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A indústria

Pedro Lains

Capítulo 7
A indústria

A característica mais importante do desenvolvimento da economia por-


tuguesa ao longo do século XIX foi a sua progressiva, embora lenta, indus-
trialização. Houve momentos difíceis para a indústria – como, de resto,
para toda a economia –, mas a verdade é que em nenhum período do sécu-
lo se verificou um retrocesso prolongado do crescimento industrial do país.
Claramente, a industrialização portuguesa pode ser representada por uma
curva tendencial ascendente, cavada em alguns momentos por recessões,
rapidamente ultrapassadas. Para a primeira metade do século, período para
o qual a informação quantitativa e os esforços de construção de estatísti-
cas históricas são menores, esta interpretação é menos fundamentada. Para
a segunda metade do século, a interpretação de progresso industrial sus-
tentado é mais fácil de documentar através de informação estatística.
A ideia de progresso industrial continuado é retirada também da análise de
vários indicadores parciais e da observação da evolução da estrutura in-
dustrial portuguesa. Para os anos até sensivelmente 1850 é possível extrair
algumas conclusões sobre as grandes tendências de evolução do sector
com base na leitura crítica de testemunhos de autores que assistiram aos
primeiros passos da industrialização portuguesa, de diferentes interpreta-
ções historiográficas e ainda com base na análise de indicadores parciais
sobre alguns sectores de actividade industrial. Para os anos a seguir à Re-
generação dispomos de índices para o crescimento do produto, assim co-
mo de informação, embora incompleta, sobre a evolução da população

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História Económica de Portugal (1700-2000), vol. II

activa na indústria. Estes dados permitem-nos definir as principais tendên-


cias de evolução do sector industrial português e comparar os resultados
com aquilo que aconteceu no exterior. A partir de uma descrição das prin-
cipais tendências podemos estabelecer uma discussão mais fundamentada
sobre os factores do crescimento e do atraso da indústria portuguesa no
contexto internacional. A conclusão de que a indústria em Portugal co-
nheceu um crescimento continuado ao longo do século contradiz interpre-
tações alternativas que a vêem crescer com pequenos avanços e grandes
recuos, ao sabor de alterações na conjuntura internacional e na política
nacional1.
A análise da informação parcial sobre a primeira metade do século XIX
será aqui feita a partir de determinadas hipóteses sobre um modelo de de-
senvolvimento industrial. Esse modelo tem como base aquilo que sabemos
sobre a história da industrialização europeia, na qual o caso português ne-
cessariamente se insere. Os mais recentes desenvolvimentos da investiga-
ção nesta área levaram à conclusão de que a industrialização na Europa
não foi marcada por momentos de arranque nem dependeu daquilo que
aconteceu num reduzido número de sectores a que alguns autores chama-
ram de «ponta» e que teriam sido os sectores típicos da industrialização
britânica2. A industrialização da Europa foi o resultado do crescimento
num grande número de sectores, sendo esse crescimento dependente de al-
terações nas formas de produção, na utilização de novas tecnologias e de
novos métodos de organização da produção. Ela foi também, sobretudo, o
resultado do aproveitamento das capacidades internas de cada país, sendo
o papel dos mercados de exportação, assim como da importação de capitais
e tecnologia estrangeiros, relativamente reduzido3. Finalmente, é preciso ter
em conta que a industrialização europeia teve um padrão geográfico relati-
vamente definido, em que países periféricos como Portugal aparecem numa
fase mais tardia4. Ao tomarmos em consideração a história europeia, te-
mos de concluir que dificilmente Portugal tinha as condições necessárias
para acompanhar a primeira vaga de industrialização, até sensivelmente
1830, ou mesmo a segunda vaga, no segundo e terceiro quartéis do século
XIX.
No presente capítulo vamos começar por caracterizar a estrutura da in-
dústria portuguesa no início do século e discutir os prováveis efeitos das
guerras napoleónicas. A análise da situação de partida é importante para

1 V. Cabral (1981), Pereira (1983), Reis (1993) e Lains (1995).


2 V. o debate sobre esta matéria em Crafts e Harley (2000).
3 V., entre outros, Crouzet (1990).
4 V. Pollard (1994); v. também Gerschenkron (1962) e Sylla e Toniolo (1991). Quanto
a Portugal, v. também Lains (2002c).

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A indústria

estabelecer as bases da discussão sobre o desenvolvimento da indústria no


século XIX e discutir até que ponto houve oportunidades perdidas. Na se-
gunda parte do capítulo apresentamos algumas conjecturas sobre a prová-
vel evolução da indústria portuguesa entre o restabelecimento da paz e a
Regeneração. Esta análise decorre da interpretação da literatura e aquilo
que aparece como evidente é que a indústria sofreu um certo impulso a
partir de 1834, de tal forma que a Regeneração de 1851 se deu num contex-
to de relativo desenvolvimento industrial. Dada a ausência de referências
quantitativas em número suficiente, as duas primeiras partes do capítulo são
baseadas em grande medida na apresentação da discussão historiográfica
sobre a industrialização portuguesa. Apesar de essa discussão não ser con-
clusiva, a verdade é que ela fundamenta claramente a interpretação de
crescimento continuado para a primeira metade do século. Na terceira par-
te do capítulo analisa-se a evolução da indústria entre 1851 e 1914, perío-
do para o qual já é possível estabelecer com algum rigor tendências e flu-
tuações de crescimento industrial. No período da Regeneração à primeira
guerra mundial, a indústria portuguesa cresceu sob elevada protecção adu-
aneira e discutiremos em que medida a protecção afectou o seu compor-
tamento global. Na última parte do capítulo identificamos as principais
características do desenvolvimento industrial em Portugal ao longo do
século XIX.

O impacto das guerras


O estado de guerra e a grande instabilidade política do início do século
XIX, dentro e fora de fronteiras, implicaram alterações fundamentais no
quadro em que a economia portuguesa se inseria. Em primeiro lugar, a
saída da corte de D. João e do governo e o fim do exclusivo colonial com
o Brasil tiveram implicações no grau de exposição da indústria nacional à
concorrência externa5. Com a maior concorrência de produtos importados
em contrabando em Portugal e com a quebra nas exportações para os mer-
cados coloniais, sectores importantes da actividade manufactureira terão
visto os seus negócios reduzidos por via do aumento da concorrência do
exterior. Por outro lado, as invasões francesas e as guerras liberais tiveram

