a Imagem
de Deus
ANTHONY
HOEKEMA
Copyright 1986 by Wm. B. F,erdmans Publishing Co.,
255 Jefferson Av. S.E., Grand Rapids, Mich. 49503
All rights reserved.
Traduzido corn permissao.
Copyright © 1999, Editora Cultura Cristd.
Todos os direitos sac, reservados.
1 a edicao
— 1999
3.000 exemplares
Traduclio:
Heber Carlos de Campos
Reviseio:
Claudete Agua de Melo
Luisivan Velar Strelow
Editoractio:
Eline Alves Martins
Capa:
Spubli Salgado Publicidade
Prefacio 07
AbreviacOes 09
Capftulo 1
A Importancia da Doutrina do Homem 11
Capftulo 2
Homem como uma Pessoa Criada 16
Capftulo 3
A Imagem de Deus: 0 Ensino Bfblico 23
Capftulo 4
A Imagem de Deus: Urn Panorama Historic° 46
Capftulo 5
A Imagem de Deus: Urn Sumario Teologic° 81
Capftulo 6
A Questdo da Auto-Imagem 119
Capftulo 7
A Origem do pecado 130
Capftulo 8
A Disseminacdo do Pecado 151
Capftulo 9
A Natureza do Pecado 187
Capftulo 10
0 Refreamento do Pecado 208
Capftulo 11
A Pessoa Indivisa 225
Capftulo 12
A Questa() da Liberdade 250
Bibliografia 269
fndice Remissivo 279
Indice e Pessoas 282
Indice e Referencias Bfblicas 285
PREFAC10
' A Editora Cultura Crista jfi publicou A Blblia e o Futuro e Salvos Pela Grata, dessa maneira
completando, corn a publicagao dente titulo, a excelente trilogia doutrindria de Anthony Hoekema. Se
voce ainda nap adquiriu os dois outros volumes, peca-os hoje mesmo —, Tel. (011) 270-7099; Fax
(011) 279-1255; e-mail cep@cep.org.br — Nota do Editor.
8 CRIADOS A 1MAGEM DE DEUS
Devo tambem gratiddo a minha esposa, Ruth, por seu constante estimulo,
por seus comentarios sensiveis a respeito do texto original e por ter organizado a
bibliografia.
Acima de tudo, quero agradecer a Deus, que nos criou a sua imagem e que
continua a fazer-nos mais parecidos corn ele. Vivemos na expectativa do dia em
que seremos totalmente como ele, ja que o veremos como ele é.
A 1MPORTANCIA
DA DOUTR1NA DO HOMEM
"-waist:espy
' Eu use a palavra homem, aqui e em outros lugares, no sentido de "ser humano," seja homem ou
mulher. Quando a palavra homem 6 usada neste sentido gendrico, os pronomes que se referem ao
homem (ele, seu, o) devem tambern ser entendidos como tendo esse sentido gendrico; a mesma coisa
deve ser dita do use de pronomes femininos corn a palavra pessoa. E uma pena que em nosso idioma
ndo haja uma palavra correspondente iY palavra alemd Mensch, que significa ser humano como tal,
independente de Orient). Homem, em portugu6s, pode ter este significado, embora tambdm possa
significar "urn ser humano do sexo masculino". De modo geral, o prdprio contexto deixarti claro em
que sentido a palavra homem esta sendo usada.
12 CRIADOS A I MAGEM DE DEUS
repetido a respeito de uma pessoa é mais importante para entende-la do que o
que ela tern em comum corn todas as outras pessoas. 0 Existencialismo, por-
tanto, é urn novo modo de se fazer a pergunta: "0 que e o homem?" A medida
que a crenca em Deus se torna mais rara, a crenca no homem esta tomando o
seu lugar; assim, estamos testemunhando o surgimento de urn novo Humanism°.
Mas mesmo o Humanismo esta em dificuldades. Duas guerras mundiais e as
atrocidades indiziveis do regime nazista abalaram a fe de muitas pessoas na
bondade intrinseca do homem e na importancia dos valores humanos. Conse-
quentemente, surgiu uma nova onda de Nihilismo, que nega todos os valores
humanos e fala da ausencia de significado da vida. Entre os fatores que amea-
cam os valores humanos hoje, estao os seguintes: a crescente supremacia da
tecnologia; o crescimento da burocracia; o aumento dos metodos de producao
em massa e o crescente impacto da midia de massa. Tais forcas tendem a des-
personalizar a humanidade. Novos desenvolvimentos em Biologia, Psicologia e
Sociologia aumentam a possibilidade de manipulack das massas por uns pou-
cos. Praticas como a inseminacao artificial, bebes de proveta, aborto, controle
quimico da conduta, eutangsia, engenharia genetica e coisas que tais, levantam
drividas a respeito da dignidade da vida humana. Acrescente-se a isso temas
acalorados como o problema da alienacdo (idosos versus jovens, conservado-
res versus progressistas, grupos majoritarios versus grupos minoritarios), o
problema da igualdade entre homens e mulheres e o problema da progressiva
perda de respeito pela autoridade e, entao, pode-se perceber por que a per-
gunta "0 que e o homem?" tern adquirido uma nova urgencia hoje.
0 problema do homem tornou-se, portanto, urn dos problemas mais cru-
ciais de nossos dias. Os filosofos estao trabalhando nele; os sociologos estao
tentando responde-lo; os psicOlogos e psiquiatras o estao enfrentando; os estu-
diosos da moral e os ativistas sociais estao tentando resolve-1o. Os romancistas e
os dramaturgos tambem se preocupam corn essa questAo. Os romances pe-
netrativos de Dostoyevski sdo tentativas de responde-la juntamente corn a per-
gunta relacionada, "Por que o homem esta aqui?". Jean-Paul Sartre e Albert
Camus procuraram nos oferecer suas respostas ndo-cristas, ao passo que es-
critores como Graham Greene e Morris West querem nos oferecer suas res-
postas cristas. Praticamente, cada peca teatral ou romance contemporaneo tra-
ta desta questdo: "0 que d o homem?"
0 que uma pessoa pensa a respeito dos seres humanos é de importfincia
determinante para o seu programa de acdo. 0 alvo do marxista esta enraizado
em sua concepcdo do homem. 0 mesmo pode ser dito do programa de urn
A IMPORTANCIA DA DOUTRINA DO HOMEM 13
revolucionario politico, que pode nao ser urn marxista. 0 recente movimento
feminista tambem esta enraizado num determinado entendimento da pessoa hu-
mana, particularmente da relacab entre homem e mulher.
Pode-se distinguir diferentes tipos de antropologias nao-cristas. As an-
tropologias idealistas consideram o ser humano fundamentalmente como es-
pirito, sendo o seu corpo fisico estranho a sua real natureza. Encontramos
essa concepcao na filosofi a grega anti ga. Segundo Plata°, por exemplo, o
que é real a respeito do homem é seu intelecto ou razao, que é, na realidade,
uma centelha da divindade na pessoa e que continua a existir apps a morte do
corpo. 0 corpo humano, contudo, participa da materia, que e de uma ordem ou
realidade inferior; é urn impedimento para o espirito e é melhor partir sem ele.
