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Resenha Crítica

FORTENBAUGH, W.W. Aristotle on Emotion. Duckworth: Londres, 2002 (1975).


ISBN 9780715631676, 142 p., 2ª ed.

Em 1975, o Professor Fortenbaugh relativo a si mesmo ou relativo àqueles


publicou pela primeira vez sua seminal próximos a si, quando o desprezo não
obra sobre as emoções em Aristóteles. é merecido1” (tradução nossa). Essa
Conforme ele mesmo alega (p.93), definição asseguraria o primeiro ponto
nenhuma obra antes da sua própria acima, pois fornece uma explicação
tentava conectar as pesquisas platô- causal para a o evento psicofísico da
nicas às aristotélicas no que toca às raiva: ela seria causada pelo que se julga
emoções. Trata do que há de inovador, desprezo – o termo grego  exprime
especialmente em relação a Platão, nas com precisão a ideia de causa; por ou-
investigações e nas posições aristotéli- tro lado, ela determinaria uma reação
cas a respeito de uma classe de eventos proporcional a sua causa – o “desejo de
psicofísicos que recebeu pela primeira vingança conspícua”.
vez seu nome próprio –  – ‘emo-
Fortenbaugh menciona as demais
ções’. E traz à tona as relações que ligam
causas para as emoções e reivindica
essas mesmas posições do Estagirita aos
para Aristóteles uma explicação sufi-
debates travados dentro da Academia e
cientemente complexa para as emoções
expostos especialmente na República,
Fedro, Timeu, Sofista, Filebo e Leis. (p. 16); porém, fundamenta sua segunda
O plano de Fortenbaugh, rigorosa- alegação na causa eficiente. No exem-
mente executado, se revela extrema- plo acima, a causa da raiva seria uma
mente promissor. Primeiro porque po- causa eficiente, porque se refere ao
siciona a teoria aristotélica das emoções que produz a raiva, não à matéria da
no interior da doutrina aristotélica das raiva, nem à forma, nem à finalidade
causas (p. 13, 15, 16); segundo porque – se aceitarmos a doutrina das causas
afirma que o Estagirita foi capaz de tal como exposta no quinto livro da
explicar silogisticamente as emoções Metafísica (1013b4 a 29), por exemplo.
(p. 13), uma vez que identifica os termos Essa causa eficiente seria o termo médio
médios de cada emoção. É promissor, do silogismo prático das emoções. Isso
pois assim inscreve com segurança o ocorre, por sua vez, calcado em duas
estudo das emoções no quadro das premissas: a de que a explicação das
ciências demonstrativas (p. 13). Obser- emoções, em termos científicos, segue
vemos a definição de raiva na Retórica o mesmo padrão de explicação de um
e vejamos se a alegação de Fortenbaugh
se confirmaria. Segundo Aristóteles, 1
“        
“seja a raiva, portanto, um desejo, acom-            
panhado de dor, de vingança conspícua                    
por causa de um conspícuo desprezo, ” (1378a31-32)

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322 eclipse; a de que para os eventos natu- emoção é condicionada em alguma
rais, como eclipses e chuvas, explicar medida por um conteúdo mental (p.
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a causa eficiente e investigar a essência 115). A cognição também identifica cada


