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A EXPERIÊNCIA E A ALTERIDADE ENTRE EU-OUTRO: IMAGENS DE

UMA PESQUISA
Glória de Melo Tonácio (COLÉGIO PEDRO
II/RJ)

Se eu mesmo sou um ser acabado e se o acontecimento é


algo acabado, não posso nem viver nem agir: para viver,
devo estar inacabado, aberto para mim mesmo (...), devo ser
para mim mesmo um valor ainda por - vir, devo não
coincidir com a minha própria atualidade. (BAKHTIN)

RESUMO: pretende-se discutir a relação eu-outro na pesquisa qualitativa de cunho sócio-histórico, bem
como a possibilidade da vivência de momentos de aprendizagens, transformações e resignificações, pelos
sujeitos envolvidos, através da interlocução entre os eventos vividos no campo de pesquisa e o arcabouço
teórico de tal abordagem. Para tanto, discorre-se como a construção da situação de campo, demarca a
reorganização de novos espaços-tempos e relações- a diferença entre pesquisador e seus interlocutores numa
relação alteritária. Nessa perspectiva, as interações não são consensuais. Ao contrário, oscilam entre processos
centralizadores e descentralizadores, entre retrocessos e avanços. Essas idas e vindas revelam todo o caráter
conflituoso, de luta, de divergências e de convergências, que constitui-se a arena social da pesquisa- o
contexto escolar, da mesma forma que, possibilitam a construção e reconstrução de novas práticas e relações
entre sujeitos envolvidos e destes com o conhecimento.

Introduzindo a discussão
Minha formação pedagógica, de quase vinte anos, baseada nos moldes tecnicistas de
educação, aliada à minha experiência como professora do Ensino Fundamental e
inexperiência como pesquisadora, deu-me a ilusão de que os esforços empreendidos
durante a situação de campo de pesquisa1, garantiriam uma investigação sem maiores
dificuldades. Vã filosofia...

1
Pesquisa desenvolvida no Mestrado da UFJF/FACED, durante o período de setembro de 2001 a abril de
2003, sob a orientação da Professora Doutora Maria Teresa de Assunção Freitas. Tal investigação objetivou
investigar como um grupo de professoras do segundo ciclo do Ensino Fundamental da Rede Municipal de
Juiz de Fora- MG compreende a proposta de gêneros discursivos presente no PCN de Língua Portuguesa
(MEC) e no Projeto Escola do Caminho Novo (Secretaria Municipal de Educação de Juiz de Fora/SME-MG)
e a colocam em prática no seu trabalho pedagógico. Para isso, buscou-se a compreensão das práticas
discursivas que se efetivavam no trabalho docente de nove professoras de Língua Portuguesa do segundo
ciclo de uma escola da Rede Municipal de Juiz de Fora-MG, através de uma investigação qualitativa, baseada
na perspectiva sócio-histórica. As principais estratégias de pesquisa adotadas foram a análise documental, as
entrevistas dialógicas com os sujeitos da pesquisa, as observação das Reuniões de Planejamentos e de
algumas aulas.
O campo de pesquisa se configurou em uma escola pertencente à Rede Municipal de Juiz de Fora-MG,
organizada em ciclos e localizada num bairro na periferia da cidade. Nos Ciclos de Formação, os alunos são
agrupados de acordo com a idade e pelas suas fases de desenvolvimento: infância, pré-adolescência e
adolescência. A partir dessa organização, foram, então, considerados três ciclos: o primeiro compreendido
entre a faixa etária de 6 a 9 anos; o segundo, de 9 a 12 anos e o terceiro, de 12 a 15 anos. Além disso, cada
ciclo tem uma subdivisão por fases de idade. No caso do segundo ciclo, são elas: fase 9 anos, fase 10-11 anos
e fase 12 anos. A escola pesquisada atende aos três ciclos num total de, aproximadamente, 572 alunos, entre
Devido à minha familiaridade com as pessoas, com os espaços e com as situações
que configuram o contexto escolar, pareceu-me, num primeiro momento, que eu teria
alguma facilidade e que as ações e atitudes desencadeadas no campo de pesquisa seriam
previsíveis. Entretanto, a situação de pesquisa impôs o caráter de desconhecimento e de
imprevisibilidade que caracterizaram toda a pesquisa e a relação pesquisadora-sujeitos da
pesquisa2.
Apesar de minha ilusão, no início da situação de campo, de uma possível
naturalidade, espontaneidade e empatia no encontro com o outro3- reforçada por uma outra,
a de que eu não me diferenciava dos meus interlocutores, já que eu, como eles, estava
ligada ao meio educacional-, os sentidos almejados não foram produzidos.
No momento em que deixei meu lugar de professora para construir um outro lugar,
o de pesquisadora, os sujeitos que faziam parte do meu espaço de trabalho passaram a ser
objeto de estudo para mim. Instaurou-se, então, uma nova interação, entre “o sujeito