Os que sustentam essa ideia ensinam a imortalidade da alma mas negam a
ressurreicao do corpo.
Mais comum hoje é o tipo oposto de antropologia nao-crista, o tipo mate-
rialista. Segundo essa ideia, o homem é urn ser composto de elementos mate-
riais, sendo sua vida mental, emocional e espiritual simplesmente subprodutos de
sua estrutura material. Por exemplo, a visao marxista da determinacao eco-
nomica da Historia repousa sobre uma concepcdo materialista ou naturalista da
natureza humana. Para o marxista, o homem é, simplesmente, urn produto da
natureza. Os seres humanos nao foram criados a imagem de Deus — na verda-
de, a existencia real do Criador e negada. Sao estranhos ao marxismo concei-
tos tais como urn imperativo etico ou responsabilidade moral que uma pessoa
tern perante Deus. Os humanos sao parte de uma estrutura social; os males
surgem daquela estrutura e podem ser eliminados somente por mudancas nela.
0 individuo nao é primariamente responsavel pelo mal que ele possa fazer; a
sociedade é. No marxismo, portanto, o ser humano nao é importante como urn
individuo. Ele é importante somente como urn membro da sociedade. Assim, a
meta do marxismo nao é a salvacao pessoal, mas a obtencao futura da socieda-
de perfeita, na qual as lutas de classe entre "os que tern" e "os que nao tern"
terao sido eliminadas. As acbes revolucionarias violentas podem ser necessa-
rias para a realizacao dessa sociedade futura.
Um outro tipo de antropologia materialista influente ern nossos dias é a ideia do
homem subj acente nos escritos de B. F. Skinner. Em sua obra Beyond Free-
dom and Dignity2 [Alern da Liberdade e da Dignidade], Skinner sustenta que a
ideia de que o ser humano é responsavel por sua conduta esta enraizada numa
0 HOMEM COMO
UMA PESSOA CR1ADA
= No cap. 12 sera dito mais sobre o significado do conceito de liberdade quando aplicado aos seres
humanos.
Verduin desenvolve extensivamente esse pensamento no capltulo 5 de seu livro Somewhat less than
God (Grand Rapids: Eerdmans, 1970).
18 CRIADOS A 1MAGEM DE DEUS
mem como uma pessoa: "Escolhei, hoje, a quem sirvais" (Js 24.15); "Em nome
de Cristo, pois, vos rogamos que vos reconcilieis corn Deus" (2Co 5.20).
Nossa compreensao teologica do homem deve, portanto, manter em foco
essas duas verdades de maneira muito clara. Todas as antropologias seculares
falham em nao considerar o ser humano como criatura, apresentando, em fun-
cab disso, uma visao distorcida do homem. Qualquer concepcao do ser huma-
no incapaz de ve-lo como fundamentalmente relacionado corn Deus, tota1mente
dependente dele e primariamente responsavel perante ele, carece da verdade.
Por outro lado, todas as antropologias deterministas, que descrevem os seres
humanos como se fossem marionetes ou robbs, talvez tendo Deus puxando as
cordinhas ou apertando os bothes, deixam de fazer justica a individualidade
pessoal do homem, apresentando, tambem, uma visao distorcida do homem.
Robert D. Brinsmead expos este ponto muito bem:
Ser criatura e ser pessoa sdo aspectos do ser humano que devem ser mantidos juntos e
em tensdo. Quando a Teologia acentua o aspecto criatura e subordina o aspecto da
pessoalidade, vem a tona urn determinismo inflexivel e o homem 6 desumanizado...
Quando o ser pessoa é enfatizado ii exclusao do ser criatura, o homem 6 deificado e a
soberania de Deus 6 comprometida. 0 Senhor é abandonado nos bastidores, como se o
homem tivesse o poder de vetar os pianos e os propOsitos de Deus.4
0 fato de que o homem é uma pessoa criada tern implicacOes para outros
aspectos de nossa Teologia. Primeira, que luz este conceito lanca sobre a
questao da origem do pecado? Embora reconhecendo que a razao pela qual o
homem pecou permanecera sempre urn misterio insondavel, sera preciso dizer
que o homem Ode cair em pecado exatamente porque ele era uma pessoa,
capaz de fazer escolhas — ate mesmo escolhas que fossem contrarias a vontade
de Deus. Todavia, sera preciso acrescentar que, mesmo ao pecar, o ser humano
permanece uma criatura, dependente de Deus. Deus, por assim dizer, teve de
proporcionar ao homem a forca com a qual ele pecou; a mag-
nitude do pecado do homem consiste no fato de ele ter usado os poderes
dados por Deus para o servico de Satands. Porque nossos primeiros pais
cairam em pecado como pessoas criadas, falamos da "vontade permissiva" de
Deus corn respeito ao primeiro pecado do homem; alem disso, afirmamos que
esse primeiro pecado nao veio como uma surpresa para Deus, apes ar de ele ter
considerado aqueles que cometeram esse pecado como totalmente
responsaveis pelo mesmo.
Segunda, que luz o conceito do ser humano como pessoa criada lanca so-
J. H. Moulton e G. Milligan, The Vocabulary of the Greek Testament Illustrated from the Papyri
(Grand Rapids: Eerdmans, 1957), pp. 335-36.
O HOMEM COMO UMA PESSOA CRIADA 21
O mesmo principio vale para a doutrina da perseveranga dos santos. Visto
que somos criaturas, é preciso que Deus nos preserve e nos guarde leais a ele. A
Biblia ensina claramente isso (ver, por exemplo, Jo 10.27-28; Rm 8.38-39; Hb
7.25; 1Pe 1.3-5; Jd 24). Mas nao devemos perder de vista o outro lado do
paradoxo: os crentes devem perseverar na fe (Mt 10.22; 1Co 16.13; Hb 3.14;
Ap 3.11). Nao é uma questa() de preservagao ou perseveranga. Porque somos
criaturas, é preciso que nos preserve ou certamente pereceremos. Mas porque
somos tambem pessoas, Deus nos preserva capacitando-nos a perseverar.
Ha, todavia, ainda outras implicacOes do conceito criatura-pessoa para nossa
Teologia. A Escritura ensina que Deus salva o homem colocando-o em urn
relacionamento de pacto corn ele. Visto que Deus é o criador e o homem é
criatura, é Obvio que Deus deve tomar a iniciativa de colocar seu povo nessa
relagdo pactual — razao pela qual dizemos que o pacto da grata é unilateral em
sua origem. Mas visto que o homem é uma pessoa, ele tern responsabilidades
neste pacto, devendo cumprir suas obrigagOes pactuais — dal dizermos que o
pacto da grata é bilateral em seu cumprimento.