5 Quanto à história política, v. o capítulo de Paulo Jorge Fernandes neste volume.

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História Económica de Portugal (1700-2000), vol. II

efeitos directos na agricultura, no comércio e na indústria, provocando


seguramente alguma contracção na actividade económica6.
Se é relativamente fácil concluir sobre a formação de condições adver-
sas para a economia portuguesa no curto prazo, mais difícil é determinar o
verdadeiro impacto dessas adversidades nas tendências de evolução da
economia e da indústria. De facto, como não existe informação quantitati-
va suficiente e como os historiadores estão ainda a dar os primeiros passos
nos exercícios de quantificação indirecta da actividade económica, é difí-
cil concluir da importância da instabilidade política e militar destas pri-
meiras décadas do século7. Alguns autores avançaram em tempos a hipó-
tese segundo a qual o rumo da industrialização do país teria sofrido um
choque do qual não viria a recuperar, de tal forma que se teria perdido a
oportunidade de seguir os passos da industrialização de outras nações eu-
ropeias. Esta interpretação é recorrente em escritos de autores que vive-
ram os acontecimentos – o que revela a sua grande incidência –, mas tem
também sido seguida por historiadores que esperariam que Portugal en-
trasse num caminho de industrialização semelhante ao dos países mais
desenvolvidos da Europa de início do século XIX8. Numa perspectiva de
médio e longo prazo, todavia, é possível que os efeitos dos distúrbios mili-
tares e políticos do período entre sensivelmente 1807 e 1834 tenham sido
menos negativos do que terão parecido aos observadores contemporâneos
e a muitos historiadores que mais de perto seguiram as suas análises. Com
efeito, o clima de instabilidade teve efeitos sobretudo na parte da econo-
mia portuguesa mais exposta aos contactos com o exterior e essa parte era

6 A avaliação do impacto das guerras é um dos temas em que se nota a necessidade de


um maior esforço de análise quantitativa, para o qual existe bastante informação por tratar.
Jorge Custódio (1983), pp. 62-63, descreve com algum detalhe os prejuízos directos da
invasão de Junot em 1807, porventura a mais gravosa, baseando-se num relatório de 1810
associado à ajuda financeira que a Grã-Bretanha então concedeu a Portugal como recom-
pensa do alinhamento português. V. também Custódio (1996).
7 Há informação sobre a evolução da produção industrial em Portugal na primeira me-
tade do século que ainda não foi suficientemente trabalhada. Essa informação diz respeito
a determinados sectores industriais e a determinadas regiões, a qual precisa de ser traba-
lhada conjuntamente. O mais recente inventário de fontes sobre a indústria neste período é
dado por Madureira (1997). É também possível estabelecer padrões de crescimento do
produto através de informação sobre consumos. V., quanto a isto, o capítulo de Jorge Pe-
dreira, sobre a indústria, no 1.º volume desta obra.
8 Sideri (1978), p. 173, refere que «a economia portuguesa tinha mostrado, nos finais
do século XVIII, inegáveis sinais de tentar o take-off». V. também Rodrigues e Mendes
(1999), p. 179. A grande distância do nível de industrialização em Portugal relativamente à
Grã-Bretanha, França e Alemanha, na viragem de século, é muito clara para os vários auto-
res. V., por exemplo, Castro (1978), capítulo 1. Menos clara é a pertinência do pressuposto
de que Portugal tinha condições para seguir de perto a experiência daqueles países.

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A indústria

à época necessariamente pequena, em Portugal como no resto da Europa9.


Se tivermos isto em conta, torna-se menos provável que o manifesto atra-
so da industrialização da economia portuguesa ao longo do século XIX
seja resultado sobretudo do conturbado início de século.
A interpretação mais corrente sobre os primeiros passos da industriali-
zação em Portugal decorre largamente das análises de Adrien Balbi e
Acúrsio das Neves, escritas pouco depois de restabelecida a paz europeia.
Segundo estes autores, a indústria portuguesa beneficiou de um certo de-
senvolvimento desde Pombal até às guerras napoleónicas, e as invasões
francesas e o fim do exclusivo colonial no Brasil teriam desviado o país
do rumo da industrialização. Esta interpretação, todavia, baseia-se apenas
em informação sobre a produção das fábricas do reino e as exportações de
manufacturas para o Brasil10. Mas ela recorda-nos que é preciso recuar ao
último quartel do século XVIII para analisar convenientemente o compor-
tamento da indústria portuguesa nas primeiras décadas de Oitocentos.
As fábricas do reino, criadas a partir da constituição da Junta do Co-
mércio, em 1770, foram o principal instrumento da política pombalina de
fomento da actividade industrial. Tratava-se de unidades industriais que
operavam sob privilégios concedidos pela coroa, através da constituição
de companhias ou de contratos de exclusivo e supervisionadas pela Junta
do Comércio. O papel do Estado neste domínio foi bastante alargado, inter-
vindo directa ou indirectamente na criação de unidades industriais concen-
tradas geograficamente e operando sob uma mesma direcção. Esta era a
face visível da modernização industrial do país, que marcava uma clara
diferença relativamente à produção industrial disseminada por pequenas
unidades, laborando em contraciclo relativamente à principal actividade
da população, que era a da agricultura. A lista dos sectores em que as fábri-
cas do reino operavam é muito variada, incluindo têxteis, vidros, cerâmica,
papel, indústrias químicas (cola, esmaltes, tanino ou casca de sobro, cal,
sabão, salitre para explosivos, alcatrão e piche feito a partir da resina de
pinheiro), moagem e destilação e ainda carvão e ferro11. Se a estes secto-
res adicionarmos o da construção naval e o da indústria do tabaco, que de
uma forma ou outra também eram sujeitos a contratos, podemos concluir

9 V., para Portugal, Lains (1991) e, para o caso britânico, Crafts (1985), pp. 125-140.
10 V. Balbi (1822) e Neves (1983).
11 De entre as unidades sob protecção, apenas a produção de chapéus, linhos e sedas
terá guardado as características de produção tradicionais com menores níveis de concen-
tração regional (v. Madureira, 1997, pp. 191-193 e 254-255; v. também Custódio, 1983,
p. 51). De notar que a produção em fábricas e doméstica não era necessariamente concor-
rencial, podendo ter ciclos de evolução paralelos. V., quanto aos lanifícios de Portalegre,
Matos (1998), pp. 310-313; v. também Madureira (1997), pp. 443-444.

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História Económica de Portugal (1700-2000), vol. II

