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O método de Gramsci

Joseph Buttigieg (1998)1


Tradução: Luiz Sérgio Henriques

Entre julho e outubro de 1929, Gramsci anotou a seguinte observação em meio ao


heterogêneo material que estava coligindo e recolhendo em seu primeiro caderno escrito no cárcere:
“O ossinho de Cuvier. Observação ligada à nota precedente. O caso L[o]mbroso. A partir de um
pequeno osso de rato às vezes se reconstruía um monstro imaginário”2.
Encontrando esta passagem um tanto críptica, é provável que o leitor dos Cadernos lance
um rápido olhar e prossiga. Embora o trecho se encontre bem no início – vinte e oito páginas no
manuscrito e vinte e duas na versão impressa –, muitas notas que o precedem são compostas por
rápidas observações, listas de nomes, breves digressões ou comentários, a transcrição de um
aforismo de Rivarol e mais material heterogêneo. Por isto, o leitor está plenamente consciente do
fato de que muitos destes fragmentos desconexos representam pouco mais que rápidas anotações,
que poderiam adquirir significado mais adiante no texto depois de serem elaborados ou se tornarem
parte de contextos mais determinados, que tornem explícito de que modo eles entram no plano do
conjunto, na estrutura ou no desenvolvimento do projeto gramsciano. Dado o caráter peculiar dos
Cadernos do cárcere, um leitor, mesmo um leitor atento, não é provável que se sinta obrigado a
explicar cada pequeno fragmento neles contido; afinal de contas, não se está diante de uma
exposição “científica” em que se pressupõe que a cada elemento possa ser atribuído um sentido
preciso. Ao mesmo tempo, no entanto, os leitores chegam a ler os Cadernos, com toda
probabilidade, pelo menos com um conhecimento geral dos grandes temas, dos motivos principais
neles entretecidos; os leitores, por isto, se inclinam a atribuir (ainda que provisoriamente) a cada um
destes fragmentos um lugar dentro de algumas grandes categorias gramscianas, como “hegemonia”,
“cultura”, “teoria dos intelectuais” e assim por diante.
De todo modo, a expressão “ligada à nota precedente”, que Gramsci usa, poderia induzir a
parar um instante, porque a “nota precedente”, neste caso, contém uma referência a alguns dos mais
bizarros escritos de Achille Loria. Na verdade, o nome de Achille Loria provavelmente não diz
muito, ou precisamente não diz nada, à maior parte dos leitores modernos: a não ser talvez que

1 Joseph Buttigieg é professor da Universidade de Notre Dame (EUA) e secretário da International Gramsci Society –
IGS.
2 Antonio Gramsci. Quaderni del carcere. Edição crítica organizada por Valentino Gerratana. Turim: Einaudi, 1975,
p. 22. A edição crítica – seguindo obviamente o texto do manuscrito gramsciano – restabelece o nome “Lumbroso”.
Mas, a meu ver, corrigindo um evidente lapso gramsciano, aqui se deve entender “Lombroso” (Cesare) e não
“Lumbroso” (Alberto).
alguém recorde a violenta diatribe contra ele dirigida por Engels no “Prefácio” e nas
“Considerações suplementares” ao terceiro livro de O capital. Além disto, um leitor que tenha
algum conhecimento da obra de Gramsci sabe provavelmente que um dos últimos Cadernos é
dedicado ao “lorianismo”, que, como o “brescianismo”, é uma categoria criada por Gramsci para
poder agrupar e designar determinados tipos de intelectuais italianos. Assim, apesar de Loria e o
lorianismo não serem mencionados na lista dos “temas principais” com que se abre o Caderno 1,
não seria difícil determinar o nexo entre a nota intitulada Achille Loria e dois destes “temas
principais”, ou seja, “Formação dos grupos intelectuais italianos: desenvolvimento, atitudes” e “Os
filhotes de padre Bresciani”. Assim como “brescianismo” serve para designar um grupo de
intelectuais burgueses literatos, cuja atitude reacionária, confusão ideológica, nostalgia de uma
ordem perdida, populismo os marcam como a última versão do padre jesuíta Bresciani, conhecido
autor de romances históricos e polemista, ortodoxo, repressivo, extremamente conservador,
realmente jesuítico, também o termo “lorianismo” serve para indicar um grupo de intelectuais das
ciências sociais, cujo positivismo, oportunismo e cultura aproximativa estão magnificamente (e
comicamente, se não fosse por sua difusa e nefasta influência) exemplificados na obra e na carreira
do professor de economia Achille Loria. É difícil supor que seja uma simples coincidência o fato de
que a nota Achille Loria se siga imediatamente à primeira de uma série de notas sobre os “filhotes
de Padre Bresciani” disseminadas em todos os Cadernos.
A parte central da nota é ocupada por uma relação e uma breve descrição de algumas obras
que testemunham a predileção de Loria pelas teorias excêntricas. Seguem-se algumas considerações
relativas aos comentários de Benedetto Croce sobre Loria. A nota conclui com a observação de que
Loria não deve ser considerado um fenômeno único e que a análise de suas idiossincrasias pode ser
proveitosamente estendida a muitos outros intelectuais: “Loria não é um caso teratológico
individual: é o exemplar mais completo e consumado de uma série de representantes de um certo
estrato intelectual de um certo período; em geral, dos intelectuais positivistas que se ocupam da
questão operária e que acreditam mais ou menos aprofundar, ou corrigir, ou superar o marxismo [...]
Em geral, pois, o Lorismo é uma característica de certa produção literária e científica de nosso país
(muitos de seus documentos se encontram na Critica de Croce, na Voce de Prezzolini, na Unità de
Salvemini), ligada à escassa organização da cultura e, portanto, à falta de controle e de crítica”3.
A breve nota sobre O ossinho de Cuvier integra aquela mais ampla sobre Achille Loria em
dois sentidos: propõe o acréscimo de Cesare Lombroso à lista dos intelectuais a serem tratados na
rubrica “Lorianismo” e sugere que os métodos científicos dos “lorianos” assemelham-se àqueles de
alguns paleontólogos que, fazendo um uso errado da evidência empírica, chegam a conclusões
extravagantes. Tal sugestão pode ser considerada perfeitamente em sintonia com a aversão bem