redunda na mesma questão (Segundos emoção. Isso porque a define por um
Analíticos, 90a 14-15; 31-32; 93a 3-4). evento causador específico, que ocorre
Ora, admitido que o padrão para a ex- a um indivíduo disposto de um modo
plicação das emoções é o do eclipse, específico; por último, esse evento deve
a pergunta pela essência e a pergunta suscitar a reação adequada contra o
pela causa, eficiente, seriam, na ver- objeto adequado. É em virtude desse
dade, somente uma pergunta (p. 13). método que Aristóteles é capaz de di-
Ou seja, ainda que a matéria, a forma ferenciar, por exemplo, raiva de ódio e
e a finalidade de uma emoção sejam indignação () de inveja. Para
relevantes, é principalmente a causa cada cognição, dados os objetos e as
eficiente, uma espécie de cognição, condições adequados, há uma emoção.
que permite identificar e definir cada E somente uma.
emoção2. O termo ‘cognição’ aqui tem Delimitando melhor cada emoção
o papel de cobrir uma gama de reações e as emoções em geral, veem-se os
(opinião, juízo) de cada indivíduo face pontos onde tocam a racionalidade hu-
a toda a classe variada de estímulos ex- mana. Ora, se de fato uma cognição é
teriores relevantes (aparições, imagens) uma opinião ou juízo, em alguns casos,
capazes de despertar uma emoção. ou a maneira como interpretamos uma
A cognição, nesse sentido amplo, é imagem, em outros, então se torna mais
o que permite distinguir as emoções de simples explicar como a parte irracional
da alma pode interagir com e finalmente
outros eventos meramente físicos, como
obedecer à racional – alegação aristoté-
coceiras (p. 25); cada cognição permite
lica da Ética Nicomaquea (1102b30 ss)
identificar uma emoção e diferenciá-la
A maneira como encaramos certo estí-
das demais; permite ainda compreen-
mulo exterior – causa possível de uma
der sua relação com a parte racional
emoção - no remete à parte racional da
da alma. Assim se comprova que a
alma: “[quando os homens sentem raiva,
não são vítimas de uma força totalmente
2
Um eclipse lunar (B) é explicado pela irracional (...) seu comportamento é
causa ‘A’ ‘interposição da Terra entre o Sol
inteligente e cognitivo no sentido de
e a Lua’: se ‘A’, então ‘B’; mas o eclipse é
que está baseado em uma opinião que
definido em sua essência pela interposição da
pode ser criticada e até alterada pela
Terra entre o Sol e a Lua: ‘B’ é a ocorrência
argumentação3” (p. 17, tradução nossa).
de ‘A’. Igualmente, a raiva (D) é explicada
pelo desprezo conspícuo contra si ou contra Aqui, emoção, localizada na parte
os seus, quando esse não é apropriado (C): irracional da alma, se relaciona com a
se ‘C’, então ‘D’. E do mesmo modo, no ar- razão em sentido muito preciso; a emo-
gumento de Fortenbaugh, ‘D’ é definido em
sua essência pela ocorrência de ‘C’, ainda que 3
No original: “[w]hen men are angered, they
possa ter outras causas. O silogismo prático are not victims of some totally irrational force
que o autor tem em mente seria: “Se raiva (...) their behaviour is intelligent and cognitive
ocorre por causa de um conspícuo desprezo in the sense that it is grounded upon a belief
etc.; se alguém despreza conspicuamente which can be criticised and even altered by
outrem etc.; então, a raiva ocorre” (p.14). argumentation”.

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ção é um comportamento inteligente irracional. Aristóteles foi também capaz 323
e cognitivo que tem um fundamento de reformular o conceito de virtude

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discernível. Como, portanto, seu fun- moral, tratando de diferentes padrões
damento é identificável, o indivíduo de interação social, incluindo emoções
pode ser persuadido de que o evento sem ação harmonizadora pré-definida;
causador não é o caso, ou que o evento tratando de alguns padrões não-emo-
deva ser encarado de outra maneira. cionais como a urbanidade ()
Mas a lição é simples: emocionar-se é e a honestidade (p. 63 ss). Apresentou
razoável, dados a causa, as condições ainda uma justificativa teórica para a
e o objeto corretos. hierarquia entre homens e mulheres,
O estudo das emoções imporá à Re- cidadãos e escravos, adultos e jovens: o
tórica, por assim dizer, uma disciplina princípio racional, no caso dos homens
metodológica mais afim às expectativas adultos e livres, é perfeito e dominante,
platônicas (p. 16), tal como apontadas justamente porque as emoções das parte
no Fedro (259e 4-6). Traria ainda con- irracional foram bem acostumadas e
sequências para a poética: demonstra depois porque se aprendeu a refletir
que as emoções despertadas pela tra- apropriadamente (p.49).
gédia e comédia são determinadas por Após demonstrar brevemente quais
cognições em alguma medida racional; são as inovações de Aristóteles em re-
justifica a existência da tragédia e da lação a Platão, seria preciso mostrar em
comédia como uma forma de terapia, que e como aquele é tributário desse
livrando-as da acusação de despertar e da Academia. Primeiramente chama
somente a parte inferior da alma. E
a atenção para famosa passagem do
fornece uma explicação teórica para
Filebo (37e10), em que Sócrates asso-
compreender e classificar as tragédias
cia a uma opinião falsa a um prazer.
e as comédias, baseada em argumentos
Ali, Platão relaciona os dois elementos
estritamente poéticos, ou seja, sem se
utilizando a preposição  (“com”,
referir diretamente a outros campos do
“acompanhado por”). Aristóteles, pro-
conhecimento. Uma tragédia seria boa
vavelmente influenciado pelos debates
ou ruim, conforme sua maior ou me-
ocorridos na Academia sobre esse
nor capacidade de suscitar de maneira
ponto, reconstrói a relação em termos
plausível os sentimentos de medo e de
de causa e efeito4. Substitui  por
piedade, no caso da tragédia, e o sen-
 com o fito de esclarecer a natureza
timento do risível, no caso da comédia
dessa relação (p. 10-12): a cognição (a
(p. 18-22).
opinião) é a causa, a emoção (e o prazer
Para a Política e a Ética aristotélicas,
ou dor ligado a ela) o efeito.
Fortenbaugh traça as linhas principais
da bipartição da alma tal como defendi- É igualmente interessante a aproxi-
da por Aristóteles na Ética Nicomaquea mação entre a teoria bipartite da alma,
(1102a 25 ss). Agora estamos diante de presente na Ética, e as diferentes teorias
uma teoria moral da alma humana, que da alma platônicas. Fortenbaugh esta-
possui uma correlação com uma teoria belece uma fronteira entre a teoria ética
biológica da alma humana, todavia da alma e uma teoria biológica da alma.
dessa se distanciando. Do ponto de Para a primeira, alega como antecedente
vista da motivação para a ação, a alma
seria constituída pela parte racional e 4
Tópicos (156a32-33)

