadeira intenção, mas
ainda se trata de dolo? Porque se olharmos para a parte especial do CP veremos que a esmagadora
maioria dos tipos penais apenas são puníveis a título doloso, portanto se eu ainda afirmar que o dolo, não
obstante que só com dolo eventual ainda posso punir o agente pela esmagadora maioria dos crimes
dolosos. Diferentemente, como estão ali na fronteira do dolo eventual e da negligência consciente, se eu já
não puder afirmar o dolo e começar a resvalar/cair para o lado da negligência, aí, se o tipo não estiver
previsto, em termos de punição, a título negligente, eu já não posso punir o agente.

• Ex.: vamos pensar no crime de dano, nos vemos no art. 212º CP dano, no art. 213º CP dano qualificado e
no art. 214º CP dano com violência. Não vemos em sítio nenhum previsto “dano negligente”, portanto se eu
agora tiver aqui a falar e a esbracejar muito em frente a um computador eu tenho duas hipóteses, ou
eventualmente posso, prevendo como consequência possível que isto caia e se parta - a destruição - i),
pensar “não, de certeza que isso não vai acontecer”, ii) como posso pensar “bem, se acontecer paciência”.
São duas formas de estar perante o facto, e portanto no 1º caso, como eu confiava que não ia acontecer
nada, não obstante ter representado como possível, estou a atuar no patamar da negligência consciente, e
como o “dano negligente não está previsto/tipificado, eu não vou ser punido.

• Justamente porque como a negligência não tem vontade, não há vontade do agente referida ao facto - a
negligência é o típico “foi sem querer”, é um “por acidente”. O que existe é sim uma falta de cuidado de que
deriva uma ofensa a um bem jurídico, e que podia ter sido evitada essa mesma ofensa, se o agente,
porque tem capacidade para o fazer, tivesse respeitado tal norma de cuidado. Enquanto que eu no dolo
vou censurar o agente pela sua posição relativamente ao facto (vou censurar verdadeiramente o mau uso,
desvalioso, da sua vontade), na negligência não estou a censurar a vontade do agente referida ao facto - o
que eu estou a censurar ao agente é a circunstância de ele ter tido capacidade de ter cumprido a norma de
cuidado, e não o ter feito. Portanto o juízo de censura que eu faço nas formas de culpa é diferente.

Qual é a especificidade da negligência? Se olharmos para a parte especial do CP, rapidamente chegaremos a uma
conclusão: a esmagadora minoria dos tipos penais estão previstos a título negligente, e portanto a punição a título
negligente afirma-se como excecional. Porquê? Estamos a falar de direito penal, direito de última ratio, portanto eu
quero punir pessoas porque elas quiseram - o “sem querer” é uma excecionalidade, porque eu estar punir os
comportamentos/as condutas negligentes, “é estar a chamar para a festa do direito penal muito mais gente, e portanto
se eu estou a chamar muito mais gente para a festa, isto não é como no queimódromo, onde é divertido, aqui é pensão
completa com hora de recolha, a comida é um bocadinho insossa, e o colchão definitivamente não é ortopédico”.
Naturalmente que eu tenho de perceber a punibilidade/censura a título de negligência excecionalmente, porque estou a
apertar imenso as margens de punibilidade. Só relativamente a alguns bens jurídicos é que fará sentido a punição da
respetiva conduta a título negligente, e por isso é que nós encontramos, p.ex., o homicídio negligente, as ofensas à

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integridade física negligentes, mas já não temos o “dano negligente”, o “furto negligente” - se eu “sem querer” quiser
levar o tablet do colega para casa, não vou ser punido, seria uma tentação para algumas pessoas.

A negligência, justamente porque não representa uma vontade referida ao facto, e significa uma censura que assenta na
capacidade do agente cumprir o dever, só se pode censurar alguém por não ter cumprido o dever se, em primeiro lugar,
existir esse dever para cumprir, e se, em segundo lugar, esse dever para cumprir fizer sentido enquanto norma de
cuidado. É porque, não obstante a negligência ser uma forma de culpa, eu para chegar ao juízo de censura
concretizado pela forma de culpa negligente, primeiro tenho de percorrer os elementos objetivos que têm de estar
verificados para se chegar ao momento de censurar, apesar de ser uma forma de subjetividade - não posso censurar só
porque “dá cá aquela palha”, tenho de censurar com base em alguma coisa. E portanto desse ponto de vista, eu só
consigo chegar ao juízo de censura (dizer “eu censuro-te porque tinhas capacidade para cumprir o dever, se antes
puder objetivamente ter afirmado que existia um dever válido a cumprir”), e desse ponto de vista, a estrutura da
negligência tem de ser analisada na conjugação de elementos objetivos e subjetivos: objetivamente, para que eu
possa falar de negligência, tenho de conseguir primeiro afirmar, se eu estou a censurar alguém pelo
incumprimento de um dever, que houve uma violação de um dever. E que dever é este? É um dever de cuidado,
um dever objetivo de cuidado.

Por que é que estes deveres são importantes? Porque justamente, nós hoje em dia estamos numa situação
comunitária/social, em que existem inúmeras atividades perigosas em si. E a mais evidente/imediata/mais fácil é
pensarmos no tráfego rodoviário - a condução é uma atividade perigosa por si. Para assegurar esta convivência,
existem uma série de normas que tentam conter, dentro de um certo patamar de suportabilidade, atividades perigosas
em si, ou que podem comportar riscos para os outros - a ideia é justamente essa. E portanto, estas normas de cuidado
vão-se multiplicando e acabam por gerar um fenómeno curioso - não obstante serem punidas a título excecional, é
justamente na punição dos crimes negligentes que os tribunais entopem (basta pensar mais uma vez no tráfego
rodoviário - os atropelamentos, os acidentes, os carros que ficam partidos, as pessoas que se magoam). Ou seja, do
ponto de vista prático, os crimes negligentes assumem uma importância enorme.

Tem assim de estar em causa um dever objetivo de cuidado que o agente tenha violado. Como sei o que são? Assume-
se como um dever normativamente imposto, ganha relevância normativa na justa medida em que vai constituir o
primeiro passo para depois eu chegar ao ponto de eventualmente eu vir a censurar o agente por a ter violado (p. ex., o
código da estrada) . Mas isso não quer significar que as fontes do dever objetivo de cuidado sejam necessária e
exclusivamente jurídicas/normativas/concatenadas em lei, são normas escritas mas que não têm força de lei
(regulamentos internos às vezes, certas normas de “boa conduta” de certas atividades profissionais - estão escritas mas
não têm força de lei, assumindo-se, não obstante, como fontes do dever objetivo de cuidado). E depois temos, já não
escritas, os próprios costumes profissionais - muitas vezes até nem têm nada escrito, mas, entre si, naquilo que é a boa
prática nas leis daquela arte, nós sabemos que se deve fazer da maneira a e não da maneira b para não haver
problemas [ex.: a calçada portuguesa - partindo do pressuposto que não existe uma associação profissional de
calceteiros, ou escrito um código, se eu quiser ser calceteiro há uma regra mais ou menos evidente, que é a de que é
suposto as pedras ficarem mais ou menos lisas; portanto se eu usar areia da praia, especialmente aquela do Algarve
(que quando dá vento se mete em tudo quanto é sítio, que nós temos no corpo e depois temos de estar ali não sei
quantos dias a tomar banho, e continuamos a encontrar areia em todo o lado), parece evidente que as pedras não vão
ficar fixas e que não vai ser uma calçada segura; assim, o possível e o provável de acontecer é a calçada abater p. ex.,
e se tal acontece, porque aquele tipo de areia não sustenta a pedra, vai acontecer que alguém vai torcer um pé; posso

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ou não censurar aquele calceteiro por ter feito calçada com areia do Algarve, porque estava com saudade das férias?
Havendo aqui um costume profissional que diga que não pode ser com areia do Algarve, há uma violação de um dever
de cuidado para com a construção de calçada, e que seja previsível que aquilo vá abater, posso dar o passo de
censurar aquele calceteiro porque não respeitou a regra de cuidado derivada dos costumes profissionais, e podia tê-lo
feito].

Assim, na estrutura objetiva da negligência, para além de ter de haver a violação de um dever objetivo de cuidado,
também temos de ter naturalmente a previsibilidade da produção do resultado. Porque as normas de cuidado são
aquelas que visam evitar, através do seu cumprimento, a produção de resultados previsíveis (basta pensarmos no
exemplo do calceteiro - é mais do que previsível que, se eu usar areia da praia em vez de areia como deve ser, a pedra
não se vai segurar apropriadamente, logo alguém se vai magoar naquela calçada). O que significa que, se o juízo de
censura que eu faço é o juízo de censura que se refere à capacidade do agente de ter violado o dever objetivo de
cuidado, quando tinha capacidade de o ter cumprido, eu naturalmente tenho de perceber, no contexto dos deveres
objetivos de cuidado, que existem agentes que verdadeiramente não têm capacidade de cumprir esse mesmo dever.

• Ex.: vamos pensar numa linha de produção de uma fábrica, entra um estagiário e justamente por ser um estagiário, a
acompanhá-lo está ainda um supervisor. Vamos imaginar que nessa linha de produção o estagiário, por definição,
está a aprender, tem de manusear produtos que, em si, não são perigosos, mas que têm de ser utilizados com uma
certa ordem, sob pena de poder haver algum “encravanço” na máquina e haver faíscas ou alguma possibilidade de
incêndio. Ora o supervisor, depois de um fantástico almoço de dobrada, resolve ir “meditar de olhos fechados
levantando as pernas, a chamada meditação introspetiva”. Assim, o estagiário fica na linha de produção, e troca as
mãos e usa produtos fora de ordem. A máquina encrava, faz faíscas e labaredas, e acaba por queimar um colega do
estagiário na mão - há uma ofensa à integridade física. Será que aqui, na verdade, posso responsabilizar o estagiário?
Ele objetivamente violou um dever de cuidado, pois era previsível que ele, violando aquele dever de cuidado, que lhe
fosse acontecer alguma coisa, por isso é que era suposto os produtos serem usados uns atrás dos outros, com uma
certa sequência. Ele tinha capacidade para cumprir o dever de cuidado? Não, porque ele ainda estava em formação.
Então, qual é que é a violação do dever de cuidado que aqui importa? É a do supervisor, que violou o dever de
cuidado de supervisionar o cumprimento das regras técnicas por parte do estagiário. Quem vai ser responsabilizado
aqui não vai ser o estagiário por ter violado a regra de cuidado da ordem dos produtos, porque ele não era capaz de a
cumprir, estava a aprender. E assim começamos a ver como estas questões se vão intercruzando.

Ainda há uma outra circunstância, que é uma compreensão de que as normas de cuidado não podem, muitas vezes, ser
entendidas em sentido absoluto. Ex.: o limite máximo de velocidade na autoestrada é 120 km/h; se estiver a chover
torrencialmente e nevoeiro, o limite de velocidade máxima é 120 km/h na mesma, mas faz sentido circular a essa
velocidade? Não, portanto a norma de cuidado altera - supostamente estaria a respeitar o limite máximo de velocidade,
mas também tenho que adaptar o cuidado às circunstâncias. As normas de cuidado não são necessariamente
estanques:

1. Imaginemos um caso prático em que o A vai na autoestrada a conduzir a 119 km/h com uma tempestade torrencial e
a chover granizo e tudo fechado, não se apercebe a tempo que havia um poste e parte-o - o poste está partido e é

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um crime de dano. Interessa aferir a negligência? Não, porque o crime de dano não está previsto a título de
negligência 4.

2. Agora imaginemos que A mata alguém, que vai contra alguém que estava na estrada. Pode-se socorrer do
argumento “mas eu estava a cumprir o limite de velocidade, eu cumpri a norma de cuidado neste caso”? Não pode,
porque as normas de cuidado não são absolutas, também se prendem com a circunstância concreta.

Antes de passarmos para a parte subjetiva propriamente dita, cabe ainda aludir ao princípio da confiança - um ligeiro
enquadramento. O princípio da confiança é um princípio limitador da responsabilidade a título negligente em direito
penal. Mas só faz sentido socorrer-se deste princípio para excluir a responsabilidade a título negligente quando eu já
possa afirmar que, eventualmente, não exista essa responsabilidade - ou seja, quando já tenha existido a violação de
um dever objetivo de cuidado (porque se o dever objetivo de cuidado foi cumprido, eu não preciso do princípio da
confiança para nada. Como funciona? Eu, enquanto cidadão cumpridor das regras de ordenação, das regras de cuidado
da sociedade, devo poder confiar que os outros fazem o mesmo, ou seja, também cumprem as regras. A particularidade
deste princípio da confiança é a seguinte: não parece muito português está lógica de cumprimento absoluto das regras
de cuidado (pensemos no conceito de “semáforo verde-tinto” - o português tradicional quando vê que o semáforo está a
ficar amarelo acelera, sendo que a regra do código é parar; se fosse um alemão e aparecesse um amarelo, certamente
abrandaria o veículo), e portanto o princípio da confiança é desenvolvido na Alemanha, onde, contrariamente aos
latinos, há uma certa tendência/ideia de cumprimento das regras. Em Portugal nunca poderíamos afirmar tal princípio,
ou pelos menos a única coisa que poderíamos confiar é que não podíamos confiar.

• Imaginemos um cruzamento com um “semáforo verde-tinto”, mas que tinha excelente visibilidade e A via que não se
aproximava carro nenhum, ou seja, que conseguia passar sem problemas na transversal. Acontece que vindo na
transversal, no sentido coincidente com B, vinha um carro “xuning” a 170 km/h em cidade, e quando A olhou não viu
nada mas ao passar levou com ele em cima e bateram - A violou o dever objetivo de cuidado, pois passou com “verde-
tinto”. Mas seria previsível que aparecesse, não obstante ter olhado, que aparecesse um carro a 170 km/h na cidade?
Não, e neste ponto de vista A não vai ser responsabilizado pelo facto (isto depois tem uns afeiçoamentos que iremos
trabalhar melhor infra). Há uma efectiva violação do dever objetivo de cuidado, mas atendendo ao princípio da
confiança, porque é suposto poder-se confiar que, não obstante estar a violar uma norma, que os outros a respeitam,
A não vai ser responsabilizado pelos danos (onde se incluem as ofensas à integridade física) ocorridos pelo acidente.

O princípio da confiança funciona como uma limitação à responsabilidade a título negligente.

Analisados os elementos objetivos da negligência, resta-nos olhar para o elemento subjetivo. E no fundo, o que se trata
é de aferir a capacidade do agente para cumprir aquele dever, e portanto não fez quando tinha capacidade para tal, logo
eu posso censurá-lo. Relativamente a quê é que eu vou aferir a capacidade do agente? Às circunstâncias do caso, e às
suas capacidades pessoais (art. 15º CP) - naturalmente existem pessoas com mais capacidades pessoais do que
outras em determinadas circunstâncias. O que significa que, tal como em relação ao dolo, eu depois de percorrida a
vertente objetiva da negligência, consigo perceber que, enquanto formas de negligência, o CP dá-me 2 definidas, e 1
excecionalíssima. As duas definidas correspondem às alíneas a) e b) do art. 15º CP:

4Deve-se prestar atenção a estes pequenos truques, porque dá maior sinal de ignorância no exame despejarem a construção toda da negligência, e depois dizer que
eventualmente poderá ser punido a título negligente se, p. ex., em causa estiver um crime de dano, do que não despejar nada e dizer que, p. ex., sendo um crime de dano não é
punível a título negligente e não tem relevo analisar se existe ou não negligência no caso concreto. Escrevemos 5 linhas e vale mais 5 valores, fazendo a outra versão temos 0
valores.

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1. Negligência consciente [alínea a)] - a vertente intelectual é exatamente a mesma que a vertente
intelectual do dolo eventual, ou seja, eu prevejo a realização do facto como possível, o que é exatamente
igual ao art. 14º CP. Qual é que é a diferença? 5 Nas orais há quem diga que numa o agente se conforma e
na outra ele não se conforma. Depois pergunta-se o que é isso de conformar-se? ao que o aluno responde
é conformar-se, o que nada acrescenta. Ora, ele não se confirmar na negligência quer dizer que ele confia
que o resultado não se produz - o agente em causa confia que o resultado não se produz, não tem aquela
astenia, aquela passividade, quase que indiferença, que carateriza o dolo eventual. Aqui é que está a
diferença, e desse ponto de vista eu prevejo o resultado como consequência possível, mas confio que o
resultado não se vai produzir. Se for crime de dano, já não há punição do agente

2. Negligência inconsciente [alínea b)] - quando o agente é tão desligado do mundo que nem sequer prevê
a possível ou qualquer que seja a realização do facto. Sou censurado porque tinha de ter a capacidade
para ter previsto a realização do facto, e para tê-la evitado, mas sou tão alheado que nem prevejo. Cada
vez nos afastamos mais da voluntariedade - aqui nem sequer o agente imagina que é possível fazer
alguma coisa errada (uma coisa é eu pegar num carro com uns shots a mais e dizer “não, de certeza
absoluta que nada vai acontecer, é já ali à esquerda são 100m”; e outra coisa é nem sequer me lembrar
que tenho uns copos a mais, eu aqui eu nem sequer nada relacionado com a possível coisa nenhuma, mas
a verdade é que tinha capacidade para o, e era-lhe exigível, ter previsto e para o ter evitado - e por isso é
que não obstante estarmos mais longe da ideia de voluntariedade, cada vez se estilhaça mais a
voluntariedade; ou se preferirmos de atitude de posição do agente relativamente ao facto, aqui já nem há
atitude relativamente ao facto - nem sequer se imagina o facto, não há posição nenhuma).

3. Negligência grosseira - depois o CP prega-nos uma partida, que é define duas formas de negligência, e
deixa uma escondida na parte especial. Se a negligência já é excecional, a negligência grosseira é
excecionalíssima, e por isso só se encontra prevista em 2/3 tipos da parte especial. Porque é que
importante perceber a ideia de negligência grosseira? Porque se olharmos para a parte especial (p.ex., o
art. 137º/1 CP, o homicídio negligente) por vezes surge a palavra “negligência”, e quando o legislador a
usa está a remeter para a definição legal de negligência contida na parte geral (art. 15º CP), nas duas
formas possíveis de negligência. Mas, no art. 137º/2 CP, p. ex., aparece aí uma coisinha a dizer
“negligência grosseira”. Verdadeiramente, a negligência grosseira é a forma mais grave de negligência, é a
total ausência de cuidado, um enorme teor de imprevisão do agente - quase uma lógica de indiferença.
Mas, p. ex., art. 148º CP, aí veremos que está também previsto o tipo negligente, mas não se vê em lado
nenhum a palavra grosseira. Assim, eu só posso punir o agente a título de negligência grosseira
quando ela esteja especificamente prevista no tipo - não se pode punir por negligência grosseira as
ofensas à integridade física -, precisamente porque a negligência grosseira permite a agravação da
responsabilidade do agente (quanto mais não seja, significa uma moldura penal maior). Outro exemplo
onde está prevista a negligência grosseira é no art. 251º CP.

5 Típica pergunta de oral passagem, de quem está entre o 9 e o 10 e se responder a esta mal cai para o 9.

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Em suma:

1. Eu tenho de perceber a importância prática da distinção entre dolo e negligência, mais concretamente nas
formas em que se tocam (dolo eventual e negligência consciente).

2. Relativamente à negligência, tenho de perceber a função indiciária das normas de cuidado (o famoso
exemplo dos 120 km/h na autoestrada, que é diferente com sol e com chuva), e a concomitante
necessidade do percurso da atuação da norma de cuidado e da previsibilidade de produção do resultado.
Se o resultado não for previsível eu não posso punir a alguém a título de negligência por uma coisa que
ninguém poderia imaginar que fosse acontecer (ex.: estava a acelerar indevidamente em Lisboa, e de
repente cai uma coisa no pára-brisas, que se vai a ver e era um bebé que morre, pois a mãe estava a
apanhar sol com ele na varanda e deixa-o cair - a norma de velocidade não tem nada a ver com o meu
atropelar alguém que cai de uma varanda abaixo).

Aula 4 - 27/03/17

Caso Prático 4

Certo dia, verifica-se a fuga de um leão pertencente a um circo que, entrando num jardim da casa de A, vem a ferir
gravemente o seu filho. Suponha que a fuga do leão ficou a dever-se ao estado de fechos da respetiva jaula, que já há
muito demonstravam não estar nas melhores condições de segurança.

Poderá a presente hipótese representar uma hipótese de responsabilidade jurídico-criminal por ofensas à integridade
física graves, nos termos do art. 144º CP.

Resolução:

Atendendo às circunstâncias do caso, o art. 144º CP não se aplica - trata-se de um caso de negligência, e este tipo não
é punido por negligência, e assim não havia qualquer hipótese de responsabilizar alguém deste caso prático pelo art.
144º CP propriamente dito (ao contrário do art. 137º CP, que vimos na última aula, que já fala na questão da
negligência) - quando não estão em causa tipos dolosos, se o tipo não estiver a prever a negligência não se pode punir.

E portanto temos duas hipóteses: ou dizemos que não vamos punir, ou encontramos um tipo negligente para as ofensas
à integridade física. Mas atendamos ao art. 148º CP - não nos parece no caso estar em causa o dolo porque ninguém
quis bater em ninguém, e excluímos logo art. 144º CP; mas ainda que não exista aqui volição (vontade), podemos aqui,
já que descobrimos um tipo de ofensas à integridade física por negligência, ver se se verificam os pressupostos da
negligência:

1. Pressupostos objetivos:

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(1) A existência de um dever objetivo de cuidado - neste caso existia um dever objetivo de cuidado
por parte de alguém responsável no circo, nem que seja o tratador do leão;

(2) A previsibilidade da ocorrência do resultado desvalioso - neste caso é previsível, pois se as


fechaduras de uma jaula estão laças, o leão não está feito para estar em jaulas, podendo assim
escapar e eventualmente atacar alguém (até pode ser que esteja com muita fome);

2. Pressupostos subjetivos: a capacidade do agente, a propósito da efetiva censura.

Olhando novamente para o art. 148º CP, as formas de negligência que nos interessam são as do art. 15º CP e mais
outra. De acordo com este art., eu não posso punir alguém por negligência grosseira, porque tem de estar
expressamente dito no art., logo só nos interessa a negligência consciente e a inconsciente. Neste caso, relativamente
ao responsável do circo/tratador de leões, trata-se de uma negligência consciente, pois ele previa como possível à
ocorrência do resultado todavia confiou que o mesmo não se produziria, e assim poderia-se puni-lo a título de
negligência consciente pelo crime de ofensas à integridade física graves (nº3).

Caso Prático 5

A faz um estagio profissional num laboratório de investigação farmacêutica. Em certa ocasião, ao executar uma tarefa
de algum melindre, e devido à sua falta de experiência e alguma imperícia, A provoca uma pequena explosão que fere 2
colegas. B, chefe da equipa de A e seu supervisor6 , e que lhe mandara realizar aquele trabalho, não estava presente no
momento da explosão, dado que se retirara pouco antes para descansar.

Refira-se à responsabilidade penal de B.