3 Ib.
conhecida de Gramsci por qualquer elemento ainda que só remotamente marcado como positivista.
Mas, se nos detivéssemos a considerar a nota sobre O ossinho de Cuvier e as próximas desta, aí
encontraríamos alguma coisa além de um simples ataque ao positivismo e a seus adeptos.
Também se pode notar, nesta etapa inicial da reflexão dos Cadernos, que as distinções foram
traçadas entre diversos tipos de intelectuais italianos. Os “filhotes de Padre Bresciani” são
jornalistas, romancistas, ensaístas, críticos; em resumo, literatos de vários gêneros. Os lorianos
estão empenhados, geralmente, nas ciências sociais. Além disto, eles diferem por uma outra razão
muito mais relevante. Os “filhotes de Padre Bresciani” são reacionários, quer se comportem como
defensores da cultura, quer se apresentem como expoentes de um populismo nacionalista e
nostálgico. Os lorianos, ao contrário, se consideram progressistas; muitos deles (inclusive o
fundador do socialismo italiano, Filippo Turati) abraçam ativamente a causa socialista e, muitas
vezes, pensam continuar ou melhorar a tradição marxista. No fim, naturalmente, muitos destes
personagens, ligados tanto ao brescianismo quanto ao lorianismo, contribuirão para a formação da
atmosfera intelectual, ou melhor, cultural, que prepararia o terreno e contribuiria para sustentar o
fascismo. Apesar disto, resta um aspecto particular do lorianismo que requer uma análise específica;
uma análise que revelaria como e com qual amplitude, e com quais conseqüências, o positivismo e
o cientificismo chegaram a contaminar o pensamento de esquerda em geral e o marxismo em
particular. A nota que se segue imediatamente àquela sobre O ossinho de Cuvier confirma tal
necessidade: “Seqüelas do baixo romantismo? A tendência da sociologia de esquerda na Itália para
ocupar-se da criminalidade. Ligada ao fato de que a tal corrente haviam aderido Lombroso e outros,
que pareciam então a suprema expressão da ciência? Ou uma seqüela do baixo romantismo de 48
(Sue, etc.)? Ou ligada ao fato de que na Itália impressionava a estes homens a grande quantidade de
crimes de sangue, e eles acreditavam não poder ir adiante sem haver explicado ‘cientificamente’
este fenômeno?”4.
É evidente que as notas sobre brescianismo e lorianismo cabem todas no tema geral da
“Formação dos grupos intelectuais italianos: desenvolvimento, atitudes”, mas também está claro
que já nas páginas de abertura do Caderno 1 a expressão “grupos intelectuais” começa a adquirir um
significado particular e mais amplo. As três notas sobre Achille Loria, O ossinho de Cuvier e
Seqüelas do baixo romantismo? formam um pequeno grupo que se distingue das notas anteriores ou
posteriores. (As duas notas sucessivas são sobre o Direito natural e sobre O sarcasmo como
expressão de transição nos historicistas. Elas são seguidas por outras duas notas relativas ao
lorianismo.) Ao mesmo tempo, dentro deste grupo de três notas, observa-se um andamento do
particular ao geral. O grupo se inicia com a ilustração de como algumas das mais bizarras teorias de
Achille Loria levem a cunhar a expressão “lorianismo” para denotar a atividade ou a mentalidade de

4 Ib.
alguns tipos de intelectuais (supostamente de esquerda ou progressistas); em seguida, a obra destes
intelectuais está ligada a uma degeneração do método científico de Cuvier; por fim, apresenta-se
toda a questão da relação (e da história de tal relação) entre a sociologia de esquerda na Itália e a
ciência positivista.
Depois de ter examinado estas notas minuciosamente, o hipotético leitor dos Cadernos
presumivelmente prosseguirá examinando como os argumentos e os temas esboçados nas primeiras
páginas serão em seguida elaborados, entrelaçados com outros apresentados e discutidos nas notas
subseqüentes, e em muitos casos recolhidos e reordenados mais ou menos sistematicamente nos
últimos “Cadernos especiais” organizados tematicamente. As três notas supracitadas reaparecem,
com efeito, numa forma um tanto modificada no final dos Cadernos, mas não todas as três no
mesmo Caderno. Nem as mudanças feitas no texto destas notas nem sua nova colocação pareceriam
significativas à primeira vista. Ou, antes, pareceriam de pouca importância a quem simplesmente
passa da primeira à segunda redação, de um texto A a um texto C, com o propósito de compará-las
diretamente – operação tornada extremamente fácil pelo excelente sistema de referências de que é
dotada a edição crítica5. Mas para o leitor atento deste enorme conjunto de fragmentos que tenha
passado pelas 2.300 páginas que separam a primeira e a segunda versão destas três notas, as
diferenças entre elas adquirem grande relevo, não porque se tenha chegado a alguma importante
conclusão nem porque tudo tenha sido sistematizado, mas porque as notas reescritas acusam a
complexidade multidirecional e multiprospectiva do projeto necessariamente inconcluso do qual são
uma pequena parte.
A terceira das notas acima examinadas mantém sua forma interrogativa (com exceção do
título) quando volta num dos últimos Cadernos, o Caderno 25: “Cientificismo e seqüelas do baixo
romantismo. Deve-se observar a tendência da sociologia de esquerda na Itália para ocupar-se
intensamente do problema da criminalidade. Está ela ligada ao fato de que à tendência de esquerda
haviam aderido Lombroso e muitos dos mais ‘brilhantes’ seguidores, que então pareciam a suprema
expressão da ciência e que influíam com todas as suas deformações profissionais e seus problemas
específicos? Ou se trata de uma seqüela do baixo romantismo de 48 (Sue e suas elucubrações
romanceadas de direito penal)? Ou está ligada ao fato de que na Itália impressionava a certos grupos
intelectuais a grande quantidade de crimes de sangue, e eles pensavam não poder ir adiante sem ter
explicado ‘cientificamente’ (ou seja, naturalisticamente) este fenômeno de ‘barbárie’?”6.
As mudanças parecem ser mínimas – a nota ainda indica o mesmo conjunto de problemas,
ou seja, a relação entre sociologia de esquerda e positivismo científico tal como se explicita na