crianças e adolescentes, na faixa etária de 6 a 14 anos, distribuídos em 29 turmas. Além da suplência e os


estudos supletivos de primeira a quarta série, com 4 turmas que reúne um total de 92 alunos.
2
Os sujeitos da pesquisa foram nove professoras do segundo ciclo que trabalhavam com Língua Portuguesa.
Estiveram, também, envolvidos, indiretamente, a coordenadora pedagógica, a diretora, a representante da
escola na elaboração do Caderno 2 e os alunos do segundo ciclo, através de suas produções e atividades
observadas em sala. A opção por tais sujeitos deveu-se ao fato de estarem efetivamente envolvidos com o
Projeto Escola do Caminho Novo da SME e de trabalharem com uma proposta de Língua Portuguesa
condizente com a questão de investigação proposta.
O grupo de professoras investigado era, na sua maioria, recém-contratado pela SME. Somente duas
professoras atuaram na escola em anos anteriores. Era um grupo heterogêneo, constituído por várias gerações
(idades entre vinte e quatro e cinqüenta anos), de diferentes etnias e de realidades sócio-econômicas
diversas. O tempo de magistério também era muito variado (entre vinte e dois anos e três meses de trabalho).
Na sua maioria, as professoras eram formadas em Pedagogia ou estavam concluindo o curso. Duas
professoras, entretanto, eram formadas em áreas diferentes: uma em História e a outra, em Filosofia e Letras.
Algumas possuíam cursos de especialização em diferentes áreas pedagógicas (Psicopedagogia e Educação
Infantil) e uma professora em outra área (Direito Civil). Além disso, uma professora estava cursando o
Mestrado em Educação, em uma faculdade privada.
A rotina diária dessas professoras era muita pesada. A maioria trabalhava em dois horários, sendo que
somente uma trabalhava na mesma escola. As outras trabalhavam na Rede Municipal ou Estadual e somente
uma em escola da rede privada. As que não trabalhavam em dupla jornada acumulavam outras atividades:
uma estava com o curso de graduação em andamento, outra cursava uma especialização e a que não estudava,
na época, declarou-me “ser o homem e a mulher da casa”, pois era separada do marido e tinha quatro filhas
adolescentes, por isso assumira todas as responsabilidades domésticas e econômicas. Uma de suas maiores
queixas delas durante as observações e entrevistas era a falta de tempo para o estudo, para cuidarem de si
mesmas ou de seus filhos.
3
O outro foi entendido na pesquisa como os interlocutores do pesquisador, aquele a quem o pesquisador se
dirige no campo e de quem ele fala no seu texto (AMORIM 2001). Tal conceituação de interlocução está em
consonância com os pressupostos bakhtinianos, baseados no princípio de que tudo aquilo que se profere é
destinado a alguém, em uma dada situação, ou seja, a palavra do outro é tomada como enunciado,
pressupondo a situação e orientação social em que esta foi dita, além da entonação e escolha das palavras,
para que se possam entender os sentidos que emergiram naquele momento.
cognoscente e o sujeito a conhecer numa relação de alteridade fundamental que emerge de
uma diferença de lugar na construção do saber. O outro se tornou estrangeiro pelo simples
fato da minha pretensão em estudá-lo” (AMORIM, 2001, p.31). Diante do encontro com
esse outro tão “familiar e, ao mesmo tempo, muito estranho” 4, aconteceu uma demarcação
de espaço que delineou toda pesquisa: a diferença entre mim, pesquisadora, e meus
interlocutores.
Diariamente, durante a pesquisa, deparei-me com a “realidade plurideterminada,
diferenciada, irregular, interativa e histórica5” (REY, 1999, p.35), que constitui o espaço
escolar e, conseqüentemente, com uma série de barreiras para a realização da investigação a
que me propus. Entretanto, os problemas enfrentados durante a situação de pesquisa não se
constituíram em obstáculos. Ao contrário, fizeram-me “[buscar] formas diferentes na
produção do conhecimento (...) que [permitissem] uma construção teórica acerca [dessa]
realidade”6 (IBID, p.35) e tornaram-se material de análise.
Nesse sentido, pretendo, neste texto, discutir a relação eu-outro na pesquisa
qualitativa de perspectiva sócio-histórica, bem como a possibilidade do desenvolvimento de
uma investigação que proporcione, a todos os sujeitos envolvidos (pesquisadora e sujeitos
da pesquisa), momentos de aprendizagens, transformações e de resignificações, através da
interlocução entre os eventos vividos na situação de campo de pesquisa e o arcabouço
teórico de tal abordagem. Para tal, conto com os princípios teóricos da perspectiva sócio-
histórica, como a Teoria da Enunciação de Mikhail Bakhtin e com outros autores que se
dispõem a tal debate.
Encontros e desencontros
Tornar-se “objeto de estudo” nem sempre é desejado e, muito menos, é uma
situação confortável para os sujeitos. Esse mesmo sentimento já havia sido despertado em
mim, quando ocupei o outro lugar: o de investigada. Foi esse incômodo que me fez inverter
a posição de investigada para investigadora e buscar um olhar exotópico da prática
pedagógica instaurada nas escolas. De acordo com AMORIM (2001, p.271), “o fato de se