que a intervenção do Estado na indústria era quase universal no que diz


respeito ao espectro dos sectores em que intervinha. Todavia, a indústria
portuguesa não se limitava naturalmente às fábricas do reino, sendo neces-
sário ter em consideração igualmente as várias unidades de produção ma-
nufactureira de reduzida dimensão espalhadas por todo o país, de modo a
satisfazerem a procura de bens industriais de consumo relacionados com a
alimentação, o vestuário, a habitação e o lazer.
Devido à guerra no Atlântico entre a Grã-Bretanha e a França, as ex-
portações portuguesas para o Brasil sofreram uma quebra na última déca-
da do século XVIII, a qual se acentuou depois da abertura dos portos do
Brasil ao comércio estrangeiro. O impacto da quebra nas exportações in-
dustriais foi recorrentemente associado ao eventual declínio de toda a in-
dústria portuguesa. Todavia, ao ter-se em conta o peso relativo das ex-
portações para o Brasil no conjunto da actividade industrial portuguesa,
somos levados a concluir que os ciclos do comércio externo não são uma
boa aproximação dos ciclos da actividade manufactureira nacional. Os
efeitos da perda do exclusivo colonial do Brasil foram, assim, limitados
aos sectores da indústria virados para a exportação e a quebra nessa acti-
vidade não foi crucial para o caminho que a industrialização seguiu em
Portugal12.
A concorrência do estrangeiro era seguramente um factor determinante
para o desenvolvimento industrial português, mas talvez não fosse o mais
importante. Ainda em finais do século XVIII e início do século XIX, a in-
dústria nos vários países europeus dependia muito pouco de transacções
internacionais. Com efeito, o comércio internacional de matérias-primas
industriais, assim como de produtos intermédios e de manufacturas, era
pequeno relativamente ao conjunto do produto industrial da maioria dos
países europeus. É certo que houve um grande desenvolvimento de alguns
mercados relacionados sobretudo com o têxtil de algodão, assim como
com o carvão e o ferro. Todavia, mesmo nesses casos o mercado interna-
cional tinha uma pequena dimensão e, mais importante ainda, tratava-se
de sectores que não representavam uma parte significativa do produto in-
dustrial, sobretudo em países como Portugal.
A parte mais importante da produção industrial portuguesa estava se-
guramente dependente das condições do mercado interno. No que diz res-

12 A bibliografia sobre este tema é vastíssima e, para um bom guia da mesma, v. a dis-
cussão apresentada em Pedreira (1994), capítulo 1; v. também Lains (1989 e 1991), Ale-
xandre (1993), Madureira (1997), capítulo 8, e Pedreira (2000). Madureira (1997) apresen-
ta uma primeira estimativa para índices de preços do comércio externo até 1830, os quais
são fundamentais para a discussão dos ciclos do comércio externo, que tem sido feita ape-
nas com base na evolução dos valores e algumas suposições sobre a evolução dos preços.

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A indústria

peito à oferta, as condições favoráveis dependiam da capacidade da mão-


de-obra em se dedicar a actividades industriais e também da capacidade de
potenciar o esforço de investimento industrial. Relativamente à procura, o
desenvolvimento do sector industrial dependia, evidentemente, da capaci-
dade de procura de bens manufacturados, incluindo bens de primeira neces-
sidade, nomeadamente produtos alimentares, têxteis e vestuário e bens de
maior sofisticação. Neste sentido, para a indústria portuguesa era segura-
mente mais importante aquilo que se passava no sector agrário do que
aquilo que se passava no exterior ou a situação política. As limitações da
informação dada pela evolução das fábricas do reino e das exportações
industriais só recentemente têm vindo a ser explicitamente reconhecidas, o
que tem dado lugar a novas interpretações baseadas em informação adici-
onal – seguramente mais difícil de reunir – sobre a indústria doméstica e
de menor dimensão13.
Seguindo a evolução do comércio externo e das fábricas do reino, Ma-
galhães Godinho sugeriu um modelo a partir do qual procurou explicar o
desenvolvimento da indústria em Portugal. Segundo ele, a produção ma-
nufactureira cresceu no último quartel do século XVIII, o que teria decorri-
do da redução dos meios de pagamento internacionais, resultante da que-
bra na produção de ouro no Brasil e da contracção do comércio externo, o
que impôs ao Estado uma «urgente promoção das manufacturas», sobre-
tudo de bens de luxo e de «relevância estratégica»14. Assim, a necessidade
de substituir importações de bens de luxo (sedas, vidros), bens estratégicos
(construção naval, cordoaria, ferraria, lanifícios) e de angariar receitas
para o Estado esteve por trás da intervenção no sector e resultou no surto
industrial que a evolução das fábricas do reino parece mostrar. Fundamen-
talmente, estes ciclos industriais responderam a descidas de preços associ-
adas a descidas nos lucros industriais15. Para o mesmo autor, a indústria
portuguesa teria conhecido um período favorável entre 1812 e 1826, ao
qual se teria seguido um período de recessão até 1835, data em que um
novo «surto» industrial teria tido início16.
Jorge Pedreira defende que o efeito a que se refere Magalhães Godinho
se deu sobretudo no que diz respeito ao consumo de bens industriais pelo
Estado e pela «sociedade de corte», concluindo que o impacto da política
de intervenção na indústria teve uma dimensão menor17. De facto, é preci-

13 V. capítulo de Jorge Pedreira sobre indústria no vol. I desta obra.


14 Pedreira (1988b). Quanto ao modelo de Godinho, v. também Castro (1978),
pp. 128 e segs.
15 V. também Serrão e Martins (1978), p. 20, e Pedreira (1988b).
16 V. Godinho (1955), p. 280.
17 V. Pedreira (1988b), pp. 279-280.

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so ter em consideração que a produção industrial em Portugal não se limi-


tava à produção nas fábricas do reino. Não é possível saber a verdadeira
dimensão do sector industrial português e, por conseguinte, o peso que as
indústrias sob protecção tinham no total. Todavia, para a correcta análise
da evolução da actividade industrial seria necessário ter em consideração
o que aconteceu às unidades de produção disseminadas pelo país operando
para os mercados locais18.
O número de fábricas duplicou entre as duas contagens existentes para
1813 e 1822, mas Pedreira está de acordo com Borges de Macedo na ideia
de que isso foi apenas um «modesto recomeço de actividades». E acres-
centa: «Não se gerou, verdadeiramente, um novo impulso industrializador,
comparável aos de fins de Seiscentos e de Setecentos, mas a recomposição
vai nitidamente além de um modesto reinício de laboração.» Para corrobo-
rar esta tese, Pedreira faz referência a algumas inovações tecnológicas
introduzidas em algumas fábricas por esta altura19.
Aquilo que se pode concluir das deduções acima apresentadas é que as
primeiras décadas do século XIX não foram favoráveis ao crescimento dos
sectores industriais em que o comércio internacional era mais desenvolvi-
do. Com a ocorrência de, simultaneamente, problemas nos mercados co-
loniais de produtos industriais e de menor capacidade do Estado em taxar
as importações, a estrutura do sector industrial português não poderá ter
deixado de sofrer importantes alterações. Dado que os sectores virados
para o exterior seriam provavelmente mais avançados do que os sectores
industriais que forneciam os mercados nacionais, é possível que o impacto
negativo da contracção dessas actividades industriais tivesse efeitos mul-
tiplicados. Todavia, esse impacto seria sempre limitado à relativamente
reduzida dimensão desses sectores. Com efeito, uma parte muito mais im-
portante do sector industrial português, nomeadamente virada para a ofer-
ta de bens de consumo para satisfação do mercado interno, não foi direc-
tamente afectada pelas convulsões dos mercados internacionais.

18 Existe informação sobre a importância relativa da produção das fábricas do reino e


da indústria doméstica para alguns casos particulares. Segundo Matos (1998), pp. 456-462,
nas primeiras décadas do século XIX a indústria das fábricas de lanifícios de Portalegre
produzia sensivelmente o mesmo valor de panos que a indústria doméstica.
19 V. Pedreira (1988b), pp. 280-281. Para Jorge Custódio (1983), p. 38, os anos de
1807 e 1808 teriam marcado a viragem para um período de «conjuntura desfavorável» e
1810 a «difícil concorrência com a Inglaterra». V. também Alexandre (1986). Todavia, a
inflexão nas exportações para o Brasil ocorreu em finais do século XVIII (v. Lains, 1991, e
Pedreira, 2000).