5 A “edição crítica”, referida na nota 1, reproduz os Cadernos do cárcere na ordem em que Gramsci os escreveu.
Valentino Gerratana distingue textos A, B e C. Os textos A são os que Gramsci redigiu e depois refundiu (ampliou,
agrupou, etc.) nos chamados textos C; os B são os que ele redigiu uma única vez. Trata-se de uma inovação frente à
velha edição temática ou “togliattiana”, que não inclui os textos A.
6 Ib., p. 2.293-4.
criminologia acadêmica. Não obstante, um deslocamento de atenção se verificou, na medida em que
a versão C desta nota agora está separada das outras duas notas vistas anteriormente e colocada num
novo contexto, no caderno temático intitulado À margem da história (História dos grupos sociais
subalternos).
Na verdade, não é inteiramente correto afirmar que a recolocação da nota Cientificismo e
seqüelas do baixo romantismo representa uma mudança de atenção. Trata-se, antes, de uma
extensão e de um reforço da rede de conexões entre as várias instâncias propostas no âmbito da
multidão de fragmentos que compõem os Cadernos. Tanto assim que a nota sobre “cientificismo e
baixo romantismo”, tanto em seu texto C quanto no A, remete a uma pesquisa sobre a genealogia de
uma parte da teoria da sociologia italiana de esquerda, uma pesquisa voltada não tanto a determinar
sua exata origem mas, antes, a historicizá-la e a ampliar a compreensão da formação dos grupos
intelectuais, de seu desenvolvimento e de suas “atitudes”; e uma tal pesquisa resta um componente
necessário do estudo do fenômeno do lorianismo – não tanto de seus aspectos mais bizarros quanto
da mistura de política aparentemente progressista ou de esquerda e de positivismo a-histórico. Mas
esta pesquisa não deve limitar-se ao estudo de formulações desconexas como tais. Ela diz respeito
ao impacto que esta corrente e seus expoentes tiveram na história material, política, social e cultural
italiana. Cesare Lombroso (1835-1909) é geralmente recordado pela contribuição que suas
investigações “científicas” em criminologia trouxeram para o tratamento dos encarcerados. Nos
poucos casos em que seu nome é mencionado por Gramsci, ele aparece ligado à influente escola de
“cientistas sociais” (cujos nomes estão espalhados em todos os Cadernos, freqüentemente em
relação ao lorianismo), cujas teorias positivistas tiveram um sério efeito nocivo e regressivo sobre a
cultura política italiana: entre outras coisas, eles conferiram legitimidade “científica” e contribuíram
para a perpetuação da crença determinista (e fatalista) segundo a qual alguns indivíduos
(criminosos, por exemplo) ou alguns grupos (em particular, os meridionais) são “bárbaros” ou
primitivos por natureza. Uma importante conseqüência deste tipo de sociologia está no fato de que
bloqueia a possibilidade de reconstruir as causas que explicam as relações de poder – a biologia
substitui a política como explicação das condições das camadas marginalizadas. Em outras palavras,
atribuindo a leis biológicas e a-históricas o não-conformismo do “criminoso”, a não-integração dos
meridionais, o comportamento irrequieto das massas “depravadas” ou “irracionais”, a escola
positivista de sociologia nega aos grupos subalternos a possibilidade de ter uma história própria.
Portanto, é inteiramente coerente que Cesare Lombroso, fundador desta tendência e
“eminência parda” de muitos lorianos, apareça não só na nota final do Caderno 25, intitulado À
margem da história (História dos grupos sociais subalternos), mas também no parágrafo de
abertura. O tema desta primeira nota é Davide Lazzaretti, líder carismático de uma seita religiosa
dissidente que teve notoriedade na Toscana em torno de 1870, período de graves dificuldades
econômicas e de agitações populares. O tratamento que Cesare Lombroso reserva a Lazzaretti em
seu livro Loucos e anormais determina o seguinte comentário de Gramsci: “este era o costume
cultural do tempo: em vez de estudar as origens de um acontecimento coletivo, e as razões de sua
difusão, de seu ser coletivo, isolavam o protagonista e se limitavam a fazer-lhe a biografia
patológica, muito freqüentemente partindo de motivos não comprovados ou interpretáveis de outro
modo: para uma elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo bárbaro ou
patológico”7.
Não se pode deixar de notar que, mais uma vez, uma observação causada por uma
particularidade muito específica e muito concreta – isto é, a caracterização lombrosiana de
Lazzaretti como subnormal ou louco – é o ponto de partida para considerações bem mais amplas
sobre a história cultural, sobre as práticas discursivas das elites, sobre a marginalização dos grupos
subalternos. Este movimento do particular ao geral caracteriza inúmeras notas dos Cadernos.
Raramente se verifica o contrário – a saber, que uma generalização seja postulada e sucessivamente
utilizada para compreender o particular. Certamente, quando fragmentos ou partes determinadas de
uma informação ou observações específicas levam a uma intuição geral ou generalizante qualquer, a
generalização não alcança o status de uma teoria global que atribui às particularidades um
significado definido, ficando autônoma em face delas. As generalizações ou os conceitos não estão
nunca completos ou acabados; estão sempre numa relação fluida, crescentemente complexa diante
de outras generalizações ou conceitos. Eles visam sempre a combinações sintéticas diferentes, sem
nunca se fixarem numa síntese definitiva; e requerem sempre um retorno aos elementos
particulares, aos fragmentos, que conservam sua especificidade histórica mesmo quando induzem a
novos conceitos mais complexos, referidos uns aos outros numa rede de relações cada vez mais
densa, extensa e mutável.
Alguns aspectos extremamente importantes da relação entre o particular e o geral nos
Cadernos podem ser evidenciados comparando a primeira nota dedicada a Achille Loria com sua
segunda versão, que ocupa as primeiras páginas do “caderno especial” intitulado Lorianismo. Como
no texto A, a ampla parte inicial desta nota fornece uma informação bibliográfica e descritiva das
obras mais extravagantes de Loria. Mas, durante os anos que separam a primeira versão da nota
(1929) da segunda (1935), fora publicada uma bibliografia das obras de Loria por Luigi Einaudi, e
Gramsci usa os dados extraídos de tal bibliografia para completar e modificar algumas informações
presentes na primeira redação da nota, que havia sido escrita de memória. (O cuidado e a atenção
com os quais Gramsci registra rigorosamente cada detalhe bibliográfico, mesmo ínfimo, são
surpreendentes). A bibliografia de Einaudi, de todo modo, é mais do que um instrumento para
verificar e controlar particularidades bibliográficas, dado que dela se deduz um comentário geral

7 Ib., p. 2.279.
que se torna um preâmbulo para o resto da nota: “Registro dos principais ‘documentos’, em que se
encontram as principais ‘bizarrias’ de Achille Loria. (Recordados de memória: existe agora a
‘bibliografia de Achille Loria’, compilada por Luigi Einaudi, suplemento ao n. 5, setembro-outubro
de 1932, da Riforma Sociale; a lista não é completa, evidentemente, e talvez faltem ‘bizarrias’ bem
mais significativas do que as recordadas. O esforço de Einaudi é também significativo, pois avaliza
a ‘dignidade’ científica de Loria e coloca necessariamente, diante do leitor-jovem contemporâneo,
todos os escritos de Loria num mesmo ‘plano’, estimulando a fantasia graças à grande quantidade
do ‘trabalho’ feito por Loria: 884 títulos, nestes tempos de civilização quantitativa. Einaudi merece,
por este seu esforço, ser inscrito ad honorem na lista dos lorianos; ademais, deve-se notar que
Einaudi, como organizador de movimentos culturais, é responsável pelas ‘bizarrias’ de Loria e, a
respeito deste problema particular, caberia escrever uma nota)”8.
Não há necessidade de explicar que este acréscimo ao texto A da nota estende o âmbito do
lorianismo até incluir os mecanismos de sua difusão e legitimação, e que todo o fenômeno é ligado
às reflexões contidas em muitas outras partes dos Cadernos sobre o papel dos intelectuais na
organização da cultura. Mas pode não ser supérfluo chamar a atenção sobre o fato de que a
bibliografia de Einaudi, um instrumento científico que comumente teria sido considerado como
ideologicamente neutro e julgado segundo critérios objetivos de verificação (É completa? Fornece
com precisão todas as informações necessárias?), não escapa ao controle crítico mesmo quando é
usada como instrumento útil! E tal exame revela precisamente a ausência de seriedade crítica ou
rigor na compilação de um instrumento aparentemente inocente como uma bibliografia. Esta
“ausência” e esta “inocência” revelam-se elementos de conivência – abandonando seu papel crítico,
mas pretendendo situar-se fora do objeto de sua investigação científica, o respeitado professor
(Einaudi) valoriza e promove a difusão de um corpo de obras (de Loria e dos lorianos) que é
caracterizado pela falta de rigor crítico e por escassa atenção ao método científico. As
conseqüências das atitudes intelectuais determinadas por tais escolhas são enormes e não limitadas
à Itália, como fica claro na parte conclusiva da nota.
Os dois parágrafos finais do texto C da nota sobre Achille Loria repetem o movimento do
particular ao geral já encontrado na versão A, mas com uma significativa diferença. As
manifestações e os efeitos do lorianismo e, mais importante, a ausência de barreiras críticas, que
torna possível o fenômeno, são aqui considerados como um problema europeu e não só italiano. Os
parágrafos conclusivos da nota Achille Loria são revistos e elaborados tomando em consideração os
importantíssimos desenvolvimentos havidos no curso dos cinco anos que separam as duas redações.
“Loria – escreve Gramsci – não é um caso teratológico individual: ao contrário, é o
exemplar mais completo e acabado de uma série de representantes de uma certa camada intelectual