4
O trecho citado faz parte da descrição do Diário de Campo de 04 de setembro de 2001. Após cada dia no
campo de pesquisa, eu escrevia minhas sensações, impressões e incertezas em um Diário de Campo, que
somou trinta e quatro laudas. A construção desses textos foi muito importante para mim, pois não se limitou
ao mero registro de fatos. Ao contrário, procurei imprimir minhas marcas e autoria, o meu olhar e
compreensão das diferentes situações vividas.
5
Tradução livre do espanhol.
6
Tradução livre do espanhol.
ver analisado de um certo modo e ocupando um determinado lugar, costuma despertar nas
pessoas a vontade de experimentar um outro lugar uma outra forma interlocutiva. Como
nos diz Bakhtin, o ser humano não suporta se ver enclausurado no dizer do outro”. E, foi
isso que, comigo ocorreu e fez-me buscar o outro lugar: o de pesquisadora.
Entretanto, relação instaurada na situação de campo nem sempre foi consensual, ao
contrário, aconteceu num movimento dialético de jogo de forças e de contraditoriedade, que
perpassaram toda a pesquisa. A situação produzida, naquele momento, foi inversamente
proporcional à por mim vivenciada diversas vezes como professora, o mesmo acontecendo
com a orientação social da enunciação7. Como acontece com uma imagem que se inverte
dentro da câmera fotográfica, o mesmo ocorreu com a situação produzida nos eventos de
pesquisa, determinando novas relações até então desconhecidas para mim.
Foram essas dificuldades que, fizeram-me estabelecer um constante diálogo com os
textos teóricos sobre a pesquisa qualitativa em uma perspectiva sócio-histórica. Uma das
reflexões que, orientou-me foi o estudo de FREITAS (2002 b). A autora, ao estabelecer o
diálogo entre os fundamentos da abordagem sócio-histórica e a obra de BOGDAN &
BICKLEN (1994), elenca seis características da pesquisa qualitativa de orientação sócio-
histórica:
¾ A fonte dos dados é o texto (contexto) no qual o acontecimento emerge, focalizando o
particular enquanto instância de uma totalidade social. Procura-se, portanto, compreender os
sujeitos envolvidos na investigação para, através deles, compreender também o seu contexto.
¾ As questões formuladas (...) se orientam para a compreensão dos fenômenos em toda a sua
complexidade e em seu acontecer histórico. Isto é, não se cria artificialmente uma situação para
ser pesquisada, mas vai-se ao encontro da situação no seu acontecer, no seu processo de
desenvolvimento.
¾ O processo de coleta de dados caracteriza-se pela ênfase da compreensão, valendo-se da
arte da descrição que deve ser complementada, porém, pela explicação dos fenômenos em
estudo, procurando as possíveis relações dos eventos investigados numa integração do
individual com o social.
¾ A ênfase da atividade do pesquisador situa-se no processo de transformação e mudança em
que se desenrolam os fenômenos humanos, procurando reconstruir a história de sua origem e
de seu desenvolvimento.
¾ O pesquisador é um dos principais instrumentos da pesquisa porque, sendo parte integrante
da investigação, sua compreensão se constrói a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa
e depende das relações intersubjetivas que estabelece com os sujeitos com quem pesquisa.