Resolução:

Afinal de contas, quem provocou a explosão foi o A. Mas quando é um caso de estágio, é o supervisor que é
responsabilizado se for um estagiário. Estão aqui em causa 2 tipos de problemas: primeiro o das fontes do dever de
cuidado, e por outro lado o problema do princípio da confiança. Relativamente aos estagiários, vimos na última aula que
em relação a elas funciona o princípio inverso da desconfiança (não posso partir do pressuposto de que conseguem
cumprir devidamente as suas tarefas), logo o dever de cuidado nasce para o supervisor - tem de ser ele a supervisionar
o cumprimento correto das tarefas.

Sabendo que há uma violação de um dever objetivo de cuidado, porque B representou como possível a realização de
um facto mas pode ter é confiado que ele não se produzia, portanto foi descansar - a ideia da conformação -, art. 15º/a)
CP. Mas ainda assim, a tarefa dele como supervisor é prever como possível - aqui nem seria negligência inconsciente. É
um caso de negligência consciente, e assim poderia-se puni-lo a título de negligência consciente pelo crime de ofensas
à integridade física graves (art. 148º/3 CP).

6 No exame não aparecerá explicitamente que se é supervisor.

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Mas, se considerássemos que B estava zangado com os seus superiores por ter salários em atraso, não quis saber e foi
descansar, já entramos na lógica do dolo eventual (e não podemos afirmar que ele não confia que o resultado não se
produz). O dolo eventual e a negligência consciente fazem fronteira um com o outro - qual é a diferença entre o
elemento intelectual do dolo eventual e o elemento intelectual da negligência consciente? Nenhuma, pois se
observarmos o art. 14º/3 CP e para o art. 15ª/a) 1ª parte, chegamos à conclusão que em ambos os casos o agente
prevê como possível a realização do tipo. A única diferença é como é que ele se coloca face a essa representação -
num caso diz “paciência né”, no outro caso diz “ai, isto de certeza que não vai acontecer”.

Caso prático 6

(Inforestudante) Caso do very light

O arguido foi assistir ao Benfica-Sporting integrando a claque dos “No Name Boys”, do outro lado ficavam as bancadas
da “JuveLeo”. No interior do estádio, o arguido ocupou as primeiras filas do setor 14, do topo sul, previamente destinado
pelas entidades oficiais competentes à claque dos “No Name Boys”. Em frente àquele setor, separadas pelo relvado,
focavam as bancadas do topo norte, onde se situavam, entre outros, o setor 17, destinado pelas entidades oficiais
competentes a ser ocupado por adeptos sportinguistas, mormente pela claque “JuveLeo”.

A distância entre estas duas bancadas é, em linha reta, da ordem dos 200m. Antes do início do jogo, sensivelmente
quando alguns pára-quedistas, largados de helicóptero, faziam a sua aproximação ao relvado, o arguido, daquele lugar,
lançou um foguete denominado very light, com a sua mão esquerda, inclinou-o em posição obliqua para cima e
ligeiramente para a frente no sentido norte, retirou a proteção de borracha que faz aparecer a patilha, e empurrou esta
de modo a ativar a respetiva propulsão. Assim acionado, o foguete very light descreveu uma trajetória em arco, indo cair
para o meio das bancadas do tipo norte do estádio, em cima de umas árvores junto aos balneários, tendo provocado um
pequeno incêndio nestas. O arguido previra que o foguete assim disparado sobrevoasse a bancada do topo norte do
estádio nacional, reservada aos adeptos sportinguistas, e que já na altura se encontrava repleta de pessoas (uma
espécie de teste de lançamento do foguete). Fê-lo de modo a que o mesmo fosse projectado de baixo para cima, em
arco, de modo a atravessar a bancada que avistava à sua frente.

10 minutos depois do início do jogo, imediatamente a seguir ao 1º golo do Benfica, o arguido, aquando dos festejos por
este golo, da 2ª fila do já referido setor 14, lançou o 2º foguete very light. Verificava-se, nessa mesma altura, uma
grande agitação num grupo de espetadores, e particularmente nos elementos afetos aos “No Name Boys”, que
rodeavam o arguido, havendo abraços, empurrões, saltos, gritos e outras exaltações de grande regozijo. Também desta
vez, o arguido segurou o foguete very light, com a mão esquerda, e colocou-o obliquamente para cima inclinado para a
frente no sentido norte, e com a mão direita retirou a proteção de borracha que faz aparecer a patilha. Em virtude do seu
próprio estado de euforia, e da permanente agitação das pessoas que se encontravam junto a si envolvendo-o, o
arguido, no momento em que empurrou a patilha que aciona a respetiva propulsão, inclinou mais o foguete do que havia
feito aquando do 1º lançamento. O instrumento assim disparado seguiu uma trajetória tensa e quase em linha reta,
sobrevoou os jogadores, percorreu toda a distância entre as 2 bancadas, e foi chocar no corpo da vítima que assistia ao
jogo no setor 17, do topo norte do estádio, penetrando na região do peito, de frente para trás, da esquerda para a
direita, e ligeiramente debaixo para cima. O embate provocou na vítima uma ferida perfuro-contundente na região
paraesternal esquerda, situada a 14cm abaixo, no plano horizontal que passa pelos ombros, apresentando um orifício

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com diâmetro de 7cm, de um maior eixo horizontal, bordos queimados, e com visualização de tecidos moles no interior
(abriu um buraco basicamente). No trajeto provocou-lhe laceração da traqueia e da croça da aorta, e lobos pulmonares
direitos queimados e com pólvora aderente, hemorragias subendiocárdicas, laceração dos arcos posteriores da 6ª, 7ª e
8ª costelas direitas, e das espessura da musculatura intercostal, congestão meningo-encefálica, queimadura da
musculatura peitoral direita, e asfixia por intoxicação de monóxido de carbono, lesões que, por si só ou associadas,
foram causa da morte da vítima ocorrida pelas 16:35H desse dia.

O arguido apercebeu-se alguns momentos depois do impacto deste foguete very light na bancada de adeptos
sportinguistas, onde se abriu uma clareira.

Ao efetuar este segundo lançamento do foguete very light, previu o arguido que tal instrumento se dirigisse na direção
norte, sendo sua intenção que o mesmo sobrevoasse a bancada de espetadores, confiando que seguisse uma trajetória
idêntica ao 1º. Conhecia o modo de ativação, potência e alcance do foguete very light, bem sabendo que se o mesmo,
na sua trajetória, viesse a embater em alguém, lhe poderia causar a morte. Sabia que o modo correto de lançar tal
foguete é na vertical. Tinha ainda conhecimento que o foguete very light percorre, em linha reta, uma distância superior
a 200m em poucos segundos. No instante do disparo não previu o arguido que, logo que acionado o mecanismo de
propulsão naquelas circunstâncias, o artefacto saísse como efetivamente saiu quase em linha reta na direção da
bancada em frente de si, e que fosse atingir qualquer espetador, ferindo ou matando.

Nessa noite, ao ver as imagens na televisão 📺 , em companhia de um seu amigo, o arguido ficou visivelmente

emocionado e chocado, não contendo o incómodo que as mesmas lhe causavam.

Resolução:

Aqui se percebe a importância da distinção entre dolo eventual e negligência consciente - se afirmarmos o dolo eventual
a pena vai, no mínimo de 8-16 anos de prisão, se afirmarmos a negligência consciente a pena é francamente inferior
(um crime de homicídio negligente simples vai até 3 anos).

Devemos conseguir censurar o agente a título de dolo ou a título de negligência. Ora, o arguido confiava que não ia
acontecer o sucedido, e portanto não era indiferente/passivo relativamente à possibilidade de produção do resultado.
Que elementos de facto é que o caso nos dá ainda que nos permitem fazer essa afirmação? Quando vê na televisão o
que aconteceu, e antes de tudo ele faz um teste para ter a certeza de que não vai atingir os outros - ele na verdade não
queria atingir ninguém, queria mandar o foguete.

O tribunal, de facto, afastou o dolo, mas afastou-o mal (não no sentido de dizer que era negligência, mas na forma
como afastou o dolo). O Tribunal de Cascais, de 1ª instância, na altura, afastou o dolo através da aplicação de uma
fórmula que não tem possibilidade de aplicação no nosso ordenamento jurídico, que é a fórmula positiva de
Franck, que nos diz “aconteça o que acontecer, eu atuo” para afirmar o dolo eventual. E isso implica que eu
limite o dolo eventual aos casos em que o agente aceitou a produção do resultado - prevendo como possível,
aceita a produção do resultado. Ora aceitar a produção do resultado é exigir mais para o dolo eventual do que
aquilo que resulta do art. 14º/3 CP: pura e simplesmente não se conformar, ou seja, no fundo ser passivo

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relativamente à possibilidade, não desenvolver as contrações necessárias para que o resultado se não produza.

Todavia, aplicou mal as teorias que estão consagradas no CP para se saber o que é o dolo e a negligência - é a
teoria da conformação, como resulta expressamente do CP (por isso é que se diz conforma ou não se conforma).
Eu a exigir que alguém aceite a produção do resultado, estou a tornar o elemento subjetivo mais forte do que
aquilo que o nº3 exige verdadeiramente. Por regra, o dolo eventual, a fórmula positiva de Franck está um
bocadinho morta.

Por vezes, quando nós nos vemos a braços com uma situação difícil de distinção entre dolo e negligência, por
vezes recorremos, para fazer a prova dos nove, à chamada fórmula hipotética de Franck. Franck era um
magistrado alemão que chegou à conclusão que era absolutamente infernal distinguir entre dolo eventual e
negligência consciente, e então desenvolveu critérios que o ajudassem nessa tarefa. O problema é que a fórmula
positiva é tão ampla e exigente para o dolo eventual, que acaba por esvaziar o dolo eventual de conteúdo, acaba
por transformá-lo quase em dolo necessário. Assim, a fórmula que tem alguma aplicabilidade, é a formula
hipotética de Franck, e é aquela que nos diz “se eu conseguir perceber se o agente tivesse a certeza da
produção do resultado, ele aturaria ou não? Se na hipótese de ele ter como certo o resultado atuasse, e é
isso que eu tenho de tentar perceber, aí eu vou dizer que é dolo eventual; na hipótese de ele ter como certo
o resultado e aí não atuar, aí vou dizer que é negligência consciente.

Mas qual é que é o outro problema que este caso do very light nos traz, e que também foi muito discutido nas instâncias
judiciais? Está relacionado com o art. 137º CP - o homicídio negligente permite ainda a consideração de uma outra
possibilidade para este caso, que é a negligência grosseira. E portanto, foi depois esse o caminho seguido pela maioria
da doutrina, e acabou por ser acompanhado também pela jurisprudência - no fundo, permite uma agravação da moldura
penal e, neste caso, até pelo comportamento dele de regozijo e de loucura, esta ideia de indiferença perante o dever-ser
jurídico-penal torna-se patente, e portanto este arguido, não sendo condenado por homicídio doloso em que a pena
mínima é de 8 anos, ainda assim pode ser condenado por homicídio negligente, com negligência grosseira (nº2), e
portanto permitindo que em vez dos 3 anos fosse condenado por 5 anos.

Crimes agravados pelo evento (art. 18º CP)

Por que é que o art. 18º CP se refere ao problema dos crimes agravados pelo evento, e não a outras figuras que nele
estão incluídas? Porque verdadeiramente, o art. 18º CP significa que o nosso legislador contrariou qualquer
possibilidade de responsabilidade objetiva em direito penal, ou seja, de me fazer reponder por consequências d amanhã
conduta que nem sequer me pudessem ser imputadas a título de negligência. Significa também que é uma limitação
àquela ideia mais antiga do direito civil de versare in ré ilícita (permite-se responsabilidade objetiva em direito civil), e
atendendo à natureza do direito penal tal não é possível. E portanto o que o art. 18º CP faz, num 1º momento, é
justamente dizer que “eu até posso fazer o agente responder por eventos que ele não quis no sentido doloso,
mas só o faço se lhe puder imputar esses eventos a título negligente”, portanto a ideia da limitação dos crimes
agravados pelo evento pelo princípio da culpa.

Este art. tem 2 hipóteses diferentes:

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1. A figura clássica - os crimes praeterintencionais. Um crime praeterintencional tem a seguinte


estrutura (obedecem a uma estrutura mais fixa na forma da sua compreensão): um crime fundamental
doloso, um crime agravado negligente (a conduta e o resultado negligente tem de corresponder ao
resultado no tipo legal de crime), e uma fusão íntima entre os dois - este último o que quer dizer
(repristinando algumas ideias de DPI), é que ainda assim consigo perceber que o resultado negligente é
uma consequência, de algum modo, previsível da conduta dolosa do agente:

• Ex.: A, benfiquista, que se arrelia com um sportinguista, e pega no pau e desata a bater-lhe na cabeça com
o pau; a questão é que eu posso perceber esta ideia de fusão íntima entre os dois crimes, porque também
compreendo que uma ofensa à integridade física grave pode muito facilmente transformar-se numa ofensa
à vida (se eu quiser fazer mousse de papaia com a cabeça de alguém, é possível/muito provável, que uma
conduta querida, que é a de ofender gravemente, acabe por se transformar verdadeiramente no tal
resultado não querido, mas intimamente ligado à conduta inicial); e portanto, nós percebemos que temos
um crime de ofensas à integridade grave, que se vê agravado por um resultado que o benfiquista não quis
(ou seja, o sportinguista ter morrido de pancadas na cabeça; o benfiquista não queria matar o
sportinguista, o que queria era magoá-lo muito). Como é que faço esta imputação? No art. 144º CP
também se encontra previsto um crime de ofensas à integridade física graves, é também aqui um tipo
doloso, e portanto nós não será pelo art. 144º CP que conseguimos lá chegar, que conseguimos fazer
responder o nosso benfiquista pelo homicídio/morte do sportinguista. Para isso precisamos de uma
pequena ajuda, e temos de ir ao art. 147º CP onde aí se diz que, se das ofensas previstas nos arts.
143º-146º CP resultar a morte da vítima, o agente é punido com a pena aplicável ao crime respetivo (neste
caso será o do art. 144º CP), agravada de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo. Mas para eu poder fazer
responder pela agravação do agente por este resultado agravante do crime de ofensas à integridade física,
temos de o fazer nos estritos termos e limites do art. 18º CP - tenho de conseguir afirmar que o agente
produziu a morte do sportinguista, neste caso, a título negligente.

• Estes crimes praeterintencionais apresentam esta estrutura mais rígida - pressupõem que o resultado
negligente corresponde também ao resultado do tipo legal de crime previsto. Todavia, e esta é uma asneira
que normalmente subsiste nas orais, é que o art. 18º CP não consagra a figura do crime praeterintencional
- a sua regulação é mais ampla do que a figura do crime praeterintencional, onde o mesmo se inclui mas
inclui lá mais coisas dentro do que o próprio crime praeterintencional.

2. Os crimes agravados pelo resultado, - aquilo que lá está no art. 18º CP, para lá daquela lógica fixa
do crime praeterintencional, está lá dentro mas para lá disso, também circunstâncias em que o resultado
em si mesmo não configura o resultado de nenhum tipo legal de crime propriamente dito (ex.: olhando para
o art. 164º CP, veremos que está aqui em causa um crime de violação, e agora fazendo a mesma operação
que fizemos no contexto do art. 144º CP, viajando até ao art. 177º CP onde ali se prevê também
expressamente a agravação pelo resultado, e mais concretamente neste art. 177º/5 CP, encontram-se
resultados possíveis que fundamentam a agravação, mas que não são resultados no sentido de
constituírem o resultado de um tipo legal de crime, p. ex. a gravidez, o suicídio; não estão aqui em causa
resultados de tipos legais de crime, estão antes em causa circunstâncias que, ao verificarem-se, podem
determinar a agravação da responsabilidade do agente, mas que em si mesmos não são factos suscetíveis
de censura - não há nenhuma proibição de suicídio em direito penal). Já saímos aqui fora da lógica do

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crime praeterintencional, e estamos a falar de estados ou de eventos que acabam por constituir o tal motivo
de agravação da responsabilidade. Mas, além disso, além de vermos que não tem de estar em causa um
resultado típico, os crimes agravados pelo evento têm ainda uma caraterística: é que o crime fundamental
nem sequer tem de ser doloso, nós até podemos ter circunstâncias de dupla negligência p. ex. (crime
fundamental negligente e resultado, mesmo que seja crime, negligente), e até podemos, ainda que muito
mais raras, cogitar possibilidades de duplo dolo típico (crime fundamental doloso, e evento agravante
doloso).

Portanto, no fundo, o art. 18º CP é uma forma de simplificar uma ideia de concurso de crime, no caso do crime
praeterintencional. No caso dos crimes agravados pelo evento, é uma forma de limitar a responsabilidade dos eventos
àqueles que eu posso censurar ao agente, porque o art. 18º CP diz uma coisa absolutamente fundamental que é
quando a pena aplicável para um facto for agravada em função da produção de um resultado, a agravação é sempre
condicionada pela possibilidade de imputação desse resultado ao agente, pelo menos a título de negligência - o que eu
impeço através do art. 18º CP é que o agente responda por factos que não lhe possam ser imputados pelo menos a
título de negligência, ou seja, impede responsabilidade objetiva. É uma limitação da responsabilidade derivada do
princípio da culpa.

Mas se nós estamos a falar de imputação subjetiva, temos de perceber que temos de 1º passar o estádio da imputação
objetiva. Isto significa que tenho de já ter afirmado o facto como típico e ilícito (senão não faz sentido afirmá-lo como
culposo). No patamar dos crimes agravados pelo evento, isto significa que eu já tenho de ter conseguido imputar o
evento agravante, quer no sentido dos crimes praeterintencionais, quer no sentido mais amplo dos crimes agravados
pelo evento, tenho de ter conseguido imputado o evento agravante ao agente objetivamente

• Ex.1: pensemos outra vez no caso da mousse cerebral, consigo do ponto de vista da imputação objetiva, imputar a
morte do sportinguista ao benfiquista - é normal e previsível, segundo as regras... E ainda que eu objetivamente
consiga imputar, depois tenho de ir ver se objetivamente posso afirmar a negligência - o dever de cuidado e a
previsibilidade -, e depois ir a censurabilidade do agente de ter tido capacidade para cumprir esse mesmo dever.

• Ex.2: mas agora vamos pensar num crime de violação e no evento agravante da gravidez, no art. 164º/1/b) CP
veremos que constitui crime de violação a introdução de objetos. Então vamos imaginar que A viola B, mulher, com
uma garrafa de Coca-Cola, e B fica grávida. Eu posso imputar a gravidez de B a A? Como é evidente que não. Mas se
A violar B, mulher, pelo método mais tradicional através de cópula, aí já poderei imputar a gravidez, ainda que não
seja aqui um resultado típico, mas é o resultado agravante relevante, a A. Só depois de eu fazer esta operação é que
posso partir para a imputação subjetiva.

Naturalmente que esta imputação objetivo segue as regras da causalidade adequada - tenho de conseguir afirmar a
adequação entre a ação e o evento agravante, para depois num 2º momento conseguir afirmar a atuação culposa do
agente quanto ao evento agravante, quer apenas a título de negligencia se estiver em causa um crime
praeterintencional, quer a título de outra coisa se tiver um crime agravado pelo evento que eu até possa eventualmente
afirmar o dolo típico.

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Caso Prático 7

A atira B ao chão, com o intuito de se apoderar do relógio de ouro que este trazia no pulso. Ao cair, B bateu com a
cabeça no passeio, exatamente onde tinha sofrido uma intervenção cirúrgica melindrosa à bem pouco tempo. Por essa
circunstância, e apesar de a pancada não ter sido nada forte, veio a morrer de uma tremenda hemorragia interna
cerebral.

Deve ou não aplicar-se o art. 210º/3 CP?

Resolução:

Eu não posso imputar o evento agravante ao agente, logo não o posso punir pelo evento agravante. Neste caso, o
problema da agravação pelo resultado resolve-se no patamar da imputação objetiva (de uma pancadinha na cabeça,
não é normal e previsível que uma pessoa morra). E claro que eventualmente teria que se ter em atenção os especiais
conhecimentos do agente, etc...

Aula 5 - 03/04/17

Quando demos o dolo, vimos que o dolo tinha de se estender a todos os elementos da factualidade típica, portanto, se
eu não puder afirmar o dolo em relação a todos os elementos da factualidade típica, começo a ter problemas em afirmar
o dolo em relação ao tipo em causa.

A vida é mais repleta de originalidade do que os penalistas e, portanto, se nós imaginarmos que a linha aqui em causa é
a linha do dolo, podemos ter um facto aqui (A), um facto aqui (B) e um facto aqui (C). Porquê? Eu posso na vida real ter
praticado um facto, mas na minha cabeça, tal coisa nunca me ter passado e, portanto, não posso afirmar, de todo, o
dolo relativamente a esse facto. Posso até ter mais dolo do que o facto que efetivamente ocorreu e aí não terei
problemas em afirmar o dolo relativamente ao facto que ocorreu. Mas também pode acontecer eu ter praticado um
facto que fica para lá do dolo que eu tenho, que exige que eu tenha representado e querido outras coisas que
não estão incluídas no dolo que eu inicialmente tinha.

E, portanto, como é evidente, o nosso Código Penal e a doutrina, têm de se preocupar em encontrar soluções para isto,
porque na verdade, o problema é que muitas vezes acontece que aquilo que eu represento para mim é diferente
daquilo que constitui a realidade. O que é que isto significa? Significa que eu posso, ou ter uma representação
completamente diferente da factualidade típica, ou seja, que nem é representação da factualidade típica ou das
circunstâncias em que o facto ocorre; pode acontecer eu representar uma coisa e acontecer outra, e “nesse representar
uma coisa e acontecer outra”, a outra que acontece é muito mais grave do que aquela que eu queria que acontecesse.

Mas, se o erro é está ideia de o real e a representação não serem conformes, o nosso código penal, todavia,
estabelece um regime diferenciado para o erro sobre as circunstâncias de facto e para o erro sobre a ilicitude –
designadamente arts. 16º e 17º CP.

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Porquê que isto é possível? Porque, para nós, o dolo, em direito penal, é um dolo neutral, ou seja, quer dizer que o
nosso legislador penal acolheu, o que fica evidenciado através das soluções dos arts. 16º e 17º CP, do facto de elas
serem diferenciadas, não uma teoria da culpa que diz que o dolo tem de ser mau, isto é, já tem de incluir a
valoração sobre o facto, mas uma teoria que nos diz que o dolo é neutro e que a valoração do facto, portanto, a
consciência da ilicitude é uma coisa autónoma do dolo; portanto, não se arruma dentro do dolo, mas é sim um
elemento autónomo da culpa.

E desse ponto de visto, o nosso legislador, segue, alias, até por aquilo que vemos ser a solução do art. 16/º2 CP, a
chamada teoria limitada da culpa - não abordamos em profundidade este tema das teorias, mas para ficar claro,
temos relativamente a conceção de culpa temos, fundamentalmente, as teorias do dolo e as teorias da culpa: as teorias
do dolo dizem, basicamente, que o dolo é mau, portanto, já inclui a valoração, não é um dolo neutral; e as teorias da
culpa dizem que o dolo é neutral, a valoração está à parte.