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A indústria

O segundo fôlego (1835-1851)

Com base no mesmo modelo em que as flutuações da produção indus-


trial são inferidas a partir de flutuações do comércio externo e dos preços
internos, Magalhães Godinho (1955) defende a existência de maior cres-
cimento industrial a seguir à vitória liberal de 1834. Essa interpretação é
também defendida por Borges de Macedo, segundo o qual teria havido um
«crescimento [industrial] acentuado desde meados da década de 1830»20.
Mais uma vez, os historiadores seguem a interpretação de autores coevos,
neste caso Oliveira Marreca, que refere um «incremento fabril» para esses
anos. E, de facto, há alguns indícios fortes de recuperação da actividade
industrial que marcam alguma diferença com as décadas anteriores. Em
defesa da ideia de progresso industrial neste período, David Justino (1988-
-1989) refere a mais rápida evolução das importações de algodão em fio,
desde 1834, e em rama, desde 1842. Este autor lembra ainda o facto de se
ter introduzido a máquina a vapor para utilizações industriais, em 1835.
Entre 1835 e 1852, o número de máquinas utilizadas subiu a 70, totalizan-
do uma potência de 983 cv21. Tal como nos países donde elas foram im-
portadas, as máquinas em Portugal eram utilizadas essencialmente na fun-
dição de metais, na fiação de algodões, na moagem de cereais e no fabrico
de papel. Tratava-se de sectores mais receptíveis a inovações quanto à fonte
da força motriz utilizada, mas onde continuaram a predominar fontes al-
ternativas de energia. O avanço nesta matéria seria lento durante largos
anos, já que em 1881 ainda só havia 328 máquinas a vapor no país com
uma potência total de pouco mais de 7000 cv22.
A ideia de progresso industrial a partir sensivelmente de 1835 é ainda
suportada por uma «curva de industrialização» elaborada por Serrão
(1980) com base no número de estabelecimentos industriais criados em
Lisboa e no Porto. É um indicador seguramente parcial, uma vez que não
traduz o nível de produção ou o nível de emprego, mas não deixa de ser

20 Macedo (1983), p. 281.


21 V. Justino (1988-1989), vol. II, pp. 127-128; v. também Custódio (1983). A utiliza-
ção do vapor como força motriz foi inicialmente experimentada em Portugal nas ligações
marítimas entre Lisboa e o Porto no início da década de 1820, mas só se tornaram regula-
res partir de 1837. O vapor havia sido dado como tendo sido introduzido na indústria ape-
nas em 1835, mas estudos mais recentes revelam o seu aparecimento anterior. No Brasil, o
vapor foi introduzido ainda na década de 1810 (v. Rodrigues e Mendes, 1999, pp. 186-
-187). A potência instalada em Portugal atingia valores extremamente baixos, no contexto
dos países mais avançados da Europa. Em Inglaterra, por exemplo, havia em 1838 cerca de
10 000 máquinas, com uma potência total de 100 000 cv.
22 V. Serrão e Martins (1978), pp. 360-364; v. também Castro (1978), capítulo 1.

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História Económica de Portugal (1700-2000), vol. II

relevante quando tomado em consideração com o resto da informação de


que dispomos. Assim, entre 1801 e 1813 fundaram-se 3 unidades por ano,
entre 1814 e 1825, 13 unidades por ano, subindo depois ligeiramente para
19 unidades por ano entre 1826 e 1834, para depois duplicar, entre 1835 e
1845, para 46 unidades por ano. Desta forma, das 863 unidades existentes
em 1845, mais de metade (506) foram fundadas depois de 183523. Algu-
mas das «fábricas» fundadas desde o início do século entretanto desapare-
ceram, sobretudo no período das invasões francesas, mas, apesar disso, a
evolução aqui apresentada não deixa de revelar uma forte hipótese de ace-
leração da constituição de unidades industriais a partir de meados da dé-
cada de 1830.
Jorge Pedreira defende também que ao longo da década de 1840 houve
um crescimento no número e na actividade de grandes estabelecimentos
industriais que passaram «a comandar o metabolismo do tecido industrial».
Esta ideia é, por sua vez, corroborada pela sucessiva instalação de novas
grandes fábricas e por aumentos consideráveis de importação de matérias-
-primas24. A criação de grandes fábricas de têxteis em Lisboa, Torres No-
vas e Alenquer, assim como a fundação da fábrica de tabaco de Xabregas,
associada a fortes aumentos de importação de fio e de rama de algodão,
dão solidez à ideia de que este género de produção industrial estava em
franco crescimento. Apesar de se tratar de sectores industriais com carac-
terísticas particulares e de representarem uma parte necessariamente redu-
zida da produção e do consumo de bens manufacturados em Portugal, di-
ficilmente estes sinais de crescimento industrial não representam um
movimento positivo para toda a produção industrial portuguesa25. Aliás,
com recorda ainda Jorge Pedreira, socorrendo-se da avaliação de David
Justino (1988-1989) com base nas estatísticas da produção nacional, tam-
bém a agricultura portuguesa conhecia então sinais de franca recupera-
ção26.
Um outro indicador da evolução da indústria portuguesa refere-se à
evolução das unidades industriais com mais de 10 trabalhadores em Lis-
boa e no Porto. Esses dados são apresentados no quadro n.º 7.1 e aí
pode ver-se que o crescimento do número de operários e de unidades indus-

23 V. Godinho (1955), pp. 245-246, e Serrão (1980), pp. 79-81.


24 Pedreira (1988b), p. 282.
25 Quanto ao peso das unidades de maior dimensão no total da produção industrial do
país, temos indicação para a década de 1820 que aponta para um total de 11 810 operários.
Desta forma, a proporção de trabalhadores em fábricas de maior dimensão relativamente
ao total seria de 61%.
26 V. Lains (1995), capítulo 2.

268
A indústria

7.1

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História Económica de Portugal (1700-2000), vol. II

triais, no conjunto das duas cidades, foi maior depois de 1829-1830 relati-
vamente ao período entre 1814-1815 e 1829-1830. O fraco crescimento do
número de operários recenseados deveu-se ao facto de ter havido uma
contracção em Lisboa nesse período, contrastando com o que sucedeu no
Porto, onde houve um aumento significativo do número de operários e de
unidades industriais. Quem mais perdeu com o fim do monopólio comer-
cial do Brasil foi Lisboa. Quanto ao número de operários recenseados para
todo o país, existe informação referente à década de 1820 e aos anos de
1845 e 1852. Assim, a população recenseada aumentou de um total de
7257 operários laborando em unidades com mais de 10 trabalhadores na
década de 1820 para 12 874 em 1845 e 15 897 em 185227. No quadro
n.º 7.2 apresenta-se a evolução da estrutura da população industrial, po-
dendo ver-se algumas permanências relevantes, como sucede com os
têxteis, que mantêm uma posição dominante ao longo de todo o século.