7
De acordo com BAKHTIN (1993), a orientação social da enunciação é caracterizada como a orientação
para o outro. Conforme explica o autor, essa orientação faz com que se leve em consideração a correlação
sócio-hierárquica instaurada entre os interlocutores. Assim, qualquer produção discursiva pressupõe a
existência de um (ou mais) falante(s) e de um auditório social, que é conceituado por BAKHTIN (1993,
p.247) como “a presença dos participantes da situação”. Na produção das enunciações, esses elementos são,
ainda, vinculados à situação social definida como “a efetiva realização na vida real de uma das formas, de
uma das variedades do intercâmbio comunicativo”.
¾ O critério que se busca numa pesquisa não é a precisão do conhecimento mas a
profundidade da penetração e a participação ativa tanto do investigador quanto do investigado.
Disso resulta que pesquisador e pesquisado têm oportunidade para refletir, aprender e
resignificar-se no processo de pesquisa (FREITAS, 2002 b, s.p.).

Na busca pela construção de novas estratégias metodológicas, que estejam afinadas


com a perspectiva sócio-histórica, direcionei minha investigação para a realização de uma
observação mediada da prática docente. O que realizei não foi uma observação participante
nos moldes da pesquisa etnográfica. Ao contrário, através da observação mediada,
experiencei uma outra forma de pesquisar, que consistiu na participação ativa minha e dos
sujeitos da pesquisa-as professoras- pela discussão, reflexão e produção de sentidos nos
eventos vividos de forma compartilhada.
Nessa nova forma de observar, o diálogo, a troca de experiências e a oposição de
opiniões entre mim e os sujeitos da pesquisa ocorreram em uma maior intensidade. Todas
nós (pesquisadora e sujeitos da pesquisa) opinávamos, concordávamos, discordávamos e
complementávamos umas as outras durante todo o processo, estabelecendo uma forma de
compreensão chamada por BAKHTIN (1992) de atividade responsiva ativa.
Além disso, palavras, gestos e olhares foram compreendidos como enunciados que
estavam prenhes de resposta, que poderiam ser uma réplica, uma adesão ou uma objeção ao
que era pronunciado ou não pelos interlocutores (pesquisadora e sujeitos da pesquisa) pois,
para BAKHTIN (1992), “compreender é opor à palavra do locutor em uma contrapalavra
(....)” (p.132). Todos esses ditos e não-ditos se constituíram em texto passível à
compreensão, já que, segundo FREITAS (2002 b s.p), “o homem sempre se expressa
através do texto virtual ou real que requer uma resposta, uma compreensão”.
Dessa forma, o momento do planejamento não era somente para a organização das
atividades pedagógicas de sala de aula e a aula a ação do que foi planejado. Esses espaços-
tempos foram sempre ocasião de avaliação do que era realizado, através das trocas de
experiências entre eu e as professoras, dos relatos do que deu certo e do que não saiu como
era esperado. Assim, cada uma falava das tensões que envolviam o momento da aula e das
decisões tomadas no decorrer do seu processo.
Foi interessante notar que, durante essas reuniões, parecia diminuir o peso sócio-
hierárquico entre nós (pesquisadora e sujeitos da pesquisa), pois todos, em igual direito,