Ora, nós percebemos que isto é assim justamente porque o nosso CP tem soluções diferentes para o caso em
que está apenas em causa um erro de representação e para o caso em que está em causa, não um erro de
representação, mas um erro de valoração, que é o caso do art. 17º, em que a valoração que eu faço sobre aquilo
que eu tenho representado é errada.

Em termos gerais, para ficarmos com a visão global do erro, acabamos de ver que o nosso CP tem,
fundamentalmente, duas normas que tratam deste problema, o art. 16º e o art. 17º.

O art. 16º CP trata do designado erro de representação, em termos gerais, por isso é que, se olharmos para o
referido artigo, veremos que lá se diz “erro sobre as circunstâncias do facto”, tem a ver com os elementos da realidade
que estão em causa. Portanto, eu estou em erro sobre os elementos da realidade.

Este erro sobre as circunstâncias do facto, como resulta do regime do art. 16º/1 CP, a ideia principal que tem é:
excluir o dolo, mas ressalvar a possibilidade de punição do agente a título de negligência (art. 16/º3 CP).

Todavia, é importante lembrar, fica ressalvada a punibilidade a título de negligência nos termos gerais, ou seja, é
preciso que esteja previsto no código o tipo negligente respetivo, se não tiver, pura e simplesmente, o agente
não é punido.

E nesta ideia geral, nós temos três construções principais de casos que surgem no art. 16º CP:

a. Erro sobre a factualidade típica - que no fundo se prende, fundamentalmente, com os elementos
típicos de um tipo legal de crime;

b. Justificação putativa – quando há um erro a propósito da verificação dos pressupostos objetivos de


uma causa de justificação, ou, se olharmos para o art. 16º/2 CP, não é só causa de justificação, é
também causa de exculpação, causa de exclusão da culpa (é isso que quer dizer o nº2). Portanto,
também pode ser exculpação putativa.

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c. Erro sobre as proibições;

Portanto, o art. 16º/1 CP, tem duas leituras:

• uma primeira leitura que rege: “o erro sobre elementos de facto ou direito de um tipo de crime (…) exclui
o dolo” – erro sobre a factualidade típica;

• e uma segunda leitura que é: “o erro sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente
indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo” – erro sobre
as proibições.

Relativamente ao nº 2 já não há dúvidas que não excluí a ilicitude. O nº2 remete para a solução do nº 1, que o que
manda é excluir o dolo. O que está em causa no nº2 é o erro sobre um estado de coisas que a existir, excluiria a
ilicitude ou a culpa ou seja, os pressupostos objetivos de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa.

Mas também pode acontecer, justamente porque o dolo é neutro, eu representar e querer corretamente, sem
desconformidade com aquilo que é a realidade, portanto, representa e que A e é A, não é B, mas valoro
erradamente os limites da proibição, da permissão ou do dever de garante, por exemplo.

• Ex.: vamos supor que A pensa, sabe, representa que o código é de B e não seu. Agora vamos olhar para o art. 203º/1
CP (crime de furto) e o que A precisa de representar e querer é a apropriação de uma coisa que A representa como
sendo móvel e alheia. A sabe que o código é de B, portanto, quer apropriar-se do código de B, mas para A, como é
professora de Direito Penal, a proibição não se aplica, porque A precisa de código, pode ficar com os códigos que
entender. A valora mal o significado, a extensão da proibição. A representa e quer ficar com o código, não é um
problema de dolo, há conhecimento e vontade, só que para A, ela não está a praticar um facto ilícito, porque é
evidente que uma professora de penal se pode apropriar de qualquer código penal de que precise. Portanto, A valora
mal o sentido da proibição.

• Mas as coisas até podem acontecer de outra maneira. Vamos imaginar que C e D se odeiam mutuamente há 5 anos.
Então, D vai ter com C com uma coisa escondida no casaco e C sabe imediatamente que aquilo é um pau para lhe
bater. D saca do pau e bate em C – estão verificados os pressupostos objetivos da legítima defesa. Mas C vai para
casa e estuda sobre a força e ângulo com que tem de dar o murro de defesa, portanto valora mal os limites da
permissão, C tem permissão para se defender, mas dentro de certos limites. Não há aqui representação errada, D
bateu em C; o que C valora mal é a extensão da possibilidade de defesa.

E, portanto, nós aqui temos o erro de valoração sobre a ilicitude do facto, que pode incluir: a proibição, a
permissão e extensão do dever de garante. O que é que isto significa? Que de facto, o nosso legislador, resolve de
maneira diferentes os casos em que eu penso A e é B; e os casos em que eu sei que é A, e é A, mas eu acho que A
podia ser mais pequeno ou maior.

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No caso do art. 17º CP, não está em causa a representação e vontade do agente, mas antes a sua consciência
da ilicitude. Portanto, há uma defeituosa formação dessa consciência, porque o agente valora mal os limites da
proibição ou da permissão.

Como ideia geral de solução do Código Penal, temos, em suma e para já, de perceber a existência deste regime dual,
que separa o erro da representação, do erro da valoração.

O dolo é representação e vontade. O erro de representação, no fundo, é quando eu penso A e é B. Portanto, eu


represento mal aquilo que é a realidade.

• Ex.: o caçador está numa reserva de casa autorizada, onde se pode e é suposto as pessoas caçarem, não há aqui
problema nenhum; tem licença de caça; tem licença de porte de arma. Portanto, ele pode caçar à vontade, o facto de
ele disparar a caçadeira não é aqui problema nenhum. E ele está lá, com a caçadeira em punho, e vê um arbusto
mexer, disparando, porque que caçar a lebre. O que estava lá era a mulher que lhe tinha ido levar a merenda.
Portanto, na cabeça dele, ele representava e queria matar a lebre, na vida real matou a mulher (erro de
representação).

• Agora, vamos imaginar que o mesmo caçador, olha e vê que é a mulher que lhe tinha ido levar a merenda. Portanto,
não há nenhum problema de representação. Mas ele convence-se que quem vai a reservas de caça arrisca-se e, por
isso, mata a mulher. Ele acha que naquele caso, na verdade, não está a praticar um crime, porque tem que ser
permitido, porque ninguém se vai pôr a andar numa reserva de caça (erro de valoração). Aqui, ele representa e quer
matar a mulher, o problema é que acha que se pode caçar tudo dentro da reserva.

Em suma, são erros diferentes: no erro de representação, o agente representa mal ou não representa de
todo (a ignorância aqui também serve); no erro de valoração não há qualquer problema de
representação por parte do agente, há sim um erro sobre a extensão da proibição ou permissão.

Isto para dizer que o legislador trata de forma diferente estes dois erros, justamente porque, para o legislador, o dolo
não é um dolo mau, nós conseguimos separa o dolo da consciência da ilicitude.

Erro de representação (art. 16º CP)

No erro de representação7 , o erro do art. 16º CP, já sabemos que está em causa um erro sobre as circunstâncias do
facto e, deste ponto de vista, nós podemos identificar várias construções que estão inclusas no art. 16º CP:

1. A primeira leitura do art. 16º CP (“o erro sobre elementos de facto ou direito de um tipo de crime (…) exclui o
dolo”) é pensada para o designado – erro sobre a factualidade típica, portanto, quando está em causa um
erro (ou a ignorância) de representação relativamente aos elementos da factualidade típica, aos elementos
de um tipo legal de crime.

7 A representação e o dolo são as melhores amigas. A representação e a vontade pertencem ao dolo.

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• E o erro sobre a factualidade típica que o nosso legislador imaginou quando pensou neste regime foi o exemplo de
escola do caçador (o que vê o arbusto a mexer e para ele está a disparar sobre uma lebre) - são os chamados erros
sobre a factualidade típica puros.

• E são puros porquê? O caçador não tinha nenhum projeto criminoso relacionado com a mulher, o nosso caçador não
tinha dolo de homicídio, ele não queria matar ninguém. E, portanto, o que nos diz o art. 16º /1 CP é que, nestes
casos, tenho a exclusão do dolo (são aqueles casos em que nem sequer se forma dolo, não há qualquer projeto
criminosos por parte do agente, o agente não queria praticar qualquer espécie de facto típico. Mas há um problema,
ele queria matar a lebre, mas na verdade, matou a mulher, portanto, verdadeiramente ocorreu um facto típico, só que
o agente não tinha nem vontade nem representação de o praticar, por isso é que se exclui o dolo.).

• O que é que acrescenta o nº3? Vamos imaginar, no exemplo do caçador, em que era a mulher com a merenda, que a
mulher tinha dito ao nosso caçador que, por volta da hora de almoço, ia entregar a merenda. Parece que aqui
devemos excluir o dolo? Não. O que é que lhe faltou aqui? Ele teve falta de cuidado. Portanto, existem situações em
que eu não posso afirmar o dolo, mas ainda assim pode acontecer a responsabilização do agente a título de
negligência.

• Mas, por exemplo, se fosse relativamente ao crime de dano ficava ressalvada a possibilidade de punibilidade a título
negligente? Não. Porque não está previsto o tipo legal de crime a título negligente8. No caso, porque era o homicídio,
podíamos indagar sobre a negligência - art. 137º CP .

Esta construção de erro sobre a factualidade típica é “peanuts”, é fácil de resolver, é aplicação direta do regime do art.
16/º1 CP. Mas agora vamos a um outro problema

2. Casos especiais de erro sobre a factualidade típica ou erro sobre a factualidade típica impuro, portanto, não
é um verdadeiro erro sobre a factualidade típica.

• Relativamente ao erro sobre a factualidade típica em sentido próprio, aquele que nós aplicamos diretamente o regime
do art. 16º CP, já tínhamos visto que o agente não tem qualquer projeto criminoso (o agente estava ali a caçar, não
queria praticar facto nenhum).

• Mas aqui, o que nós temos de nos perguntar é uma coisa diferente - ex.: A quer matar B, quando já está de revolver
em punha carregado, vê C de costas e fica absolutamente convencida, que C é B e, portanto, dispara contra C, que
morre, ficando B viva. Há ou não há um erro? A representou mal. Representou que B era C. e, portanto, há aqui um
erro sobre a factualidade típica, mas será que lhe podemos aplicar diretamente o regime do art. 16º/1 CP? Se
aplicássemos o regime do nº1? Se o tratássemos este erro como o erro puro sobre a factualidade típica iriamos excluir
o dolo. E, portanto, A ia, no máximo, responder por homicídio negligente. O que não faz sentido.

• Art. 131º CP - em termos de representação, para afirmação de vontade relativamente a essa representação no
contexto do tipo legal de crime de homicídio, o que é que eu tenho de representar? Pessoa. Eu tenho de ter

8Quando estivermos a resolver um caso de erro, se não estiver previsto o tipo legal de crime, não temos de ir para a negligência. Mas se tiver temos de ir para a negligência e tratar
dela nos termos gerais.

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representação e vontade de estar a matar uma pessoa. Em termos de objeto típico há ou não há identidade? Há, tanto
B como C são pessoas. Eu tenho ou não dolo de homicídio? Sim, este erro não releva para aqui.

I. Portanto, é o primeiro caso que nós temos - erro sobre o objeto. Quando os objetos forem tipicamente
idênticos, o erro é irrelevante. Sendo irrelevante, vamos punir o agente por homicídio doloso.

• Outro exemplo: A é mãe de B. A quer matar C, dispara e mata, porque estava de costas, B, sua filha. Vamos olhar
para os art. 131º e 132º/2/a) CP - é a mesma coisa? Não. Não há identidade típica de objeto. Representar e querer
matar outra pessoa, não é a mesma coisa, até porque os tipos legais de crimes são diferentes, do que representar e
querer matar uma filha. Podemos excluir o dolo de homicídio de A por completo, aplicando linearmente o art. 16º/1
CP? Isto faz sentido? Mas por outro lado posso afirmar que há homicídio qualificado? Portanto, retomando a linha do
dolo, o facto está para lá daquilo que o dolo alcança. E a questão que se coloca é: como é que se resolve isto? Se
excluirmos o dolo de homicídio, a máquina fotográfica do Direito Penal está a tirar uma péssima fotografia. Mas se
afirmarmos o dolo de homicídio qualificado, também é uma fotografia péssima. Portanto, temos de chegar a uma
solução que permita, face a estes casos, tirar a melhor fotografia possível. A queria matar C, conseguiu? Não! Então,
falamos em tentativa. Portanto, A tentou matar C, mas não conseguiu. E porquê que matou B, sua filha? Por
negligência, não teve dolo em relação a ela, mas de alguma maneira teve falta de cuidado na forma como o facto se
desenrolou 9.

Portanto, como é evidente, quando os objetos são tipicamente diferentes, nesse caso o erro é relevante, ou
seja, vai impedir que o agente seja punido a título doloso consumado pelo facto que efetivamente praticou (que
é o que acontece, isto é, o agente é punido a título doloso consumado, quando o erro é irrelevante - matar uma
pessoa é a mesma coisa que matar outra pessoa, desde que seja matar uma pessoa). E quando o erro é
relevante, adotamos a chamada solução de concurso, e esta solução de concurso, diz-nos aquilo que
acabamos de ver: eu vou punir o agente pela tentativa (a tentativa é sempre dolosa - é onde é possível punir o
agente pelo seu dolo, não obstante não haver consumação relativamente ao facto doloso) e pelo crime consumado
negligente (claro que só vamos punir o agente pelo crime consumado negligente se o facto estiver previsto a título
negligente).

II. Erro sobre o processo causal – no contexto deste erro, temos de fazer a distinção entre três situações
distintas:

• Desvio essencial [2]


• Desvio não essencial [1]
• Dolus generalis ou dolo geral [3]

Para percebermos se o desvio ao processo causal é relevante ou não, vamos fazer um exercício de imaginação com o
tipo legal de crime homicídio (art. 131º CP).

9Isto é uma solução, não é a aplicação direta e imediata do código. É uma construção; é uma solução doutrinal maioritária, com a qual o FARIA COSTA concorda. EDUARDO CORREIA
não adotava esta solução.

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[1] Olhando para este artigo, como é que eu posso matar uma pessoa? Faca, veneno, pistola, fogo… de múltiplas
formas. Porquê? O art. 131º CP é um crime de execução livre, o legislador não nos diz, de forma tipicamente
vinculativa, qual é que é o processo causal que tem de existir para chegar àquele resultado.

• Ex.: A quer matar B, mas quer fazê-lo de forma artística. Quer matar B com um voo seguido de aterragem forçada de
30 metros em água. Leva B para a ponte 25 de Abril e atira B da ponte. Só que B bate com a cabeça no pilar e
quando aterra na água já está morto. Interessa o facto de o A ter achado que ele morreria de afogamento ou de bater
com a cabeça? Não. Portanto, é um desvio não essencial daquilo que o agente representou, face aquilo que
efetivamente aconteceu. Se o desvio é não essencial, e é o que acontece na maioria dos crimes de execução livre, o
erro em causa é irrelevante. Então, como seria punido A? Por homicídio consumado doloso. Portanto, é punido pelo
tipo legal de crime que efetivamente praticou.

[2] No desvio essencial, existem outra considerações a fazer. Art. 217º- eu posso burlar outra pessoa de qualquer
maneira? Não. Por exemplo, se eu tentar burlar alguém através de um erro que não foi astuciosamente provocado por
mim? É possível? Não.

Portanto, nos crimes de execução vinculada, como é evidente, o desvio ao processo causal tipicamente
previsto, determina que o erro relativamente a esse processo causal assuma relevo. Se o erro é relevante, tenho
de aplicar a solução de concurso. Porque mais uma vez, estamos aqui a fala de um caso especial, em que já existe um
projeto criminoso, não é possível aplicar linearmente o art. 16º CP, por isso é que temos de aplicar esta espécie de
solução combinada.

Nós ainda temos uma outra solução, que não resolvemos através do regime do erro, que é um caso de desvio
essencial em crime de execução livre.

• Ex.: A quer matar B, dá-lhe um tiro e B fica a esvair-se em sangue no chão, ainda vivo, passado um minuto é
fulminado por um relâmpago – o que é isto? Interrupção do nexo causal. O desvio aqui é essencial, sem dúvida, mas
não é resolvido, a problemática aqui em causa, não é resolvia com recurso ao regime do erro, mas antes no contexto
da própria imputação objetiva. E neste caso vai ser resolvido como? Por tentativa.

[3] Dolus generalis ou dolo geral - quanto ao dolo geral, estamos a falar de situação um bocadinho diferentes daquela
que vimos a propósito do A que queria matar B ao atirá-lo de uma ponte.

• Ex.: A quer matar B, dá-lhe um tiro e, absolutamente convencido de que matou B, enrola-o num cobertor para atirar o
cadáver de uma ponte, para se desfazer do cadáver. Tenta encobrir um crime. Temos aqui um problema, eu para
encobrir um crime, o crime tem de ter existido. Neste caso, B ainda não estava morto, portanto, A não se desfez do
cadáver, não encobriu um crime de homicídio, basicamente o que A fez foi matar B. Nós podíamos adotar aqui uma
solução mais complexa de uma dupla tentativa – uma tentativa de homicídio em concurso com uma tentativa de
encobrimento. Mas isto na verdade não faz sentido nenhum, porque, não obstante o encobrimento ser um facto
subsequente, na verdade o dolo do agente cobre todo o processo causal que levou até ao resultado morte. Portanto,
podemos, pura e simplesmente dizer, que A representou e quis matar B.

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Portanto, eu posso aqui afirmar do dolo como abrangendo todo o processo causal. E em vez de complicar,
punimos o agente, pura e simplesmente, por homicídio doloso.

Uma pequena súmula do que vimos até aqui:

• Quando o erro sobre a factualidade típica é puro - o que fazemos? Excluímos o dolo e depois vemos se é
ou não possível a punibilidade a título de negligência.

• E se for um caso impuro? A irrelevância do erro determina a não exclusão do dolo. No fundo, a
irrelevância do erro é irrelevante para efeitos de exclusão do dolo (que é esse o regime do art. 16º, nº1).
Portanto, se não se exclui o dolo, o resultado que temos de ter é punir o agente pelo facto doloso
respetivo.

Se for relevante, no caso dos objetos tipicamente diferentes e no caso do desvio essencial, portanto,
relevante, aplica-se a solução de concurso (que é apenas uma solução ).

III. O último caso especial que vamos ver é aqui arrumado, mas efetivamente não é, nem um caso especial
propriamente dito, nem o resolvemos com o recurso à solução do concurso, porque na verdade, não obstante a
resolução do caso ser idêntica à solução de concurso, neste caso deriva da aplicação do código e não de uma
solução criada - erro de execução (aberratio ictus).

Porquê que não é verdadeiramente um caso especial de erro sobre a factualidade típica?

• Ex.1: A que matar B, e conhece-a há anos (15 anos), portanto não há aqui erro de representação nenhum. A sabe que
B é a pessoa certa, não há qualquer desconformidade com o real. O que é que, A está a apontar a arma para B,
pronta a disparar, espirra e, por execução defeituosa, quem morre é a pessoa que está ao lado da pessoa que A
queria matar. Não porque houvesse algum problema de representação, mas porque A espirrou e deparou contra outra
pessoa, quando queria matar a vítima previamente selecionada 10.

Portanto, não há aqui nenhum problema do ponto de vista da representação, o que há é, de facto, uma
desconformidade entre aquilo que eu queria e aquilo que efetivamente aconteceu; mas não por um problema de
representação, mas por falta de perícia.

Agora vamos aplicar o Código Penal. Quando alguém procura realizar um facto típico não chegando a consumá-lo, o
que é isso? Tentativa: A tentou matar B, é uma tentativa de homicídio.

• Ex.2: D quer matar C, está a apontar-lhe a armar, sabe que é ela que quer matar, espirra e desvia a trajetória da arma.
Mata a colega do lado? Não. Portanto, eu deste ponto de vista só vou ser punida pela tentativa. Mas porque que A
matou a colega ao lado de B? Por negligência. A praticou o crime de homicídio negligente. Aqui não é solução

10Aqui, se A tivesse pedido a C para se desviar, era punido pela tentativa e não por homicídio negligente. E se tivesse a bala partido um vidro, era um crime de dano, mas não seria
punido por negligência, porque o tipo legal dano, não prevê a punibilidade por negligência, só era punida pela tentativa de homicídio.

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nenhuma, é a mera aplicação do código. Em termos de resolução do caso, chegamos à mesma conclusão, mas aqui
não por construção de uma solução dogmática, mas por aplicação direta dos problemas em causa, do código.

O art. 16º ainda tem a outra situação que é a justificação ou a exculpação putativa. Estão aqui em causa,
também, as circunstâncias do facto, mas aqui não tem que ver com uma factualidade típicas, porque não tem
que ver com um tipo legal de crime, mas tem antes a ver com a errónea (ou ignorância) representação dos
pressupostos objetivos de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa - ou eu achar que alguma coisa está
em perigo ou eu representar que vai existir uma agressão e que eu me posso defender.

• Ex.: A é inimiga de B há vários anos; A quer entregar a B uma carta com um pedido de desculpas. Quando B vê A a ir
com a mão ao bolso, pensa que A o vai matar e dá um tiro em A para se defender. Na verdade, porque não estão
verificados os pressupostos da legítima defesa, A não se podia defender; mas, se A atacasse B, não havia problema
nenhum que B tivesse disparado. Não estando verificados os tais pressupostos objetivos, não havendo agressão, B
não se podia ter defendido, não podia agredir o bem jurídico, vida de A. Portanto, B acabou por, efetivamente, praticar
um homicídio. O problema é que B não tinha dolo de homicídio, tinha era vontade de se defender. E, por isso, o art.
16º/2 CP, faz-nos ir ao regime do art. 16/º1 CP, adotando para o problema da exculpação ou justificação putativa a
mesma solução que já conhecemos para o erro sobre a factualidade típica puro - portanto, exclusão do dolo,
ressalvando-se a possibilidade de punição a título de negligência.

Erro sobre as proibições

São estes erros a segunda linha de leitura do art. 16º/1 CP – “o erro sobre proibições cujo conhecimento for
razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo”.
O problema que se coloca aqui é que nós já não estamos verdadeiramente perante um verdadeiro problema de erro
sobre a representação; no fundo, aqui, o agente representa e quer, mas não tem o conhecimento suficiente para
perceber que aquilo que representa e quer não pode ser, ou seja, é quase como que um erro de representação
relativamente à valoração do legislador penal.

• P. ex., toda a gente sabe que o homicídio, as ofensas à integridade física e o furto são crime; nem era necessário que
tal estivesse previsto no Código Penal, para tal se saber. São valorações primitivas, evidentes, relativamente a estes
casos.

• Mas muito pouco gente sabe os níveis de toxidade relevantes para efeitos de efetivação de um crime de poluição; os
escalões para efeitos do crime de fraude fiscal; quais as licenças necessárias obter para efeito de abate de árvores.
Não são valorações evidentes.

