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cavalo que passa devagar

Jorge Vicente
1.

tenho, perante mim, essa escolha:


ser humano e ser presa de um destino
de pequenos nadas

não posso mudar o que se passa em Gaza


nem fazer prognósticos para o meu próprio
futuro
não posso escrever um verso a mais foi escrito
e tudo o que já foi dito antes será repetido mais
uma vez no meu próprio caderno

tenho essa escolha


que é um cavalo que passa devagar
e que me desabriga de mim mesmo

[uma ferida aberta com todas as


possibilidades de tempo].

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2.

começa por escrever sem vícios de forma


sem domínio claro e preciso da linguagem
não precisas voltar nem deslizar sorrateiramente
pela história da literatura
ela não te pertence
nem tu a ela

diz: vou jantar com o coração apertado


não tenho espaço para mergulhar
sem pé, nem tenho medo
vou mergulhar de bruços em todo o teu poder

[violo e esta é a minha verdade,


a língua vivida sem escafandro].

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3.

o meu pequeno deus doméstico


ininterruptamente escrevendo na argila:

constrói uma pequena linguagem que


possa alimentar os pássaros.

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4.

para o Eugénio Outeiro e o Vincenzo Natali

pergunto-te a ti, Sara, se da voz


te fazes labirinto e procura incessante
dos dedos. pergunto-te se sentes
dúvidas, se amas a água, o cubo
fechado, o irracional
que se encontra no interior do
ventre materno.

pergunto-te se calas os homens


quando te aproximas com um
alguidar branco, às vezes é difícil
amar quando as perguntas que
fazemos não formam eco: a empatia
do corpo e dos olhos

pergunto-te, Sara, se a fortaleza


existe, se somos estrelas ou bem-
aventurados no interior de um
labirinto sem chão: o ventre materno
permeia a água e dá um pouco
de si à chuva que cai
da minha / tua janela.

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pergunto-te se os rios que correm
fazem perguntas: um texto não
precisa de respostas nem de velhos
pontos de interrogação que evitam
a sua fragilidade intocada.

todo o labirinto / cubo / espaço mágico


é um misto de peles e de pontos
sagrados: não se permite conhecer,
apenas sobrevoar pelo dom da vida.

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5.

no meu ventre, uma infinita nascência de verbo


e a ânsia furiosa de nomear o mundo

esta uma palavra, esta uma combustão


silenciosa de partículas,
aqui um homem e a matéria dentro dele:
uma supernova

aqui um risco dentro da verdade,


ali o silêncio da metáfora.

toda a literatura
toda a tradição
num baixo-corpo
prenhe de linguagem.

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6.

há um instante quando a
agulha penetra a pele
e o dragão é a única verdade
do sangue

há um instante
[e há toda a eternidade
quando o terreiro sagrado
se ilumina com os pés
das águias].

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7.

tinha de esperar que a voz viesse,


num súbito apagão de ruas
ou num crescente volume dos corpos,

até que restasse apenas o que se poderia dizer


quando nos deitamos sobre alguém
e lhe dizemos que o corpo
pode mais que a linguagem
e que os pássaros se escondem na boca dos rios,
lambendo o seu voo e admirando o olhar dos
humanos
abrindo sílabas entre as paredes.

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8.

não há
nem pode haver memória
que o corpo possa suportar,
apenas a ânsia de vida
e de calor humano

e de uma escrita capaz


de atingir a mais radical
profundidade da pele.

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9.

a poesia nasce de um acto de amor


inacabado entre deus e o anjo.
Dioniso espera, sussurrando
as vestes e erguendo o verdadeiro
sentido de liberdade que só ele
conhece.

não morri,
mas olhei de perto os
passos de um deus em fogo.

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10.

debaixo do vestido, não há religião


nem nada se religa a nada:
escreve-se o poema como se diz:

[a água caminha torta


pelas aluviões espessas de luz].

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11.

a cidade voa,
e com ela os pássaros:

o rumor das pequenas aves


que se levantam do ar
até à altura das falésias.