indagavam ou teciam comentários sobre o que estava sendo discutido ou planejado. O
conhecimento era compartilhado e confrontado por todos na interação verbal face a face.
Apesar disso, a observação mediada das reuniões de planejamento e das aulas foi
marcada por um olhar exotópico diante dos relatos, do que observei e da troca de
experiências entre as professoras e delas comigo, pois os acontecimentos eram vivenciados
por mim, através de um outro mirante: o de pesquisadora.
Nas palavras de BAKHTIN (1992),
quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes
concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de
mim que possa estar o outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que
ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver (...), o mundo ao qual ele dá as
costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação em que
podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele (BAKHTIN, 1992, p.43).

Foi-me possível, ver e sentir o que as professoras jamais poderiam ver, pois para
mim aqueles relatos e experiências adquiriram um outro sentido. Esse olhar diferenciado
foi possibilitado pelo lugar ocupado por mim: um lugar de fora, um lugar exterior. De
acordo com AMORIM (2002),
esse lugar exterior permite (...) que se veja do sujeito algo que o próprio sujeito nunca pode ver
e, por isso, na origem do conceito de exotopia está a idéia de dom, de doação: é dando ao
sujeito um outro sentido, uma outra configuração, que o pesquisador, assim como o artista, dá
de seu lugar, isto é, dá aquilo que somente de sua posição, e portanto com seus valores, é
possível enxergar (AMORIM, 2002, s.p.).

Em cada sujeito estava presente uma voz. Esse ecoar não era um mero reflexo de
uma consciência individual. Ao contrário, eram manifestações de consciências valorativas e
sociais, que compreendiam os enunciados proferidos e reagiam a eles. Pelas vozes das
professoras, obtive o acesso à consciência, através das suas diferentes expressões materiais
(palavras e outras formas), que, segundo BAKHTIN (1992), constituíram-se “em um fato
objetivo” e, ao mesmo tempo, revelaram toda a força social dos signos.
Pela observação mediada dos planejamentos e das aulas, vivenciei, ainda, a
realização de uma auto-objetivação estética. Isto porque, pela primeira vez, pude
experienciar a prática docente em sala de aula em um plano diferente do vivido até então:
ora como professora, ora como aluna. Eu me vi no outro que eu observei de uma outra
forma. Presenciei cenas do cotidiano docente bem familiares para mim. Entretanto, a ótica
dessas cenas mudou. Pela vivência de mim mesma em plano diferenciado, pude refletir
sobre as ações pedagógicas e tomar consciência de aspectos da realidade desconhecidos até
então. BAKHTIN (1992), no seu texto sobre o autor e o herói, oferece explicações para
isso. Para o autor,
[o autor] vive seu objeto e vive a si mesmo no objeto, mas não vive o processo da sua própria
vivência; o trabalho de criação é vivido, mas trata-se de uma vivência que não é capaz de ver
ou de aprender a si mesma a não ser no produto ou no objeto que está sendo criado e para o
qual tende (BAKHTIN, 1992, p.27).

