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UMA PESQUISA
Glória de Melo Tonácio (COLÉGIO PEDRO
II/RJ)
RESUMO: pretende-se discutir a relação eu-outro na pesquisa qualitativa de cunho sócio-histórico, bem
como a possibilidade da vivência de momentos de aprendizagens, transformações e resignificações, pelos
sujeitos envolvidos, através da interlocução entre os eventos vividos no campo de pesquisa e o arcabouço
teórico de tal abordagem. Para tanto, discorre-se como a construção da situação de campo, demarca a
reorganização de novos espaços-tempos e relações- a diferença entre pesquisador e seus interlocutores numa
relação alteritária. Nessa perspectiva, as interações não são consensuais. Ao contrário, oscilam entre processos
centralizadores e descentralizadores, entre retrocessos e avanços. Essas idas e vindas revelam todo o caráter
conflituoso, de luta, de divergências e de convergências, que constitui-se a arena social da pesquisa- o
contexto escolar, da mesma forma que, possibilitam a construção e reconstrução de novas práticas e relações
entre sujeitos envolvidos e destes com o conhecimento.
Introduzindo a discussão
Minha formação pedagógica, de quase vinte anos, baseada nos moldes tecnicistas de
educação, aliada à minha experiência como professora do Ensino Fundamental e
inexperiência como pesquisadora, deu-me a ilusão de que os esforços empreendidos
durante a situação de campo de pesquisa1, garantiriam uma investigação sem maiores
dificuldades. Vã filosofia...
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Pesquisa desenvolvida no Mestrado da UFJF/FACED, durante o período de setembro de 2001 a abril de
2003, sob a orientação da Professora Doutora Maria Teresa de Assunção Freitas. Tal investigação objetivou
investigar como um grupo de professoras do segundo ciclo do Ensino Fundamental da Rede Municipal de
Juiz de Fora- MG compreende a proposta de gêneros discursivos presente no PCN de Língua Portuguesa
(MEC) e no Projeto Escola do Caminho Novo (Secretaria Municipal de Educação de Juiz de Fora/SME-MG)
e a colocam em prática no seu trabalho pedagógico. Para isso, buscou-se a compreensão das práticas
discursivas que se efetivavam no trabalho docente de nove professoras de Língua Portuguesa do segundo
ciclo de uma escola da Rede Municipal de Juiz de Fora-MG, através de uma investigação qualitativa, baseada
na perspectiva sócio-histórica. As principais estratégias de pesquisa adotadas foram a análise documental, as
entrevistas dialógicas com os sujeitos da pesquisa, as observação das Reuniões de Planejamentos e de
algumas aulas.
O campo de pesquisa se configurou em uma escola pertencente à Rede Municipal de Juiz de Fora-MG,
organizada em ciclos e localizada num bairro na periferia da cidade. Nos Ciclos de Formação, os alunos são
agrupados de acordo com a idade e pelas suas fases de desenvolvimento: infância, pré-adolescência e
adolescência. A partir dessa organização, foram, então, considerados três ciclos: o primeiro compreendido
entre a faixa etária de 6 a 9 anos; o segundo, de 9 a 12 anos e o terceiro, de 12 a 15 anos. Além disso, cada
ciclo tem uma subdivisão por fases de idade. No caso do segundo ciclo, são elas: fase 9 anos, fase 10-11 anos
e fase 12 anos. A escola pesquisada atende aos três ciclos num total de, aproximadamente, 572 alunos, entre
Devido à minha familiaridade com as pessoas, com os espaços e com as situações
que configuram o contexto escolar, pareceu-me, num primeiro momento, que eu teria
alguma facilidade e que as ações e atitudes desencadeadas no campo de pesquisa seriam
previsíveis. Entretanto, a situação de pesquisa impôs o caráter de desconhecimento e de
imprevisibilidade que caracterizaram toda a pesquisa e a relação pesquisadora-sujeitos da
pesquisa2.
Apesar de minha ilusão, no início da situação de campo, de uma possível
naturalidade, espontaneidade e empatia no encontro com o outro3- reforçada por uma outra,
a de que eu não me diferenciava dos meus interlocutores, já que eu, como eles, estava
ligada ao meio educacional-, os sentidos almejados não foram produzidos.
