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O Grupo de Teatro Mambembe e o Circo-Teatro

A “ P e d r a d o R e i n o ” rree c o n q u i s t a o B r a s i l
após um quarto de século

S érgio Sálvia Coelho

H
á mais de vinte anos atrás, em uma apre- delírio estratégico enchem o palco com o mini-
sentação especial para a família de Suassu- malismo barroco do melhor Antunes.
na da adaptação de seu romance A Pedra Depois de anos pontificando sobre tragé-
do Reino por Antunes Filho, um figurante dia grega, na aplicação de um método de ator
errou uma curva durante uma “cavalgada” cuja sobriedade não raro soava impostada,
e fez desabar uma das pedras, feitas de um Antunes volta para casa. Que acorram os fãs
amontoado de cadeiras. O fato do projeto en- fiéis: estão em cena o coro carnavalesco de Ma-
tão não ter sido aprovado foi tema de devaneios cunaíma, a fila de cadeiras de Toda Nudez Será
culpados para ele desde então. Que esse pobre Castigada e o narrador-figurante de Romeu e
ator tenha se tornado hoje o crítico destas li- Julieta. Mas essa volta ao terreno seguro não sig-
nhas é um bom exemplo da ironia do destino, nifica uma capitulação.
e, declarada a parcialidade do seu ponto de vis- Mudou Antunes e mudou o Brasil. Tudo
ta, um convite a que o leitor veja a crítica além o que havia de sentencioso, quase lacrimoso, da
do relato de uma amizade conturbada. primeira versão da “Pedra” caiu por si só, assim
São raros os exemplos em teatro de uma como o triunfalismo heróico se desmascarou nas
montagem que tenha empregado um quarto de sessões das CPIs. Não se trata aqui de propor
século para sua concepção. Mais precioso, por- Quaderna-Suassuna como herói da raça, um
tanto, é o fato de chegar em um resultado tão novo Conselheiro a ser seguido; nem do anti-
límpido, despojado, essencial. Para quem parti- herói auto-indulgente Macunaíma. Palhaço que
cipou dos primeiros esboços, é possível afirmar não perde a majestade, Quaderna refaz seu
que pouco da estrutura original, arquitetada reino pela força da ingenuidade, sua arte armo-
com paixão por, entre outros, Cecília Homem rial chega ao arquétipo pela mão do velho face-
de Mello, foi abandonada. ta do pastoril.
Ainda se trata do depoimento de Quader- E é aí que o jovem ator Lee Thalor se tor-
na, uma espécie de Dom Quixote do terceiro na a pessoa certa na hora certa. Antunes, que
mundo, réu de um processo político do qual se trabalha com atores maleáveis em coros cama-
esquiva com a verve de um cordelista. Em con- leões, necessita igualmente de um protagonista
traste com a trama simples, os momentos de artilheiro. Thalor ocupa com firmeza um cargo

Sérgio Sálvia Coelho é pesquisador e crítico de teatro da Folha de S. Paulo.

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s ala p reta

de responsabilidade, de brilhantes antecessores, Assumindo-se enquanto fraude hilária,


como Cacá Carvalho e Marcos Oliveira. Seu para melhor expor a sua dor, Quaderna vem nos
rosto de profeta mineiro, de meio sorriso que restituir auto-estima depois da dura prova das
camufla a inteligência, sua precisão de movi- CPIs. Contra o charlatanismo das mea-culpas
mentos, nas rotinas tradicionais do palhaço, faz, pela metade, que a imaginação venha ao poder:
junto à vibrante cenografia de Juliana Fernan- a República não é legítima. Entre a Quaresma e
des, um universo no qual a trágica máquina do o Carnaval, o Brasil está presente como há tem-
destino grego dá lugar à hábil mecânica da pos não se via nos palcos do CPT. Bem vindo
geringonça, no Brasil de Mestre Vitalino. de volta, Mestre Antunes.

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