Composição do trabalho industrial (1815-1910)

[QUADRO N.º 7.2]

Rodrigues e
Pedreira
Lains (1995) Mendes Lains (1995)
(1994)
(1999)

1815-1825 1845 1852 1896 1910 I 1910 II

Algodões................................ 31,3 31,4 34,5 25,5 33,7 27,1


Lanifícios............................... 12,3 24,5 26,3 19,4 16,6 15,6
Linhos.................................... 1,6 2,2 2,7 4,3 3,6
Chapéus................................. 9,9 n. d. n. d. 3,7 n. d. n. d.
Couros.................................... 13,9 n. d. n. d. 1,9 n. d. n. d.
Alimentares............................ 2,9 5,4 5,3 3,7 7,3 6,1
Cortiça................................... n. d. 0,8 1,2 9,5 7,4 8,9
Tabaco................................... n. d. 4,3 9,4 10,4 6,6 4,5
Produtos metálicos................. 10,0 7,0 5,8 6,2 6,1 12,2
Papel...................................... 3,9 9,8 7,6 3,2 2,7 2,8
Cerâmica................................ 14,3 14,7 6,7 5,9 4,1 5,3
Sabões................................... n. d. n. d. 0,5 0,5 1,2 1,0
Conservas de peixe................ n. d. n. d. n. d. 10,1 9,9 12,9
Total................................. 100 100 100 100 100 100

Fontes: Segundo indicado.

27
Dados extraídos de Justino (1988-1989), vol. I, p. 84, Lains (1990), p. 36, e Jorge
Pedreira (1993), p. 70; v. também Castro (1978), pp. 27-28, e Custódio (1983), pp. 44 e 52.

270
A indústria

A industrialização da economia portuguesa


(1851-1914)

Apesar dos avanços em meados do século XIX, quando a generalidade


das economias do Nordeste europeu já havia atingido um considerável
desenvolvimento industrial, Portugal ainda era um país essencialmente
agrário e economicamente atrasado28. A indústria havia progredido desde
o início do século, mas esse progresso foi claramente insuficiente para
alterar de forma significativa a estrutura da economia portuguesa. A partir
de sensivelmente 1850, o desenvolvimento das economias mais industria-
lizadas mostrou-se cada vez mais ligado ao crescimento do comércio e do
investimento internacionais, assim como dos fluxos migratórios entre a
Europa e as Américas. O comércio internacional, o investimento e as migra-
ções internacionais contribuíram largamente para a especialização indus-
trial a nível nacional, que levou a ganhos substanciais nos níveis gerais de
produtividade e nos níveis de produtividade industrial29. Os países que
participaram nestes movimentos viram os seus níveis de produtividade e
de rendimento per capita convergirem de um modo que até então não ha-
via sido conhecido30.
Apesar de se ter mantido um país com elevados níveis de protecção al-
fandegária, Portugal participou nestes movimentos ainda durante a década
de 1840, mas sobretudo desde que a estabilização política da Regeneração
permitiu que Fontes Pereira de Melo, em 1854, repusesse Portugal na lista
dos países com crédito no estrangeiro31. Assim, o país passou a beneficiar
de investimentos do estrangeiro, sobretudo através da emissão de títulos
da dívida pública no exterior e de outras formas de empréstimos ao Esta-
do, ao mesmo tempo que se desenvolveu o sector exportador e emigraram
pessoas para o Brasil. Paralelamente, a economia portuguesa beneficiava
da possibilidade de importar bens alimentares, essenciais para uma popu-
lação em crescimento, e produtos intermédios para a indústria. Tudo soma-
do, a parte da economia portuguesa relacionada com o exterior tornou-se

28 A industrialização não era a única via para o progresso económico, como se com-
prova pelo desenvolvimento atingido por economias agrárias, como a da Dinamarca e a
dos Países Baixos. Para uma perspectiva comparada dos níveis de industrialização euro-
peia, v. Pollard (1994) e bibliografia aí citada.
29 V. O’Rourke e Williamson (1999).
30 A bibliografia sobre convergência é vastíssima e pode ser seguida a partir de Maddi-
son (2001).
31 V. Mata (1993) e Esteves (2003).

271
História Económica de Portugal (1700-2000), vol. II

mais dinâmica e moderna32. Mas não foi suficiente e é preciso compreen-


der porquê. Para isso é preciso ter em atenção que os problemas da indús-
tria portuguesa não se prendem com a inexistência dos factores de cresci-
mento presentes noutros países, mas com o facto de os mesmo factores
terem tido comportamentos menos dinâmicos.
As tendências de industrialização da economia portuguesa estão paten-
tes nos quadros n.os 7.3 e 7.4, onde pode verificar-se que o sector industri-
al passou de cerca de 13% do produto interno bruto em 1850 para cerca de
27% em 1910. Esta alteração estrutural foi o resultado de um crescimento
do produto industrial de cerca de 2,4% ao ano, quando o sector agrário
cresceu apenas à taxa de 0,78% ao ano entre as mesmas datas. No quadro
n.º 7.5 são dados os principais ciclos da evolução da indústria portuguesa,
definidos a partir de anos de pico da produção. Aí se verifica um ritmo de
crescimento sensivelmente abaixo de 2,5% ao ano até 1873, seguido de
uma ligeira contracção entre 1873 e 1890, para depois se dar uma recupe-
ração para taxas iguais ou ligeiramente superiores às do terceiro quartel do
século. Desta periodização conclui-se que a crise financeira de inícios da
década de 1890 não teve, aparentemente, efeitos negativos no crescimento
da indústria portuguesa33. No quadro n.º 7.6 podemos verificar que a pro-
dutividade do trabalho industrial teve um período relativamente favorável
entre 1880 e 1900, o qual coincidiu com o período de maior crescimento
de produtividade do trabalho também no sector agrário34.
Apesar dos sinais positivos dados pelo crescimento industrial em Por-
tugal, a verdade é que a industrialização da economia acabou por não ser
suficiente para recuperar o atraso relativamente aos países mais industria-
lizados, uma vez que não ultrapassou o ritmo de crescimento industrial
dos países mais avançados, como a Grã-Bretanha, a França e a Alemanha
ou mesmo a Itália e a Espanha. De facto, entre 1861 e 1911, a indústria
portuguesa cresceu a uma taxa semelhante ou inferior à dos países mais
industrializados representados no quadro n.º 7.6.

Estrutura da economia portuguesa (1850-1910)

32 V. Lains (1995), cap. 2.


33 V., quanto a isto, Cabral (1979) e Lains (1995). Esta conclusão é apresentada de
forma hipotética, pois a sua verdadeira compreensão depende de um complexo exercício
contrafactual.
34 Para uma diferente interpretação, v. o capítulo de Jaime Reis neste volume. As dife-
renças de interpretação decorrem do facto de este autor considerar períodos mais longos.
V., para mais pormenores, Lains (2003b) e (2003c), onde se mostra a existência de uma
correlação positiva para a evolução da agricultura e da indústria em Portugal durante a
primeira metade do século XX, revelando a importância da evolução da procura interna
para as alterações estruturais associadas à aceleração do ritmo de crescimento económico.