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12.

sinto o chão que piso


a barriga dos animais
a mátria oracular que é
das hienas e das vozes
transparentes do sexo

sinto o vaso transbordante


a raiz fresca e boa
o orgasmo, a vida pulsante
abrindo e celebrando
o corpo

sinto a fértil vertigem


as casas abrindo-se aos dedos,
um sono líquido, distante
abrindo do deus
a minha certeza.

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13.

são espadas, punhais


presos à carne
com rios de vida
a percorrerem o ferro

e o longo abraço do
vento, e o punhal
dançando, dançando
sobre o ventre de asas feridas.

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14.

é bom escrever
num risco sempre grande de morte

sem posteridade
e com esse corpo imenso
que nos questiona

para onde te permites cair


e com que palavras te alimentas.

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15.

sabes, Walt,
um livro nunca terá a dimensão de uma vida ou
de um corpo,
nem as suas palavras estremecem como estremece
um lago, um rio ou um oceano

são dimensões opostas:


a linguagem e a natural visceralidade do
poema,
um poema sem metafísica,
mas com toda a intensidade de quem não espera mais
nada
senão o próprio desejo de
viver,

de quem não escreve mais nada


senão essa convicção plena
que matar é sinónimo de
tornar escura essa voz.

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16.

para a Hope Sandoval e a Rachel Goswell

perguntas-me se alguma vez escrevi poemas com


gente dentro
ou se era apenas a voz da
linguagem a inventar nomes, lugares, sons,
a emoção vivida
[e sempre fingida
como todos os livros ensinam]

perguntas-me se alguma vez haverá algum


homem como Johnny ou se o velho Ethan
encontrará paz num qualquer lugar bem
longe de Monument Valley

perguntas-me se alguma vez escrevi


poemas de amor ou se as pessoas
[as vozes dentro do texto existiam
como existe o silêncio crescente das neves]

perguntas-me o que fica por detrás


mas o velho Jeremiah Johnson nunca pensou sequer
em palavras quando dormia junto com as
estrelas.

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17.

primeiro exorcismo: transformar figuras de


linguagem em rituais mágicos de combustão.

segundo exorcismo: escrever sempre um corpo gira


sobre si próprio até ao limite das suas páginas.

terceiro exorcismo: uma palavra vale sempre mais


do que duas palavras desalinhadas.

quarto exorcismo: nada vale o quotidiano se não


deixar entre-ver uma pequena vivência e uma
pequena dialéctica de linguagens.

quinto exorcismo: viver é a dupla matéria de


escrever.

sexto exorcismo: no interior da metáfora, não há


aconchego para a vivência.

sétimo exorcismo: não tenhas medo de te


transformar em mito de ti próprio.

oitavo exorcismo: a escrita é a matéria escura do


universo.

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18.

toda a minha noite é um auto de fé.

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19.

tenho um pássaro a voar sobre o meu nascimento


asas abertas sobre um corpo que se contorce de vida
essa vida [e esse mar tão estranho
como estranha a maternidade que me enche de luz

esse pássaro
ser-de-madrugada e de palavras livres
pássaro quase-materno e quase-feliz
com as asas abertas sem metáforas
e sem língua para escrever,

pássaro que abre o sol


e que olha com profundo amor
esse primeiro choro

[rio subtil entre duas mãos].

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20.

poderei nascer
[ou desnascer
na leveza de uma catástrofe],

mas o poema será


para sempre
o último lugar do sol.

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21.

tanto mar existe nessa estranha solidão,


e, contudo, permanecemos
abertos ou fechados,
indecisos ou com a certeza das correntezas,

apenas este mar ou um lugar dentro


de um rio interior,

sim,
porque escrevo com o coração recortado
e com um grande lago
aberto para todas as janelas.

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22.

a linguagem não tem esse poder:


transformar em metafísica
o que em mim nasce com tanto corpo

[um poema é uma jangada dentro de um


quarto escuro,
numa casa virada para o mar].

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23.

aquele silencioso rio


tão antigo como o Eufrates
porque foge
porque se demora
na sua ânsia de suicídio?

porque se alimenta dos limites do mar


e escreve em linhas negras de aluvião?
- descem sobre as cordilheiras
pequenas gotas de chuva e de lama

porque cala e diz?