• Exemplo Papa Reformas: um senhor, reformado e do meio rural, tinha comprado um “papa reforma” e tinha tirado a
respetiva licença numa altura em que as licenças para a condução destes veículos eram vitalícias, não era necessária
renovação. Entretanto saiu uma lei exigindo e renovação periódica destas licenças. Este senhor (não houve grande
publicidade desta exigência), foi apanhado numa operação stop, que atendendo à nova legislação já estava caduca,
logo, foi acusado por um crime de condução sem habilitação legal. Ficou provado que o senhor não tinha

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conhecimento desta nova exigência, o senhor vivia numa aldeia em que havia pouco informação. E, o senhor dizia,
que se soubesse tinha ido renovar a licença, mas ele não tinha ideia que era necessário renovar a licença. A verdade
é que para ele, ele representava e queria que estava a conduzir com uma licença que já tinha muito tempo, mas na
cabeça dele, não sabia que era proibido conduzir com a licença que ele tinha. E a questão que aqui se coloca é se
não há aqui uma certa linha de proximidade entre este problema e aquilo que é a solução que o Código apresenta
para o erro sobre a factualidade típica? É que aqui não é um problema de factualidade típica, é um problema de
proibição – porque passou a ser proibido sem licença renovada. Mas é uma proibição que não é evidente - se eu
não souber que essa proibição existe, será que na verdade, eu consigo posicionar a minha consciência ética
relativamente ao facto? Será que se eu não souber que essa proibição existe, posso afirmar o dolo em sentido
próprio?

A nossa solução é única na Europa! A maior parte dos outros países mete todos os erros sobre proibições no art. 17º
CP. São todos equiparados a erros de valoração. Portanto, no fundo está em causa a valoração que se faz do
comportamento atendendo à valoração prévia dos limites impostos pelo legislador.

Aula 6 - 24/04/17

Continuamos na problemática do art. 16º/1 CP, nomeadamente, no erro sobre as proibições. Estávamos a fazer a ponte
para o art. 17º CP. Tínhamos visto que, no contexto do art. art. 16º/1 CP, o erro sobre as proibições, no fundo, era um
problema diferente daquele que verdadeiramente estava no âmbito do art. 16º/1 CP, portanto, o erro sobre as
circunstâncias do facto, que eram erros intelectuais, mas dada a sua proximidade com aquilo que era os argumentos
alusivos a propósito do art. 16º CP, nós fazíamos com que aquela circunstância especial de erro sobre as proibições
beneficiasse, digamos assim, do regime do art. 16º CP.

E, portanto, resumindo, nós no fundo temos sobre o grande chapéu de chuva do erro sobre a proibição, que é uma
grande problemática:

1. O erro sobre a proibições (o tal visto na última aula), art. 16º/1 CP, e que sabemos este erro, tal como
acontece relativamente ao regime geral do nº1, vai excluir o dolo (é a consequência do art. 16º/1 CP).

2. Mas, no contexto destes erros que têm quer ver com as valorações normativas, nós temos ainda um outro
erro sobre a proibição, que é aquele que está previsto no art. 17º/1 CP.

E nós na última aula tínhamos visto que no contexto do art. 16º/1 CP (relembrar o exemplo dos níveis de toxicidade e
homicídios) que aquelas coisas que não eram evidentes que eram proibidas, eram precisamente aquelas que nós
tínhamos inserido sistematicamente no art. 16º/1 CP. Portanto, aquelas situações que nós vimos, como no caso do
“papa reformas”, são proibições que não são evidentes, não resultam evidentes do sistema de valores da própria
comunidade e, por isso, constituem aquilo que a doutrina designa “delicta mera prohibita”, ou seja, são crimes
porque são proibidos, não porque seja evidente, atendendo às valorações da comunidade que devam ser
crimes.

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Ora, se isto é assim, com certeza que, a proibição ou as proibições que hão-de estar em causa no art. 17º/1 CP, não
serão da mesma natureza. São aquelas que não se aproximam tanto, digamos, do erro intelectual, mas que já se
afirmam, efetivamente, como um verdadeiro erro de valoração. E, portanto, estamos aqui a falar sobre os
“delicta mala in se”, ou seja, não crimes porque a lei assim o diz, são crimes porque é evidente que assim tem
de ser, são males em si mesmos.

E, se nós olharmos para o art. 17º CP, percebemos que aqui o nº 1 não tem como consequência a exclusão do dolo. A
consequência é a exclusão da culpa.

Importa também perceber porquê que se entende que o regime do art. 16º CP é mais benéfico para o agente do
que o do art. 17º CP, uma vez que tal pode não resultar evidente. Vejamos: olhando para o CP, verificados os
pressupostos do art. 16º/1 CP, quais é que são as condições que o mesmo estabelece para excluir o dolo? Como se
formula uma condição? Com um se. Existe alguma condição no art. 16º/1 CP, para a exclusão do dolo? Olhando para o
art. 17º/1 CP, quais são as diferenças que vemos em relação ao art. 17º? Aparece, no art. 17º/1 CP, um se.
Portanto, o art. 16º/1 CP, não estabelece nenhuma condição para a exclusão do dolo uma vez verificados os
pressupostos. E o art. 17/º1 CP, estabelece uma condição, uma vez verificados os seus pressupostos, exclui-se a
culpa se estiver verificada determinada condição. Não é, pois, automático como no art. 16º/1 CP, em que
verificados os pressupostos à exclusão do dolo.

Portanto, significa que, deste ponto de vista, o exercício mais importante a fazer, para perceber o regime do art. 17º CP,
é ver se o erro é ou não censurável.

Vamos arrancar, para a compreensão do art. 17º CP, do erro sobre a proibição (terminologia adotada por FARIA COSTA),
mas como é evidente o regime é aplicável às três modalidades que estão incluídas no artigo: erro sobre a proibição,
erro sobre a permissão e erro sobre a extensão de um dever de garante [omissão].

Portanto, a partir da proibição (do erro sobre a proibição), temos de perceber se o erro é censurável ou não censurável.
Para percebermos a sequência e a razão de ser deste regime, temos de pensar no seguinte: vamos imaginar que uma
determinada pessoa nasce, é criada e morre em Portugal, sem nunca por pé fora da fronteira portuguesa, fica confinada
à lógica do território português. Faz sentido essa pessoa ser desculpada por perceber mal aquilo que são os valores
fundamentais da comunidade? Vamos imaginar que enquanto povo, estamos todos confinados no território português.
É-nos ou não exigível, enquanto cidadãos, que conheçamos aqueles “delicta mala in se” (que são os que estão em
causa no art. 17º CP), ou seja, que são maus em si mesmos, que nem era necessária a proibição para sabermos que
são maus? Fazia sentido desculpar um engano sobre isto? Não. Então, porquê que o art. 17º CP existe? Faz sentido
porque nós saímos de Portugal e porque as pessoas entram. Porque as fronteiras não são fechadas. O código
penal de 1852 não tinha nada parecido com o art. 17º CP. Viagens não eram usuais no século XIX. E mesmo na versão
resultante de 1886, que acabou por ser aquela que se afirmou até ao nosso código, não havia nada parecido com o art.
17º CP. Hoje não faz sentido não aceitar a multiculturalidade e a mobilidade das pessoas.

Portanto, o art. 17º CP, significa que é feita uma distinção entre ignorância da lei e erro sobre a lei. E é feita essa
distinção procurando, justamente, dar conta deste novo fenómeno social que é a crescente mobilidade das
pessoas e que ninguém tem a obrigação de saber tudo, sobre todos os lugares onde vai, em termos dos valores
fundamentais, uma vez que estes não são todos iguais em todo o lado.

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Pelo que, o art. 17º CP não é senão uma manifestação de tolerância. É tolerado o erro que as pessoas fazem
porque, não sendo censurável, não têm a obrigação de conhecer o ordenamento para o qual se deslocam
completamente. Como seria o caso se cada um ficasse refém das duas fronteiras, tendo a obrigação de
conhecer o seu sistema.

• Exemplo de escola do erro sobre a proibição – uma jovem escandinava, grávida de 10 semanas, chega a Portugal,
sem nunca cá ter vindo, sem conhecer o país, e resolve fazer uma interrupção voluntária da gravidez. Porque na
maior parte dos países europeus, incluindo o seu país de origem, a interrupção voluntária da gravidez é possível até
às 12 semanas. Em Portugal, a interrupção voluntária da gravidez, só poder ser feita até às 10 semanas, ou seja,
quem realizar uma interrupção voluntária da gravidez depois das 10 semanas, está a praticar um crime de aborto.
Ora, em primeiro lugar, parece evidente que o aborto não é preciso ser daquelas proibições que seja necessário ser
um cientista parasse saber que não se deve fazer, estamos perante um erro de valoração do art. 17º CP, e, portanto, é
uma proibição no sentido 17º CP. Não estamos a falar daquelas proibições que ainda não atingiram densidade
axiológica, ou pelo menos a consciência dessa densidade axiológica.

E a questão que se coloca é que eu percebo que é um erro do art. 17º/1 CP, mas eu para fazer o que quer que
seja tenho de descobrir se o erro é censurável ou não. É essa a condição que o art. 17º/1 CP estabelece,
dizendo que só vai excluir a culpa se este erro da jovem escandinava não for censurável.

E então qual é que é o critério que nós temos para conseguir perceber se o erro é ou não censurável? Naturalmente,
que o critério também depende da construção, da conceção de culpa que se possa ter e, por exemplo, a
formulação do critério de FARIA COSTA, não é idêntica à formulação do critério de FIGUEIREDO DIAS.

FARIA COSTA, defendendo uma culpa na vontade, a lógica do livre arbítrio, o juízo de censura como o mau uso da
liberdade, continua a sufragar, o critério da vencibilidade ou invencibilidade do erro. Se o erro for vencível, quer
dizer que é censurável, porque podia ter sido evitado. Se o erro for invencível, não é censurável, porque não
podia ter sido evitado, não havia forma de não o cometer.

Por exemplo, FIGUEIREDO DIAS tem uma outra construção que não parte desta ideia de culpa na vontade, não vê o
juízo de censura como o mau uso da liberdade, fala num critério, fala no critério pessoal objetivo, no fundo de
haver uma certa indiferença ou perante os valores tutelados pelo tipo legal de crime.

Mas naturalmente que preciso de saber, tenho de ter algum padrão para saber como é que funciona este
critério. É vencível ou invencível segundo o quê? Segundo que padrão é que eu tenho que ver se o erro é vencível ou
não? E voltamos nós ao PADRÃO DO HOMEM MÉDIO, o homem médio colocado na situação socio existencial
do agente. Ora, este padrão para nós conseguirmos densificar o critério da vencibilidade do erro, este padrão
do homem médio, esta lógica do homem médio, é um padrão a que também recorre, por exemplo, FIGUEIREDO
DIAS, como forma de perceber se há pu não indiferença.

O que é que o FARIA COSTA diz que esta ideia de homem médio, ainda que seja homem médio na situação sócio
existencial do agente, parece curta, portanto vai tentar compor este padrão pensando nesta ideia de homem médio, mas
atendendo ao zeitgeist/“espírito do tempo” - esta ideia, a sua lógica, é facilmente apreendida através de um
exemplo: um grupo de amigas estão na noite e tiram selfies para pôr no Instagram, umas delas estava a fumar uma

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" 🍁 e tem um copo de vodka na mão, e a amiga continua a tirar fotos e pôr no Instagram - colocar uma foto de

alguém no Instagram sem autorização é a pratica de um crime: é que além do consentimento para tirar uma foto, é
necessário consentimento para a divulgar (art. 199º CP). Atendendo ao espirito do tempo, a maioria das pessoas da
nossa geração têm consciência disto? Não. Mas verdadeiramente, todas as fotos, precisam de autorização para a sua
divulgação, nem que seja consentimento presumido. Se colega que colocou as fotos no Instagram, invocasse erro sobra
a ilicitude, podíamos ou não, atendendo ao tal “espírito do tempo”, considerar o erro não censurável? Podíamos. Mas
agora, noutro exemplo: A é inimiga mortal de B. E B andou a anunciar aos 7 ventos que ia passar a semana toda a
estudar. Acontece que A vê B, a sua grande inimiga mortal, e pensa “grande estudo”, tira-lha uma foto e mete no
Instagram a dizer “grande estudo”. Mesmo atendendo ao espirito do tempo, se ele invocasse que não sabia que era
proibido, era censurável? Sim. O homem médio, o jovem médio, sabe que não pode tirar fotografias e publicitar coisas
não autorizadas. No tempo da professora, o correspondente a tirar uma foto e colocar no Instagram, seria imprimir as
fotos e colocar nos corredores da faculdade. Não haviam redes sociais, nem telemóveis com fotografia. Nesse tempo,
alguém tirar uma foto e divulgar sem autorização, o erro era imediatamente censurável. No espirito desse tempo a
conduta correspondente, já seria, desse ponto de vista, considerada como censurável. Portanto, é preciso conjugar o
homem médio com o espírito do tempo.

Percebemos que se o erro é não censurável vai, nesse caso, excluir a culpa, é o que nos diz o art. 17º/1 CP. Se
exclui a culpa eu posso punir o agente? Não. Eu para punir alguém o facto tem de ser típico, ilícito e culposo. Portanto,
o agente não é punido.

Se for censurável quer dizer que não vai excluir a culpa, portanto, não se verifica a condição para a exclusão da
culpa. O que é que vai acontecer? O agente vai ser punido pelo crime doloso em causa. E aqui é importante
perceber uma coisa: eu aqui não censuro o agente, e o juízo de censura é um juízo que eu faço ao agente quando ele
podia e devia ter agido de outra maneira, mas normalmente faz-se esse juízo dirigido ao facto que ele praticou. Quando
nós estamos a falar do erro, eu faço esse juízo relativamente à sua possibilidade, mas falta de tentativa, de
vencer o erro em que incorreu. E, portanto, estou a censurá-lo porque ele podia ter evitado aquele erro.

Mas, o agente sendo punido pelo crime doloso respetivo, o art. 17º/2 CP, dá a possibilidade de atenuar a pena. É
uma possibilidade. Se é possibilidade, quer dizer que não é uma obrigação, nem que é um dever, cada vez que se
considero o erro como sendo censurável.

Vamos dar um exemplo para percebermos as várias ideias que temos vindo a ver até aqui - o facto de o art. 17º CP ser
uma manifestação de tolerância, de ter que ver com os delita male in se. E vamos pensar num problema complicado
que se coloca a partir de um exemplo dos quais vamos escolher um - problemática da mutilação genital feminina:

• Ex.: uma jovem mãe, acabada de chegar a Portugal de Serra Leoa, no 2º dia cá a sua filha faz 8 anos, sendo essa a
idade para o ritual de mutilação. A mãe porque está num país estranho e não faça português, acaba por ser ela
própria a levar a caba a mutilação. Vamos aplicar neste caso o art. 17º (tomando de barato que já percebemos que se
aplica aqui o art. 17º, uma ofensa à integridade física é evidente que é crime). E então, o que é que fazemos? Como
resolvo este caso? Tenho de aplicar o critério da vencibilidade do erro. Para saber se é censurável ou não, para saber
se vou ou não excluir a culpa da jovem mãe. E então eu para saber isto tenho de pegar no padrão do homem médio
colocado na situação socio existencial do agente, atendendo ao espirito do tempo, mas no contexto de origem do
próprio agente, não é no nosso. Então, não é censurável. Portanto, a jovem mãe, num país estranho, não falando a

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língua, não conhecendo os costumes, não conhecendo cultura nem coisa nenhuma, nunca tinha estado na europa.
Era possível ela vencer o erro? Não. Portanto, se o erro era invencível logo vai ser excluída a culpa, logo, não é
censurável, logo ela não vai ser punida.

• Esta solução causa constrangimento? Vamos imaginar um exemplo análogo, uma tribo em que o canibalismo é um
pratica reiterada e assente e é até motivo de honra. Chega cá uma pessoa dessa tribo e come uma parte de corpo
humana. Utilizando o mesmo critério não é censurável.

Efetivamente o critério é este e não deixa de ser verdade que se seguido na sua pureza, sem entorses, sem
alterações, a conclusão a que devemos chegar é que a jovem mãe não vai ser punida pelo seu crime. Se
quisermos manter este critério na sua pureza, é esta a solução a que temos de chegar.

Mas claro que não há ninguém que fique indiferente a estas coisas e logo FIGUEIREDO DIAS, diz que existem casos em
que verdadeiramente eu tenho de assumir uma certa frieza de carácter relativamente aos valores do
ordenamento jurídico em que o facto foi praticado. E, portanto, se eu vou assumir esta frieza de carácter, vou
dar como certa a indiferença do agente e, portanto, vou considerar o erro censurável. Assim, o que FIGUEIREDO
DIAS tenta fazer é, também tendo sentido esse desconforto com a solução seguindo linearmente o caminho o critério
apontado, acabar por dizer que vamos quase como “presumir” uma espécie de censura pela própria indiferença
perante os valores, vamos “resumir uma certa culpa”.

Ora, o que FARIA COSTA diz, também sentido este desconforto face a estes casos, é que não lhe parece correto
que nós procuremos resolver estes casos com uma ideia que pode levar quase ou a uma presunção de culpa
ou a uma entrada disfarçada de uma lógica de direito penal do agente no direito penal do facto. Porque
estaríamos a descriminar alguns agentes relativamente a outros, em relação a alguns agentes estou a presumir
a sua censura; conquanto pratiquem aqueles estou a presumir a sua censura. E FARIA COSTA o que é que tenta
fazer? Diz “bem, eu acho tentando nós ir pelo lado da frieza de carácter, pelo lado objetivo, parece que encontramos
mais problemas, do ponto de vista dogmático, do que aqueles que resolvemos”. E, portanto, aquilo que ele propõe é
nada mais simples do que impor um limite objetivo à manifestação de tolerância que o art. 17º CP representa.
Portanto, o que ele diz é voltamos à ideia de que o art. 17º CP é uma manifestação de tolerância (em razão da
multiculturalidade), justamente porque desculpa os erros de pessoas vindas de outras culturas que não tenham a
obrigação de conhecer o nosso sistema de valores - eu só aceito desculpar, só aceito considerar o erro como não
censurável, até ao ponto em que a consideração do erro como não censurável não ponha em causa os próprios
valores da comunidade jurídica em que o facto aconteceu. Porque eu imaginar aí alguém que pratica mutilação
genital feminina ou canibalismo sem lhe acontecer nada, ou alguém que vem de uma comunidade em que espancar
mulheres é normal, a espancar mulheres causa desconforto. Verdadeiramente, se eu começar a aceitar a exclusão
da culpa e a correlativa não punibilidade de todos estes agentes, se eu começar a aceitar sistematicamente esta
não punibilidade, estou a aceitar correr o risco da própria erosão dos valores em que a minha comunidade
jurídica assenta. Portanto, no fundo o que FARIA COSTA faz é estabelecer o tal limite: sempre que esteja em
causa uma situação em que aceitação da não punibilidade da mesma represente a afetação, a erosão dos
valores fundamentais da comunidade em que o erro sobre a proibição ocorreu, eu vou pôr um limite. Portanto,
nestes casos é sempre censurável, nunca há a possibilidade de exclusão da culpa, porque a partir daqui não
pode haver desculpa. E ele chama a este limite de ponto final definitório, “definition of stop”. E, portanto, a
censurabilidade além de poder resultar deste critério geral (vencível, portanto, censurável), pode também deste limite

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imposto por FARIA COSTA. O que é que FARIA COSTA mais acrescenta a propósito destes casos? É que justamente são
casos (não no caso do canibal, mas no caso da jovem mãe) em que já sabemos que a exclusão da culpa do art. 17º
CP não vai funcionar e, portanto, vamos ter de aplicar o art. 17/º2 CP, logo vamos ter de punir a jovem mãe, mas
isso não invalida que não possamos ter articular atenção à possibilidade conferida por este nº2 de atenuação
da pena, justamente porque no caso da jovem mãe nós podemos verificar uma culpa diminuta, justamente
porque não há uma efetiva ou verdadeira e plena consciência da ilicitude. Portanto, desse ponto de vista,
podemos não beneficiar, através da exclusão da culpa, mas podemos ainda assim tentar não penalizar
demasiado o agente nestas situações.

Ainda duas coisas a falar sobre o erro da proibição em termos gerais:

1. A primeira a propósito do art. 17º e que no fundo se prende com outro fenómeno que também acaba por ter
importância (é só saber pôr o senso comum no sítio certo) - vamos pensar no exemplo da jovem escandinava que
acabada de chegar, realizar uma interrupção voluntária da gravidez após as 10 semanas, mas vamos alterar este
exemplo, ela já cá está há 5 anos: o erro é censurável. Já tem tempo suficiente de perceber que é diferente cá do
que será no seu país de origem. No fundo tem que ver com a passagem do tempo e com a possibilidade que o
agente tem de aceder à valoração correta.

2. E outra coisa que também tem que ver com a passagem do tempo, para percebermos que isto não é estático:
vamos pensar no senhor A que tem sobreiros, estamos em 1990, e o senhor A tem 35 anos e desde de que
começou a sua lide sempre abateu sobreiros quando quis. Em 1991, sai uma lei que diz que o próprio proprietário
do sobreiro antes do seu abate deve requerer a respetiva autorização da administração pública. Claro que se não a
obtiver, é um crime de abate ilegal de sobreiro. O senhor A que vive na sua aldeia chega ao final do ano de 1991 e
abate sobreiros. É um erro do art. 16º CP ou do art. 17º CP? E um erro do art. 16º CP, tinha de estar previsto para
saber que é um crime, especialmente em 1991. Porque que hoje já seria diferente? Dos sobreiros sai a cortiça e a
cortiça agora é uma espécie protegida porque é a árvore que nos caracteriza. Portanto, hoje já começa a ser
evidente que não posso abater sobreiros conforme me apetece. O senhor A abate, em 1991, a primeira vez o
sobreiro depois de sair a 1ª vez esta lei; precisa de estar na lei para se perceber que e proibido - erro do art. 16º CP.
Se fosse hoje era erro do art. 17º CP. Portanto, a passagem do tempo também pode influir na própria
classificação do erro. No caso do sobreiro já houve tempo para a consciência ética da sociedade assimilar
esse valor. A consciência ética da comunidade vai evoluindo e, portanto, exatamente a mesma conduta num
determinado momento no tempo é considerado erro sobre as proibições, logo segue o regime do art. 16º CP,
logo é excluído o dolo, terá de se ver a negligência; num segundo mento vai ser um erro sobre A proibição,
art. 17º CP, excluída a culpa se não censurável.

Caso Prático 8

A é ator de teatro e participa numa peça em que ocorre um homicídio de outra personagem, cujo desempenho cabe a B.
Sabendo disso, C tira a arma que servia de adereço, e substitui por outra que tinha igual mas real e carregada.
Ignorando tal facto, durante a representação, A dispara sobre B, ocasionando a sua morte

Refira-se à responsabilidade jurídico-penal de A.

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Resolução:

A primeira pergunta é saber se pertence ao âmbito do art 16º CP ou 17º CP. É um erro no âmbito do art. 16º CP, sendo
um erro sobre a factualidade típica.

Mas será um erro sobre a factualidade típica propriamente dito (não há plano criminoso) ou será um outro erro sobre a
factualidade típica de tipo especial (há plano criminoso)? Aqui o agente não representa que vai matar alguém, nem quer
matar. Vai-se excluir o dolo mas o art 16º CP ressalva a possibilidade de punir a titulo de negligencia.