Tal vivência foi possível, porque, na pesquisa, a consciência do pesquisador não


coincide com a dos sujeitos investigados. É uma consciência fora de uma outra, a
consciência do pesquisador pode ver o outro como um todo acabado, o que jamais ele pode
fazer consigo mesmo. É a consciência de uma consciência.
Na relação entre autor e herói, na obra de BAKHTIN (1992), estão os fundamentos
dessa relação. Para ele, a consciência do autor envolve o dar acabamento à consciência do
herói e de sua realidade. O autor vê a mais ao que é permitido ao herói, pois o primeiro dá
ao segundo o que é inacessível ao próprio herói: a sua imagem.
A partir desse ângulo diferenciado de olhar, dialoguei com as professoras, durante
as observações, expressando o que tinha visto e sentido. Interagimos, produzindo
discussões e debates sobre determinadas situações, conflitos e tensões, que provocaram
diferentes reflexões e resignificações. Esses meus encontros com os sujeitos da pesquisa (as
professoras) foram dimensionados, portanto, pelo eixo da alteridade, pois me possibilitaram
participar dos eventos e, ao mesmo tempo, manter meu outro olhar.
Devido a isso, nem sempre foi fácil minha relação com as professoras. Elas se
preocuparam muito com o que eu pensava e via nos planejamentos e nas aulas, através do
meu olhar mirado na câmera de filmar:
Fátima- Não tem muito jeito de rolar, então, realmente, né? A gente tem que ser muito criativa!
Depois eu também fiquei pensando... Aí, o caso é o seguinte... Eu fiquei preocupada com eles
[com os alunos]. Assim... É a aula que eu dou, mas quando os meninos começaram a
aparecer o rosto na câmera... São eles, como são... Eu não sou dona deles, né? É uma
realidade... Às vezes, a gente... Nós, seres humanos temos vontade de... O Narciso gosta de
espelho, né? Então, a gente gosta de mostrar tudo bonitinho, mas a realidade é que nós,
professores estamos enfrentando muitos problemas sociais que vêm para a sala de aula e
como lidar com isso? (...)
Mônica- Não precisa olhar tudo, não... (Falando baixinho, risos).

As professoras perceberam que a imagem produzida pelo aparato técnico (vídeo)


não foi usada, apenas, para uma representação ou cópia da realidade. Ela foi um foco do
meu olhar, pois quem dirigia e mirava a câmera sob determinado acontecimento nas
reuniões ou nas salas de aula era uma pesquisadora.
O incômodo das professoras adveio da percepção do uso daquelas imagens como
produtoras de sentidos no trabalho de pesquisa. Daí decorreram as seguintes indagações
feitas por elas: como seriam usadas aquelas imagens? Que sentidos emergiram delas para
mim? Por isso, como tentativa de atenuar essas tensões, adotei a postura de sempre colocar
o que eu tinha percebido nas aulas, nas reuniões de planejamento, a fim de contribuir com
um outro olhar para a prática pedagógica.
Dessa forma, minha situação de pesquisadora colocou-me numa posição
diferenciada, com um outro olhar, que só me foi possível pela pesquisa. Nossa relação era
de um “eu com o outro e não de um nós indiferenciado”. Por isso, as professoras fizeram
questão de pontuar esse distanciamento entre eu e elas, demarcado por sentimentos de
perplexidade e indagações, estabelecendo-se, então, o princípio de alteridade necessário à
pesquisa. “A atividade de pesquisa tornou-se então uma espécie de exílio deliberado onde
a tentativa era de ser hóspede e anfitrião ao mesmo tempo” (AMORIM, 2001, p.26).
Apesar de ser uma professora como as que eu tentava investigar, naquele momento, eu
pensava na pesquisa, enquanto as professores falavam de suas angústias do dia-a-dia. Os
anseios divergiam, pois eu era, como define AMORIM (2001), “uma estrangeira no país
do outro”.
Também, durante as entrevistas coletivas, as professoras puderam falar e escutar o
outro (professoras e pesquisadora). Foram estabelecidos o diálogo, a troca de experiências e
a exposição de opiniões divergentes. Isto porque
o sujeito investigado no curso da investigação [da perspectiva sócio-histórica] não é
simplesmente um reservatório de respostas prontas a expressar-se frente à pergunta
tecnicamente bem formulada. O sujeito, na realidade, não responde linearmente às perguntas
feitas e sim realiza verdadeiras construções implicadas em diálogos (REY, 1999, p. 59).8