Alem disso, a compreensao do ser humano como uma pessoa criada aju-
da-nos a responder a questa() muito debatida quanto ao pacto da grata ser
condicional ou incondicional. Porque o ser humano é uma criatura, o pacto é
incondicional em sua origem; Deus estabelece graciosamente seu pacto corn
seu povo a parte de quaisquer condigOes que eles devam cumprir. Mas visto
que o homem é tamb6m uma pessoa, Deus requer que seu povo cumpra
certas condigOes para que desfrutem das bengaos do pacto. Mas as pessoas
podem cumprir essas condigOes apenas mediante o poder capacitador de
Deus. No pacto da grata, portanto, estao igualmente em foco a grata sobe-
rana de Deus e a grande responsabilidade do homem. Por essa razao, a BI-
bli a contern tanto promessas pactuais como ameacas pactuais, devendo nos
fazer plena justiga a ambas.
Outro importante conceito teologico é o da imagem de Deus. Nos pr6xi-
mos capitulos, tratarei deste conceito mais detalhadamente. Assim, posso ser
breve agora. Por causa de sua queda em pecado, o homem, em urn sentido
especifico, perdeu a imagem de Deus (alguns teologos chamam este de o
sentido estrito ou funcional). Ao inves de servir e obedecer a Deus, o homem
esta agora separado de Deus; ele e "homem em revolta". Na obra da reden-
cao Deus restaura graciosamente sua imagem no homem, tornando-o uma
vez mais igual a Deus em seu amor, fidelidade e di sposigao para servir aos
outros. Porque os seres humanos sao criaturas, Deus deve restaura-los a sua
imagem — esta é uma obra da grata soberana. Mas porque sao tambern pessoas,
22 CRIADOS A 1MAGEM DE DEUS
eles tern uma responsabilidade nesta restauracao — por isso Paulo Ode dizer
aos Efesios: "Sede, pois, imitadores de Deus" (5.1).
foi dito o suficiente para mostrar que o entendimento do homem como
uma pessoa criada é tab importante quanto relevante. Te6logos como eu, que se
encontram na tradicao reformada ou calvinista, tem geralmente enfatizado, no
homem, o aspecto relacionado ao ser criatura (sua total dependencia de Deus)
e, portanto, a total soberania de Deus em cada area da vida, particular-
mente na obra de salvar o seu povo dos pecados deles. TeOlogos arminianos,
por outro lado, geralmente colocam toda a enfase na individualidade pessoal do
homem. Por isso, quando falam do processo da salvacao, eles enfatizam a im-
portancia da decisao voluntaria do homem e da continua fidelidade a Deus.
Manter em mente este paradoxo o fato de que o homem é igualmente uma
criatura e uma pessoa ajuda-nos a fazer plena justica tanto a soberania de
Deus como a responsabilidade do homem. Aqueles de nos que se encontram na
tradicao reformada nao devem negligenciar ou negar a responsabilidade do
homem; aqueles se encontram na tradicao arminiana nao deveriam esquecer ou
negar a total soberania de Deus.
CAPITULO 3
A 1MAGEM DE DEUS:
0 ENS1NO 13i131_1C0
'Herman Bavinck, Dogmatiek, 2:566 (citado pelo autor em traducao prOpria para o Mee's).
2 Observe, por exemplo, o que 6 dito a respeito de Deus em Is 40.14 — "Corn quern tornou ele
conselho?". Observe, alem disso, que Gn 3.22 tambem se refere a Deus no plural, onde os anjos sao
obviamente excluidos: "Eis que o homem se tornou como um de nos". Sobre esta questa°, veja-se
Calvino, Comm. on Genesis, John King, trad. (Grand Rapids: Eerdmans, 1948), ad loc.; G. Ch.
Aalders, Genesis, W. Heynen, trad. (Grand Rapids: Zondervan, 1981), ad loc.; H. C. Leupold, Expo-
sition of Genesis, (Grand Rapids:. Baker, 1953), ad loc.; L. Berkhof, Systematic Theology, edicao
revisada e aumentada (Grand Rapids: Eerdmans, 1941), p. 182.
A 1MAGEM DE DEUS: 0 ENSINO 131BLICO 25
criaturas nao-humanas, isto 6, como masculino ou feminino ou ambos, mas-
culino e feminino. E neste sentido que a palavra é usada em Genesis 1.26 e
27. A palavra adam tambem pode algumas vezes significar rata humana
(ver, por exemplo, Gn 6.5, "Viu o SENHOR que a maldade do homem se
havia multiplicado na terra"). Visto que as bencaos contidas em Genesis 1.28
aplicam-se a toda a humanidade, podemos inclusive dizer que os versos 26 e
27 descrevem a criacao da humanidade, mas deveremos entao qualificar esta
afirmacao de alguma maneira, como: Deus criou o homem e a mulher de
quem toda a humanidade descende.
Passemos agora aos vocabulos principais: "a nossa imagem, conforme a
nossa semelhanca". A palavra traduzida como imagem é tselem; a palavra
traduzida como semelhanca e demuth. No hebraico, nab existe qualquer con-
juncao entre essas duas palavras. 0 texto simplesmente diz: "facamos o homem a
nossa imagem, conforme a nossa semelhanca". Tanto a Septuaginta3 como a
Vulgata4 inserem um e entre as duas express6es, dando a impressao de que
"imagem" e "semelhanca" se referem a coisas diferentes. 0 texto hebraico,
contudo, deixa claro que, essencialmente, nao ha diferenca entre ambas: "con-
forme a nossa semelhanca" é apenas uma maneira diferente de dizer "a nossa
imagem". Isso é confirmado pela analise do use dessas palavras nessa passa-
gem bem como nas outras duas passagens de Genesis. Em Genesis 1.26, as
duas palavras, imagem e semelhanca, sao usadas; em 1.27 somente imagem é
usada, ao passo que, em 5.1, somente a palavra semelhanca é usada. Em
5.3, as duas palavras sao usadas novamente mas, desta vez, na ordem inversa: "a
sua semelhanca, conforme a sua imagem". Novamente, em 9.6, aparece
somente a palavra imagem. Se, com estas palavras, se quisesse descrever as-
pectos diferentes do ser humano, nao seriam usadas como vimos que foram,
isto 6, quase que indistintamente.
Embora essas palavras sej am geralmente usadas como sinOnimas, deve-se
reconhecer uma pequena diferenca entre elas. A palavra hebraica para imagem,
tselem, é derivada de uma raiz que significa "esculpir" ou "cortar".5 Poderia,
portanto, ser usada para descrever a figura esculpida de urn animal ou pessoa.
Aplicada a criacao do homem em Genesis 1, a palavra tselem indica que o
homem reflete a imagem de Deus, ou seja, ele é uma representacao de Deus. A
palavra hebraica para semelhanca, demuth, vem de uma raiz que significa "ser
Temos, no primeiro versiculo, uma recordacao de que Deus fez o homem sua
semelhanca. Somente uma das duas palavras usadas em Gn 1.26 é empre-
gada aqui, a palavra semelhanca. A omissao da palavra imagem nao é parti-
cularmente importante, mesmo porque, pelo que vimos, estas palavras sao usa-
das como sinonimas.