No nosso caso, sendo o homicídio, poderia pensar-se que sim, mas não houve violação de dever nenhum de cuidado.

Caso Prático 9

A, médico, receita a B um determinado medicamento ignorando que B se encontra grávida. O remédio adequado ao
tratamento de B era, porém, abortivo, se tomado na fase inicial da gravidez.

O filho que B esperava veio efetivamente a morrer como consequência da presença do tal químico no sangue materno.

Qual a responsabilidade jurídico-penal de A?

Resolução:

A primeira pergunta a fazer é saber se está no âmbito do art. 16º CP ou do art. 17º CP, e chegamos à conclusão de que
se estivermos no âmbito do art. 16º CP ele não representa nem quis, e se estivermos no âmbito do art. 17º CP, ele
representa e quis mas na verdade acha que é permitido ou algo do género.

Aqui estamos no âmbito do art. 16º CP e estamos perante um erro sobre a factualidade típica puro. Aqui no nosso caso,
o facto é o aborto. O médico não quer nem representa no nosso caso. O médico violou um dever objetivo de cuidado e
isto releva porque o aborto não é punível a título negligente e como tal não será punido, pelo menos não a título jurídico-
penal.

Caso Prático 10

A decide matar B. Sabendo que este se desloca num Nissan encarnado, com a matrícula x, espera-o logo de manhã à
saída da garagem de sua casa. Ao ver o carro, A dispara sobre o condutor.

1 - Horrorizado, descobre que afinal era C, filho de B, que ia ao volante.Quid Iuris?

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2 - Imagine agora que B ia efetivamente ao volante, mas o tiro de A lhe saiu pouco certeiro. O atingido não foi B, mas d,
a mulher de B que ia ao lado dele. Quid Iuris?
Resolução:

1 - Estamos no âmbito do erro do art. 16º CP e trata-se de um erro especial sobre a factualidade típica, nomeadamente,
o erro sobre o objeto. Sendo erro sobre o objeto temos desde logo de nos perguntar se existe ou não tipicidade dos
objetos - identidade típica do objeto. Neste caso são tipicamente iguais, o erro será irrelevante e o agente vai ser punido
por homicídio doloso.

2 - Estamos no âmbito do erro sobre a execução. Aqui teremos uma solução de concurso, há tentativa de homicídio
relativamente a B e por homicídio negligente de D. Aqui neste caso de erro sobre a execução ainda que haja identidade
dos objetos aplica-se a solução de concurso.

Caso Prático 11

A é tesoureiro da Associação desportiva x, exercendo o cargo contra uma remuneração mensal n. Como não lhe
pagavam há 4 meses, A foi depositando o dinheiro de quotas que recebia dos sócios na sua conta bancária (pessoal),
até perfazer o montante do salário em atraso.

Em tribunal, A diz que se limitou a proceder a um acerto de contas convicto de estar a atuar em legítima defesa do seu
património.

Quid Iuris?

(…)

Aula 7 - 15/05/17 (causas de exclusão)

1 - Cláusula geral de inexigibilidade

Trata-se de saber se damos ou não importância a circunstâncias que não são do próprio agente mas que podem
interferir com a atuação do agente. No Titanic seria exigível que o herói se comporta-se da mesma forma? Não, o
normal é ter instinto de sobrevivência. Não estamos perante uma causa de exclusão de ilicitude. Se atirasse a rapariga
da porta e ela se afogasse? Ele teria cometido um crime de homicídio, isto á primeira vista porque representa e quer
fazê-lo, mas não lhe era exigível que tivesse um comportamento diferente porque isso pressuponha que arriscasse a
sua própria vida e o direito penal não pode exigir que alguém se mate. Existem situações relativamente às quais a
força das circunstâncias é tão forte que, embora não haja condicionamento da liberdade de decisão, existe
condicionamento da liberdade de ação, externa. Existe limitação interna no âmbito da imputabilidade, sendo externa
estamos no campo da exigibilidade.

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Esta exigibilidade resultará de uma cláusula geral ou como casos específicos em que é não é exigível outra atuação? O
EDUARDO CORREIA defende a ideia de cláusula geral, cláusula geral esta que tinha a seguinte redação “age sem
culpa, o agente, quando nem a ele ou nem ao homem medio suposto pela ordem jurídica seria exigível naquelas
circunstancias outro comportamento.” O atual CP não consagra esta cláusula geral, FARIA COSTA diz que a
tipificação dos arts. 35º/1, 33º/2, 37º CP não determinam o afastamento de uma ideia geral de exigibilidade.

Quem considere que estas causas de exclusão da exigibilidade são taxativas vê-se a elas limitadas não
podendo haver outras. Se adotarmos a posição de FARIA COSTA, pode haver ponderação desde que obedeçam á
ideia geral de exigibilidade, é menos limitada esta posição.

O que está em causa é que a lei admite, em ultimo caso, relativamente a um facto considerado como ilícito seja possível
excluir a culpa através de uma ideia de inexigibilidade com culpa diversa. Usa-se aqui o critério do homem médio que
pressupõe a situação sócio-existencial do agente. Vamos ou não excluir a culpa do agente atendendo á referência do
homem médio e não relativamente ao próprio agente.

2 - Estado de necessidade desculpante (art. 35º CP)

Representa em conjugação com o art. 34º CP que o nosso legislador seguiu uma teoria dualista do próprio
estado de necessidade. O estado de necessidade justificante excluía a ilicitude pela ideia de interesse
preponderante, pelo facto de ter sido salvo um bem de valor sensivelmente superior. O estado de necessidade
desculpante excluiu a culpa o que pressupõe que o facto seja ilícito.

A ideia que está por detrás do art. 35º CP é a ideia comum de que tanto um estado como outro estão em causa
colisões de bens. A forma como resolvemos o conflito é que distingue os estados de necessidade. O art. 35º CP
não exige que seja salvo o bem com interesse sensivelmente superior, o que está em causa é a colisão de bens e um
deles é um bem considerado essencial, e por isso é que, atendendo ao que este artigo permite fazer, o legislador no art.
35º/1 CP entendeu por bem explicitar quais os bens jurídico penais que considera serem importantes o suficiente para
permitir excluir a culpa e assim fugir ao critério do interesse preponderante. Estamos no âmbito dos bens
efetivamente jurídico-penais: vida, integridade física, honra. Podemos salvar qualquer um destes bens ainda
que o bem que estamos a salvar não seja sensivelmente superior ao que estamos a sacrificar.

Se é verdade que partilham requisitos: adequação do meio, necessidade, atualidade etc., exige-se no entanto
um outro requisito para o estado de necessidade desculpante: um dos bens previstos no art. 35º/1, 33º/2 e 37º
CP.

O art. 35º/2 CP não é causa de exclusão da culpa, no máximo dá atenuação da pena ou despensa de pena mas
nunca exclui a culpa, por isso se for património contra património em que não podemos ir para o art. 34º CP
(porque são bens iguais, não há um sensivelmente superior), não podermos ir para o art. 35º/1 CP, poderemos ir no
entanto ao art. 35º/2 CP em que no máximo se dispensa ou atenua a pena.

O art. 35º/1 CP é que é causa de exclusão. No estado de necessidade desculpante pode salvar-se uma vida em
detrimento da outra, porque não se exige a sensível superioridade do bem, só se exige que o bem seja jurídico-

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penal e que esteja tipificado. Admite-se assim, valor superior (que pertence ao art. 34.º CP), inferior ou igual.
Admite-se, p. ex., que para evitar uma lesão á nossa integridade física podemos sacrificar uma vida. Os bens são
taxativos! O bem jurídico honra é muito discutível - art. 18º/2 CP, não se pode desculpar o sacrificar de uma vida
para defesa da honra.

O estado de necessidade desculpante tem ainda outra característica que o distingue de outras legislações estrangeiras,
porque diz que permite que alguém seja um herói, permite que se salve bens de terceiro. O nosso CP permite que um
agente possa salvar bens de terceiro. Esta ideia permite a aplicação do estado de necessidade desculpante às
chamadas sociedades de perigo. Estão em causa a salvação de bens jurídico penais essenciais e por isso a ideia de
bens de terceiros permite que se salvem muitas vidas em sacrifício de poucas. Não se diz que umas vidas valem mais
do que outras mas isto pode ser feito neste âmbito.

• Exemplo: um avião sequestrado com 150 pessoas por um bando de maus que se dirige para uma torre onde
trabalham 1500 pessoas. A é responsável pela defesa nacional- vai abater-se o avião. Se não houvesse o abate
morreriam 1650 pessoas. Se não houvesse o art. 35º/1 CP quem abateu o avião iria ser responsabilizado pela morte
de 150 pessoas.

• Aqui podemos também em situações como por exemplo: um terrorista mete uma bomba na FDUC. Um agente
consegue capturar o terrorista e quer saber onde a colocou. O agente interroga e começa a ficar nervoso com o
passar do tempo e ele representando e querendo ameaça-o e agride-o (não é permitido por abuso de poder;
integridade física etc). Atentas as circunstancias seria exigível ao homem médio e mais precisamente ao agente que
atuasse de outra forma? Não, não era exigível, desculpava-se. O polícia começa a torturar o criminoso, e aqui há uma
clara desproporção do meio, não se pode desculpara tortura porque seria aceitá-la. Não se podem salvar bens a
qualquer custo, existem limites- dignidade humana por exemplo.

Não basta demonstrar que estejam verificados os pressupostos do art. 35º CP, é necessário remeter para o art.
35º/1 «segundo as circunstancias do caso» - que consagra o critério pessoal objetivo. Quer isto dizer que temos
sempre de pensar no homem médio com tudo o que implica atendendo às circunstâncias do caso, 1 bomba é diferente
de 30 bombas etc. as circunstancias do caso tem uma relação direta com o que é exigível ao agente.

3 - O excesso de legítima defesa (art. 33º/2 CP)

Age-se sob pressão ou medo não censurável.

• Exemplo: A que vive numa moradia, com licença de porte de arma, assustada, pela 3ª vez ouve durante a noite um
ruido no quintal. Tendo licença de porte de arma levanta-se e com medo e com a raiva de não a deixarem em paz
resolve dar um tiro ao assaltante desarmado. A questão aqui é saber se se desculpa ou não a senhora?

• Temos o problema previsto no art. 33º/2 CP, que diz que em alguns estados de afeto que não são censuráveis
mas existem os estados de afeto como a raiva. O critério é que o estado asténico tem de ser o dominante, tem
de ser um dos previstos pelo legislador e não o outro - se for dominada por raiva e tiver um bocadinho de medo,
não serve. Se já estiver dominada pelo medo, mas estiver com uma bocadinho de raiva, já serve.

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Quanto à censurabilidade, a verdade é que há um dado homem médio com o qual comparamos a atitude do
agente, mas este homem médio muda. Imaginemos que a senhora acima referida era GOI e dispara com medo. Aqui
o homem medio é alguém com treino nas forças militares e aqui o medo é censurável e por isso não se exclui a culpa. O
ponto de referência muda.

4 - A obediência indevida desculpante (art. 37º CP)

O dever de obediência cessa quando conduz á pratica de um crime - este é o enquadramento do art. 37º CP.
Olhando para este artigo vemos que ele é desnecessário, este artigo não é senão um erro sobre a proibição é
uma sua tipificação: art. 37º CP “age sem culpa o funcionário que cumpre uma ordem sem conhecer que ela conduz á pratica de
um crime não sendo isso evidente no quadro das circunstancias por ele representadas” (se fosse evidente não se exclui por

cessar o dever de obediência quando conduz á pratica do crime e ele sabe disso). O agente pensa que o que faz é
permitido, é um erro sobre a ilicitude.

Caso Prático 12

A, médico, tem na sua unidade de neurologia um doente internado, B, a quem está a ser ministrado O2, B necessita do
tratamento por ser asmático e está a passar uma crime. Nisto, A recebe um telefonema de outro serviço do hospital, um
doente C entra em falência cárdio-respiratória e precisa urgentemente de ser ventilado sob pena de morrer. Desejando
salvar este ultimo, A, que não dispõe de mais nenhum ventilador, retira a B o aparelho e coloca-o a C que consegue
recuperar. Em consequência da interrupção do tratamento, B morre asfixiado. Quid iuris?

Resolução:

No caso em apreço, temos uma situação em que o médico pratica um homicídio. A pergunta que temos de culpar é se
pode ou não ser desculpável? E como? Ou seja, o que nós vamos questionar é se aquelas circunstâncias são
suficientemente limpadoras da liberdade externa do médico, para que na verdade não tivesse nenhuma alternativa
viável na sua conduta.

Para podermos aplicar o art. 35º/1 CP, é preciso avaliar em primeiro lugar os pressupostos objetivos e subjetivos em
abstrato e em seguida um critério autónomo que é o critério pessoal objetivo, que vai atender às circunstâncias do caso.
Vamos então mobilizar o critério do Homem Médio, que no caso é um médico pneumologista com apenas um ventilador
disponível, e perguntarmo-nos se na situação seria exigível que um pneumologista, na situação sócio-existencial do
agente naquelas circunstâncias, atuasse de forma diferente (tendo sempre presente que em crassa desproporção
nunca seria desculpável).

- Se considerássemos que era exigível que tivesse uma conduta diferente , deixando C falecer, não se excluiria a
culpa.

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- Se considerarmos que não é exigível uma conduta diferente, ou seja, qualquer médico pneumologista, colocado
naquelas circunstâncias e atendendo às mesmas, não seria exigível que fizesse outra coisa, portanto também não
podemos exigir a A em particular, porque em geral não lhe era exigível. E então, por força do disposto no 35o/ 1,
vamos excluir a culpa

Atenção: A decisão do médico é irrelevante, pois já não estamos no âmbito da analise se o facto é típico e ilícito. O que
ele decidiu está relacionado com a afirmação do dolo, e isso é num momento anterior ao que se debruça nesta âmbito
do 35º/1 CP.

Aula 8 - 22/05/17 (omissão parte 1)

Um caso de omissão envolve todos os problemas da culpa (erro, dolo, negligência, pode também incluir problemas de
imputabilidade), além dos problemas específicos da omissão.

No percurso que temos vindo a fazer até aqui, na verdade, estamos a partir de um determinado pressuposto que nem
sempre acontece, que é alguém atuou. O que é que, tal como iremos ver a propósito das formas especiais,
excecionalmente (é muito importante perceber que é mesmo excecionalmente), o facto de alguém não fazer alguma
coisa pode ter relevo.

E porquê que é excecionalmente? Quando eramos mais novos eramos castigados mais severamente quando fazíamos
alguma coisa errada, do que quando deixávamos de fazer. Os nossos pais, quando era uma questão de evitar que
fizéssemos asneiras, o que é que nos diziam mais: faz assim ou não faças assim? O comando que nos davam era para
não fazer. Os nossos pais diziam não fumes, não bebas...

E, portanto, como é evidente, o próprio legislador penal, não tem a mesma legitimidade para proibir uma
conduta do que para impor uma conduta. Para que nós possamos, atendendo à natureza do direito penal, à sua
função e ao seu caracter, atribuir uma legitimidade interminável ao legislador para nos dizer o que é que temos de
fazer? Porquê que é um redondo e evidente não? Porquê que o legislador não tem a mesma legitimidade para impor
que tem para proibir? Quando o legislador penal impõe, diz faz assim, o que é que acontece? Quando o legislador
penal diz qualquer coisa, o que acontece, necessariamente, quer seja uma proibição, que seja uma imposição, é
uma redução da nossa liberdade. O princípio basilar é o da liberdade de atuação. Deixamos de ter essa liberdade de
atuação quando ofendemos outros bens jurídicos. E, portanto, como é evidente, a legitimidade de imposição de um
comando de ação por parte do legislador penal é diminuta. Porque uma coisa é dizer “sim senhor, ele proíbe que nós
atuemos, quando a nossa atuação, a nossa conduta leva à ofensa de bens jurídicos”. Outra coisa, é o legislador penal
em vez de dizer “tu não podes fazer assim, dizer tu tens de fazer assim se não vais preso”11 .

Desse ponto de vista, nós temos de perceber que o ponto de arranque nunca pode ser de equiparação absoluta
entre a ação e a omissão. Quando estamos a tratar da omissão, do relevo jurídico pena da omissão, estamos a falar,
por regra, de situações me que o agente não fez nada. E que, por isso, vai ser punido. Isto tem de ser o ponto de

11Já viram o que é que era o legislador penal dizer que temos de vestir camisa todos os dias, ou que temos de comer carne/peixe todos os dias. Isto é o que acontece quando o
legislador penal impõe uma determinada conduta, quer dizer que nós por não fazermos nada, literalmente por estamos quietos, somos punidos.

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partida para nós compreendermos todas as limitações que têm de estar inerentes à própria lógica da omissão. Portanto
é uma forma excecional.

Mesmo no contexto da omissão, nós para percebemos a razão de ser dessa excecionalidade, temos também de
compreender uma outra coisa, que é - tem também de haver uma diferença, do ponto de vista da punibilidade e do
ponto de vista da legitimidade da intervenção do legislador penal, entre aquelas situações em que há um dever
geral de ação e aquelas situações em que há um dever de ação relativamente a um determinado bem jurídico.

Porquê que isto é importante? Art. 200º do CP - se olharmos para este artigo, veremos que a mensagem que o
legislador nos dá aqui é: aconteça o que acontecer, se alguém, independentemente de se conhecer essa pessoa ou
não, estiver em perigo, do ponto de vista da sua integridade física ou da sua vida, se passar ao lado a assobiar, pode
ser presa. Se alguém estiver numa situação de efetiva aflição, mesmo que não se conheça essa pessoa de lado
nenhum, temos o dever, não só moral, mas o dever jurídico penal de atuar. Porquê? Porque se não atuarmos e
alguém que estiver ao longe nos reconhecer (e que não esteja em posição de conseguir atuar), essa pessoa pode dizer
à policia que não fizemos nada. Portanto, como se compreende pelas consequências do art. 200º CP, o legislador penal
dizer-nos isto não é muito confortável.

Ora, existem duas coisas que nós temos de perceber de fundo, que depois também nos vão ajudar a fazer a
distinção entres dois tipos de omissão:

Em primeiro lugar, que a legitimidade para imposição de deveres gerais de ação por parte do legislador penal é muito
mais estreita, mais esguia, do que quando nós possamos, efetivamente, afirmar a ofensa de um bem jurídico. São dois
planos um pouco diferente, porque uma coisa é eu não atuar e da minha não atuação resultar necessariamente
uma modificação no mundo exterior que se traduz num resultado típico (ex: a morte de alguém), outra coisa
completamente diferente é que não atuar e dessa não atuação não acontecer nada e ainda assim poder ser
punido. Portanto, a densidade do ilícito é diferente. E por isso é que nós, até por decorrências práticas no contexto
da distinção, temos que conseguir fazer uma distinção entre, por um lado, aquilo que são as omissões puras e
aquilo que são as omissões impuras. Porque omissão pura é justamente aquela que resulta de um dever geral
de ação. E, portanto, não se restringe à necessidade da produção de um resultado, não se restringe uma
determinada posição que o agente ocupa, mas é um imperativo geral que o legislador penal imana, dizendo que
todos os que estejam em território português têm de fazer isto.

Mas, o que é importante compreender é: em primeiro lugar, a lógica de uma menor legitimidade para imposição destes
deveres gerais, mas que a própria lógica da imposição destes deveres gerais significa que eles são gerais, e, portanto,
do ponto de vista prático, têm essas imensas diferenças relativamente às chamadas omissões impuras - em que não
se pune o mero não agir, mas o não agir que levou à produção de um resultado típico e, portanto, proibido. Aqui
é que está a grande diferença.

• Vamos imaginar que eu passo por um acidente, mas as pessoas só estão em perigo, não acontece nada. Se eu não
ajudar, se eu não prestar auxílio (que é o dever geral de auxílio), independentemente de qualquer posição que tenha a
essas pessoas (posso não as conhecer de lado nenhum), se passar ao lado, mesmo não acontecendo nada às
pessoas, para lá daquilo que já aconteceu derivado do acidente, tenho aí uma omissão típica para efeitos do art. 200º
do CP. Justamente, porque aí se cumpre o mero não agir.

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• Mas, as coisas são diferentes se nós pensarmos no art. 131º (que já lemos várias vezes este, mas nunca com esta
perspetiva) – é que não parece lógico eu dizer que pelo mero não fazer acontece alguma coisa. Se eu não der água a
um cão ou um gato durante x tempo, ele pode ou não morrer à sede? Eu não fiz nada, mas é um resultado. Se eu não
alimentar um bebé, que não se consegue alimentar a si mesmo, eu não fiz nada, mas é um resultado.

• E agora vamos pensar de outra forma: parece estranho que neste preciso momento está alguém a morrer em Portugal
pelo facto de nós não fazermos nada? Vamos imaginar que está uma senhora idosa (o não fazer nada é o não fazer
nada) em Trás-os-Montes e ela está a ter uma sincope e precisa, urgentemente, que alguém assista. Nenhum de nós
está lá, nenhum de nós a assistiu, se ela vier a falecer não fizemos nada para impedir…

Ou seja, isto leva-nos a pensar que temos de definir os limites de quais é que são as pessoas que podem ser
pessoalmente responsabilizadas pela produção de determinados resultados. Porque na verdade nós todos
estamos a não fazer nada relativamente a alguém.

• Vamos imaginar um festival de verão em que estamos ao fundo e lá à frente alguém pela lógica da multidão alguém
se sente mal e caí e pode ser esmagada. Aqui já estamos no mesmo sítio, mas não estamos perto da pessoa caída.
Faz sentido sermos punidos? O instinto diz-nos que não, temos de perceber porquê. E se, mesmo não a conhecendo
de lado nenhum, estivermos relativamente perto e lhe pudermos estender a mão? Aqui já faz sentido sermos punidos.
Porquê? Já estamos começamos a chegarmos mais perto, através daquilo que até é a nossa lógica de perceber o
mundo e as coisas, em primeiro lugar, daquilo que necessariamente tem de estar como pressuposto presente
para a omissão ter relevo – é que eu tenho de ter a possibilidade de agir. Se o agente não tem a possibilidade de
agir não pode, naturalmente, ser responsabilizado pela omissão. Esse é um pressuposto de base de qualquer tipo de
omissão.

Mas, se olharmos para o art. 10º, ele diz-nos várias coisas: em primeiro lugar, diz-nos que (e estamos aqui a
aproximar-nos/estamos no patamar da omissão imprópria, portanto aquela que para que tenha relevo jurídico penal,
implica a produção de um resultado):

• O nº 1 diz-nos que eu para efeitos de punibilidade da omissão imprópria vou proceder a uma primeira grande
limitação - é que só vou considerar equiparável a omissão à ação no caso dos crimes de resultado. Se for um
crime de mera atividade eu não vou equiparar a omissão à ação, até porque não faria sentido. Apesar de que
existem crime de mera atividade que nós até conseguimos, em termos teóricos, equiparar a omissão e a ação. O que
é que o legislador penal já não permite.
É o caso da injúria. A injúria é um crime de dano e de resultado. Então imaginar que (para perceber que o nº 1 funciona
como uma primeira restrição no contexto da limitação impura ou imprópria) estamos num grupo de amigos e nesse
grupo de amigos relativamente pequeno e que cumprimentamos toda a gente menos uma pessoa. Isto é ou não é uma
forma de insulto? Portanto, em abstrato até seria possível equiparar. O que é que o nosso legislador diz é “atenção, se
eu vou considerar que a omissão vale tanto como a ação, eu percebendo a diferença da densidade axiológica em
termos da própria conduta entre ação e omissão, eu vou proceder a uma primeira delimitação do universo”.