As interações, nas entrevistas coletivas, eram sempre intensas. Muitas vezes, as


tensões e conflitos do dia-a-dia emergiam e muitas questões cotidianas ou não eram
discutidas. Além disso, algumas professoras relembravam seus tempos de alunas, suas
histórias escolares e seus percursos profissionais, quando tentavam justificar o porquê do
seu modo de ensinar:
Ana- O que eu acho principal é que eles nunca vão falar o que eu falava da idade deles, sabe?
Nossa, que inferno. Vou ter ler esse livro, lembra? (Para Mônica que estudou com ela na
mesma escola) que a professora obrigava a gente a ler um livro para fazer um relatório, um
trabalho, alguma coisa assim, sabe? Eles nunca vão falar isso, sabe? Ah, não! Vou ter que ler!

8
Tradução livre do espanhol.
Ah, não! Vou ter que ficar decorando oração coordenada e subordinada, sabe? Eu acho que flui
tudo muito natural. Não é porque... Eu vou fazer porque eu sou obrigado e tal.
Sônia- Eu lembro muito que eu tinha muita insegurança de ir lá para frente contar a história...
Ana- Nossa!
Sônia- Hoje, eles lêem a história e contam do jeito deles... Eles vão numa segurança, eles não
têm... Eu tinha muita insegurança de, sabe? De fugir da história eles não. Eles são bem seguros
nisso também.
Mônica- Eu acho que a gente tem que pensar nessa coisa que está começando a acontecer do
ler por gosto... Porque a gente lia por obrigação.
Ana- Eu detestava ler, gente! Eu tinha ódio de leitura.(risos)
Renata- Nossa! Minha mãe me colocava sentada e me obrigava... Tinha provas dos livros, né?
Ana- Queria me matar, era eu entrar na sala e Fátima falar: Olha! Nós vamos ler esse livrinho
aqui.
Mônica- E era engraçado uma coisa que acontecia comigo. Eu era traça de livro. Eu sou, né?
Eu matava a aula, eu saía, eu ficava na hora do recreio lendo... Desde o primeiro tempo, eu
ficava... Eu era apaixonada! Mas, quando a Dona Fátima virava e falava assim: nós temos que
ler tal livro. Eu não lia. Eu tinha o prazer de não ler! (Risos) Porque, assim, eu não vou ler uma
coisa obrigada.
(As professoras começam a relembrar várias situações, através de exemplos, da sua época de
estudante)

As entrevistas coletivas possibilitaram o encontro e entrecruzamento das vozes dos