Alguns creem que, no momento da Queda, o homem perdeu a imagem de
Deus, nao podendo mais ser chamado de portador dessa imagem. Mas nao ha
qualquer sugestao nesse sentido em Genesis 5.1. Esta afirmacao, posterior a
narrativa da Queda (cap. 3), ainda fala de Adao como alguem que foi feito
semelhanca de Deus. Nao haveria sentido em dizer isto se, entao, a semelhanca
divina tivesse desaparecido completamente. E verdade que podemos conside-
rar manchada, pela queda do homem em pecado, a imagem de Deus, mas
afirmar que o homem havia perdido completamente, entao, a imagem de Deus,
afirmar algo que o texto sagrado nao diz.
28 CR1ADOS A IMAGEM DE DEUS
No versiculo 3, lemos que Adao tornou-se o pai de urn filho a sua seme-
lhanca, segundo a sua imagem. Aqui, sao empregadas ambas as palavras, como
em Genesis 1.26; apenas a ordem das palavras é invertida e as palavras sao
modificadas por preposigoes diferentes — uma prova adicional de que imagem e
semelhanca sao usadas como sinonimas. 0 que nos impressiona aqui e que nao
é dito que Sete, o filho de Adao, foi feito a imagem e semelhanga de Deus. Antes,
é dito que Adao tornou-se o pai de um filho a sua semelhanga, conforme a sua
imagem. Mas se Adao era ainda portador da imagem de Deus, como vimos,
podemos inferir que Sete, seu filho, era tambem urn portador da imagem de Deus.
Alern disso, visto que a Biblia ensina que a natureza de Adao foi corrompida
e poluida pela Queda,8podemos novamente inferir que Ada() trans-
mitiu esta corrupgao e poluicao ao seu filho. Mas, novamente, nao ha qualquer
sugestao de que a imagem de Deus tenha sido perdida.
Genesis 9.6, a terceira passagem que trata da imagem de Deus, diz: "Se
alguem derramar o sangue do homem, pelo homem se derramara o seu; porque
Deus fez o homem a sua imagem".
Primeiro, deve-se observar o contexto desses versos. As Aguas do dila -
vio haviam baixado, e Noe e sua familia haviam deixado a arca. Depois de
Noe ter construido urn altar e levado uma oferta ao Senhor, o Senhor the
prometeu que jamais amaldigoaria a terra outra vez por causa do homem e
que preservaria a terra a fim de realizar o seu proposito redentor em favor da
humanidade (8.20-22).
Os primeiros sete versiculos do capitulo 9 contem as ordenangas que Deus
em seguida instituiu a fim de preserved- a terra e seus habitantes. "Estas ordenan-
gas se referem a propagagao da vida, a protegao da vida, por causa de animais e
de homens igualmente, e para o sustento da vida".9 0 mandamento para se
multiplicarem e encherem a terra é repetido (v. 1). Alern disso, é anunciado que os
animais terao medo dos seres humanos (v. 2). 0 homem recebe em seguida
permissao explicita para corner a came dos animais (v. 3), mas corner a came
corn sangue nela é proibido (v. 4). Deus requerera o sangue da vida de cada
animal que mata urn homem e de cada ser humano que mata urn homem (v. 5).
Neste contexto aparecem as palavras familiares do versiculo 6.
O que foi dito no versiculo 5 sobre os animais e dos seres humanos é dito
agora especificamente sobre o homem: quem quer (isto 6, qualquer homem)
10 Heidelbergsche Catechismus, vol. 1 (Goes: Oosterbaan & Le Cointre, 1947), pp. 296-97.
30 CR1ADOS A IMAGEM DE DEUS
a respeito do futuro, mas nada a respeito do que homem é no presente. Estas palavras
somente nos dizem qual a intencao de Deus para corn o homem quando o criou, qual o
seu prop6sito quando o formou."
" Ibid., pp. 297-98 (citado pelo autor em traducao pr6pria para o ingles).
1' Man, pp. 56-59.
A 1MAGEM DE DEUS: 0 ENSINO B1BLICO 31
sis 1.27-28.'30 proposito principal deste salmo é render louvor a Deus pelas
obras de suas maos, particularmente pelo du estrelado Id em cima e pelo ho-
mem aqui em baixo.
A contemplacao do salmista das maravilhas do ceu estrelado o faz perce-
ber, por comparacao, a pequenez e insignificancia do homem. Todavia, Deus
atribuiu ao homem uma posicao exaltada sabre a terra, tendo-lhe dado a
dominio sobre o restante da criagao. E isto é de se admirar muito mais do que o
proprio c6u.
O verso 5 descreve o estado exaltado do homem: "[Tu, SENHOR,] Fizes-
te-o [o homem], no entanto, por um pouco, menor do que Deus e de gloria e de
honra o coroaste". Os tradutores e comentadores diferem quanto a traducao
mais adequada da palavra elohim. Algumas traducoes, como a Almeida Revis-
ta e Atualizada aqui citada, traduzem esta palavra como Deus (RSV, ASV,
NASB, Amplified Bible, Today's English Version); outras versoes trazem anjos
(LXX, Vulgata, KJV), seres celestiais (NN), ou urn deus (NEB, JB). Embora
muitas vezes a palavra elohim possa significar "seres celestiais" ou "anjos", o
sentido mais comum da palavra é "Deus". Eu prefiro a traducao "Deus" no
Salmo 8.5 pelas seguintes razeies: (1) 6 o sentido mais comum de elohim; (2)
anjos nao tern tido dominio sobre as obras das maos de Deus, como os huma-
nos tem; e (3) nunca é dito dos anjos que eles foram criados a imagem de Deus;
assim, por que se deveria considerd-los como mais elevados do que os seres
humanos, os quais foram criados a imagem de Deus?14
O homem, assim diz o autor inspirado do Salmo 8, foi feito somente urn
pouco menor do que Deus — uma afirmagao que nos faz lembrar das palavras
de Genesis 1 a respeito da criacao do homem a imagem e semelhanca de Deus,
Igualmente ecoando Genesis 1, os versos 6-8 do salmo afirmam que Deus deu
ao homem dominio sobre todas as obras das maos do Criador, colocando
todas as coisas debaixo do seus pes.
A descricao do homem que emerge deste salmo é semelhante a esbocada em
Genesis 1.27-28.0 homem é a mais elevada criatura que Deus fez, urn
portador da imagem de Deus, que é apenas urn pouco menor do que Deus e a
n Citado em John Laidlaw, The Bible Doctrine of Man (Edinburgh: T. & T. Clark, 1905), p. 147.