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Portanto, primeiro vou “mandar fora” os crimes de mera atividade. Só vou equiparar quanto aos crimes de resultado.
Só nesses casos é eu vou dizer que tanto se me dá o agente ter ofendido o bem jurídico por ter feito alguma
coisa, como o agente ter ofendido o bem jurídico por não a ter feito.

Outro exemplo de escola: vamos imaginar que queremos ir sair para o festival, então contratamos uma baby-sitter. A
baby-sitter está lá em casa e concordou que cuidava da criança até às 00h. Não chagamos a horas e a baby-sitter não
deixa as crianças sozinhas, mas elas magoam-se porque ela está a ver televisão. Mas ela diz que aquilo aconteceu às
00h25 e que tivemos sorte de ela não ir embora. Em termos contratuais ela não tinha obrigação de assistir a criança.
Mas não faz sentido pensar que os pais haviam de ter pago mais horas à baby-sitter.

E agora já percebemos que nas omissões puras do que se trata é punir a mera não ação, verdadeiramente o
não fazer nada independentemente da produção de um resultado. E também já sabemos que nas omissões
impróprias ou impuras que o legislador já limitou, digamos punição no caso de omissão impura aos crimes de
resultado, ou seja, só pode haver omissão impura no contexto dos crimes de resultado.

Mas ainda assim nós temos de perceber quem é que afinal tem o dever de agir.

• No nº 2, temos a segunda limitação - numa segunda linha de limitação o legislador está-nos a dizer que
equipara a omissão à ação quando existir um dever jurídico de garante. Quando o agente tenha um dever
jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse mesmo resultado.

E, portanto, a questão começa a complicar um pouco. O legislador na verdade não nos indica quais é que são as fontes
do dever de garante. Ele só diz que ele tem de existir, mas não nos diz quais são as fontes.
Não nos dizendo o legislador quais são as fontes do dever de garante, cumpre-nos a nós perceber/encontrar as fontes
do dever de garante. Temos aqui verdadeiramente diversas perspetivas.

Temos uma primeira perspetiva, que era a perspetiva tradicional ou clássica que reconhecia,
fundamentalmente, três grandes fontes do dever de garante: a lei, o contrato e, não concomitantemente, mas
ainda pertencendo à teoria clássica, ingerência:

1. A lei é evidente, continua a ser um dever de garante, por exemplo, o dever de assistência que os pais têm
com os filhos. Resulta da lei, do próprio código civil.

2. E depois temos o contrato, mas reparem, nós pensando na lógica do contrato desta forma tradicional,
pensando na situação da baby-sitter, sendo que o contrato já não existia, não lhe fazíamos nada através do
contrato. Já estava cumprido, acabava à meia noite.

3. E então vamos pensar na última fonte do dever de garante da teoria clássica ou tradicional, que é a
ingerência. Portanto, se eu provoco o perigo, tenho a obrigação de o remover. Tinha sido a baby-sitter a
provocar o perigo para a criança, ou tinha sido a criança que tinha deambulado por ali, e ela estava
sossegadinha? Ela não provocou o perigo para a criança. Portanto, da ingerência não resultava o dever
jurídico que pessoalmente a obrigasse, através da lógica da doutrina tradicional, a remover esse mesmo
perigo. E, portanto, nós pela doutrina clássica íamos fazeralguma coisa à baby-sitter ou não? Não.

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Atendendo à situação relatada, esta teoria clássica, que responde pelo dever de garante, está
ultrapassada? Evidente.

Depois, naturalmente, que atentas as dificuldades da teoria clássica, esta forma de compreensão dos deveres de
garante foi ultrapassada.

E passou-se para uma doutrina/teoria sócio-existencial, no fundo, baseada numa ideia em que não havia uma
afetação estrita ou formalista do contexto as fontes. Porque a teoria clássica,procurava ter uma posição
extraordinariamente garantística, no fundo, de limitação das possíveis fontes do dever de garante - quando nós
alargamos aquilo que é o universo das fontes daquilo que é o universo das fontes do dever de garante, estamos
necessariamente a alargar o número de pessoas que podem ser responsabilizadas por não fazem alguma coisa. E,
portanto, esta posição garantística, tentava de alguma maneira cingir-mos a uma visão formal das fontes, mas basta nós
pensarmos no exemplo da baby-sitter para, imediatamente depreendermos, que esta posição garantística
tradicional, de alguma maneira também levava a situações de clamorosa injustiça, em que, não havendo
nenhuma das fontes tradicionais, também havia um desconforto imenso na não punibilidade (p. ex., no caso da
baby-sitter).

Parte-se para uma construção que tem enorme desenvolvimento em termos de sistematização, que pode ser mais
simples ou complexa, mas vamos pela mais simples, que é aquela que assume a designada posição sócio-existencial.
E qual é que é a grande ideia de fundo? É que não vamos negar as fontes tradicionais, vamos continuar a aceitar
as fontes tradicionais (lei, contrato e ingerência), mas não vamos limitar o poder de garante à conformação
estrita dessas mesmas fontes, mas antes pensando na relação que intercede, ou na posição que assume o
agente, relativamente à aceitação e ao (?).

E, portanto, nós aqui, por exemplo, temos as designadas relações de confiança, que é onde podíamos integrar a
situação da baby-sitter. Quando precisamos de uma baby-sitter e contratamos uma confiamos nela. Confiamos-lhe a
tutela ou a guarda, a proteção de um determinado bem jurídico. Que, não obstante a extinção do contrato, se mantém
para lá da hora acordada. No fundo, confiamos que ela cuida da criança. Naturalmente que há uma lógica de confiança
entre os pais que concedem à baby-sitter o cuidado da sua criança até que eles cheguem a casa. E, portanto, como é
evidente aqui também podíamos integrar a baby-sitter.

Mas além do exemplo da baby-sitter também podemos pensar noutras constelações, como, por exemplo, o domínio da
fonte de perigo, e porquê que estamos a referir esta circunstância? Vamos imaginar que bebemos refrigerantes ou
qualquer coisa que venha em lata, nas latas acaba, acidentalmente, por cair um determinado produto, que pode ou não,
consoante a pessoa tenha ou não uma determinada alergia, causar uma ofensa à saúde, portanto, uma ofensa à
integridade física. E, portanto, o produtor põe as latas à venda, um de nós tem essa alergia, bebe a lata e tem uma crise
alérgica. O produtor podia ter feito alguma coisa? Estamos a pensar se ele omitiu uma ação devida. Ele não faz nada
para evitar que uma pessoa em concreto, sendo que podiam ter sido muita. Mas podia ter feito, podia ter colocado um
rótulo a alertar que as latas podiam ter vestígios de x ou y produto.

Por exemplo, batatas fritas é suposto terem lactose? Não. Mas dado que os alimentos industriais são produzidos de
uma forma, há restos de tudo nas máquinas. E, portanto, partículas da lactose podem passar para as batatas fritas.
Uma pessoa com alergia à lactose, quando vai comer batatas fritas, por regra, não se preocupa se as batatas têm ou

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não lactose. Mas sendo alérgico à lactose pode ter problema sérios, se as tais particulares estiverem nas batatas.
Porquê que temos de pensar nisto antes? Antes de afirmarmos a negligência ou o dolo, primeiro temos de saber se é
ação ou omissão. Depois é que vamos ver o dolo, a negligência, o erro. Vem tudo a seguir. Até aqui partimos da ação,
agora partimos da omissão. Primeiro temos de saber dizer se o resultado se produziu por ação ou por omissão, para só
depois analisar se foi uma omissão dolosa ou negligente. E depois, então, vemos se há erro. Isto depois acrescenta
tudo que temos vindo a ver até agora.

Agora vamos imaginar que o senhor A tem a seu cargo a sua mãe, que está acamada, e, entretanto, conhece uma
senhora de nacionalidade estrangeira, por quem se apaixona loucamente e vai passear durante cinco dias com a
senhora. A mãe de A, estando acamada, portanto, por definição, não se pode alimentar sozinha. Então o que é que vai
acontecer a esta senhora? Vai morrer. Onde é que está previsto homicídio por omissão? Não está. Não encontramos
nos arts. 131º e ss CP nenhum artigo a dizer homicídio por omissão. Então o que temos de fazer? Onde está previsto o
homicídio por omissão? Se não está previsto, como é que punimos o senhor? Junto o art. correspondente ao
homicídio, na parte especial, à cláusula geral de equiparação - é aí que está previsto o homicídio por omissão.
Porquê que isso soa estranho? Não soa estranho dizermos que estamos a punir alguém por um crime que não está,
como tal, previsto? Como é que eu sei que o homicídio por omissão é verdadeiramente punido?

E se fosse burla por omissão (art. 217º CP)? Também é um crime de resultado. O crime de burla é um crime de
execução vinculada, mas é um crime de resultado. Faz sentido que aqui se possa equiparar a ação à omissão? Não.
Então qual é o problema? É um problema da tipicidade diminuída.

Eu só consigo saber quais são os crimes de omissivos impróprio, portanto, aqueles que remetem a um
resultado, por interpretação, não por previsão típica.

Vamos agora sistematizar alguns dos pontos que vimos até aqui. Em termos de omissão:

• Percebemos que a omissão também constitui, paralelamente à ação, uma manifestação de uma relação
comunicacional. Acabamos de ver que, não cumprimentar alguém, não fazer alguma coisa também é mandar uma
mensagem. Aquilo que começamos por ver no semestre passado, as ideias de voluntariedade da ação, também
intercedem no contexto da omissão. A ação tinha de ser voluntária, também a omissão não é imune à ideia de
voluntariedade, exige-se que o agente não tenha agido porque não quis e não porque não pode ou não
conseguiu. Desse ponto de vista, temos então:

- A omissão própria ou pura, sendo que a omissão própria ou pura tem a característica de que aquilo que
é o desvalor do ilícito, verifica-se pela não realização da ação exigida. Portanto, basta o mero não fazer.
Temos como exemplo o art. 200º CP, mas depois também temos, por exemplo, o art. 284º CP, que é uma ação
que a norma impõe.

- A omissão impura ou imprópria, que levanta mais dificuldades. Porque aqui, o que é que nós temos é aquilo
que é verdadeiramente uma construção do espírito, um real construído. E porquê? Porque, como já vimos,
arrancamos de uma lógica de equiparação, portanto, há aqui uma equiparação axiológica, entre o fazer e o não
fazer. Mas esta equiparação axiológica no âmbito da omissão impura ou imprópria, em que contexto faz
sentido? É um mero não fazer? Não. O que é que caracteriza a omissão imprópria? A necessidade de

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existência de um resultado. Porque esta equiparação axiológica só faz sentido tendo em atenção a
própria proibição de produção dos resultados, aquilo que o direito penal quer evitar é que se produzam
aqueles resultados típicos (ex: a morte de alguém, que alguém fique magoado). Portanto, atendendo à
proibição do resultado.

Mas se olharmos para o art. 10º CP (tipicidade diminuída), como é que termina o nº 1? “Salvo se outra for a intenção da
lei”. O art. 10º/1 CP, não equipara em todos os casos. E este é o grande problema da tipicidade diminuída, é que
nós só através de interpretação de 2º grau é que chegamos à conclusão se foi ou não outra a intenção da lei. Se
atendendo que se trata de um crime de resultado (1º grau: aquele tipo de crime de resultado), se num 2º grau é
um crime de resultado que permita a equiparação entre a ação e a omissão.
Portanto, a equiparação não é possível em todos os casos. E em que casos é que a equiparação não é possível?
Não é possível quando for impossível. Que tipo de impossibilidades é que nós conseguimos encontrar?

1. Em primeiro lugar, temos uma impossibilidade física, ou seja, existem crimes de resultado, que não podem
ser concebidos através da omissão. Vamos pensar, por exemplo, no crime de bigamia (art. 247º CP), eu posso-
me casar com uma segunda pessoa por omissão? Não.

2. Mas depois temos outros casos em que, ainda que, na verdade, facticiamente, até possamos conceber esta
equipação entre ação e omissão, parece que é o legislador que não quer que nós façamos essa mesma
equiparação - que é, precisamente, o caso da burla (art. 217º CP). Por exemplo, a propósito do crime de burla, não
há forma de a doutrina se entender sobre se, sendo facticamente possível eu enganar alguém porque não lhe presto
um esclarecimento, uma informação, portanto, fico quieto, se, verdadeiramente o tipo legal de crime juridicamente
permite que alguém seja punido por omissão, por burla por omissão. Isto prende-se com a dificuldade de nós não
termos o tipo legal de crime de burla por omissão no código. E estarmos a punir as pessoas justamente por uma
cláusula de equiparação que nos obriga a fazer em cada tipo legal de crime uma valoração autónoma. Os tipos não
estão pensados para a omissão, estão pensados para a ação.

É este problema da valoração autónoma, de eu relativamente a cada tipo ter de fazer esta interpretação de
segundo grau para conseguir aferir se posso ou não punir aquele comportamento omissivo atendendo ou não
àquele resultado, é que ressalta daquele problema da tipicidade diminuída. Ou seja, não posso, pura e
simplesmente, aplicar, como acontece em relação à ação, aplicar de forma direta o tipo legal de crime da parte
especial àquela conduta.

Mas não basta isto, para conseguirmos chegar ou passar o primeiro patamar de construção do facto punível. Portanto,
eu para conseguir afirmar verdadeiramente que é um tipo omissivo, eu tenho de conseguir realizar uma
operação em três passos, porque eu sei, não obstante, derivar daquilo que nos diz o art. 10º/1 CP, que estamos
perante um problema de tipicidade diminuída, a verdade é que contínuo a ter o art. 10º/1 CP. Portanto, eu continuo a ter
de, atendendo ao quadro que tenho, punir por equiparação, (porque equiparei naquele caso a omissão à ação), ainda
assim continuar a tentar cumprir a função garantística da tipicidade. E quais são, em suma, os três passos? [1] é que
eu tenho de ter um crime de resultado; [2] relativamente ao qual seja possível fazer a equiparação - e como é que
é possível fazer a equiparação? Estamos a falar de tipicidade: como é que eu equiparo? Que características é que a
omissão tem de ter para ser equipada? A omissão tem de ser, tal como a ação tinha de ser adequada a produzir o
resultado, adequada a prevenir o resultado (art. 10/1 CP).

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Portanto, isto leva-nos a um problema. O que é que eu digo, mais ou menos, da ação? Causalidade adequada (é
normal e previsível que seu der um tiro em alguém que essa pessoa morra), mas eu posso atribuir causalidade efetiva
ao nada? O não fazer pode ser causal? O código não nos diz para dizer se aquela ação foi adequada a produzir o
resultado. A não ação não pode produzir um resultado. estamos a perguntar em que medida é que punimos o agente
por ele não ter feito. Portanto, a pergunta que eu tenho de fazer é se eu tivesse alimentado a senhora (ver exemplo da
idosa acamada) ele teria morrido ou não? Ai é que eu posso afirmar que a minha ação tinha sido adequada a evitar o
resultado. No fundo, o que tenho de dizer é, atendendo a que houve aquela omissão, o agente podendo ter a ação, se
ele tivesse tido a ação, se era normal e previsível que evitasse aquele resultado. No caso da senhora idosa alimentá-la
era a ação adequada a evitar a produção do resultado.

Assim, eu só posso proceder à equiparação, quando consiga afirmar este “nexo causal” (nexo causal aqui
enquanto o comportamento esperado para evitar a produção do resultado; é uma espécie de causalidade
hipotética). Mas se fosse só assim, podia ou não aparecer a polícia por não estar a ajudar uma pessoa que tínhamos a
possibilidade efetiva de ajudar a fazer um telefonema? Podia. Para conseguirmos chegar a bom porto, além de termos
um crime de resultado, e além de procedermos a esta equiparação, também temos de conseguir [3] afirmar o tal
dever jurídico de garante. Porque não é relativamente a toda e qualquer pessoa que recai um dever jurídico que
pessoalmente a obrigue, que é o caso de cada um de nós relativamente resultados que se estão a produzir
neste momento e relativamente aos quais não temos qualquer espécie de dever jurídico que pessoalmente nos
obrigue a evitar.

O que nos leva então a avançar para as duas coisas: primeiro perceber que nos dois primeiros ([1][2]), ainda é
possível encontrar uma tipicidade minimamente fechada, quanto ao tipo de resultado, está no próprio tipo da
ação, e quanto à equiparação está no art.10º/1 CP. Mas se eu só posso punir o agente se ele tiver um dever de
garante, isso significa que o dever de garante tem necessariamente de ascender a elemento do tipo complexo que é o
tipo omissivo.

O problema é este - eu não posso punir o agente, pura e simplesmente, porque há um resultado e porque eu posso
equiparar a omissão à ação. Eu só posso punir o agente porque além de conseguir fazer estas duas coisas, posso
afirmar nos termos do nº 2, que sobre ele impendia um tal dever jurídico e, portanto, este dever jurídico passa a fazer
parte integrante do tipo omissivo.

Nós quanto à omissão pura não temos problemas que a omissão está enquanto tal prevista na parte especial do
código. Temos o tipo, resulta do próprio tipo (art. 200º CP, art. 284º CP). Não é necessário fazer nada disto, é o mero
não fazer. As dificuldades surgem no contexto da omissão imprópria.

E, portanto, o tipo omissivo impróprio igual a crime de resultado, mais equiparação, considerando o nexo
causal, mais dever de garante. O que é que isto quer dizer? Eu para chegar ao ponto de punir alguém tenho de
falar no art. 131º CP (por exemplo) + art. 10º/1 CP (tenho de conseguir afirmar a equiparação) + art. 10º/2 CP
(porque tenho de conseguir afirmar o dever de garante). Nos crimes omissivos impróprios se eu não puder
afirmar o dever de garante não posso punir o agente, não posso dizer que já preenchi o tipo.

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Porquê que o problema não se coloca do ponto de vista da omissão pura? Art. 200º CP - está lá escrito quem não
ajudar, independentemente de resultado ou da posição que ocupe. É um dever geral, impende sobre todos. Basta
qualquer um de nós não fazer o que lá está escrito, basta qualquer um de nós não ajudar para o tipo estar preenchido,
porque o próprio tipo impõe. O art. 131º CP, diferentemente, não impõe, proíbe. Portanto, na omissão pura não temos
estes problemas porque os tipos estão como tal previstos na parte especial do código,

O que é que isto nos diz? Diz-nos uma grande complicação. Porquê? Porque se o dever de garante faz parte do
tipo e se a lei não prevê quais é que são os deveres de garante, eu tenho um tipo dependente de construção
doutrinal.

Portanto, para eu punir o agente pela ocorrência do resultado, digamos, da sua não ação, sobre o agente tem de recair
um dever jurídico de garante. Se olharmos para o art. 10º/2 CP, não vem lá escrito quais são as fontes do dever de
garante. Diz só que ele tem de existir. Ora, se o dever de garante para eu punir o agente, para eu poder afirmar o
preenchimento do tipo, tem de existir, mas se o legislador não diz quais são as suas fontes, eu tenho uma tipicidade
complexa (porque temos de estar sempre a acrescentar elementos aos tipos da parte especial para conseguir afirmar a
tipicidade do tipo omissivo), mas o legislador não ajudou ao não dizer quais são os deveres jurídicos de garante.

Estamos a falar de tipicidade. Além de termos uma tipicidade complexa, temos o problema de a tipicidade ser
diminuída. Nós conseguimos perceber que a equiparação está dependente de interpretação de 2º grau (o 1º grau é
aquela evidente: é a subsunção do facto na norma; mas eu depois tenho de olhar para o tipo e perceber se o “tipo é
apto a omissão ou não”).Tribunais diferentes podem ter posições diferentes consoante a conceção adotada. Já na
ação, em termos de tipicidade, não há a mesma dúvida. Se preencheu o tipo, preencheu o tipo, ponto. Na imputação
objetiva do resultado à conduta do agente há dúvida sobre se e típica ou não? Não.

A próxima questão que se coloca, estando nós já no patamar o dever jurídico de garante, é sobre as suas fontes.
(próxima aula).

Vamos referir-nos em primeiro lugar ao art. 10/º3 CP. Justamente porque a omissão não tem a mesma densidade
em termos de afetação orientada à ofensa do bem jurídico que a ação, no nº 3 o legislador dá como que,
percebendo isto mesmo (que do ponto de vista axiológico é diferente matar através de um tiro ou matar porque
alguém morreu de amores e deixou a mãe morrer à fome = percebendo que do ponto de vista de densidade axiológica
não é a mesma matar ou deixar morrer), concede aquilo que é uma possibilidade, não um dever/uma imposição/
uma obrigação do aplicador - no caso previsto no nº2, a pena pode ser especialmente atenuada.

E porquê que se trata de uma mera possibilidade? Porque existem casos em que a omissão pode ser mais
desvaliosa que a ação, não fazendo sentido atenuar a pena.

Aula 9 - 22/05/17 (omissão parte 2)

Pegando naquilo que estava a dizer de manhã, nos tínhamos que o primeiro problema que se coloca no patamar da
omissão e o problema da tipicidade. E, agora, naturalmente, que me estou a referir ao tipo omissivo por omissão,, a

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omissão impura (ja sabemos que a omissão pura é aquela que está, prevista como tal, na parte especial do Código
Penal e que nos impõe um dever geral).

Então, como é evidente, do ponto de vista da omissão pura ou imprópria, temos esta dupla problemática que, além de
ser uma tipicidade complexa, e uma tipicidade diminuída.

Mas também ficamos com a percepção de que se um dos elementos da tipicidade e o dever de garante, um dos
elementos do tipo omissivo e o dever de garante, temos de saber quais são as suas fontes - e, alem desta primeira
posição, alem da posição garantística que indica apenas três (lei, contrato e ingerência) e sabemos, também, que estas
três fontes tem uma ideia garantística por trás e acaba por significar uma certa exiguidade nas situações em que eu
posso punir o agente o que leva, naturalmente, a que a evolução da doutrina tenha um alargamento das fontes do dever
de garante.

Há um consenso generalizado na doutrina de que a posição tradicional não serve, portanto, aquela que só
identifica aquelas três fontes. O que nós não temos é um entendimento maioritário quanto a sistematização, ou
quanto a fundamentação dessas mesmas fontes. Portanto, temos, por um lado, aquilo que, de algum modo, se
afirma como posição maioritária - que segue a posição de FIGUEIREDO DIAS - ou a posição que também, de algum
modo, acaba por aceitar as mesmas fontes mas que acaba por fundamentar de forma diferente, que é a posição
de FARIA COSTA, que é uma posição contrária. Mas, aqui, não é tanto quanto às fontes, mas quanto à
fundamentação e quanto às consequências dessa mesma fundamentação.