sujeitos e da minha (a de pesquisadora), pois possibilitaram a construção de mais um
espaço de produção de linguagem, em que foi possível o encontro de sujeitos
historicamente situados, que discursavam sobre seus mundos e realidades. Cada enunciado
foi tomado como “uma unidade real da linguagem” e, portanto, impregnado de sentidos.
Essas entrevistas adquiriram, então, um caráter dialógico, já que procurei estabelecer,
conforme FREITAS (2002 b, s.p), relações de sentidos, cujos elementos constitutivos são
enunciados completos por trás dos quais estão os sujeitos reais.
A observação mediada e as entrevistas coletivas produziram uma arena onde se
confrontaram diferentes valores sociais. Cada palavra proferida não possuía apenas um
significado formal, mas era impregnada de conteúdos ideológicos e vivenciais. As palavras
refletiram e refrataram as relações sociais. Desse modo, emergiram os sentidos das
atividades desses sujeitos, revelando a objetividade/subjetividade das relações sociais. O
foco da pesquisa foi um sujeito falante e, portanto, produtor de texto e de sentidos. Isto
porque,
o texto só vive em contato com outro texto (contexto). Somente em seu ponto de contato é que
surge a luz que aclara para trás e para frente, fazendo que o texto participe de um diálogo.
Salientamos que se trata do contato dialógico entre textos (entre enunciados), e não do contato
mecânico “opositivo”, possível apenas dentro das fronteiras de um texto (...), entre os
elementos abstratos desse texto (...). Por trás desse contato, há pessoas e não coisas
(BAKHTIN, 1992, p.404-405).
Algumas reflexões
Do período entre o início, a permanência e a saída do campo de pesquisa, muitas
mudanças e transformações em mim ocorreram. Aprendi a ouvir mais, a compreender as
intervenções feitas pelas professoras e a refletir criticamente acerca do contexto escolar do
qual também sou sujeito. Assim, ao retornar à sala de aula, não mais como pesquisadora,
mas como professora, encontro-me transformada em uma outra pessoa... em um outro
sujeito, que, apesar de muito ter estudado e trabalhado, não consegue se fechar em
construções teóricas definitivas e estereotipadas. Assim, como fala o poeta: o que sobrou de
todas [as minhas] andanças deve ser o meu verdadeiro eu. (MÁRIO QUINTANA). Nesse
sentido, posso afirmar que o processo de pesquisa desenvolvido foi um momento de
aprendizagens, transformações e desenvolvimento.
É importante, ainda, ressaltar que, a relação instaurada entre eu e o grupo de
professoras não foi em nenhum momento consensual. Ao contrário, oscilou entre processos
centralizadores e descentralizadores, entre retrocessos e avanços. A meu ver, essas idas e
vindas revelaram todo o caráter conflituoso, de luta, de divergências e convergências, que
constitui-se a arena social do contexto escolar. Entretanto, reafirmando os postulados da
perspectiva sócio-histórica, acredito que é somente na interligação das diversidades, tensões
e conflitos que, pode-se construir e reconstruir a cada dia uma nova prática e que são
produzidas novas relações entre os sujeitos nela envolvidos e destes com o conhecimento.
Tal transformação me foi possibilitada, principalmente, pela oportunidade do
desenvolvimento de uma investigação numa abordagem qualitativa de cunho sócio-
histórico. O que vivenciei nesses dois anos, com a situação de campo, com a interlocução
com outros autores, teóricos e com o material produzido na pesquisa não foi uma relação
entre sujeito e objeto, mas uma relação entre sujeitos historicamente situados e constituídos.
Desse modo, o que busquei com a pesquisa não foi uma mera explicação dos
fenômenos ocorridos e observados, mas um processo dialógico de compreensão em que a
diversidade humana estivesse exposta e “os conflitos e tensões, as dores e o riso mais
aparentes e isso me parece ser profundamente humano, num mundo onde se apagam as
marcas, se esquecem as histórias, se perdem os elos que um dia já ligaram pessoas,
instituições e propostas” (KRAMER, 2002, s.p.).
Referências bibliográficas
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estética e epistemológica. Trabalho escrito para o Simpósio “Ethics and
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______ . O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo:
Musa Editora, 2001.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992
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BOGDAN Robert C. & BIKLEN Sari Knopp. Investigação qualitativa em
educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto- Portugal: Porto
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FREITAS, Maria Teresa de Assunção Freitas. A abordagem sócio-histórica como
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______ . A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção do
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dealing with diversity in contemporary research”. Fifth Congress of the
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(mimeo)
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