272
A indústria

(percentagem em relação ao PIB a preços de 1910)

[QUADRO N.º 7.3]

Agricultura Indústria Serviços

1850..................................................................... 45,4 13,1 [41,5]


1860..................................................................... 36,8 18,2 [45,0]
1870..................................................................... 37,6 17,1 [45,3]
1880..................................................................... 36,4 18,9 [44,7]
1890..................................................................... 41,5 21,7 [36,8]
1900..................................................................... 41,5 24,9 [33,6]
1910..................................................................... 36,6 27,1 36,2

Nota: Os anos referem-se ao centro de médias trienais.


Fonte: Lains (2003c).

Crescimento da economia e da população


em Portugal (1850-1910)
(crescimento anual, em percentagem)

[QUADRO N.º 7.4]

Agricultura Indústria PIB População PIB pc

1850-1860.................................... 1,58 3,84 0,16 0,49 0,33


1860-1870.................................... 1,33 0,46 0,92 0,76 0,16
1870-1880.................................... 0,15 1,50 0,64 0,70 0,06
1880-1890.................................... 3,14 3,22 2,19 0,87 1,32
1890-1900.................................... 1,58 3,00 1,52 0,61 0,92
1900-1910.................................... 0,03 2,16 0,87 0,87 0,00
1850-1910.................................... 0,78 2,36 1,05 0,72 0,33

Nota: Os anos referem-se ao centro de médias trienais.


Fonte: Lains (2003c).

Crescimento do produto industrial (1851-1913)


(taxas de crescimento entre anos de máximo)

273
História Económica de Portugal (1700-2000), vol. II

[QUADRO N.º 7.5]

1854-1861……………………………………………… 2,49
1861-1873……………………………………………… 2,26
1873-1890……………………………………………… 1,86
1890-1900……………………………………………… 2,66
1900-1911……………………………………………… 2,44
1854-1911……………………………………………… 2,27
1851-1913*…………………………………………….. 2,24

Nota: * Crescimento ao longo de uma recta de tendência linear.


Fonte: Lains (1995).

Crescimento do produto industrial em alguns países da Europa (1831-1913)

[QUADRO N.º 7.6]

Grã-
França Alemanha Itália Espanha Portugal
-Bretanha

1831-1861………………… 2,53 2,16   4,65 2,49*


1861-1890………………… 2,41 1,34 3,95 1,62 2,33 2,03
1890-1913………………… 2,01 2,45 4,06 2,97 2,01 2,54**
1861-1913………………… 2,21 1,83 4,00 2,22 2,19 2,26

Notas:* 1854-1861; ** 1890-1911.


Fontes: Carreras (1990), p. 79, e Lains (1995).

A conclusão de que o sector industrial português evoluiu positivamente


neste período contraria interpretações anteriores que davam o país como
tendo sofrido de um processo de «desindustrialização» em consequência
de uma determinada especialização produtiva relacionada com o padrão
de trocas internacionais em que o país se inseria. O índice de que dispo-
mos leva-nos também a rebater interpretações anteriores sobre a existên-
cia de determinados ciclos do produto industrial associados a alterações
nominais da política tarifária ou a crises bancárias e financeiras35. Com
efeito, as crises mais importantes nas finanças públicas, no sistema bancá-

35 Quanto aos efeitos da mudança da conjuntura exterior no sector industrial, v. Cabral


(1979), pp. 85 e segs. Até à construção dos índices de produção industrial de Reis (1986) e
Lains (1990), a análise da evolução da indústria portuguesa estava centrada na discussão

274
A indústria

rio e no financiamento da balança de pagamentos não tiveram repercus-


sões visíveis na evolução da produção industrial, particularmente no que
diz respeito às crises bancárias de 1846, à crise bancária e de pagamentos
com o exterior de 1876 e de 1890-1892. Para além disso, as alterações nos
pagamentos dos juros da dívida pública em 1852 e 1892 também não se
reflectiram na evolução da indústria. Esta insensibilidade decorria do facto
de a indústria portuguesa ser pouco dependente do financiamento de insti-
tuições financeiras, à semelhança, aliás, do que se passava no resto da Eu-
ropa36.
Para compreender o fraco desenvolvimento industrial ao longo da se-
gunda metade do século é necessário ter em conta que a indústria portu-
guesa partiu de um ponto de desenvolvimento extremamente baixo, muito
inferior ao de outras economias com que por vezes Portugal é comparado.
Se tivermos em consideração o desenvolvimento industrial de todo o con-
tinente europeu, podemos verificar que os casos de países pobres, como
Portugal, que conseguiram cobrir pelo menos parte do atraso que tinham
em meados do século foram a excepção. Esta constatação obriga-nos a
interpretar aquilo que se passou em Portugal sob uma perspectiva diferen-
te. O baixo ponto de partida da indústria em Portugal implica que o país
não estava nas melhores condições para aproveitar as oportunidades decor-
rentes da extraordinária expansão da economia internacional que então
começava a verificar-se.
Em geral, as interpretações sobre a segunda metade do século XIX es-
tão muito ligadas à preocupação de perceber as razões pelas quais a indús-
tria portuguesa não atingiu níveis de maturidade encontrados noutros paí-
ses da Europa ocidental. Com base nessa preocupação, têm-se analisado
fundamentalmente factores que hipoteticamente não permitiram um maior
desenvolvimento industrial, relegando-se para segundo plano a análise e a
interpretação dos avanços efectivamente alcançados. A procura das causas
do atraso é um exercício essencial na análise de economias como era a
portuguesa do século XIX, mas essa procura não pode obscurecer a análise
do crescimento.

da ocorrência de surtos e crises de produção, os quais provaram ser menos importantes do


que o suposto. Nesta matéria foram pioneiros e fundamentais os trabalhos de Cabral (1979
e 1981), Castro (1978), Pereira (1983) e Serrão e Martins (1978). V. um resumo dessa
discussão em Reis (1993), capítulo 1, e Lains (1995), capítulo 2. Nesse debate, alguns
autores, entre os quais sobressai Pereira (1983), sugeriram que a indústria cresceu mais
devagar do que a agricultura, hipótese que acabou por não ser corroborada pelos resultados
dos índices de produção entretanto construídos. V. também Lains (2003b e 2003d, capítulo
4).
36 V. Reis (1991).