No momento em que deixei meu lugar de professora para construir um outro lugar,
o de pesquisadora, os sujeitos que faziam parte do meu espaço de trabalho passaram a ser
objeto de estudo para mim. Instaurou-se, então, uma nova interação, entre “o sujeito
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O trecho citado faz parte da descrição do Diário de Campo de 04 de setembro de 2001. Após cada dia no
campo de pesquisa, eu escrevia minhas sensações, impressões e incertezas em um Diário de Campo, que
somou trinta e quatro laudas. A construção desses textos foi muito importante para mim, pois não se limitou
ao mero registro de fatos. Ao contrário, procurei imprimir minhas marcas e autoria, o meu olhar e
compreensão das diferentes situações vividas.
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Tradução livre do espanhol.
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Tradução livre do espanhol.
ver analisado de um certo modo e ocupando um determinado lugar, costuma despertar nas
pessoas a vontade de experimentar um outro lugar uma outra forma interlocutiva. Como
nos diz Bakhtin, o ser humano não suporta se ver enclausurado no dizer do outro”. E, foi
isso que, comigo ocorreu e fez-me buscar o outro lugar: o de pesquisadora.
Entretanto, relação instaurada na situação de campo nem sempre foi consensual, ao
contrário, aconteceu num movimento dialético de jogo de forças e de contraditoriedade, que
perpassaram toda a pesquisa. A situação produzida, naquele momento, foi inversamente
proporcional à por mim vivenciada diversas vezes como professora, o mesmo acontecendo
com a orientação social da enunciação7. Como acontece com uma imagem que se inverte
dentro da câmera fotográfica, o mesmo ocorreu com a situação produzida nos eventos de
pesquisa, determinando novas relações até então desconhecidas para mim.
Foram essas dificuldades que, fizeram-me estabelecer um constante diálogo com os
textos teóricos sobre a pesquisa qualitativa em uma perspectiva sócio-histórica. Uma das
reflexões que, orientou-me foi o estudo de FREITAS (2002 b). A autora, ao estabelecer o
diálogo entre os fundamentos da abordagem sócio-histórica e a obra de BOGDAN &
BICKLEN (1994), elenca seis características da pesquisa qualitativa de orientação sócio-
histórica:
¾ A fonte dos dados é o texto (contexto) no qual o acontecimento emerge, focalizando o
particular enquanto instância de uma totalidade social. Procura-se, portanto, compreender os
sujeitos envolvidos na investigação para, através deles, compreender também o seu contexto.
¾ As questões formuladas (...) se orientam para a compreensão dos fenômenos em toda a sua
complexidade e em seu acontecer histórico. Isto é, não se cria artificialmente uma situação para
ser pesquisada, mas vai-se ao encontro da situação no seu acontecer, no seu processo de
desenvolvimento.
¾ O processo de coleta de dados caracteriza-se pela ênfase da compreensão, valendo-se da
arte da descrição que deve ser complementada, porém, pela explicação dos fenômenos em
estudo, procurando as possíveis relações dos eventos investigados numa integração do
individual com o social.
¾ A ênfase da atividade do pesquisador situa-se no processo de transformação e mudança em
que se desenrolam os fenômenos humanos, procurando reconstruir a história de sua origem e
de seu desenvolvimento.
¾ O pesquisador é um dos principais instrumentos da pesquisa porque, sendo parte integrante
da investigação, sua compreensão se constrói a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa
e depende das relações intersubjetivas que estabelece com os sujeitos com quem pesquisa.
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De acordo com BAKHTIN (1993), a orientação social da enunciação é caracterizada como a orientação
para o outro. Conforme explica o autor, essa orientação faz com que se leve em consideração a correlação
sócio-hierárquica instaurada entre os interlocutores. Assim, qualquer produção discursiva pressupõe a
existência de um (ou mais) falante(s) e de um auditório social, que é conceituado por BAKHTIN (1993,
p.247) como “a presença dos participantes da situação”. Na produção das enunciações, esses elementos são,
ainda, vinculados à situação social definida como “a efetiva realização na vida real de uma das formas, de
uma das variedades do intercâmbio comunicativo”.