8 Ib., p. 2.321.
de um determinado período histórico; em geral, daquela camada de intelectuais positivistas que se
ocuparam da questão operária e que estavam mais ou menos convencidos de terem aprofundado,
revisto e superado a filosofia da práxis. Mas deve-se notar que cada período tem seu lorianismo
mais ou menos completo e perfeito, e que todo país tem o seu: o hitlerismo mostrou que a
Alemanha alimentava, sob o aparente domínio de um grupo intelectual sério, um lorianismo
monstruoso, que rompeu a crosta oficial e se difundiu como concepção e método científico de uma
nova ‘oficialidade’. Que Loria pudesse existir, escrever, elucubrar e publicar por sua conta livros e
livraços, nada de estranho: existem sempre os descobridores do moto perpétuo e os párocos que
publicam continuações de Jerusalém libertada. Mas que ele tenha se tornado um pilar da cultura,
um ‘mestre’, e que tenha encontrado ‘espontaneamente’ um imenso público, eis algo que nos leva a
refletir sobre a debilidade, mesmo em épocas normais, das barreiras críticas que, não obstante,
existiam: deve-se pensar como, em épocas anormais, de paixões desencadeadas, seja fácil aos Loria,
apoiados por forças interessadas, superar todos os obstáculos e infectar por décadas um ambiente de
civilização intelectual ainda débil e frágil. Somente hoje (1935), após as manifestações de
brutalidade e de ignomínia inauditas da ‘cultura’ alemã dominada pelo hitlerismo, foi que alguns
intelectuais tomaram consciência de quanto era frágil a civilização moderna – em todas as suas
expressões contraditórias, mas necessárias em sua contradição – que teve como ponto de partido o
primeiro Renascimento (depois do ano 1000) e se impôs como dominante através da Revolução
Francesa e do movimento de idéias conhecido como ‘filosofia clássica alemã’ e como ‘economia
clássica inglesa’. Daí a crítica apaixonada de intelectuais como Georges Sorel, como Spengler, etc.,
que enchem a vida cultural de gases asfixiantes e esterilizadores”9.
Se tivéssemos de comentar minuciosamente este trecho, deveríamos recorrer a alguns dos
temas de maior relevo que se entrelaçam nos Cadernos, os mais óbvios dos quais são o papel dos
intelectuais na sociedade, a relação entre cultura e política e a crítica do positivismo. Poder-se-ia
também relacionar esta e outras notas sobre o lorianismo com aquelas sobre o brescianismo e com
outras sobre os mais importantes intelectuais italianos, para fazer surgir dos fragmentos dos
Cadernos um estudo particularizado sobre as condições culturais que determinaram o nascimento
do fascismo e contribuíram para sustentá-lo. Aqui, desejo apenas chamar a atenção sobre duas
observações contidas neste trecho e presentes já na primeira (e muito mais curta) versão da nota,
mas que agora podem ser apreendidas em todas as suas implicações: a) o positivismo próprio de um
estrato significativo de intelectuais (denominados convencionalmente de “lorianos”) que se ocupam
dos problemas do proletariado e crêem de algum modo superar Marx; b) a negligência científica e a
confusão dos lorianos, que são sintomáticas da falta de rigor crítico e de seriedade cultural em geral.
Esta falta de seriedade e rigor é camuflada por uma fachada de cientificidade e, de alguma maneira,

9 Ib., p. 2.325-6.
escapa à censura das camadas intelectuais superiores – os supostos defensores últimos da
civilização – ou, pelo menos, não é por elas inteiramente marginalizada. Uma das maiores
preocupações expressas nas notas sobre o lorianismo (e mesmo em outros pontos) é que resíduos de
pensamento, teorias bizarras, generalidades críticas e uma difusa irresponsabilidade intelectual não
são características exclusivas de expoentes da cultura de direita, reacionária, conservadora ou
liberal; eles também contaminaram seriamente o pensamento progressista, de esquerda e mesmo
marxista.
A partir da análise minuciosa e concreta da cultura do tempo conduzida nos Cadernos,
descobre-se que é impossível incriminar unicamente os elementos reacionários pela ascensão do
fascismo. Observa-se, sobretudo, que as forças antagônicas à cultura dominante, impregnadas de
idéias socialistas e mesmo especificamente marxistas, não ofereceram, e certamente em muitos
casos não tiveram capacidade para isto, uma alternativa coerente e persuasiva ao fascismo, ou seja,
não foram efetivamente capazes de elaborar uma contracultura, na medida em que elas próprias
careciam de rigor e adotaram acriticamente métodos e paradigmas da cultura dominante. A prova
mais clara disto é dada pelo “sociologismo” pseudocientífico, pelo positivismo, a que muitas notas
gramscianas atribuem as distorções enganosas que vulgarizaram o marxismo e inutilizaram suas
versões mais difundidas. Dois importantes problemas relacionados à sociologia positivista são
identificados explicitamente na versão revista da nota sobre O ossinho de Cuvier, que se segue
imediatamente à ampla nota sobre Achille Loria no Caderno 28, intitulado Lorianismo: “O ossinho
de Cuvier. Exposição do princípio de Cuvier. Mas nem todos são Cuvier e, sobretudo, a ‘sociologia’
não pode ser comparada com as ciências naturais. As generalizações arbitrárias e ‘bizarras’ são
muito mais possíveis nela (e mais danosas para a vida prática)”10.
Num certo sentido, esta versão da nota explicita o que já fora sugerido, ainda que de modo
críptico, em sua formulação precedente: precisamente que o lorianismo pseudocientífico leva a
conclusões tão extravagantes quanto aquelas produzidas pelo uso errado de métodos científicos.
Além disto, aqui está presente um outro aspecto que não aparece (pelo menos não explicitamente)
na evocação anterior do princípio de Cuvier, mas que é expresso repetidamente de variadas
maneiras no Caderno 28 – a saber, que um dos erros fundamentais da “sociologia” consiste em
haver adotado em bloco e acriticamente uma metodologia tomada diretamente das ciências naturais.
A absoluta importância deste ponto será evidente para o leitor que tiver seguido seriamente a
extensa, minuciosa e severa crítica do livro de Bukharin, A teoria do materialismo histórico.
Manual popular de sociologia, que ocupa uma parte notável dos Cadernos. Além disto, é importante
estar atento às aspas que cercam o termo “sociologia” no texto C da nota O ossinho de Cuvier.
Neste ponto dos Cadernos, o termo “sociologia” adquiriu um significado particular e está associado