1 - A construção de FIGUEIREDO DIAS

FIGUEIREDO DIAS (embora não seja só ele mas sendo um dos proponentes, onde admite o consenso da dogmática, de
toda a doutrina), naturalmente, reconheceu a debilidade da posição tradicional e, através do fundamento numa
espécie de solidariedade existencial, acaba por sistematizar as fontes do garante num alargamento em que
consegue justificar, justamente, a existência dessa mesma solidariedade. Portanto, FIGUEIREDO DIAS diz qualquer
coisa como isto: "para mim, o fundamento para o alargamento das fontes do dever de garante - e reparem numa
coisa, num pequeno pormenor: naturalmente que não preciso de encontrar fundamento para as fontes lei e
contrato porque essas fontes têm fundamento normativo - ou a própria lei, ou o fundamento normativo advindo
das próprias regras normativas do contrato -, portanto, essas não precisam de um fundamento. Nós só estamos
a tentar encontrar o fundamento das outras."

Mas, verdadeiramente, a melhor forma de sistematizarmos isto é identificarmos que, a partir desta ideia de
solidariedade existencial, identificarmos que existem dois grandes grupos de deveres que podem gerar deveres de
garante.

Temos, por um lado, os deveres de proteção. E, certamente, que já terão dado falta por uma das fontes tradicionais
aqui - a ingerência. Porquê? Na ideia de Figueiredo Dias, que tipo de fontes é que estão associadas à ideia dos
deveres de proteção? Uma ideia que já conhecemos, como as comunidades de perigo, as comunidades de vida e as
relações de guarda de assistência.

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Por exemplo, aqui, nas relações de guarda e de assistência, é um dos exemplos paradigmáticos em que eu consigo
através, justamente, até desta noção de confiança que os pais depositaram na babysitter, dizer que a babysitter não
só assinou um contrato como assumiu um dever de guarda da criança até que os pais chegassem mesmo, para lá, se
quiserem da validade do contrato que terminava à meia-noite. Portanto, a babysitter, mesmo que os pais só tenham
pago até à meia-noite, comprometeu-se a guardar a criança até eles chegarem e, depositária dessa confiança de
guardar a criança, assume, por isso, mesmo para lá da execução do contrato como babysitter, assume o dever de
guarda, portanto, têm aqui o dever de garante.

Comunidades de vida: aqui, temos, se quiserem, dois grupos: o mais forte e o menos forte.

E o mais forte é aquele que resulta das relações análogas às dos familiares. Exemplo: Nós sabemos que entre
cônjuges existe um dever de assistência. E entre irmãos que vivam juntos, existe esse mesmo dever de
existência? Não existe. E se forem um jovem casal de namorados que não está formalmente em união de facto
mas que decidiu juntar os trapinhos? Tem dever de assistência, legal? Não, não tem. Pode ter um dever moral
mas legal não tem.

Mas, depois, nas comunidades de vida, temos também uma espécie de subgrupo onde se inserem as pessoas
que não tem qualquer tipo de relação, como o típico exemplo: há aqui alguém que partilhe casa? Nós não temos
qualquer relação familiar com a pessoa com quem partilham a casa, e até podem não suportar a pessoa com
quem partilham a casa, mas isso já não se pode dizer que seja uma relação análoga às dos cônjuges, como é a
do casal que se junta - aí, já é uma mera comunhão de vida. Mas, se o vosso colega de casa se engasgar com
um feijão ou com uma fava, pode determinar o surgimento de uma fonte de dever de garante.

E, depois, ainda temos as comunidades de perigo, tudo ainda inserido no contexto dos deveres de proteção, das
fontes que surgem através dos deveres de proteção. Exemplo: já alguém tentou descer um rio de barco, assim tipo
em rafting? E não conhecia as pessoas no barco? Mas, uma vez, ou outra, não tinha relação com elas, nem que fosse
com uma amiga, com um irmão, não interessa. E não construiu o barco, pois não? Mas se as águas mudarem e o
barco virar, está numa comunidade de perigo e acaba por assumir um dever de garante relativamente às outras
pessoas que estão no barco, Ainda que não tenham uma relação análoga à dos familiares, não tenha uma
convivência/comunhão de vida, digamos assim, em sentido próprio e, portanto, é um exemplo das comunidades de
perigo.

E, depois, temos ainda outro subgrupo que, nos deveres de garante surgem, tem como fonte, os chamados deveres de
vigilância e deveres de vigilância porque se trata de uma relação de proximidade ou domínio com a fonte de perigo,
como grande ideia geral. E aqui, é onde vamos arrumar a ingerência.

Porque se a ingerência se relaciona com a lógica do facto precedente, eu sou obrigado a remover o perigo que eu
provoquei. Portanto, aí tem a ver com a lógica de estar próximo ou dominar a fonte de perigo. Mas também tem
a ver com, por exemplo, aquelas situações em que eu sou produtor, e produzo alguma coisa, que pode
representar um perigo para certas pessoas. Por exemplo, quando embalo batatas fritas que passam em máquinas
que podem ter partículas de lactose e sei que se alguém que for alérgico à lactose comer aquelas batatas fritas, a
pessoa vai ficar doente mas as pessoas que comem as batatas fritas sabe em que contacto com que partículas
andam as batatas fritas? Mas é o produtor que tem essa proximidade ou esse domino sobre a fonte de perigo.

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Portanto, temos aqui também a ideia grande de dever de fiscalização resultante, digamos, do processo de produção,
por exemplo - são deveres de fiscalização aqui que já não se relacionam com a ingerência que também advém
desta proximidade ou domínio com a fonte de perigo, mas que obrigam ao controle dos perigos que advém
dessa mesma fonte. Como é evidente, isto tem a ver com domínio próprio. Eu não posso assumir um dever de
fiscalização sobre perigos que não domino.

Construção de FIGUEIREDO DIAS

1 - Lei
2 - Contrato
3 - Deveres de Proteção:

a) Comunidades de vida
b) Comunidades de perigo
c) Relações de guarda e de assistência

4 - Deveres de Vigilância

2 - A construção de FARIA COSTA

Esta expansão da fonte dos deveres de garante advém de uma ideia general de, se quiserem, de uma ideia de
solidariedade existencial. Mas também a ideia de solidariedade existencial no âmbito de uma forma de compreender o
direito penal não é aquela que FARIA COSTA aceita, e, no fundo, diz qualquer coisa como (tentando simplificar o
raciocínio): "até aceito, e acho bem, que se alarguem as fontes do dever de garante. Todavia, compreendendo os
delicados problemas de tipicidade que a omissão coloca, eu acho que o fundamento não pode ser um
fundamento tão vago. Porque se eu vou basear as fontes do dever de garante num fundamento tão vago, isso
não impede que eu possa, sucessivamente, vir alargando essas mesmas fontes. E quanto mais alargo essas
fontes, o que acontece ao cidadão? Passam a ter todos um convite VIP para uma festa da omissão. Em vez de ser
uma coisa excepcional, digamos assim, passa a ser uma coisa cada vez mais ampla. Já não é esta ideia de
quase comunidade de vida, mas também há a solidariedade existencial do prédio, na rua, na freguesia, na
cidade, no clube de futebol…”

Isto para dizer que FARIA COSTA, arrancando de uma lógica forte de ilícito objectivo, que, no fundo, como sabem do
primeiro semestre, tem uma enormíssima vertente garantística de legitimação do direito penal através da ofensividade
diz que eu, na verdade, não posso alargar isto com um argumento que, na verdade, é muito elástico - arrisco-me a
que, qualquer dia, de facto, qualquer coisa sirva para fundamentar um dever de garante. Exemplo: Tu és do
Porto? Tu também? Então, tens que ajudar aquele mesmo que.

• E como é que Faria Costa faz este percurso?

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Pega numa figura, que, digamos, é a figura mais residual das fontes do dever de garante que é o monopólio de facto,
que é aquela que está mesmo no fim. Nota: a última figura que devemos utilizar no exame porque é mesmo muito
residual.

O monopólio de facto prende-se com a seguinte ideia: imaginemos uma situação pouco plausível, para chegarmos a
uma situação simples. A rua Sá da Bandeira aqui em Coimbra, onde não está ninguém, o que é pouco plausível, mas
até pode acontecer, em determinadas horas do dia. E na rua Sá da Bandeira há uns repuxos e vamos imaginar que não
está ninguém à volta e estou a passar por um desses repuxos e esta uma criança pequena em risco de afogamento.
Não há nenhuma lei que os obrigue e não conhecem a criança de lado nenhum, não há nenhum contrato... não têm
nada a ver com a criança, não colocaram a criança em situação de perigo (logo, não é a ingerência), não é uma
comunidade de perigo, não há comunhão de vida, não vivem com a criança, não têm nenhuma ligação familiar com ela.

Se olharmos para esta sistematização, se eu não fizer nada à criança, pela lógica, não me acontece nada, ainda que a
criança morra afogada. Porque não há nenhum dever jurídico que pessoalmente me obrigue a salvar a criança. Mas, e
esta fonte do dever de garante é justamente a residual, porque é aquela que talvez, na lógica das fontes de garante,
corresponda àquela situação mais flagrante em que eu não posso falar de uma fonte em sentido próprio mas
também fico extremamente mal disposta em não actuar; era só esticar o braçinho, e nem isso foi capaz de fazer.

Portanto, esta categoria residual que, nesta sistematização, eventualmente, encaixaríamos ali, ainda que com algum
atropelo, é a fonte do dever de garante da qual arranca FARIA COSTA, justamente, para tentar encontrar o seu
fundamento para o alargamento dos fontes do dever de garante.

E o que é que ele faz? Bem, ele diz: "Não consigo, verdadeiramente, fundamentar com esta ideia de solidariedade
existencial, porque isto é estar a fazer equiparar coisas ao auxílio do dever especial de garante àquela que esta
intrínseca num tipo, mas quanto aos problemas do tipo omissivo impróprio, que é a omissão de auxílio que está previsto
no artigo.". Mas, aqui, não porque não há solidariedade que me ligue àquela criança - isso faz sentido nos termos
gerais, não nos termos particulares. E, portanto, eu tenho de encontrar um argumento verdadeiramente jurídico. E
FARIA COSTA emerge, na totalidade do ordenamento jurídico, como uma espécie de Indiana Jones fez uma exploração
do ordenamento jurídico e sentindo-se, digamos, desconfortável com esta ideia de solidariedade existencial descobriu a
eureka do direito penal: o que é que parece ser o facto de bastar eu puxar o braço e não o ter feito e devia o ter

feito?😂 😂 😂 12

A obrigação natural, do art. 402º CC, é a consagração normativa de uma consequencialidade que se atribui a um
dever de justiça. Como funciona a obrigação natural? Não tenho que cumprir mas, se cumprir, não posso
descumprir. Não é judicialmente exigível mas se a cumprir, não pode ser retratável. Se eu pagar uma dívida de
jogo, depois não posso dizer “ah mas eu não tinha que pagar, passa para cá o dinheiro que eu quero jogar outra vez”.
Eu não tinha que cumprir, mas uma vez cumprido, tem consequencialidade e tem consequencialidade porque o seu
cumprimento, ainda que não exigível, tem ou representa um dever de justiça e então FARIA COSTA, justamente, porque
como sabem, do art. 31º CP resulta que podemos considerar a ideia geral da unidade da ordem jurídica, faz
exactamente isso - olha para a ordem jurídica e pensa: “eu tenho aqui um aconchego de uma norma que torna jurídica
aquilo que é um dever de justiça”. E é isso que interessa a FARIA COSTA - não é a obrigação natural em si, mas sim

12 Que risada….

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o dever de justiça, o fundamento da obrigação natural. Porque a obrigação natural, do ponto de vista do direito
penal, seria uma obrigação natural invertida. E porque é que é invertida? O Código Civil diz que tem
consequencialidade depois de cumprir. Mas como funciona no direito penal? Tem de cumprir porque o
cumprimento corresponde a um dever de justiça. É o fundamento que FARIA COSTA encontra para o alargamento,
fugindo à lógica da solidariedade existencial.

Portanto, fazendo aqui uma espécie de brincadeira: aquela mantinha que usamos no inverno para nos aconchegarmos
no sofá, que ele puxa até cima para tapar o alargamento para se sentir confortável, para dizer que tem um argumento

jurídico.😂 😂 😂 13 . E, portanto, atendendo a este cobertorzinho, pode-se de alguma maneira dizer que ele aceitando o

alargamento, a forma mais simples de nos considerarmos o mesmo é por uma formulação que inclui os mesmos casos
mas por outra lógica.

Temos a lei e o contrato, depois temos a ingerência, as comunidades de vida e as comunidades de perigo e o
monopólio de facto. E tanto aqui - através da própria lei e do contrato - como aqui - e no contexto das restantes fontes
do dever de garante, a mantinha - conseguimos ter um fundamento jurídico da obrigação natural, a consagração
normativa de justiça. Uma obrigação natural invertida: a obrigação natural Civil funciona de uma maneira, a obrigação
natural Penal funciona de outra. E, portanto, conseguimos um fundamento jurídico para todas as fontes do dever de
garante.

Construção de FARIA COSTA:

1 - Lei
2 - Contrato
3 - Ingerência
4 - Comunidades de Vida e Comunidades de Perigo
5 - Monopólio de Facto

Ora, nós estamos ainda a dizer que um determinado facto omissivo é típico. Ora, para chegarmos ao final,
temos que afirmar a ilicitude e a culpa, em adição à tipicidade.

Para dizer que a omissão é ilícita, não pode interceder uma causa de justificação, e que é culposa. Ou seja, se
quisermos, a afirmação de que um determinado facto foi cometido por ação ou omissão é prévia à sua classificação
como doloso ou negligente. Eu, primeiro, tenho que dizer se é ação ou omissão e depois é que continuo a fazer o
percurso até chegar à negligência e ao dolo. O que nos leva, justamente, e, agora, aqui fazendo uma declaração de
princípios, assumindo o nosso programa, e, portanto, em que o dolo encaixa na culpa, sem ulteriores discussões. O que
é que é o dolo? Para afirmar o dolo, o que é que eu tenho que ter como verificado? A representação e a vontade e
representando todos os elementos da factualidade típica.

Logo, num caso de um facto omissivo, o que é que eu tenho de ter representar, necessariamente, para poder afirmar o
dolo? Por exemplo, se for um homicídio? Que aquilo que eu estou a fazer é matar alguém mas eu não estou a fazer

13 Risada infinita

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nada, estou a não fazer. Quais são os elementos da factualidade típica do tipo omissivo? O dever de garante. Lembram-
se da história de que o dever de garante ascendia ao elemento do tipo? Se ele ascendia ao elemento do tipo, eu
também tenho que o representar.

• Vamos ao seguinte exemplo:

Hipótese A: Um pai olha para o filho, sabe que é seu filho, e vê-o a entrar para a água, vê-o a bracejar e diz:
"'morre para aí que eu lá quero saber"

É, ou não, uma omissão? Temos os elementos do tipo homicídio, representados pelo agente, além - já sabemos que a
causa de equiparação não tem de ser representada pelo agente, como é evidente - de que ele representa que ele é seu
filho. Os pais representam que eles têm que evitar que eles se magoarem - portanto, se não fizer nada para que o meu
filho morra, estou a representar o meu dever de garante e posso afirmar um homicídio doloso.

Hipótese B: Será a mesma coisa se este pai, mais uma vez levar o filho à praia, ver que ele está com pé, que
está tudo bem, e de repente distrai-se ao olhar para o lado de um biquini interesse de uma senhora que estava
aí a passar, volta a olhar para a água e vê uma criança a esbracejar e pensa: "que chatice, o que vale é que esta
praia é vigiada."

Qual é a diferença entre um caso e outro?

A diferença é que ele, no segundo caso, não representa o seu dever de garante. Não posso afirmar o dolo,
porque? Em que circunstância é que está este nosso pai? Quando o agente não representa corretamente os
elementos da circunstância, está em erro. É um erro sobre a factualidade típica e, portanto vou fazer uma coisa
muito simples: se houver uma situação de erro, já sei que vou ao art. 16º/1 CP e já sei que exclui o dolo e neste
caso, ele não tinha nenhum projecto criminoso de matar o filho, por isso, não estamos perante nenhum caso
especial. A única coisa que tenho que ir ver depois é ver se haverá possibilidade, ou não, de punição deste pai a
título negligente. É o regime do erro.

Hipótese C: o pai olha para o filho que se está a afogar, sabe que é o filho - representa o filho - mas diz: "bem,
isto aqui, se não fosse uma praia vigiada eu tinha que lá ir”.

Ele representa e quer mas acha que não tem de lá ir porque a praia é vigiada. Está em erro quanto à ilicitude,
quanto à extensão do dever de garante, sobre aquilo que o dever que ele tem o obriga a fazer, sobre a extensão
do dever que ele tem de actuar. Portanto, é um erro de valoração - aquela velha dicotomia e aqui estamos perante um
erro do art. 17º CP. E aqui, o que tenho de fazer é saber se é ou não é censurável para saber se se exclui a culpa e aqui
aplica-se o regime normal do erro.

Portanto, para que fique claro, no caso do tipo omissivo - se quiserem, impróprio ou o tipo omissivo por omissão - se o
agente tem de representar o seu dever de garante quando não o represente, é erro sobre a factualidade típica. Quando
represente mas valore mal a sua extensão da sua obrigação de actuar para evitar a produção de um resultado e um
erro de valorarão como já vimos, no geral, no contexto do erro.

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E, agora, resta-nos ainda uma última questão. Que é uma última questão que vamos ver a propósito do erro, que é a
seguinte:

Vamos imaginar que estamos perante uma situação em que há um acidente numa estrada por onde não passa
ninguém. E só havia uma pessoa dentro do carro que fica, na sequência do acidente, gravemente ferida. Eu
passo pelo acidente, não paro e continuo e não acontece mais nada.

Que omissão é esta? Pura, e porquê? Nós temos uma ideia geral de solidariedade que nos diz que,
independentemente do que aconteça, quando for uma situação de calamidades efetivas (digamos assim, em
termos amplos), uma situação de emergência (acidentes, incêndios, tsunami e não alguém engasgar-se num feijão)
em que nós, não tendo ninguém especial por perto devemos, apesar de tudo, puder contar que um estranho
nos ajude. É a lógica do art. 200º CP.

O art. 200º CP é um crime de mera actividade, basta não fazer nada. E, portanto, o desvalor incito à omissão
pura é, precisamente, o não fazer nada. É isso que é desvalioso - naquelas circunstâncias de calamidade, eu querer
saber tão pouco do meu semelhante que não faço nada.

Mas agora vamos pegar exactamente no mesmo caso que é: acontece o tal acidente, a pessoa fica gravemente
ferida na sequência do acidente. Eu passo, não paro mas a pessoa, como a estrada é tão pouco movimentada,
acaba por morrer em virtude de não ter havido auxílio nenhum e ninguém ter chegado a horas.

E aqui? O que é mais desvalioso: um dever geral de auxílio ou um dever especial de auxílio?

O dever especial: e então, como é que consigo tomar as minhas ações? Quando é que tenho um dever especial de
auxílio; quando consigo afirmar a existência de um dever de garante? Neste caso, consigo afirmar a existência de um
dever de garante? Eu era a única pessoa que ia a passar. Apesar de ser a figura residual, eu ainda assim consigo
identificar um dever especial de auxílio - um dever jurídico pessoal para evitar um resultado, para evitar a produção
de um resultado. Se eu consigo identificar um dever especial de auxílio, um dever de garante se quiserem, eu, na
verdade, tenho um resultado o que não faz sentido é eu tentar colar os dois - punir o agente por omissão de
auxílio e por homicídio negligente por omissão, se quiserem. Tenho que tomar uma opção.

Mas essa opção, já os senhores a tomaram. Portanto no desvalor do incumprimento do dever especial já está
absorvido o desvalor do incumprimento do dever geral. Neste caso, se eu conseguir afirmar a existência de um
dever especial eu só vou punir o agente pelo tipo, neste caso, o homicídio negligente por omissão (art. 137º +
art. 10º CP). O que eu não posso fazer - nunca, em caso algum - é aplicar simultaneamente o art. 200º e o art. 10º
CP, isso, não posso fazer.

Nunca posso, relativamente ao mesmo facto, punir o agente por omissão pura e omissão impura. Portanto, ou
não identifico nenhum dever de garante por alguma razão (neste caso, havia um monopólio de facto residual) -
situação em que aplico a omissão de auxílio, que é muito raro de acontecer - ou então consigo identificar o dever
de garante e vou punir pelo tipo da parte especial que conjugo com o art. 10º para conseguir punir a título
omissivo por omissão.

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Então, FIGUEIREDO DIAS não segue essas hipóteses da obrigação legal do dever de justiça? Para ele, é só a lei, o
contrato...

FIGUEIREDO DIAS também identifica a lei, o contrato, a ingerência, a comunidade de vida, comunidade de perigo, o
monopólio de facto. A questão da diferença entre FIGUEIREDO DIAS e FARIA COSTA não é quanto às fontes em si (há
alguma fontes que não são exactamente iguais), mas é quanto ao fundamento do alargamento das fontes do dever
de garante para lá das fontes da doutrina tradicional (lei, contrato e ingerência) FIGUEIREDO DIAS diz: "eu alargo,
para lá destas, em virtude da ideia da solidariedade existencial - que é a posição sócio-existencial." FARIA COSTA
diz: "eu alargo em virtude de uma ideia de obrigação natural fundada num dever de justiça".

Se quiserem, FARIA COSTA não está de desacordo de princípio com as fontes defendidas por FIGUEIREDO DIAS - ele está
em desacordo quanto ao fundamento que FIGUEIREDO DIAS encontra para o alargamento das fontes de garante.

Caso Prático 13:

A, mecânico, durante a revisão de rotina do automóvel de B, deteta uma grave avaria nos travões do mesmo. Contudo
não procede a qualquer reparação nem avisa o cliente deficiência em causa.

Depois de sair da oficina e ter andado cerca de 1km, B atropela um peão em virtude de uma falha nos travões do
veículo.

Qual é a responsabilidade jurídico-penal de A?

Resolução:

É uma omissão pura ou impura? Eu não delimito a omissão pura da impura em virtude da existência de um
especial dever de garante. É em virtude de uma outra coisa: o resultado. Pode acontecer ter esse resultado e não
conseguir encontrar o tal dever de garante mas digamos, que a distinção para a omissão impura ser relevante tem que
ter um resultado proibido. Eu tenho que ter uma posição de garante relativamente à evitação da produção daquele
mesmo resultado. É a partir da ocorrência do resultado que nos limitamos o tipo de omissão. Estamos no âmbito da
omissão impura, isto porque há um resultado ilícito.

E, neste caso, sendo uma omissão impura, o que é que eu tenho que fazer?

A equiparação: primeiro, tenho que ver se posso equiparar à ação à omissão. E neste caso? Há alguma
impossibilidade factícia ou jurídica? Se alguém foi atropelado e não se diz que morreu, presume-se que sofreu ofensas
à integridade física. Portanto, serão ofensas à integridade física nos termos gerais. Posso equiparar ou não? Eu, para
equiparar, tenho que afirmar um certo tipo de nexo-causal, e como faço essa pergunta? Está na lei - se o agente tinha
tido a possibilidade de ter a ação adequada a evitar a produção do resultado. Aqui, era ou não possível ter existido a tal

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acção adequada a evitar a produção do resultado? Já chegamos à conclusão que podemos estar a falar em abstracto
em ofensas à integridade física por omissão.