275
História Económica de Portugal (1700-2000), vol. II

Portugal manteve um dos regimes alfandegários mais proteccionistas


de toda a Europa. Os níveis de protecção à produção de bens de consumo
industrial baixaram apenas ligeiramente com a pauta de 1852, para depois
subirem de forma continuada ao longo da segunda metade do século XIX.
Em 1892, ao proteccionismo do território português então confirmado foi
acrescentada a protecção ao mercado das colónias portuguesas de Áfri-
ca37. A interpretação sobre a evolução da política alfandegária portuguesa
foi durante algum tempo menos compreendida, uma vez que se tomaram
como efectivas as declarações dos governos da Regeneração na sua inten-
ção de diminuírem as tarifas alfandegárias e, embora isso tenha sido feito
em 1852, as tarifas dependiam também da evolução dos preços à importa-
ção, que conheceram uma diminuição progressiva até à década de 1890.
A partir de então houve aumento de algumas tarifas nominais cujos efeitos
foram contrariados pelo aumento dos preços das importações verificados
na mesma altura.

Crescimento do produto, do trabalho e da produtividade na indústria (1860-1910)


(taxas de crescimento anual, em percentagem)

[QUADRO N.º 7.7]

Produto Trabalho Produtividade

1860-1880............................................................ 0,95 1,28 0,33


1880-1890............................................................ 3,23 1,44 1,79
1890-1900............................................................ 3,00 0,88 2,12
1900-1910............................................................ 1,97 1,94 0,03

Nota: Os anos referem-se ao centro de médias trienais.


Fonte: Lains (2003c). Períodos definidos tendo em consideração a disponibilidade e
dados para o trabalho.

A protecção alfandegária visou os principais produtos manufacturados


importados e provocou o crescimento de sectores de substituição das im-
portações e, assim, teve efeitos visíveis na estrutura da indústria portugue-
sa. O principal sector a responder à protecção foi naturalmente aquele em

37Para a análise da política aduaneira, v. Lains (2003d), capítulo 3, e o capítulo de Be-


nedita Câmara neste volume.

276
A indústria

que havia mais importações, isto é, o sector têxtil. Assim, os têxteis atingi-
ram uma proporção relativamente elevada no conjunto da indústria portu-
guesa, de tal forma que dificilmente se encontra na Europa da segunda
metade do século XIX um país em que a indústria estivesse concentrada
nesse sector em cerca de 40% (v. quadro n.º 7.2). O crescimento deste
sector afectou naturalmente o crescimento de outros sectores industriais
também ligados à produção de bens de consumo mas porventura mais
adaptados à estrutura dos recursos da economia portuguesa. A compara-
ção com outros países maioritariamente agrários e de menor dimensão
económica, no contexto europeu, mostra que em Portugal o desenvolvi-
mento das indústrias de transformação de produtos da agricultura atingiu
menores proporções. A alternativa de especialização nestes sectores indus-
triais trouxe benefícios consideráveis a alguns países europeus, uma vez
que neste período os níveis de produtividade média em sectores como a
transformação de produtos de madeira, lacticínios ou a produção de azeite
e de vinho de qualidade podiam atingir níveis de produtividade que se
comparavam favoravelmente aos níveis de produtividade dos sectores in-
dustriais ligados à primeira revolução industrial, com base no carvão, no
ferro e no aço.
É difícil avaliar os efeitos do proteccionismo no ritmo de crescimento
industrial, uma vez que a medida desses efeitos depende da interpretação
relativamente ao tipo de crescimento que haveria ocorrido em situação de
maior abertura à concorrência externa. Muito provavelmente, todavia, o
sector industrial não teria atingido o nível que atingiu e o país teria segui-
do uma via de maior crescimento do sector agrário38. O resultado final
desse caminho alternativo dependeria da eventualidade de se desenvolve-
rem sectores na agricultura com níveis de produtividade superiores à pro-
dutividade dos sectores industriais que se desenvolveram sob protecção.
É claro que poderiam desenvolver-se sectores industriais que eventual-
mente poderiam canalizar uma parte importante para a exportação. Toda-
via, atendendo ao nível geral de atraso do país, que se traduzia em baixos
níveis relativos de competitividade no exterior, essa alternativa seria pou-
co provável. O exemplo de alguns países balcânicos que mantiveram as
fronteiras abertas no último quartel do século XIX mostra bem isso. Eram
também países atrasados, tanto quanto Portugal, e a abertura à concorrên-

38 Essa era, aliás, a expectativa de alguns historiadores da economia portuguesa que er-
radamente a consideravam plenamente aberta ao exterior e que avançaram com a interpre-
tação de que seguiu uma especialização internacional ligada ao maior desenvolvimento da
agricultura em detrimento da indústria. Ao contrário, a economia portuguesa teve um pro-
cesso de industrialização mais rápido do que aquele que poderia esperar-se da sua dotação
relativa de factores. V., quanto às interpretações anteriores, Sideri (1978) e Pereira (1983).

277
História Económica de Portugal (1700-2000), vol. II

cia externa, associada à possibilidade de explorar os mercados de países


mais desenvolvidos, nomeadamente na Europa central, não levou ao desen-
volvimento de sectores industriais com capacidade de exportar39.
Outros factores a que o desenvolvimento da indústria portuguesa tem
sido associado de uma forma ou de outra prendem-se ainda com o facto de
o Estado ter exercido uma persistente pressão sobre os mercados de capi-
tais, por via das suas exigências de financiamento, e também com outras
questões relacionadas com o grau de alfabetização e de instrução da mão-
-de-obra industrial. Quanto aos efeitos da dívida pública nos mercados de
capitais, Esteves (2003) defende que não teve efeitos de crowding-out, ou
seja, que as taxas de juro em Portugal não se terão elevado de forma signi-
ficativa por causa da procura de financiamento interno por parte do Esta-
do. Esta conclusão pode ser corroborada pela constatação de que a procura
de investimento seria menor do que a oferta de poupança, como se atesta
pelo grande êxito que recorrentemente as emissões da dívida pública tive-
ram em Portugal e por todo o tipo de aplicações financeiras relacionadas
com o Estado. Com efeito, a análise da história da Caixa Geral de Depósi-
tos no século XIX e de outros bancos, como o Montepio Geral, mostra em
que medida estas instituições financeiras tinham dificuldades em aplicar
os seus depósitos junto de particulares, tendo por vezes de exercer pres-
sões directas sobre os governos para que estes dessem destino a parte das
suas disponibilidades40. Também o Banco de Portugal chegou a mostrar
esse problema, embora de forma menos evidente, até porque a sua natureza
e a sua relação com o Estado eram outras. Deve ter-se em consideração,
quanto a isto, que a utilização de capitais financeiros alheios, quer por via
de bancos ou de outras instituições financeiras, como as caixas económi-
cas, quer por via da emissão de acções ou obrigações nas bolsas, era mais
a excepção do que a regra em quase toda a Europa. Só em países como a
Grã-Bretanha e a Alemanha havia um maior recurso aos mercados de ca-
pitais e isso apenas em alguns sectores industriais que permitiam uma
maior concentração das unidades de produção.
Finalmente, entre as causas de atraso ou de fraco desenvolvimento in-
dustrial conta-se o baixo nível de instrução e de alfabetização da popula-
ção portuguesa em geral e da industrial em Portugal. Segundo Jaime Reis
(1993), o baixo nível de instrução está associado à baixa produtividade do
trabalho empregue no sector. Para este autor, muitas das tarefas em secto-
res como o têxtil eram feitas em Portugal de forma menos eficiente porque

39 Uma excepção importante deste padrão foi a das exportações de debulhadoras de


trigo por parte da Hungria (v. Lains, 1995, capítulo 3).
40 V. Lains (2002b) e Nunes et al. (1994).