- as nuvens são mais espessas que o pensamento
e inundam

[como num sopro


o voo rasante das gaivotas].

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24.

dai-me a terra e dar-te-ei o útero.

29
25.

escrevo esse vazio com todas as minhas águas


gravidez / desnascimento / olhar essa palavra
em todos os contrários e em todas as direcções

talvez assim possa ser habitado por gente


ou por pássaros, por um vento
que sangre do meu ventre

[numa palavra feliz].

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26.

pergunto-te se nesse vagaroso mar


desfias as contas e as algas
se ofereces como voo
todo o teu encantamento e
a tua breve palavra,

pergunto-te de uma maré que encolhe


e agita e abre caminhos
que é mais perto ou-mais-longe
do que um poema
ou uma concha

pergunto-te se um trevo é mais vibrante


do que um cavalo assaltando
vidas e casas e paisagens
e talvez um pouco desta ordem
natural das coisas

um cavalo tem sempre os deuses irados e felizes


iluminando a maresia da praia.

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27.

traz-me o inferno
[o inverno
a secura das estações
em constante movimento]

traz-me a água
[tão desgastada e sem verbo
e sem aquele constante calor
dos dias de sol]

traz um pouco desse gesto


[que fica do teu movimento
e de um adeus sempre igual
às ondas de um naufrágio]

traz-me com todo o amor que possas


uma ilha aberta
e todas as possibilidades de escrita.

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28.

uma estrela tem o brilho incondicional de um


homem
brilha na alta noite
porque do seu interior
uma nuvem de carbono
permitiu-se escrever
na matemática dos rios

[água,
uma corrente de sol a iluminar a escritura].

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29.

tudo é caminho e chão1


neste pequeno verso:

tenho medo de atravessar a rua


ou escrever com altivez
que já sei provar da memória
todo o amor e todo o atrevimento

tenho toda essa certeza


que faz o olhar pertencer
ou morrer de uma palavra,

gravidez
ou pequena-morte-de-vida,
não importa:

só sei nascer do mar.

1
“Não quero que vás à monda” da Ronda dos Quatro Caminhos

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30.

começa por dizer:


esta linguagem apenas vive
quando todos de nós
[num canto-claro-vivo]

nascerem de seu amor


e de sua natural tendência
para a ternura,

desse amor tão-louco-de-deuses


e de água e de algas e de pássaros
interiores

desse amor tão devastador


como a saliva acabada de
cozer,

desse amor que abre


as flores e as pétalas
e o que vier depois,

[sem remorso].

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31.

tudo isso que trazes


como velas rasgadas
ao sabor das ondas,

tudo isso que guardas


como alimento
diário de esperança,

tudo isso e mais qualquer coisa


[talvez esse fruto e essa quase
ternura],

tudo isso sabe pouco


diante desta águia
deslizando a primavera.

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volta d' mar

Hibernu Luís Paulo Meireles


pólen Catarina Galego | m. parissy
Caderno de Milfontes Rui Almeida
Rogil Henrique Manuel Bento Fialho
Mulher Inclinada Com Cântaro Jaime Rocha
luz submersa no farol d' Alexandria aa vv
O Gato Visitador Carlos Alberto Machado
noite dos licornes m. parissy
Era Uma Vez O Branco Rui Tinoco
Fragmentos Tunisinos Amadeu Baptista
abrigo do silêncio Luís Paulo Meireles
Canto Finissecular Nuno Rebocho
língua m. parissy
Ínfimo Vento Ana Horta
Sítio Manuel de Freitas | Inês Dias
noite que abre Jorge Vicente
bairro Luís Paulo Meireles
Ferido m. parissy
A Grua Henrique Manuel Bento Fialho
A Mão Heteronómica Rui Tinoco
Untitled Sandra Costa
só esperava a viagem prometida António de Miranda
sete aa vv
Mar de um tempo sem âncoras Miguel Rego
Aprendiz manuel a. domingos
cavalo que passa devagar
Jorge Vicente
capa de Inês Ramos a partir de pormenor
de pintura de Sofia Freire d'Andrade
impressão Gráfica 99
Maio 2019

voltadmar@gmail.com

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