14 Entre os comentadores que preferem a traducdo "Deus" estao os seguintes: Helmer Ringgren,
"elohim", citado em G. Johannes Botterweck e Helmer Ringgren, Theological Dictionary of the Old
Testament, trad. por John T. Willis, vol. 1, ediOo revisada (Grand Rapids: Eerdmans, 1977), 282; e N.
H. Ridderbos, De Psalmen na serie Korte Verklaring (Kampen: Kok, 1962), 1:123. J. A. Alexander,
em seu Commentary on the Psalms (Philadelphia: Presbyterian Board of Publication, 1850), afirma:
"E removeu-o um pouco da divindade — isto é, de urn estado divino e celestial ou, ao menos, de urn
estado supra-humano" (p. 60).
32 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
ele foi sujeita toda a criacdo, Tudo isso é verdade apesar da queda do homem em
pecado. Assim, de acordo corn o Antigo Testamento, o homem ainda traz em si a
imagem de Deus.
15 No mesmo sentido temos as seguintes palavras do Pr6logo do Evangelho de Joao: "Ninguem jamais
viu a Deus; o Deus unigenito, que esta no seio do Pai, 6 quem o revelou" (1.18).
'6 An Expository Dictionary of New Testament Words (Old Tappan, NJ: Revell, 1940; reimpressao
1966), sob "Image", p. 247.
A I MAGEM DE DEUS: 0 ENSINO BIBLICO 35
a Segunda Pessoa da Trindade pode assumir a natureza humana. A Segunda
Pessoa, ao que parece, ndo poderia ter assumido uma natureza que nab tivesse
qualquer semelhanca corn Deus. Em outras palavras, a encarnacdo confirma a
doutrina da imagem de Deus.
Visto que Cristo era totalmente sem pecado (Hb 4.15), em Cristo vemos a
imagem de Deus em sua perfeicao. Como um habilidoso professor usa recursos
visuais para ajudar seus alunos e suas alunas a entenderem o que esta sendo
ensinado, assim Deus o Pai nos deu em Jesus Cristo urn exemplo visual do que é a
imagem de Deus. Ndo ha meio melhor de ver a imagem de Deus do que olhar
para Jesus Cristo. 0 que vemos e ouvimos em Cristo e o que Deus plane-
jou para o homem.
Neste caso, a melhor maneira de aprender o que significa a imagem de
Deus ndo 6 comparando o ser humano aos animais, como tern sido feito corn
frequencia e, entdo, identificar a imagem divina corn aquelas qualidades, habili-
dades e dons que o homem possui em distincdo aos animais. Ao contrario,
precisamos descobrir o que e a imagem de Deus olhando para Jesus Cristo. 0
que deve estar no centro da imagem de Deus no sdo caracteristicas como a
capacidade de raciocinar ou a capacidade de tomar decisOes (independente-
mente da importancia que tais capacidades tenham para a operacdo prOpria da
imagem de Deus), mas, ao inves delas, aquilo que era fundamental na vida de
Cristo: amor a Deus e ao ser humano. Se é verdade que Cristo reflete perfeita-
mente Deus, entdo o dmago da imagem de Deus precisa ser o amor. Porque ser
humano algum jamais amou como Cristo amou."
Uma serie de passagens do Novo Testamento ensinam haver uma neces-
sidade de restauracdo da imagem de Deus. Eu tenho em mente aquelas pas-
sagens que descrevem a renovacdo moral e espiritual do homem como urn
processo no qual ele esta sendo conformado mais e mais a imagem de Deus. Se
os seres humanos precisam ser desta maneira conformados (ou conforma-
dos novamente) em urn processo que perdura toda a sua vida, 6 necessario
que a imagem de Deus na qual foram criados foi, de alguma forma, corrompi-
da pela Queda.
17 Poderia se opor, talvez, que outras virtudes ornaram a vida de Cristo canto quanto o amor (o que,
naturalmente, 6 verdade). Todavia, o amor, que 6 chamado no Novo Testamento de o "cumprimento da
lei" (Rm 13.10; GI 5.14) e 6 descrito em Cl 3.14 como o "vfnculo da perfeicao" que mantem unidas todas as
outras virtudes, foi revelado na vida de Cristo de urn modo que jamais foi superado. Pensamos, por
exemplo, em tais passagens como Jo 15.9 ("Como o Pai me amou, tambem eu vos amei; perma-
necei no meu amor") e 1Jo 3.16 ("Nisto conhecemos o amor; que Cristo deu a sua vida por nos; e
devemos dar nossa vida pelos irmaos."). Que o amor 6 essencial a imagem de Deus afirma-se claramen-
te em Ef 5.1-2; "Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados; e andai em amor, como tambem
Cristo vos amou e se entregou a si mesmo por nos, como oferta e sacriffcio a Deus, em aroma suave".
36 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
Vejamos primeiro o texto de Romanos 8.29: "Porquanto aos que de ante-
mao conheceu, tambern os predestinou para serem conformes a imagem de seu
Filho, a fim de que ele seja o primogenito entre muitos irmaos". A passagem fala a
respeito de alguns que foram predestinados ou preordenados (proorisen) para
serem conformados ou feitos a semelhanga (symmorphous) a imagem (eikon)
do Filho de Deus, de modo que o Filho possa ser o primogenito ou aquele que
tern primazia (prototokon) entre muitos irmaos.
Antes de o povo de Deus ter existido ou antes da fundacho do mundo (ver
Ef 1.4), Deus de antemao conheceu (no sentido de que de antemao amou)18 seu
povo escolhido. Aqueles que ele de antemao conheceu, ele tambern preor-
denou ou predestinou a serem conformados a imagem de seu Filho. Visto que o
Filho, como vimos, é a imagem perfeita de Deus o Pai, nho faremos violencia ao
texto se interpretarmos a expressao "imagem de seu Filho" como sendo equi-
valente "a imagem de Deus". Segundo esta passagem, portanto, alguma coisa
aconteceu a imagem de Deus. Essa imagem aparentemente se corrompeu e se
deteriorou de tal forma por causa da queda do homem em pecado que ele
precisa novamente ser conformado a imagem de Deus. A conformidade a ima-
gem do Filho — e, portanto, a imagem de Deus — é descrita aqui como o prop6-
sito ou objetivo para o qual Deus predestinou o seu povo escolhido. Esse pro-
posito, embora comece a ser trabalhado aqui e agora, rid° sera realizado plena-
mente sendo na vida vindoura, no dia ern que seremos perfeitamente como
Cristo e (1Co 15.49; Fp 3.21; 1Jo 3.2).