10 Ib., p. 2.327.
às teorias e metodologias seja dos lorianos, seja de Bukharin. Mesmo que Bukharin não seja nunca
acolhido como membro (sequer honorário, como ao contrário acontece com Luigi Einaudi) da
“sociedade dos lorianos”, suas idéias são, apesar disto, diretamente comparadas às de Loria em dois
trechos dos Cadernos11. Portanto, se bem que O ossinho de Cuvier esteja colocado no caderno sobre
o Lorianismo, a investigação crítica que propõe em grandes linhas tem ramificações que vão muito
além das características do grupo de intelectuais analisados na rubrica sobre o lorianismo. Na
realidade, o que está em jogo nas instâncias e nos problemas evocados pela alusão ao “princípio de
Cuvier” é a definição mesma de marxismo ou materialismo histórico; ou, como diz Gramsci,
“filosofia da práxis”.
Na Teoria do materialismo histórico, Bukharin equipara o materialismo histórico à
sociologia e descreve a relação entre história e sociologia de um modo que privilegia a sociologia –
uma “sociologia” que é científica num sentido indubitavelmente positivista ou mecanicista.
Traçando a relação entre ciência e história de modo esquemático, Bukharin escreve na
“Introdução”: “Existem, nas ciências sociais, dois ramos muito importantes que não se ocupam de
um só aspecto da vida social, mas da vida social em toda a sua complexidade; em outros termos,
eles não se limitam a examinar uma só espécie de fenômenos [...] mas estudam a vida social em seu
conjunto, ou seja, todas as manifestações dos fenômenos sociais. Estas ciências constituem, por
uma parte, a história, e por outra a sociologia [...] A história segue e descreve o fluxo da vida social
por um certo tempo e num dado lugar [...] Quanto à sociologia, ela enfrenta interrogações de ordem
geral: o que é a sociedade? Quais são as razões de seu desenvolvimento e de sua decadência? Quais
são as relações entre os vários tipos de fenômenos sociais (a economia, o direito, a ciência)? Como
explicar seu desenvolvimento? Quais são as formas históricas da sociedade? Como explicar suas
mudanças? A sociologia é a mais geral e a mais abstrata das ciências sociais. Freqüentemente, é
apresentada sob outros nomes: ‘filosofia da história’, ‘teoria do desenvolvimento histórico’, etc.”12
Esta não é uma comparação equânime. Bukharin não define as esferas do discurso, as tarefas
distintas de cada ciência – “história” e “sociologia”. Segundo seu esquema, a sociologia dita o
tempo (predispõe os eventos) da história; isto é, os procedimentos e os objetivos da pesquisa
histórica são predeterminados pela sociologia. Afirmação que se esclarece no trecho sucessivo: “Na
explicação das leis gerais da evolução da humanidade, a sociologia serve como método para a
história. Se, por exemplo, a sociologia estabelece uma lei geral segundo a qual as formas do Estado
dependem das formas da economia, um historiador, quando estuda uma dada época, deve se
esforçar de fato por encontrar esta relação e indicar a forma concreta (ou seja, correspondente a um

11 Ib., p. 1.441 e 1420.


12 N. Bukharin. Teoria del materialismo storico. Manuale popolare di sociologia marxista [1921]. Florença: La
Nuova Italia, 1977, p. 12. [Ed. em língua portuguesa: Tratado de materialismo histórico. Trad. revista por Edgar
Carone. Lisboa-Porto-Luanda: Centro Brasileiro do Livro, s/d.]
dado momento) na qual ela se expressa”13.
A tese bukhariniana se torna obscura no passo seguinte, que parece implicar o fato de que a
sociologia depende da informação fornecida pela investigação histórica: “O historiador fornece ao
sociólogo o material sobre o qual fundar suas conclusões e operar suas generalizações, para que
estas conclusões não sejam extraídas arbitrariamente mas com base em fatos históricos reais” 14. Na
frase final do parágrafo, porém, diz-se de modo claro que a sociologia é que guia a história, e não
vice-versa: “A sociologia, por sua vez, oferece o ponto de vista determinado, os meios de
investigação ou, como se costuma dizer, o método da história” 15. Afirmação com que se reforça que
a sociologia já sabe, antes ainda de receber o material histórico, que existem leis que governam a
história: daí decorre que a história como disciplina desenvolve sempre suas pesquisas segundo os
critérios de um método científico de proveniência sociológica, um método que garante que a
história chegará sempre à descoberta ou à confirmação de leis gerais. Esta opinião é
subseqüentemente reforçada no trecho com o qual Bukharin conclui sua “Introdução”: “Que lugar
deve, pois, ocupar a teoria do materialismo histórico? Seu lugar certamente não é na economia
política e na história, mas na ciência geral da sociedade e das leis de sua evolução, isto é, na
sociologia [...] o fato de que a teoria do materialismo histórico constitua um método para a história
não diminui em nada sua importância como teoria sociológica. Acontece muitas vezes que uma
ciência mais abstrata forneça um ponto de vista, isto é, um método, a uma ciência menos abstrata.
Este é o caso presente”16.
A principal objeção levantada contra Bukharin nos Cadernos do cárcere é que, embora
pretenda expor a “autêntica” teoria da “filosofia da práxis”, ele não apresenta nunca uma
“sistematização lógica e coerente dos conceitos filosóficos que são difusamente conhecidos sob o
nome de filosofia da práxis (e que são freqüentemente espúrios, de derivação estranha e, como tais,
deveriam ser criticados e expostos)”17. Ao contrário, deduz por extrapolação da própria “sociologia”
uma filosofia – a filosofia da práxis. Mas a sociologia “pressupõe uma filosofia, uma concepção do
mundo, da qual é um momento subordinado” 18. E a sociologia de Bukharin não constitui exceção;
sua sociologia, na realidade, é uma emanação do materialismo filosófico. Em vez de afirmar o
materialismo histórico como concepção do mundo alternativa, independente e autenticamente
revolucionária, Bukharin o subordina a uma filosofia preexistente, faz dele uma derivação filosófica
da cultura hegemônica: “A sociologia foi uma tentativa de criar um método para a ciência histórico-
política, na dependência de um sistema filosófico já elaborado, o positivismo evolucionista, sobre o