¾ O critério que se busca numa pesquisa não é a precisão do conhecimento mas a
profundidade da penetração e a participação ativa tanto do investigador quanto do investigado.
Disso resulta que pesquisador e pesquisado têm oportunidade para refletir, aprender e
resignificar-se no processo de pesquisa (FREITAS, 2002 b, s.p.).
Foi-me possível, ver e sentir o que as professoras jamais poderiam ver, pois para
mim aqueles relatos e experiências adquiriram um outro sentido. Esse olhar diferenciado
foi possibilitado pelo lugar ocupado por mim: um lugar de fora, um lugar exterior. De
acordo com AMORIM (2002),
esse lugar exterior permite (...) que se veja do sujeito algo que o próprio sujeito nunca pode ver
e, por isso, na origem do conceito de exotopia está a idéia de dom, de doação: é dando ao
sujeito um outro sentido, uma outra configuração, que o pesquisador, assim como o artista, dá
de seu lugar, isto é, dá aquilo que somente de sua posição, e portanto com seus valores, é
possível enxergar (AMORIM, 2002, s.p.).
Em cada sujeito estava presente uma voz. Esse ecoar não era um mero reflexo de
uma consciência individual. Ao contrário, eram manifestações de consciências valorativas e
sociais, que compreendiam os enunciados proferidos e reagiam a eles. Pelas vozes das
professoras, obtive o acesso à consciência, através das suas diferentes expressões materiais
(palavras e outras formas), que, segundo BAKHTIN (1992), constituíram-se “em um fato
objetivo” e, ao mesmo tempo, revelaram toda a força social dos signos.
Pela observação mediada dos planejamentos e das aulas, vivenciei, ainda, a
realização de uma auto-objetivação estética. Isto porque, pela primeira vez, pude
experienciar a prática docente em sala de aula em um plano diferente do vivido até então:
ora como professora, ora como aluna. Eu me vi no outro que eu observei de uma outra
forma. Presenciei cenas do cotidiano docente bem familiares para mim. Entretanto, a ótica
dessas cenas mudou. Pela vivência de mim mesma em plano diferenciado, pude refletir
sobre as ações pedagógicas e tomar consciência de aspectos da realidade desconhecidos até
então. BAKHTIN (1992), no seu texto sobre o autor e o herói, oferece explicações para
isso. Para o autor,
[o autor] vive seu objeto e vive a si mesmo no objeto, mas não vive o processo da sua própria
vivência; o trabalho de criação é vivido, mas trata-se de uma vivência que não é capaz de ver
ou de aprender a si mesma a não ser no produto ou no objeto que está sendo criado e para o
qual tende (BAKHTIN, 1992, p.27).
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Tradução livre do espanhol.
Ah, não! Vou ter que ficar decorando oração coordenada e subordinada, sabe? Eu acho que flui
tudo muito natural. Não é porque... Eu vou fazer porque eu sou obrigado e tal.
Sônia- Eu lembro muito que eu tinha muita insegurança de ir lá para frente contar a história...
Ana- Nossa!
Sônia- Hoje, eles lêem a história e contam do jeito deles... Eles vão numa segurança, eles não
têm... Eu tinha muita insegurança de, sabe? De fugir da história eles não. Eles são bem seguros
nisso também.
Mônica- Eu acho que a gente tem que pensar nessa coisa que está começando a acontecer do
ler por gosto... Porque a gente lia por obrigação.
Ana- Eu detestava ler, gente! Eu tinha ódio de leitura.(risos)
Renata- Nossa! Minha mãe me colocava sentada e me obrigava... Tinha provas dos livros, né?
Ana- Queria me matar, era eu entrar na sala e Fátima falar: Olha! Nós vamos ler esse livrinho
aqui.
Mônica- E era engraçado uma coisa que acontecia comigo. Eu era traça de livro. Eu sou, né?
Eu matava a aula, eu saía, eu ficava na hora do recreio lendo... Desde o primeiro tempo, eu
ficava... Eu era apaixonada! Mas, quando a Dona Fátima virava e falava assim: nós temos que
ler tal livro. Eu não lia. Eu tinha o prazer de não ler! (Risos) Porque, assim, eu não vou ler uma
coisa obrigada.
(As professoras começam a relembrar várias situações, através de exemplos, da sua época de
estudante)