Uma outra passagem que fala da renovacao da imagem de Deus no homem é
2 Corintios 3.18 — "E todos nos, corn o rosto desvendado, contemplando,
como por espelho, a gloria do Senhor, somos transformados de gloria ern glo-
ria, na sua propria imagem, como pelo Senhor, o Espirito". Na antiga dispensa-
cdo do pacto da grata, Paulo diz aqui, Moises teve de cobrir a sua face corn urn
veu quando falava aos israelitas apos ter estado na presenca de Deus. Na pre-
sente era, a era do novo pacto, contudo, o povo de Deus nao precisa esconder ou
encobrir a face apps ter conversado intimamente corn Deus. Todos nos, agora,
refletimos a gloria do Senhor — isto é, a gloria de Cristo — corn as faces
desvendadas. Embora a Almeida Revista e Atualizada* traduza a palavra grega
katoptrizomenoi como "contemplando", a maioria das versOes modemas, como
'8 Cf. John Murray The Epistle to the Romans (Grand Rapids: Eerdmans, 1959), ad loc; Herman
Ridderbos, Aan de Romeinen (Kampen: Kok, 1959), ad loc.
Nota de traducao: No original, a KJV.
A IMAGEM DE DEUS: 0 ENSINO BiBLICO 37
a NIV,* traduzem esta palavra grega como "refletindo".I9 A palavra grega é
derivada de katoptron, que significa "espelho". Literalmente, portanto, katop-
trizomenoi significa "espelhando". A palavra poderia significar "contemplando
como em urn espelho" ou "refletindo como urn espelho". Eu prefiro o segundo
significado, visto que ele se assenta tao bem no contexto. 0 rosto de Moises
refletia a gloria de Deus depois que ele estivera em comunhdo face a face corn
Deus. Visto que o brilho dessa gloria era intenso demais para os israelitas olha-
rem para ela, e que tambem esse brilho logo se desvaneceria (v. 13), Moises
teve de cobrir seu rosto corn urn veu. Mas hoje, Paulo aponta, podemos refletir a
gloria do Senhor Jesus Cristo corn o rosto descoberto. Vemos, assim, a supe-
rioridade do novo pacto em relacdo ao antigo.
0 tempo do participio katoptrizomenoi é presente, indicando que nos, que
somos o povo de Deus hoje, estamos continuamente refletindo a gloria do
Senhor. Enquanto estamos refletindo essa glOria, contudo, tambem estamos
sendo transformados nessa mesma imagem (ten auten eikona) — isto é, na
imagem de Cristo — de urn grau de gloria para outro (apo doxes eis doxan).
Visto que o verbo traduzido como "somos transformados" (metamorphoume-
tha) esta no presente, esta expresso tambem que este processo de transforma-
cdo é continuo. Assim como continuamente refletimos a gloria do Senhor, con-
tinuamente, tambem, estamos sendo transformados na imagem daquele cuja
glOria estamos refletindo. Esta transformacao, Paulo acrescenta, vem do Se-
nhor, que e o Espirito.
Romanos 8.29 e 2 Corintios 3.18 igualmente ensinam que o objetivo da
redencao dos que sao povo de Deus é que sejam plenamente conformados
imagem de Cristo. Mas enquanto no texto de Romanos esta conformacdo
imagem de Cristo é considerada o objetivo para o qual Deus nos predestinou, na
passagem de 2 Corintios a enfase recai sobre o carater progressivo dessa
transformacdo ao longo da presente vida ("de urn grau de gloria para outro" —
2Co 3.18 RSV) e sobre o fato desta transformacdo ser obra do Espirito Santo.
Ambas as passagens, contudo, claramente afirmam que nos que somos vitimas da
Queda precisamos ser mais e mais conformados ou transformados nessa
imagem de Cristo, que é a imagem perfeita de Deus.
0 pensamento de que os cristaos precisam crescer continuamente neste
serem conformados a imagem de Deus encontra-se tambem em duas passa-
21 Cf. Donald MacLeod, "Paul's Use of the Term `The Old Man'" em The Banner of Truth (London),
n° 92 (Maio 1971): pp. 13-19. Sobre as implicagaes deste ensino para a auto-imagem dos cristaos, ver
meu trabalho "The Christian Looks at Himself, edicao revisada (Grand Rapids: Eerdmans, 1977).
" Sobre esta questa°, ver abaixo, pp. 98, 99, 109.
40 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
cias do engano, e vos renoveis no espfrito do vosso entendimento, e vos revistais do
novo homem, criado segundo Deus, em justica e retidao procedentes da verdade.
26 As trios palavras usadas em Cl 3.9-10 e Ef 4.24 para descrever os aspectos do novo eu (conhecimen-
to, justiga e santidade) sdo freqtientemente usadas para indicar o que se entende por imagem de Deus no
assim chamado sentido estrito — neste sentido em que ela se perdeu por causa da Queda e esta sendo
restaurada no processo da redengdo. 0 Catecismo de Heidelberg usa as palavras neste sentido na
resposta 6: "Deus criou o homem born e a sua propria imagem, isto d, em verdadeira justiga e santidade, de
forma que ele pudesse verdadeiramente conhecer a Deus, seu criador, amd-lo de todo o seu coragdo, e
viver coin ele em eterna alegria para seu [de Deus] louvor e gldria" (segundo a tradugdo para o inglds de
1975, Christian Reformed Church). Abordaremos esta questa° mais adiante, no Capitulo 5.
0 autor refere-se ao substantivo "the image" e ao verbo "to image"; um paralelo, em portuguhs, seria
entre o substantivo "reflexo" e o verbo "refletir".
42 CR1ADOS A I MAGEM DE DEUS
bem é descrita no Novo Testamento como algo que envolve nossos prOprios
esforcos. Para ser exato, essa restauracao é basicamente obra de Deus — quem
nos santifica por meio do seu Espirito. Mas algumas passagens do Novo Testa-
mento indicam que a renovacao em maior conformidade corn Deus tambem é, ao
mesmo tempo, uma responsabilidade do homem. Renovacdo a imagem de Deus,
em outras palavras, nao é urn indicativo mas tambem urn imperativo.
Vejamos, por exemplo, Efesios 5.1 —"Sede, pois, imitadores de Deus, como
filhos amados". Ser imitadores de Deus significa continuar a ser semelhantes a
Deus (o verbo grego esta no presente). Nao podemos ser, naturalmente, em
todas as coisas semelhantes a Deus — tais como em sua onisciencia, onipresen-
ca ou onipotencia. Mas ha coisas em que podemos ser semelhantes a Deus, se
nao perfeitamente, ao menos em principio. Paulo as especifica nos versiculos
imediatamente anteriores e seguintes desta passagem. No verso que precede
(Ef 4.32), Paulo diz a seus leitores que eles deveriam perdoar uns aos outros
"como tambem Deus, em Cristo vos perdoou". No verso que se segue (Ef 5.2),
Paulo continua: "e andai em amor, como tambem Cristo nos amou". Precisa-
mos, portanto, continuamente procurar perdoar como Deus nos perdoou e amar
como Cristo nos amou. Visto que perdoar os outros é urn aspecto do amor,
vemos aqui novamente que a essencia da imagem de Deus é o amor. Como nos
versiculos antes considerados, refletir a Deus e apresentado aqui como urn pro-
cesso no qual precisamos estar engajados continuamente. Mas, neste proces-
so, nao podemos ser passivos mas ativos.