13 Ib., p. 12.
14 Ib.
15 Ib., p. 12-3.
16 Ib., p. 13-4.
17 A. Gramsci. Quaderni del carcere, cit., p. 1.431.
18 Ib., p. 1.432.
qual a sociologia reagiu, mas apenas parcialmente. Por isto, a sociologia se tornou uma tendência
em si, tornou-se a filosofia dos não-filósofos, uma tentativa de descrever e classificar
esquematicamente fatos históricos e políticos, a partir de critérios construídos com base no modelo
das ciências naturais. A sociologia é, portanto, uma tentativa de extrair ‘experimentalmente’ as leis
de evolução da sociedade humana, de maneira a ‘prever’ o futuro com a mesma certeza com que se
prevê que de uma semente nascerá uma árvore. O evolucionismo vulgar está na base da sociologia,
que não pode conhecer o princípio dialético da passagem da quantidade à qualidade”19.
O erro de Bukharin é análogo ao erro dos lorianos: ambos sofrem excessivamente o fascínio
das ciências naturais. (Em seu livro, Bukharin recorre às ciências naturais para sustentar a tese pela
qual o evento revolucionário, as “transformações imprevistas” não estão em contradição com a
teoria evolucionista, e cita a teoria catastrofista de Cuvier). As observações feitas na nota sobre O
ossinho de Cuvier podem ser lidas como objeções levantadas contra o método de Bukharin. Antes
de mais nada, para Gramsci a sociologia não pode ser comparada às ciências naturais e, portanto,
não é possível descrever o desenvolvimento da sociedade como se se tratasse do desenvolvimento
de uma árvore a partir da semente, nem é possível reconstruir a história como faz o paleontólogo
que, utilizando o princípio de Cuvier, constrói um dinossauro partindo de um de seus ossos. Em
segundo lugar, a errada aplicação dos princípios das ciências naturais à sociologia leva a conclusões
“bizarras” que produzem danosas conseqüências práticas. As notas sobre Loria e sobre os lorianos
oferecem inúmeros exemplos dos resultados da sociologia positivista. Na seqüência de notas
dedicadas à refutação das teses de Bukharin, encontram-se algumas observações iluminadoras sobre
os efeitos absolutamente deletérios que a sociologia positivista tem sobre o marxismo. Uma destas
notas se intitula Redução da filosofia da práxis a uma sociologia – uma nota extensa e muito
importante que toca numa grande variedade de temas cruciais. Dela cito um trecho que trata do
dano causado pelo cientificismo sociológico: “Por outro lado, a extensão da lei estatística à ciência
e à arte política pode ter conseqüências muito graves se dela nos utilizarmos para construir
perspectivas e programas de ação; se, nas ciências naturais, a lei pode determinar apenas
despropósitos e asneiras, que poderão ser facilmente corrigidos por novas investigações (e, de todo
modo, apenas tornam ridículo o cientista individual que a utilizou), na ciência e na arte política ela
pode ter como resultado verdadeiras catástrofes, cujos ‘frios’ prejuízos jamais poderão ser
ressarcidos. De fato, na política, a utilização da lei estatística como lei essencial, operando de modo
fatalista, não é apenas um erro científico, mas torna-se também um erro prático, em ato; por outro
lado, ela favorece a preguiça mental e a superficialidade programática. Deve-se observar que a ação
política tende, precisamente, a fazer com que as multidões saiam da passividade, isto é, a destruir a
lei dos grandes números. Como, então, considerá-la uma lei sociológica?”20.
19 Ib.
20 Ib., p. 1.430.
A nota prossegue explicando como a sociologia positivista é incompatível com o programa
político do marxismo. A filosofia determinista (isto é, o materialismo filosófico) conduz à
passividade, torna as massas sensíveis à lisonja carismática de líderes que perpetuam a
padronização mecânica do sentimento popular. Ao contrário, a tarefa do “partido das massas” é
derrubar a velha ordem “naturalista” promovendo uma consciência crítica. Em outras palavras, o
materialismo histórico prevê para as massas um papel de efetivo protagonismo na história, não o de
atores inconscientes de um drama mecanicista que se desdobra segundo leis de natureza inalteráveis
– leis que separam, privilegiam e dão o poder àqueles que reivindicam o mérito de tê-las descoberto
e que, com base em seu saber “científico”, se arrogam o direito ao comando.
A partir desta nota, pode-se ver que a crítica a Bukharin está em continuidade não só com as
críticas ao positivismo que atravessam os escritos de Gramsci, mas também com a concepção do
socialismo como cultura autônoma, a insistência na necessidade de educar as massas para fazê-las
adquirir uma consciência crítica, o antidogmatismo, a fundamental vocação democrática e,
sobretudo, as discussões aprofundadas sobre o caráter e o papel do partido comunista, o “moderno
Príncipe”. Esta nota, em particular, confirma a constante atenção de Gramsci à história, presente em
todos os Cadernos. Voltam à mente os comentários sobre os sociólogos lombrosianos, cujas
explicações “científicas” dos comportamentos aberrantes inibem a possibilidade de uma história dos
grupos subalternos. De fato, esta nota contribui para a plena compreensão da afirmação (que
também se encontra nas páginas dos Cadernos dedicadas à refutação das teses de Bukharin)
segundo a qual na expressão “materialismo histórico” se deveria pôr “o acento no segundo termo,
‘histórico’, e não no primeiro, de origem metafísica”21.
Com efeito, a parte que abre a nota sobre a Redução da filosofia da práxis a uma sociologia
afirma com vigor que a redutiva versão sociológica do materialismo histórico deriva da
incompreensão da importância e da complexidade da história; uma incompreensão que é
responsável pela deformação do marxismo produzida seja por seus adeptos ortodoxos (Bukharin),
seja pelos não-ortodoxos (os lorianos). “Esta redução [da filosofia da práxis a sociologia]
representou a cristalização da tendência deteriorada, já criticada por Engels (nas cartas a dois
estudantes, publicadas no Sozialistische Akademiker), e que consiste em reduzir uma concepção do
mundo a um formulário mecânico, que dá a impressão de poder colocar toda a história no bolso. Ela
foi o maior incentivo para as fáceis improvisações jornalísticas dos ‘genialóides’.”22.
Em outras palavras, os “sociólogos” tratam a história como Cuvier trata cada osso. Munidos
de um conjunto de princípios metodológicos, eles colocam cada elemento numa totalidade
predeterminada. Como confundem sua fórmula mecanicista com a própria história, não existe
experiência histórica ou evento que eles considerem em sua especificidade. Cada elemento trazido à
21 Ib., p. 1.437.
22 Ib., 1.428.
luz pela pesquisa histórica serve unicamente para preencher os pequenos vazios e confirmar a
precisão do quadro geral. Isto é o que ocorre quando a filosofia e as ciências sociais são orientadas
pelo mesmo tipo de “naturalismo” exemplificado pelo princípio de Cuvier.
Os trechos seguintes da mesma nota apresentam uma concepção alternativa do materialismo
histórico. Segundo tal concepção, a filosofia da práxis não é sociologia mas história, e a
metodologia a ela apropriada deve ser derivada não das ciências naturais mas do âmbito da crítica e
da interpretação, isto é, da “filologia”: “A experiência sobre a qual se baseia a filosofia da práxis
não pode ser esquematizada; ela é a própria história em sua infinita variedade e multiplicidade, cujo
estudo pode dar lugar ao nascimento da ‘filologia’ como método de erudição na verificação dos
fatos particulares e ao nascimento da filosofia, entendida como metodologia geral da história.
Talvez tenha sido isto o que pretenderam dizer os escritores que, como muito apressadamente
afirma o ensaio [de Bukharin] no primeiro capítulo, negam a possibilidade de construir uma
sociologia a partir da filosofia da práxis e afirmam que a filosofia da práxis só vive nos ensaios
históricos particulares (a afirmação, assim nua e crua, é certamente errônea e seria uma curiosa
nova forma de nominalismo e de ceticismo filosófico). Negar que se possa construir uma
sociologia, entendida como ciência da sociedade, isto é, como ciência da história e da política, que
seja algo diverso da filosofia da práxis, não significa que não se possa construir uma compilação
empírica de observações práticas que ampliem a esfera da filologia, tal como esta é entendida
tradicionalmente. Se a filologia é a expressão metodológica da importância que tem a verificação e
a definição dos fatos particulares em sua inconfundível ‘individualidade’, é impossível excluir a
utilidade prática da identificação de determinadas ‘leis de tendência’ mais gerais, que
correspondem, na política, às leis estatísticas ou dos grandes números, que contribuíram para o
progresso de algumas ciências naturais. Mas não se deu importância ao fato de que a lei estatística
pode ser empregada na ciência e na arte política somente enquanto as massas da população
permanecerem essencialmente passivas – com relação às questões que interessam ao historiador e
ao político – ou enquanto se supõe que permaneçam passivas”23.
No texto A da mesma nota, as relações entre marxismo, história e filologia são descritas
ainda mais sinteticamente: “A ‘experiência’ do materialismo histórico é a própria história, o estudo
dos fatos particulares, a ‘filologia’ [...] A ‘filologia’ é a expressão metodológica da importância dos
fatos particulares entendidos como ‘individualidades’ definidas e precisas”24.
Segundo Bukharin, a história é uma atividade, um campo de pesquisas regido por leis
sociológicas: de um ponto de vista metodológico, ela é apenas uma “serva” da sociologia. Ao
contrário, nas notas de Gramsci a relação entre história e sociologia é quase inteiramente
interrompida: a sociologia positivista utiliza leis gerais abstratas que são separadas da experiência
23 Ib., p. 1.428-9.
24 Ib., p. 856.
vivida da história; além disto, é tarefa do materialismo histórico infringir aquelas mesmas leis,
superá-las, assegurar que os seres humanos tenham a possibilidade de forjar sua própria história.
Em seguida, a mesma nota prossegue afirmando que o partido político (“o organismo coletivo”)
prefigurado pelo materialismo histórico não chega ao conhecimento do “sentimento popular” por
meio de leis estatísticas geradas por uma sociologia quantitativa; antes, chega a tal conhecimento
através “da ‘co-participação ativa e consciente’, da ‘co-passionalidade’, da experiência dos detalhes
imediatos, de um sistema que se poderia chamar de ‘filologia viva’.”25.
Isto não significa que a sociologia seja inútil: só que suas asserções devem ser controladas,
seu poder totalizante deslegitimado, seus usos cuidadosamente circunscritos e seus resultados
“científicos” sempre submetidos a uma crítica histórica, e não vice-versa. A utilidade da sociologia
é discutida num contexto separado, numa nota intitulada Temas de cultura. O ossinho de Cuvier.
Nesta nota, a sociologia é vista sob uma luz positiva, mas só se considerada como instrumento para
a construção de hipóteses e não para a formulação de verdades universais. Seus métodos, derivados
das ciências naturais, são considerados falíveis – e não só quando aplicados às ciências sociais, mas
também aos fenômenos naturais. Além disto, é firmemente posta numa posição subordinada em
relação à história, que ela pode complementar mas nunca suplantar: “O princípio de Cuvier, da
correlação entre as partes orgânicas de um corpo, de modo que de uma pequena parte dele (desde
que íntegra) se pode reconstruir todo o corpo (mas é preciso rever bem a doutrina de Cuvier para
expor com exatidão seu pensamento), certamente deve ser inserido na tradição do pensamento
francês, na ‘lógica’ francesa, e relacionado com o princípio do animal-máquina. Não importa ver se
na biologia ainda se pode considerar o princípio inteiramente válido; isto não parece possível (por
exemplo, deve-se lembrar o ornitorrinco, em cuja estrutura não há ‘lógica’, etc.); deve-se examinar
se o princípio da correlação é útil, exato e fecundo na sociologia, além da metáfora. Parece que se
pode responder claramente sim. Mas é preciso que se entenda: para a história passada, o princípio
da correlação (como o da analogia) não pode substituir o documento, isto é, só pode levar a uma
história hipotética, verossímil mas hipotética. Mas diferente é o caso da ação política e do princípio
de correlação (como o da analogia) aplicado ao previsível, à construção de hipóteses possíveis e de
perspectiva. Estamos precisamente no campo da hipótese e se trata de ver que hipótese é mais
verossímil e mais fecunda em termos de convicções e de educação. É certo que, quando se aplica o
princípio de correlação aos atos de um indivíduo ou mesmo de um grupo, existe sempre o risco de
cair no arbítrio: os indivíduos e também os grupos não operam sempre ‘logicamente’,
‘coerentemente’, conseqüentemente, etc.; mas é sempre útil partir da premissa de que assim
operem. Posta a premissa da ‘irracionalidade’ dos motivos da ação, ela não serve para nada; só pode
ter um alcance polêmico para que se possa dizer, como os escolásticos: ex absurdo sequitur