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324 mais relevante a teoria bipartite latente a retórica aristotélica, desde sua aber-
nas Leis (p. 26); para a teoria biológica tura, se associa à dialética (1354a1),
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da alma, seus antecedentes seriam a por um lado, ao passo que os Tópicos


República e o Timeu (p. 38-44). fornecem dados, nos livro sexto e
Por último, menção deve ser feita à sétimo, para a construção de definições
vantagem enorme que a edição de 2002 precisas, por outro lado.
possui em relação àquela de 1975: ela Em suma, nos pareceria difícil sus-
inclui um “Epílogo” que dá conta das tentar ao mesmo tempo e em relação
novas linhas de pesquisa desenvolvida ao mesmo objeto, as emoções, que (1)
desde a primeira edição do próprio todas as emoções são semelhantes no
livro, de certa maneira despertadas ou serem causadas por um pensamento
provocadas pelo escrito do próprio (“thought”), como afirma à p. 115; que
Fortenbaugh. (2) Aristóteles está utilizando um voca-
Apontamos algumas reflexões que bulário do dia-a-dia sem referência à
podem nos ajudar a manter vivo o teoria biológica da alma (p. 100), a qual
ímpeto da obra de Fortenbaugh. Pri- justamente é caracterizada por demarcar
meiramente, deveríamos nos perguntar o campo de pertinência das faculdades
sobre quais seriam os motivos que leva- da imaginação e do pensamento; e que
ram Fortenbaugh a aceitar a doutrina da (3) ele haveria formulado uma expli-
demonstração dos Segundos Analíticos cação (“account”) demonstrativa das
no caso das emoções. Esta obra do emoções (p. 13). O tema é espinhoso
Organon tem a vantagem de relacionar e o professor tem o mérito indisputado
a ferramenta já conhecida da definição de haver (re)organizado toda a área de
com a recém-inaugurada ferramenta da reflexão filosófica sobre as emoções
demonstração. com referência a Aristóteles. É obra de
Contudo, haveria alternativas. Pode- elevado valor, que mereceria segura-
ríamos estudar o Tratado das Emoções mente uma tradução para o português.
à luz da doutrina da definição tal como
descrita nos Tópicos. Evitaríamos a Danilo Costa Leite
posição comprometedora de enxergar Univ.de São Paulo.
no estudo das emoções uma ciência E-mail: grilocosta@hotmail.com
demonstrativa, alegação que parece
polêmica, dado o uso pouco rigoroso
que Aristóteles faz de alguns conceitos,
por exemplo de (imaginação).
O próprio Fortenbaugh reconhece
isso5 (p. 100). A vantagem de ligar o
Tratado das Emoções aos Tópicos é que

5
“[T]hroughout the account of emotions,
Aristotle is using everyday language without
special reference to his biological psychology.”
(“Em toda a sua investigação das emoções,
Aristóteles estão utilizando a linguagem do
dia-a-dia se referência especial à sua psico-
logia biológica.” p.100)

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