E uma passagem similar (1 Co 11.1), Paulo escreve: "Sede meus imitadores,
como tambem eu sou de Cristo". Este nao é o finico lugar em suas cartas em
que Paulo exorta seus leitores a o imitarem (ver tambem 1 Co 4.16 e 2 Ts 3.9);
mas o relevante nesta passagem é que, nela, Paulo exorta seus leitores a serem
(ou se tornarem, ginesthe) imitadores dele como ele, por sua vez, é urn imita-
dor de Cristo (comparar corn 1 Ts 1.6). Os corintios sao exortados a serem
mais e mais tal como Paulo é, enquanto Paulo tenta modelar-se mais e mais em
conformidade a Cristo. Ja. que Cristo e a imagem perfeita de Deus, Paulo esta
tentando ser mais e mais semelhante a Deus, que é perfeitamente representado
em Cristo; em vista disso, ele pede a seus leitores para serem mais e mais tal
como ele e. Conforme seus leitores se tornam mais como Paulo é, eles se toma-
rao mais como Deus é. Refletir Deus é apresentado aqui, novamente, como
uma atividade a qual Paulo e seus leitores, igualmente, precisam se engajar
continuamente.27
27 Cf. Willis P. De Boer, The Imitation of Paul: an Exegetical Study (Kampen: Kok, 1962).
A I MAGEM DE DEUS: 0 ENSINO BiBLICO 43
" Quanto ao futuro do corpo, observe tambdm Fp 3.21: "o qual transformara o nosso corpo de humi-
lhac9o, para ser igual ao corpo da sua glOria".
" Observe o testemunho de Paulo corn respeito a esta feliz expectativa do futuro em CI 3.4: "Quando
Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, entho, v6s tambem sereis manifestados corn ele, em gl6ria".
" Cf. 1. Howard Marshall, The Epistles of John (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), ad loc.; John R. W.
Stott, The Epistles of John (Grand Rapids: Eerdmans, 1964), ad loc.
Calvino, I John, T. H. L. trad. de Parker (Grand Rapids: Eerdmans, 1979), ad loc; S. Greijdanus,
II and III Johannes (Kampen: Kok, 1952), ad loc.
A IMAGEM DE DEUS: 0 ENSINO BIBLICO 45
de Deus, agora, esta sendo progressivamente restaurada naqueles que sao fi-
lhos de Deus, na vida futura, essa imagem sera completa e definitivamente res-
taurada. Entao, seremos perfeitamente semelhantes a Deus.
Resumindo, agora, o que aprendemos da Biblia sobre a imagem de Deus,
observamos que as passagens citadas do Antigo Testamento e Tiago 3.9 dei-
xam evidente que, sob um aspecto muito importante, o homem hoje — o homem
caido — ainda traz a imagem de Deus e, portanto, tern de ser visto como tal. Das
demais passagens consultadas no Novo Testamento, entretanto, aprendemos
que, sob outro aspecto, o homem cal& necessita ser continuamente restaurado
A imagem de Deus — uma restauragao que esta em curso agora mas que sera
completada um dia. Em outras palavras, ha um aspecto sob o qual os seres
humanos nao trazem mais, propriamente, a imagem de Deus e, portanto, preci-
sam ser renovados nessa imagem. Poderiamos dizer que, corn relacao a este
ultimo aspecto, a imagem de Deus no homem foi arruinada e corrompida pelo
pecado. Temos de ver o homem cal& como alguern que ainda traz a imagem
de Deus, porem como alguem que, por natureza, a parte da obra regeneradora
e santificadora do Espirito Santo, reflete a imagem de Deus de uma maneira
distorcida. No processo de redencao essa distorcao é progressivamente remo-
vida ate que, na vida futura, novamente refletiremos perfeitamente Deus.
Assim, para ser fiel a evidencia biblica, nosso entendimento da imagem de
Deus deve incluir estes dois aspectos: (1) A imagem de Deus como tale urn
aspecto imperdivel do homem, sendo uma parte de sua essencia e existencia,
algo que o homem nao pode perder sem cessar de ser homem. (2) A imagem de
Deus, contudo, deve tambern ser entendida como aquela semelhanca a Deus que
foi pervertida quando o homem caiu em pecado e esta sendo restaurada e
renovada no processo de santificacao.
CAPiTULO 4
A 1MAGEM DE DEUS:
UM PANORAMA H1STC5R1C0
"amlivaaaso
IRINEU
Irineu (c. 130 c. 200) nasceu na Asia Menor e, em 177, tornou-se bispo de
Liao, na regido que, hoje, corresponde ao sul da Franca. Em 185, ele escreveu
sua principal obra, Contra as Heresias, na qual apresenta uma bem-elaborada
refutacao dos erros doutrinarios do Gnosticismo. No comeco, ensinava Irineu,
Deus criou o homem a sua imagem e segundo a sua semelhanca. A semelhanca do
homem a Deus, contudo, foi perdida na Queda, enquanto a imagem de Deus
permaneceu depois da Queda. Entretanto, a semelhanca a Deus, que havia sido
perdida, esta sendo restaurada nos crentes no processo da redencao.1
' Davi Cairns, The Image of God in Man, ed. revisada (London: Collins, 1973), p. 80. Devo a Cairns
A 1MACEM DE DEUS: UM PANORAMA HISTORICO 47
Vejamos as proprias palavras de Irineu :
Mas se o Espirito faltar a alma, quern permanece as sim 6, realmente, de uma natureza
ffsica e, sendo deixado carnal, sera urn ser imperfeito, possuindo, é verdade, a imagem em
sua formacAo, mas sem receber a semelhanca por meio do Espirito, sendo esse ser, por
causa disso, imperfeito.2
TomAs DE AQUINO
Tomas de Aquino (1225-1274) é comumente chamado de o maior filosofo e
teologo da igrej a medieval. Suas ideias sobre a imagem de Deus, aqui apre-
sentadas, sao extradas de sua obra magna Summa Theologica [Sumario de
Teologia].
Tomas de Aquino situa a imagem de Deus fundamentalmente no intelecto ou
razab do homem. Somente de criaturas inteligentes pode-se propriamente dizer
que sao a imagem de Deus.' Mesmo em criaturas racionais, a imagem de Deus é
encontrada somente na mente.m Na verdade, Tomas acrescenta, a imagem de
Deus e encontrada mais perfeitamente nos anjos do que nos homens, por-
que as naturezas dos anjos sao "mais perfeitamente inteligentes" do que as dos
homens.11Visto que Tomas de Aquino situa a imagem de Deus especialmente
no intelecto do homem, e evidente que, para ele, o intelecto e a mais divina das
qualidades no homem.
Segundo Tomas de Aquino, a imagem de Deus existe no homem em tees
patamares:
o primeiro patamar é a aptidao natural do homem para entender e amar a Deus, uma
aptidao que consiste na propria natureza da mente e que é comum a todos os homens.