25 Ib., p. 1.430.
quodlibet”26.
Considerado sob esta luz, o método da sociologia pode ser considerado politicamente útil.
Mantendo o princípio de Cuvier na esfera do hipotético, num contexto claramente delimitado, evita-
se o perigo (e a tentação) de transformá-lo numa visão de mundo, numa filosofia. Afinal, as páginas
dos Cadernos dedicadas à crítica do positivismo e contra Bukharin, assim como as partes em que se
refuta Croce são justificadas pela necessidade de salvaguardar o materialismo histórico das
incursões (e das apropriações) da metafísica. A ênfase na história – no sentido de diferença,
multiplicidade, especificidade do particular – constitui tão-somente uma defesa e uma resistência
ativa em relação à metafísica em suas diversas versões, em especial o materialismo filosófico e o
idealismo. Enquanto o impulso metafísico engloba o particular no geral, subordinando a realidade
individual às exigências da totalidade, a história tal como é concebida nos Cadernos busca
recuperar o fragmento, reconhecer sua especificidade e captar sua diferença. A história alcança este
objetivo negando-se o privilégio da contemplação distanciada e empenhando-se nas atividades
práticas e materiais da filologia e da crítica. Tal como a ausência de rigor crítico e a falta de atenção
filológica ao particular conduziram às vulgarizações e distorções do marxismo, na mesma medida a
crítica e a filologia são necessárias para preservar a única qualidade essencial do materialismo
histórico: o seu ser revolucionário.
Uma nota originalmente intitulada Maquiavel e Marx, que aparece, revista, no caderno
dedicado às Breves notas sobre a política de Maquiavel, contém a seguinte afirmação: “A inovação
fundamental introduzida pela filosofia da práxis na ciência da política e da história é a
demonstração de que não existe uma ‘natureza humana’ abstrata, fixa e imutável (conceito que
certamente deriva do pensamento religioso e da transcendência), mas que a natureza humana é o
conjunto das relações sociais historicamente determinadas, ou seja, um fato histórico verificável,
dentro de certos limites, com os métodos da filologia e da crítica” 27. Os métodos da filologia e da
crítica estão sempre operantes nos Cadernos do cárcere de Gramsci.
A análise crítica de Croce, que constitui uma parte substancial dos Cadernos, é bem
conhecida e sua importância já foi destacada por inúmeros críticos. Não tão conhecida, ainda que
igualmente importante, é a crítica minuciosa de Bukharin. Sabe-se perfeitamente, também, que
inúmeras notas são dedicadas à análise crítica da cultura italiana, especialmente a literatura. Mas
não foi suficientemente enfatizado o conjunto enorme de informações particularizadas registradas
nos Cadernos – o método “filológico” em uso nos Cadernos jamais atraiu muita atenção. Toda
análise e discussão do texto de Gramsci contém uma observação sobre seu caráter fragmentário e
incompleto. Tais observações são freqüentemente acompanhadas pela suposição de que seja tarefa
do estudioso gramsciano reconstruir a partir destes fragmentos um conjunto coerente.
26 Ib., p. 1.687.
27 Ib., p. 1.599.
Implicitamente ou explicitamente, a natureza fragmentária dos Cadernos é habitualmente atribuída
às terríveis condições em que foram escritos. A fragmentação, em outras palavras, é considerada
como um obstáculo que infelizmente se interpõe à compreensão daquilo que Gramsci queria dizer
ou teria dito, caso tivesse tido o tempo e os meios para redigir um livro “normal” ou uma série de
livros. Daí os esforços para “organizar” os Cadernos, para agrupar seus fragmentos segundo alguns
temas ou sob algumas rubricas. Muitas vezes, estes temas e rubricas são retomados dos títulos
apostos em muitos Cadernos: “A filosofia de Benedetto Croce”, “Nicolau Maquiavel”,
“Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais”,
“Americanismo e fordismo”, “Crítica literária” e assim por diante. Num certo sentido, isto se faz
necessário em função da enorme dificuldade que apresentam os próprios Cadernos, da conveniência
de apresentá-los numa forma “legível” e da aparente e relativa desimportância ou irrelevância de
muitos pormenores para o desenvolvimento dos temas maiores tratados nos Cadernos. O editor
gramsciano, o estudioso, o comentador se sentem levados a agrupar as várias partes e, como um
moderno Cuvier, a recosturá-las. Às vezes esta operação de reconstrução é levada adiante de modo
responsável, isto é, com a consciência crítica de seus limites. Outras vezes, tal operação é conduzida
com a errada convicção de poder reconstruir não só o pensamento de Gramsci, mas o próprio
Gramsci. Este segundo tipo de operação é aquele que em seguida leva a falar de um “Gramsci
leninista” ou de um “Gramsci idealista crociano”, etc. Também os convites para “libertar Gramsci”
das várias interpretações indevidas são muitas vezes inspirados pela convicção de poder reconstruir
o único e “verdadeiro” Gramsci, partindo do caráter fragmentário dos Cadernos. Quando se verifica
este tipo de abordagem, os Cadernos se tornam um fácil terreno de caça no qual se escolhe aquilo
que se considera “importante” e se abandona aquilo que se julga “secundário” – e, naturalmente,
assiste-se a uma troca recíproca de acusações por não se ter sabido identificar os fragmentos
“justos” e as “corretas” relações que se dão entre eles ou por se ter destacado a importância de
alguns detalhes em detrimento de outros.
É inútil pensar em pôr fim a este jogo. A mais precisa e completa reprodução do manuscrito
de Gramsci não poderá aplacar tais polêmicas, nem poderá fazê-lo o desejo de reconstruir o
“verdadeiro” Gramsci. Apenas lendo e voltando a percorrer o texto em seu conjunto será possível
chegar a uma plena compreensão do que significa enfatizar a história “em sua infinita variedade e
multiplicidade”28. O caráter fragmentário dos Cadernos se deve, ao menos em parte, ao método
“filológico” que estrutura sua composição. A “filologia” requer uma atenção cuidadosa pelo
particular, esforça-se por verificar sua especificidade. Em muitas partes que compõem os Cadernos,
acontece precisamente isto – registra-se a história em sua infinita variedade e multiplicidade. Na
verdade, estabelecem-se complexas redes de relações entre estas particularidades, e estas, por sua

