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Transcrição do prefácio do livro O Fim da Divindade Mecânica - Conversas Sobre

Ciência e Espiritualidade ao Final de Uma Era - (1999), de John David Ebert ,


Respectivamente páginas 9 à 11 e 31. (Brasília 2002 – Editora Teosófica )

“Esse caos e a atmosfera apocalíptica que o acompanha não se diminuem com a aproximação
de outros arquétipos, os quais podem, na verdade , ter surgido com o colapso do velho cânone
cultural. Da mesma forma que na Antiguidade e na Idade Média, as pessoas, hoje em dia,
amedrontam-se quando estrelas caem, quando cometas movem-se pelo céu, e quando
mudanças aterrorizantes no firmamento e outros sinais anunciam o fim de uma época, o que,
para geração que vive esse momento, parece ser o fim de todo o mundo.”
“Pois assim como, arquetipicamente, cada Ano Novo... é um tempo perigoso de julgamento e
condenação, assim também cada início de uma época cultural está atrelado às características
do final de uma era. Só raramente, quando as nuvens se abrem no céu escuro do cânone que
se desintegra, alguns poucos indivíduos identificam uma constelação nova, que já pertença ao
novo cânone de valores transpessoais e antecipa a sua configuração.”
Erich Neumann (1974, p.110), sobre períodos de transição. p.31.

Prefácio
O Fim da Divindade Mecânica, de John David Ebert¹, é uma elegia, uma oração
fúnebre para um sonho que morreu. No princípio, foi um sonho com um universo
perfeitamente ordenado, em que cada parte harmoniosamente se encaixa à parte vizinha,
como dentes das delicadas engrenagens de um relógio suíço. Foi um sonho que uniu a
terra e os céus dentro das três leis da mecânica de Newton, e permitiu aos cientistas
prever tudo, desde o regresso de um cometa cem anos depois, no futuro, até a hora exata
da maré alta no mês que vem. Foi também um sonho cujo domínio rapidamente
expandiu-se para além dos limites das ciências físicas e abrigou tudo, desde o estudo da
história até a psicologia humana. E assim o sonho tornou-se pesadelo, porque não havia

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lugar para a consciência e os valores humanos dentro de um cosmo tão previsível. Na
verdade, a própria vida reduziu-se a nada mais que um acidente químico em um planeta
orbitando uma estrela não descrita em um universo indiferente.
Foi um pesadelo cheio de arrogância. A habilidade de prever eclipses e o trajeto
das balas de canhão logo geraram a ilusão de que tudo poderia ser predito. E o que pode
ser predito, mediante análise pormenorizada de causa e efeito, pode, portanto, ser
controlado. Um século depois dos Principia, de Newton, filósofo Jeremy Bentham
propunha engendrar a sociedade humana de acordo com princípios rígidos da ciência, a
fim de produzir um mundo utilitário que desse “a maior felicidade ao maior número de
possível de pessoas”. Assim sendo, até o prazer e a dor deveriam sujeitar-se a medidas
científicas em um mundo previsível de progresso sem fim.
Esse sonho-pesadelo deveria ter sido posto de lado pelas grandes revoluções
científicas do início do século 20, as quais culminaram na explosão atual de interesse na
Teoria do Caos. Hoje não somos mais observadores passivos de um cosmo criado por
Deus Mecânico, mas sim membros ativos de um universo participativo. Nossas
habilidades de predizer e controlar o mundo são rigorosamente limitadas. E nós
sabemos que somente os sistemas abertos e que respondem a seu ambiente
sobreviverão, no final das contas.
As implicações dessa revolução para a nossa percepção do mundo e de nós mesmos
já se disseminaram nas artes. O universo mecânico não tinha como ser encontrado em
Virginia Woolf ou James Joyce. De fato, sugestões quanto a isso já apareciam nos
quadros de Cézanne, nos quais o artista era claramente um participante ativo na cena
diante de si. Do mesmo modo, cabe-nos compreender que um mundo baseado em uma
cultura única, monolítica, é um local insalubre para se viver e que, portanto, temos a
tendência de apreciar a pluralidade de ópticas e leituras.
Ainda assim, em outras áreas da vida, o universo mecânico prossegue seu curso. O
tic-tac de relógio ainda se houve em nossas escolas, hospitais, câmaras legislativas e no
poder executivo.Alguns psicólogos de linha cognitiva crêem que a consciência e o
comportamento humanos podem ser reduzidos, como um programa de computador, a
uma série de algoritimos². As razões por detrás do genoma humano e o desejo de
manipular plantas e animais estão unidos sob égide nefasta da engenharia genética. Os
políticos estão sempre prontos a recorrer à força militar para resolver disputas
internacionais ou dominar a população. Organizações e mercados estão aprendendo
muito lentamente com os sistemas vivos da natureza que a auto-organização é mais bem
sucedida que a hierarquia rígida. Da mesma forma, apesar dos enormes sucessos, a
medicina moderna, em virtude de sua mecanização, tende a retirar o elemento humano
do paciente, transformando-o em uma máquina defeituosa que requer conserto por parte
de especialistas.
Todos desejamos uma vida melhor para a próxima geração. Apesar disso, será que
sempre levamos em conta o impacto de nossas ações sobre o meio ambiente e o simples
fato de que na é possível um progresso ilimitado em um planeta finito? A Divindade
Mecânica deveria ter sido posta de lado – entretanto, ainda mantemos a fé no poder
absoluto de nosso conhecimento científico e acreditamos que , no final, mais tecnologia
irá resolver os problemas que nos circundam. Ao mesmo tempo, o interior das cidades e
dos lagos deterioram-se. A violência campeia. Populações morrem de fome. As doenças
assumem proporções epidêmicas. E a possibilidade de desemprego e de uma vida sem
qualidade e sem recompensas desumaniza a juventude, enquanto os governos parecem
mais interessados em desviar fundos para fazer guerra às drogas.
Eis porque O Fim da Divindade Mecânica, de Ebert, é tão importante. A obra
argumenta poderosamente em favor de uma nova visão da natureza e de nós mesmos,

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que emerge neste século. Para as entrevistas que constam no livro Ebert escolheu as
figura de proa do novo paradigma. E se há momentos em que os especialistas nem
sempre concordam com o rumo que estamos seguindo, isso torna o livro ainda mais
excitante. Mostra que o pensamento novo não é monoliticamente hierárquico. Em vez
disso, é uma tentativa humana, humanística, de celebrar nosso universo vivo e
compreender nossa posição dentro dele. A leitura de O Fim da Divindade Mecânica dá-
nos uma visão do espírito novo da era em que vivemos e de nossa responsabilidade para
com ele. Ebert fez um excelente trabalho, e seus interlocutores manifestaram suas
opiniões. A respeito disso, neste mudo novo, somos todos responsáveis, todos
participantes. Assim o resto depende de nós.

F. David Peat

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¹ John David Ebert foi editor de textos da Fundação Joseph Campbell durante seis anos.
Ele tem escrito e dado palestras sobre a importância da mitologia na Sociedade
Contemporânea.
²Algoritimo – Em matemática, conjunto de regras e operações, bem definidas, usadas
para a solução de um problema. (N. Ed. Brás. )

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