278
A indústria

os trabalhadores portugueses tinham uma menor capacidade de aprendiza-


gem e de adaptação às tarefas que lhes eram pedidas. Porventura o mesmo
argumento poder-se-ia estender aos eventuais efeitos na capacidade de
gestão dos industriais, também eles menos alfabetizados, em média, do
que noutros países europeus mais avançados. A relação entre produtivida-
de do trabalho na indústria e níveis de alfabetização e de capital humano
ainda está por ser comprovada de forma mais precisa e esse exercício tem
ocupado muitos investigadores de diferentes países. Todavia, quer fosse
por baixos níveis de capital humano, quer fosse por outras causas, o facto
era que a produtividade do trabalho industrial era cerca de metade da re-
gistada na Grã-Bretanha por volta de 1900. Tratava- -se de uma desvan-
tagem que absorvia a vantagem de os salários médios em Portugal serem
também cerca de metade dos britânicos.

Conclusão

Neste capítulo procurámos pôr em contexto a informação mais impor-


tante sobre a evolução da indústria portuguesa e sobre as principais trans-
formações que ela sofreu ao longo do século XIX. Apesar das dificuldades
impostas pela limitação de informação quantitativa, sobretudo para a pri-
meira metade do século, os elementos disponíveis revelam um sector que
conheceu um crescimento tendencialmente positivo e sustentado. Talvez o
resultado mais importante do desenvolvimento industrial português tenha
sido o de ter conseguido responder ao crescimento interno do consumo de
bens de primeira necessidade, nomeadamente alimentos e têxteis. Esta
característica mostra em que medida o padrão da procura foi importante
para assegurar o aumento da produção. Assim, a industrialização oitocen-
tista em Portugal atingiu uma diversidade relativamente ampla e, para
além disso, há uma clara ligação entre os sectores existentes em finais do
século XIX e aqueles que viriam a desenvolver-se no século seguinte.
Os desenvolvimentos conseguidos não escondem, evidentemente, os
problemas que o sector não conseguiu ultrapassar ao longo do século aqui
analisado. Entre esses problemas conta-se o facto de a base de exportação
da indústria se ter mantido relativamente limitada e isso num período de
desenvolvimento do comércio internacional. A reduzida dimensão das
exportações industriais está directamente ligada ao baixo nível de produti-
vidade do sector, o qual tem várias causas, que procurámos evidenciar no
capítulo. Essas causas estão associadas, por sua vez, a factores históricos
ou estruturais e a factores políticos ou temporários. Entre os factores his-

279
História Económica de Portugal (1700-2000), vol. II

tóricos conta-se o grande atraso da indústria portuguesa no início da fase


de maior ritmo de crescimento industrial na Europa. Esse atraso era uma
desvantagem num contexto de maior concorrência internacional, uma vez
que não facilitou o desenvolvimento de competências específicas na in-
dústria portuguesa. A relação entre os baixos níveis de produtividade in-
dustrial e outros factores, como a reduzida dimensão do mercado ou a fra-
ca dotação dos recursos naturais típicos da chamada primeira revolução
industrial, é mais difícil de estabelecer, já que países de industrialização
mais rápida do que a portuguesa tinham uma dimensão semelhante ou in-
ferior.
Em Portugal, o desenvolvimento industrial manteve-se afastado da ex-
ploração de alguns nichos nos quais o país poderia ter vantagens, tal com
viria a conseguir mais tarde, no século XX. A lista de nichos possíveis está
por estabelecer, mas ela, muito provavelmente, incluiria sectores ligados à
transformação de matérias-primas típicas da agricultura portuguesa e sec-
tores de utilização mais intensiva de mão-de-obra. É possível que a fraca
capacidade de exportação e o fraco desenvolvimento desses nichos fossem
dois efeitos da mesma causa, sendo essa causa o proteccionismo aduanei-
ro, mas este é um problema que fica em aberto até uma melhor exploração
da possibilidade de vias alternativas para a industrialização portuguesa. A
experiência europeia, à medida que se torna melhor conhecida, mostra que
essas vias alternativas eram mais escassas do que até aqui se pressupunha.
E a história da industrialização portuguesa da primeira metade do século
XX, que ocorreu com maior intensidade sob elevadas barreiras alfandegá-
rias, também ajuda a levantar algumas dúvidas sobre a possibilidade de
caminhos alternativos41. O reverso desta me-dalha está no facto de o de-
senvolvimento dos transportes e comunicações ao longo do século não ter
dado lugar a uma maior especialização regional da indústria. Também não
se desenvolveram ligações mais intensas entre a indústria, a agricultura e
o sector da construção. Por exemplo, a indústria da serração de madeira
teve um fraco desenvolvimento, sendo grande parte da madeira utilizada
na construção urbana importada. Também não houve desenvolvimentos
significativos na indústria do vidro para fornecer a vinicultura ou dos adu-
bos químicos para os cereais do Alentejo.
Deixando de parte o estudo das causas do atraso e da possibilidade de
caminhos alternativos, podemos concentrar-nos nos resultados alcançados
por um século de industrialização em Portugal, que traduzem a resposta
do sector às oportunidades surgidas, assim como a várias adversidades
conjunturais. Em primeiro lugar, observámos que a indústria portuguesa

41 V. Lains (2003d).

280
A indústria

mostrou algum dinamismo, respondendo a estímulos vários ao longo do


século. O primeiro sinal desse dinamismo esteve relacionado com a recu-
peração do crescimento sentido a partir de meados da década de 1830,
como resposta à melhoria das condições internas e internacionais. Um
outro sinal foi dado pelo crescimento do sector de produção de têxteis,
como resposta ao aumento da protecção aduaneira. Têm-se notado muito
os efeitos negativos a longo prazo do proteccionismo, e menos o facto de
os industriais terem respondido, no curto prazo, a essa mesma protecção, o
que envolveu seguramente investimentos e capacidade empresarial. Res-
posta semelhante foi dada também com a alteração das pautas coloniais e
o aumento da produção têxtil para vender naqueles mercados.
Nenhuma das causas que têm sido recorrentemente apontadas como
causa do atraso industrial português – quer fosse a falta de espírito empre-
sarial, o fraco nível de instrução ou o elevado grau de proteccionismo al-
fandegário – se mostrou suficiente para o explicar cabalmente. Por isso,
deve concluir-se que o atraso do desenvolvimento industrial em Portugal
manifestado ao longo de todo o século XIX foi o resultado de um amplo
conjunto de factores relacionados com aspectos de toda a economia. Esta
conclusão, se bem que teleológica, é relevante, pois aponta para a necessi-
dade de se procurarem causas mais gerais, as quais serão necessariamente
comuns aos demais países pobres da periferia do Sul da Europa.

281

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