28 Ib., p. 1.428.
vez, dão origem a conceitos gerais e teorias – a mais famosa das quais é a da “hegemonia”. Se o
registro minucioso do particular desaparecesse, se a relação entre os fragmentos fosse estabelecida
de modo permanente, então conceitos e teorias se cristalizariam em dogmas. Para tornar estáveis as
relações entre os fragmentos que compõem os Cadernos, se deveria abandonar a “filologia” pelo
método de Cuvier. Dever-se-ia colocar cada parte numa relação necessária e estável com as outras,
de modo a produzir uma estrutura geral que pudesse ser contemplada em sua inteireza. Mas nos
Cadernos a história é apresentada como “experiência” e não como contemplação; e a “experiência
sobre a qual se baseia a filosofia da práxis não pode ser esquematizada”29.
A alusão a Cuvier nas páginas iniciais do primeiro Caderno contém uma advertência
implícita e um convite. Adverte contra o perigo de correr às conclusões e convida a prestar atenção
ao particular. Gramsci repete a advertência e o convite em inúmeras ocasiões – o manuscrito é rico
de expressões como “a ser averiguado”, “a ser aprofundado”, “é preciso distinguir este fato”, e
assim por diante. Os parágrafos de abertura dos Cadernos 8 e 11 insistem vigorosamente no caráter
provisório das notas e na possibilidade de que certas conclusões nelas expressas possam ser
inteiramente errôneas. Em 30 de dezembro de 1929, poucos meses depois de ter escrito a breve nota
sobre O ossinho de Cuvier, Gramsci concluía uma carta à mulher, Giulia Schucht, com a seguinte
observação: “Pode ser, ou antes é muito provável, que algumas avaliações minhas sejam exageradas
ou mesmo injustas. Reconstituir a partir de um pequeno osso um megatério ou um mastodonte era
próprio de Cuvier, mas pode acontecer que com um pedaço de rabo de rato se reconstrua um
monstro fabuloso”30.
O modo para evitar tais erros grosseiros, sugerem os Cadernos do cárcere, consiste em
permanecer fiel aos métodos da crítica e da filologia. Estes métodos, tal como são utilizados nos
Cadernos, também funcionam simultaneamente como arma e como defesa contra todas as formas
de dogmatismo e mistificação. A teoria e a prática da crítica filológica dos Cadernos constituem em
si mesmas uma importantíssima contribuição para a elaboração de uma filosofia da práxis
antidogmática.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

29 Ib.
30 A. Gramsci. Lettere dal carcere. Org. por S. Caprioglio e E. Fubini. Turim: Einaudi, 1975, p. 314. [Ed. bras.:
Cartas do cárcere. Trad. Noênio Spínola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005, 2 v.]

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