O que nos falta para dizermos que está verificado a existência da tipicidade? A existência de um dever jurídico de
garante. E esta verificado aqui ou não? Qual a fonte? O contrato. Seria aceite em exame mas que tipo de contrato
seria? Eu quando entrego o carro para reparação estou a fazer um contrato com a oficina. Mas e se o nosso amigo não
tivesse pago a oficina, seria contrato? Ou seria o quê? Estaria inserido na comunidades de perigo, porque há um
domínio sobre a fonte de perigo.

Nesse caso, o que acontece a A? Vou puní-lo por ofensas à integridade física por omissão.

Mas será doloso ou negligente? O que é que ele tinha que ter representado e querido para afirmarmos o dolo
relativamente à ofensa à integridade física do peão? Tinha que estar a representar o seu dever de garante mais
estar a preencher os elementos típicos do tipo de ofensa à integridade física, uma intencionalidade de magoar
outra pessoa, relativamente à qual ele tinha um dever de garante. No máximo em termos de dolo, o eventual mas
parece aproximar-se da negligencia consciente, ele pode representar como possível mas acredita que não se realiza,
não se conforma.

❗ Caso Prático 14:

A, guia de montanha, comanda uma expedição de alpinismo. No decurso da mesma, um dos elementos do grupo fica
em grave situação de perigo, carecendo de ajuda. Tratando-se de alguém que ainda não tinha pago o preço acordado
com A, este não o socorreu com base em tal facto.

Na sequência do exposto, o alpinista em perigo veio a sofrer uma queda de que resultou a fractura das pernas.

Quid iuris?

Resolução:

Omissão pura ou impura? Impura.

Qual é o tipo? Ofensa à integridade física.

Pode-se equiparar a ação à omissão? Sim, nos termos do caso prático anterior.

Há dever jurídico de garante? Há, aqui, uma comunidade de perigo e há, até, quem defenda o contrato.

No sentido de esmiuçar o contrato como fonte de dever de garante nos pudemos encontrar, se quiserem, quase
duas posições: uma primeira, mas mais formalista - o contrato só funciona se for válido. E outra que diz que
pode-se considerar o contrato como fonte ainda que não seja válido, desde que exista, pro exemplo, uma

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cláusula que está mal redigida ou um problema de nulidade mas, apesar de tudo, essa deve ser considerada a
fonte, quanto à validade.

Há quem diga que mesmo que o contrato não seja válido - como naquelas situações em que falta acrescentar
qualquer coisa ou em que há uma cláusula em que o contrato precisa de ser reduzido a escrito, por exemplo - que,
mesmo assim, a fonte do dever de garante poderá ser o contrato.

O que não significa que se deva confundir a lógica de validade do contrato com o cumprimento do contrato.
Porque, se pensarmos por exemplo no contexto da babysitter, o contrato era válido e já tinha sido cumprido. Já estava
cumprido, não restava contrato. Portanto, nós podíamos, se quiserem, tentar esticar a lógica do contrato mas aqui
parece que vai ser difícil - uma coisa é haver uma cláusula que pode suscitar um problema e, ainda assim, servir por
base entre as pessoas. O que resta aqui é a tal relação de confiança, derivada dos deveres de proteção, na designação
de FIGUEIREDO DIAS que leva à função de solução de guarda, por exemplo. Portanto, isto do contrato pode - para
perceberem como a história das fontes do dever de garante se complica - ter duas leituras diferentes. Nota: ninguém
vai pôr no exame uma questão de direito civil, para debaterem a questão da validade do contrato. Mesmo no
patamar da fonte contratual, pode se fazer uma distinção entre o cumprimento e a validade do contrato.

E quem diz cumprimento, diz incumprimento, isto a propósito da lógica de comunidade de perigo que se referia
a pouco. Aqui a questão não é a validade do contrato, é o facto de ele estar incumprido, digamos assim. Mas o
que é que esta problemática, que está no nosso caso prático, do nosso guia de montanha, pode levar a considerar?

• Exemplo: Contrato um serviço e não pago. O senhor sente se na obrigação de me prestar o serviço? Não. O que pode
haver aqui? Não pagaste, logo eu não tenho nenhum dever para contigo. É certo que o caso não nos dá muita
margem - permite-nos pensar isso mas não nós dá margem para pudermos concluir ou não - mas se ele deixa de
prestar ajuda justamente porque ele não lhe pagou é porque ele pode estar convencido de que já não tem obrigação
nenhuma em relação a ele. Ainda que nós, do ponto de vista objectivo, afirmemos a existência de um dever jurídico de
garante (e nos afirmamos isso), do ponto de vista subjectivo, nós podemos colocar uma questão de erro. E, portanto,
se afirmarmos que há erro, isso determina necessariamente que o nosso guia não vai ser punido? Temos que aferir a
negligência e mesmo assim pode dar azo à punibilidade do guia de montanha.

Assim, quanto à omissão, primeiro, afirmamos previamente se é uma ação ou omissão mas sabemos que a omissão
pode ser dolosa ou negligente. No dolo é um problema de valorização + dever de garante - nos termos da omissão
impura, para já - e na negligência a omissão de dever de cuidado + dever de garante.

• E onde pode estar uma ligeira dificuldade? Vamos pensar num empreiteiro ou encarregado de obra que não coloca
aviso; nós, por vezes, podemos ter uma coincidência parcial entre aquilo que estamos habituados a terminar como
dever de cuidados e o dever de garante que assistem derivado do domínio fonte de perigo. O encarregado de obra,
por exemplo, tem que ver se está tudo dentro da fundamentação legal, tem de meter os avisos - aquilo que ele tem
que fazer enquanto garante atendendo ao domínio da fonte do perigo, e aquilo que ele tem que fazer enquanto
encarregado da obra em função dos deveres de cuidado que está adstrito a cumprir pelas próprias fontes do dever de
cuidado, que conhecem de outras paragens. Portanto, aqui pudemos afirmar o conhecimento e a vontade - no dolo,
temos que afirmar o conhecimento e a vontade mas na negligência, sabemos que não pudemos afirmar a vontade.
Temos de afirmar a cognoscibilidade do dever de garante mas tem vontade? Não. A cognoscibilidade do dever de

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garante + capacidade para agir com cuidado + capacidade pessoal + conformar-se, ou não. A capacidade é
vista ao nível da imputabilidade? Não, vamos lá ver: "segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz." -
isto não tem nada a ver com imputabilidade.

Aula 10 - 29/05/17 (tentativa)

É sempre um alargamento das margens de punibilidade, e por isso temos de nos perguntar em que casos faz sentido
punir alguém, mesmo que essa pessoa não tenha ofendido um bem jurídico.

O CP diz-nos quais são os elementos da tentativa no art. 22º CP: i) prática de atos de execução; ii) que o agente
decidiu cometer (não se dá relevo a tentativas sem querer, tem dolo, quer); iii) não haver crime consumado.
Trata.se de punir algo que não chegou a ser consumado.

Aqui temos de ter em conta a ideia de fragmentariedade, de primeiro grau em que o legislador diz quais os bens
que quer tutelar e na fragmentariedade de segundo grau, diz com que meios quer tutelar esses bens.

O legislador, na tentativa pergunta em que casos, de forma geral, deve intervir, protegendo alguns bens
jurídicos, mesmo perante a conduta tentada - art. 23º CP. Diz-nos que se há tentativa apenas relativamente a
crimes cuja pena de prisão do crime consumado corresponder pena superior a 3 anos. Mas há casos em que
havendo estipulação em contrário, pode ser punível a tentativa ainda que não tenha pena superior a 3 anos.
Exemplo: art. 134º/1 CP.

Quid iuris se um agente quer ofender a integridade de outrem e para isso quer cortar um braço e traz para tal uma serra
mas em vez de cortar o braço corta uns livros? Ofensa á integridade física grave - art. 144º CP.

Art. 22º CP (análise):

i) a) Tipos legais de crimes cujos elementos constitutivos sejam fechados. Os atos que preencherem um
elemento constitutivo de um tipo legal de crime - p.ex., no homicídio nunca se preenche um elemento
constitutivo porque senão seria crime. Quando temos estas condutas típicas que para o seu
preenchimento é necessário a consumação do crime não podemos considerar que preencheram
estes elementos constitutivos, porque senão seria crime consumado e não tentado - esta alínea é
para os crimes de execução vinculada. Por isso precisamos de um segundo critério.

ii) b) Os atos que forem idóneos a produzir o resultado típico - destina-se a crimes de execução livre -
são atos que são idóneos ao preenchimento do tal elemento constitutivo- exemplo da serra acima
citado.

iii) c) “Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza
a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.” - há aqui

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uma antecipação relativamente àquilo que são os atos e execução da alínea a) e b), mas não é tanto
para trás que entre no universo de atos preparatórios (em regra geral).

• Exemplo: x arranja uma amante e fica perdido de amores mas é casado com uma senhora rica. A
amante engravida e o senhor, sabendo que seria o fim da sua riqueza, decide matar a amante através
de um tiro disparado com silenciador. Para tal, (1) ele toma a decisão, (2) depois tendo decidido matá-la
com uma arma (3) compra o revolver, o silenciador e balas, (4) no dia em que tinha decidido matá-la,
apanha o elevador para sair de sua casa saindo pela porta de serviço apanha um táxi até casa da
amante. (5) Chegando ao prédio da amante apanha um elevador, (6) carrega no botão para ir para o
andar onde ela vive, (7) depois bate á porta. (8) Ela abre a porta e ele entra. Mas depois não acontece
nada. O ato 1, é n.cogitacio; o 2,3,4,5 são atos preparatórios por não meterem, segundo a experiencia
comum, a vida de ninguém em risco. O 6 ainda é preparatório. O 7, quando bate á porta é ainda
preparatório, mas e o 8? Quando abre a porta e entra armado? Já será ato de execução por já estar em
confronto direto com a pessoa. Em regra o entrar em casa não é idóneo e por isso não se encaixa na
alínea b) do art. 22º CP mas enquadra-se na alínea c) porque este ato faz pressupor de algo se vai
passar depois- é ato de execução. Os atos de execução, no nosso caso serão os idóneos a produzir o
resultado: ato 8. Se apontar ou disparar já estaremos no âmbito da aliena b) por ser um ato idóneo a
produzir o resultado típico.

N.Cogitacio —> atos preparatórios —> atos de execução —> consumação —> exaurimento
Alínea a) e b) do art. 22º/2 CP

A alínea c) está aqui mas antes ligeiramente. Não é tão antes que chegue a ser ato preparatório (irrelevantes em regra)

• Art. 21º CP - Se o agente for apanhado antes de ele díspar, já é punido por tentativa. O que justifica a tentativa
no âmbito da alínea c) do art. 22º CP é o facto de já haver conexão do risco, se não fosse por esta alínea ele aqui
neste caso não iria ser punido.

2 - O caso da tentativa impossível

A intencionalidade acaba por ser tudo neste âmbito, se a tentativa é impossível, é porque não existe o objeto ou o meio
é inidóneo á consumação do crime.

• Exemplo: alguém nos ameaça matar com uma bisnaga de creme.

• Mas e se a pessoa estiver morta e outra querer matá-la de novo? Alberto, inimigo de Don Corleone, dirige-se ao seu
escritório para o matar, sem saber que Luigi se tinha antecipado e tinha já disparado uma data de tiros ao chefe da

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máfia. Ora, Alberto, sem saber do sucedido entra de rompante no escritório, e pensa que o Chefe está a dormir, e
dispara sobre o corpo já sem vida. Aqui não existe um objeto, existe apenas o cadáver. Então, a questão que se
coloca é: O Direito Penal deve punir Alberto? O nosso legislador, ao arrepio de outros países, entendeu que
havendo a indução ou aparência de perigo para o bem jurídico, perigo que não sendo possível a tentativa,
nunca existe efetivamente, se conseguimos afirmar esta existência de aparência de perigo, estas tentativas
devem ser punidas. No nosso caso, ainda conseguimos retirar uma aparência de perigo para o bem jurídico, pois o
corpo não estava em esqueleto, havia ainda uma aparência do bem jurídico. Esta aparência não existe se a pessoa já
estiver em decomposição.

• O mesmo acontece se em vez da bisnaga se usa-se uma pistola de plástico que parecia real.

O legislador acaba por hiperbolizar esta intenção, pune-se pela intencionalidade porque não há nunca perigo
efetivo nestas situações relativamente ao bem jurídico.

Esta ideia de existir uma representatividade de perigo para o bem jurídico é que leva o nosso legislador a estabelecer
um limite. Limites da tentativa impossível: art. 23º/3 CP, a tentativa é punível quando não for manifesta a
inaptidão do meio empregado ou a inexistência do meio (leitura a contrario “3 - A tentativa não é punível quando for
manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime.”).

A regra não é a da não punibilidade da tentativa impossível mas sim a da punibilidade, só não se pune quando
consiga ter esta ideia de ser manifesta a inaptidão do meio utilizado ou a inexistência do objeto, caso contrário
pune-se.

3 - Desistência da tentativa (art. 24º CP)

Temos, para compreender esta desistência, fazer uma distinção: tentativa acabada e tentativa inacabada.

1. Tentativa acabada - quando pratica os atos de execução e mesmo assim não consuma o crime.

2. Tentativa inacabada - não criou ainda todas as condições indispensáveis à consumação do crime.

• Retomando o exemplo da amante, a tentativa só é acabada quando realiza todos os atos de execução e mesmo
assim não consuma o crime, é o caso de o tiro sair ao lado, ou o caso de acertar num braço. É inacabada quando
entra armado para matar mas olha para ela e pensa que poderá matá-la para a semana.

O legislador quer evitar a colocação em perigo de bens jurídicos, a lógica do ilícito objetivo, de FARIA COSTA.

A questão que o legislador coloca é se o agente desiste deverá ser punido também? Não, mas mediante duas
condições:

1. Desistência voluntária (parar por si de realizar atos de execução), sendo que os motivos desta desistência
não são relevantes. Se for uma tentativa inacabada o que agente tem de fazer é parar. E se o agente o faz, não

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ofendendo o bem jurídico (porque obviamente não quer), independentemente de em termos da moral serem
reprováveis, o direito penal não vai intervir. O que interessa ao legislador é saber se o agente colocou em perigo ou
ofendeu o bem jurídico. Se não o fez, não vai intervir.

2. Numa tentativa acabada será mais difícil, aqui é necessário não o mero abandono da persecução dos atos
de execução, o legislador exige que se impeça a consumação - o agente tem de salvar a senhora. Impedir a
verificação do resultado não compreendido no tipo legal de crime, não obstante a consumação. Tem de
ativamente impedir a consumação do crime, uma figura a que se chama de arrependimento ativo. Esta figura
não tem nada que ver com o arrependimento emocional do estilo “Meu Deus, o que é que fui fazer?”. É uma figura
dogmática que exige, no fundo, que a colocação em perigo do bem jurídico seja equilibrada com uma prática ativa
que demonstre uma ausência de vontade de proceder à ofensa do mesmo.

Aula 11 - 29/05/17 - (comparticipação)

Existem duas perguntas base:

1) O que é o autor?
2) Qual é o participante?

O que temos de saber é se são coisas autónomas, se se são coisas que fazem parte de uma mesma grande ideia ou se
não se deve fazer grande distinção. Do ponto de vista prático o problema é relevante, porque sendo os critérios
diferentes vamos ser conduzidos a soluções diferentes.

O nosso legislador dá-nos uma espécie de resposta, ao prever em termos separados os arts. 26º e 27º CP, ou seja, que
são duas coisas diferentes. E portanto, aquilo que nós não podemos continuar a defender é um conceito unitário
de autor, independentemente do contributo causal.

Outra resposta vem dada por FIGUEIREDO DIAS, o qual diz que são coisas autónomas e a cumplicidade é o alargamento
das margens de punibilidade relativamente ao facto praticado pelo autor A doutrina maioritária defende o critério do
domínio do facto - se dominar o facto é autor, se não dominar o facto, será coisa diversa, será cúmplice.
Segundo FARIA COSTA, não conseguimos dominar o facto, quanto muito conseguimos dominar a nossa vontade.

O legislador separou as coisas, mas isso não significa que tenha querido autonomiza-las. FARIA COSTA entende
que é possível continuar a defender aquilo que era o conceito extensivo de autor - é autor quem contribui
causalmente para a produção do facto. Sabemos que é autor e não cúmplice porque pegamos no contributo da
pessoa em causa e ver se este foi essencial, se for, é autor, se não for, é cúmplice, é um auxílio. Mas temos de saber,
ainda assim, distinguir as figuras do art. 26º CP.

• Conceito extensivo de autor segundo FARIA COSTA - é autor quem der causa ao facto. Mas como o CP procede a
uma distinção efetiva, FARIA COSTA diz-nos que temos de encontrar um critério que permita distinguir um caso de
outro. Então, mobiliza um conceito de contribuição causal em que se afirma como autor aquele que der uma

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contribuição essencial para o facto. Isto assenta num contribuição causal essencial para se ser autor e como
tal, se foi essencial esta contribuição = autor, se não for = cúmplice. O que não põe em causa a natureza
acessória da cumplicidade, portanto se é cúmplice aquele que não der um contributo essencial ao facto, quer
dizer que este é acessório à produção do facto - art. 27º CP.

• Exemplo: Vamos imaginar que a Dra. INÊS GODINHO quer praticar uma burla informática na faculdade. Mas para o
fazer precisa de um código de acesso. Para FARIA COSTA é diferente pedir ajuda a alguém conhecedor do código( A,
B, C, D...) para praticar o facto, não é essencial. Mas vamos imaginar que só há uma pessoa que tem a respetiva
chave. E a Dra. INÊS GODINHO pede-lhe ajuda. Se for a única pessoa que tem a chave, se ela não fornecer a chave, a
Doutora consegue praticar o facto? Não, não consegue! O contributo que a única pessoa que conhece a chave é
essencial. Apesar de a conduta ser exatamente a mesma (que é fornecer a chave informática), a ideia de
essencialidade permite distinguir entre autor e cúmplice.

Sendo autor, a autoria tem no art. 26º CP 4 formas:

i) “Quem executar o facto por si” - autoria imediata, quem dá causa ao facto, executa-o.

ii) “Quem executar o facto por instruendo de outro, por intermedio de outrem” - não é a pessoa que
executa o facto, é autor mediato que recorre a um autor imediato para executar o facto. O autor imediato é
instrumento do autor mediato. Então, mas porque é que podemos dizer que é autor? Porque acaba por
utilizar quem pratica o facto como instrumento. O facto não teria sido praticado sem a
determinação do autor mediato, que causa não o facto direto mas sim a sua realização - autoria
mediata.

iii) “Quem executar o facto tomando parte direta na sua execução por acordo ou juntamento com
outro ou contros” - coautoria. A coautoria não é a autoria paralela. Neste âmbito há dois aspectos que
temos de ter em conta:

1) É muito importante distinguir a co-autoria da autoria paralela. Na autoria paralela não há um “acordo”
para realizar o facto.

2) Na co-autoria há uma ideia de decisão conjunta e execução conjunta: os co-autores causaram o


facto, independentemente do contributo individual de cada um. Nesta ideia de decisão conjunta,
como é evidente, exige-se apenas uma consciência de colaboração. Não tem de haver um acordo
formal! Na execução conjunta, tem de haver uma contribuição objectiva dos co-autores para a
produção do facto.

• Se duas pessoas que não se conhecem quiserem matar A, um deles dá-lhe um tiro mas A não morre. O
outro aperta-lhe o pescoço e ela morre - isto é autoria paralela e como tal o facto só pode ser imputado
ao segundo que matou A, e o outro por tentativa, não se conhecem, nem há acordo. Se houver acordo
ou se se conhecerem e juntarem num mesmo facto, é coautoria e apesar de só um a ter efetivamente
matado, respondem ambos pelo facto consumado. Os coautores respondem pela totalidade do facto.

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Cabe no entanto dizer que o acordo não tem de ser expresso nem prévio, pode haver uma
adesão, há que haver uma decisão execução conjunta.

• Exemplo: a professora abre o caminho na sala por se aperceber o que se está a passar e deixa duas
alunas matarem outra. Aqui há coautoria. Se pudesse ser outra pessoa a abrir a porta ou algo do género
seria cumplicidade porque não era um contributo essencial, poderia ser feito por qualquer pessoa.

iv) - Instigação

Está consagrada na última parte do art. 26º CP - quem dolosamente determinar outra pessoa à pratica do facto,
desde que haja execução ou começo de execução. A ideia que surge é que o ponto de vista o instigador-autor
tem domínio sobre a vontade do autor imediato.

Na construção de FARIA COSTA temos de conseguir dizer que o instigador causou o facto. A questão será que
aqui, o autor imediato, não é um mero instrumento, se é determinado, é determinado á prática de um dado facto.

• Distinção entre instigação-autoria e cumplicidade - verdadeiramente a duvida que se coloca é que se plantamos a
semente na vontade da pessoa ou se essa vontade já existia mas faltava um incentivo? Se apenas demos um
incentivo mas a vontade de prática do crime já existia, não há contributo essencial e por isso é cumplicidade.
Se se plantou a semente, aqui o ator imediato também acompanha porque se não fosse a instigação nunca
teria a vontade, mas através da instigação acaba por criar uma vontade própria. A pessoa que mata será
punida por autor imediato e o instigador como autor instigador. Isto só releva de houver a prática de execução
ou já tiver havido início a esta por parte do autor imediato - se houver apenas atos de execução, o autor irá ser
punido por tentativa e o instigador por autor na tentativa.

• Exemplo: Vamos imaginar que uma pessoa, A, quer ver um amigo morto, B, mas não tem coragem de o matar. Então
encontra um terceiro amigo, C, e diz-lhe “Podias ter uma vida completamente diferente, e para isso só precisavas de
alguma ajuda financeira. Mas se quiseres eu dou-te, mas com uma condição: Tu resolves-me um problema ao matar o
meu amigo B”. C Fica a pensar muito nisso e acaba por tomar a decisão de matar. Todavia, A tinha a acordado com B
para que este matasse C. Mas depois, devido às personalidades algo tímidas, nenhum deles acaba por praticar nem
tentar praticar o facto. O que há aqui? Há algum ato? Não, logo não há punibilidade!

Há ainda um principio fundamental em matéria de cumplicidade é que só se pune o cúmplice se o facto for
típico e ilícito, segundo o art. 29º CP - princípio da acessoriedade limitada. Não tem de ser culposo porque o art.
29º CP diz que “cada um é punido pela sua culpa”. Se houver relativamente ao autor alguma excludente da culpa não
invalida que o cúmplice possa ser punido.

Por último, temos de referir que não há cumplicidade negligente, porque como vimos o cúmplice presta auxilio
“dolosamente” (atenção: doloso não é culposo).

Além disso, olhando para o art. 26º CP temos de perceber que estamos perante a mesma situação de exigência
de dolo quanto à instigação e, mesmo relativamente à co-autoria será muito difícil afirmar a negligência.

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