0 proximo patamar o onde urn homem esta atual(*) ou dispositivamente (ou habitual-
mente; do latim actu vet habitu) conhecendo e amando a Deus, mas ainda imperfeita-
mente; e aqui nos temos a imagem pela conformidade da grata. 0 terceiro patamar 6
onde o homem esta atualmente(*) conhecendo e amando a Deus perfeitamente; e
esta 6 a imagem pela semelhanca da gloria .....0 primeiro patamar da imagem 6, pois,
encontrado em todos os homens, o segundo somente nos justos e o terceiro somente
nos bem-aventurados.'2
Ibid., 1.93.9.
m Ibid., ad 3.
(*) Nota de traducdo: de "ato" em oposigdo a "potencia" (Filosofia).
(-) Nota de tradugdo: "atualmente"em oposicdo a "potencialmente"ou "aptiddo para" (Filosofia).
'5 Ibid., 1.12.12.
'6 Ibid., 1-11.109.1, A.M. Fairweather, (trad.), in: Nature and Grace, em Library of Christian Classics,
vol XI (Philadelphia: Westminster, 1954), p. 139. Observe aqui a estrutura de dois niveis, tipica da
teologia escoldstica.
A I MAGEM DE DEUS: UM PANORAMA HISTORIC° 51
Ha, contudo, algo assim comp conhecimento e amor natural a Deus....... E 6 tambem natural
para a mente que ela tenha o poder de usar a raid() para compreender Deus, e foi em vista
desse poder que dissemos que a imagem de Deus permanece sempre na mente."
Qual foi, entao, o efeito da Queda sobre a imagem de Deus? Por causa da
Queda, o homem perdeu a graca sobrenatural que Deus havia concedido a ele no
princfpio: "Nossos primeiros pais, pelo seu pecado, foram privados do be-
neffcio divino que mantinha neles a integridade da natureza human a".24 Por ter
perdido essa graca sobrenatural, o homem nao tem mais o poder de controlar as
faculdades inferiores por mein de sua razao:
Em seu estado original o homem era divinamente capacitado corn a graca e privil6gio de
que, enquanto sua mente estivesse sujeita a Deus, as faculdades inferiores da alma
permaneceriam sujeitas a sua mente racional e seu corpo sujeito a sua alma. A mente
do homem, mediante o pecado, abandonou a subordinacao a Deus, corn a
conseqiiencia de que, agora, suas faculdades inferiores nao mais seriam inteiramente
obedientes a sua razao; e igual foi a rebeliao da came contra a razao de modo que
tambem o corpo nao seria mais inteiramente obediente a alma."
Sendo assim, o homem decaido necessita que esta graca sobrenatural the
seja restaurada, por duas razoes:
Assim, no estado de natureza pura, o homem necessita de urn poder acrescentado
pela graca al6m do seu poder natural, por uma razao, a saber, a fim de fazer e querer o
bem sobrenatural. Mas, no estado de natureza corrupta, ele o necessita por duas
razbes: para ser curado e para alcancar o bem meritorio da virtude sobrenatural."
chamaram esta graca de donum superadditum naturae, urn "dom supradicionado a natureza". Tomas de
Aquino chamou essa graca de gratia gratum faciens, "uma graga que torna alguem agradavel [a
Deus]" (Summa, 1.100.1, ad 2).
" Summa, I. 95.4, ad I.
Ibid., 1-11.109.6 (traducao de Fairweather).
" Ibid., 11-11.164.2 (traducao dos dominicanos). Cf. 1,95.1.
2' Ibid., 11-11.164.1.
" Ibid., 1-11.109.2. (traducao de Fairweather).
A I MAGEM DE DEUS: UM PANORAMA HISTORIC° 53
servir, a Deus como deveriam. Temos, todavia, de discordar do conceito de
imagem de Deus em Tomas Aquino em cinco pontos.
Primeiro, Tomas de Aquino ensina que a imagem de Deus encontra-se so-
mente na natureza intelectual do homem. Esta ideia tern suas rafzes no pensa-
mento grego e Tido na Escritura. Tanto Plata° como Aristoteles consideravam
divino o intelecto do homem; era a centelha da divindade dentro do homem.27
Quando afirma que a imagem de Deus deve ser vista principalmente no intelec-
to, uma vez que o intelecto e a mais divinaexpressao humana, Tomas de Aqui-
no reproduz uma ideia tipicamente grega. Podemos ver na capacidade intelec-
tual humana um reflexo de Deus que e o Sabi° supremo, mas dizer que a ima-
gem de Deus é encontrada exclusiva ou mesmo fundamentalmente no intelecto
do homem é expressar uma opinialo que é mais grega do que crista. A Biblia diz
que Deus é amor; jamais que Deus é intelecto.
Podemos observar, ademais, que ver a imagem de Deus fundamentalmente
no intelecto ou razdo do homem tende a minimizar ou mesmo remover total-
mente aquilo que nos verificamos ser essencial na concepcdo biblica da ima-
gem: que é a relacao do homem corn Deus e corn os outros, ou seja, sua capa-
cidade de amar a Deus e de amar os seus semelhantes. A imagem de Deus,
como entendida por Tomas de Aquino, é uma concepcao abstrata e estatica,
muitissimo afastada da dinamica da linguagem biblica a respeito do homem.
Um segundo ponto passivel de critica e este: a ideia de Tomas de Aquino
compromete a bondade da natureza original do homem, por supor uma luta
entre os aspectos "inferiores" e "superiores" da natureza humana desde o exato
momento da criacao. Os "aspectos inferiores" do homem poderiam ser guar-
dados sob controle pelos "aspectos superiores" somente por meio de um dom
adicional da graca sobrenatural. No momento inicial de sua existencia, portan-
to, mesmo antes da Queda, o homem ja era, de algum modo, imperfeito; neces-
sitava de urn donum superadditum (urn dom adicional) da graca, que o capa-
citasse a ser o que deveria ser. Como esta ideia se harmoniza corn a afirmacdo
biblica; "Viu Deus tudo quanto fizera [inclusive o homem], e eis que era muito
born" (Gn 1.31)?
Terceiro, a maneira como Tomas de Aquino define a imagem de Deus dimi-
nui a gravidade da Queda. Isto é, segundo Tomas de Aquino, o homem, apos a
Queda, permaneceu essencialmente o mesmo que era antes da mesma, apenas
privado do dom da graca sobrenatural, ou o donum superadditum. Este dom,
27 P1atao, The Timaeus, 90 C; Aristateles, De Anima, Livro 1, 408b; tambem Nic. Ethics, Livro 10,
11776.
54 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
recebido pelo homem antes da Queda, tratava-se de algo adicional, nao es-
sencial, a sua natureza. Assim, podemos descrever o efeito da Queda sobre os
seres humanos somente em termos negativos, em termos de perda de urn dom
adicional. Alguem poderia dizer que, segundo este ponto de vista, o homem
decaido nao é tap depravado quanto é destituido. A ideia de Tomas de Aqui-
no, em outras palavras, nao faz justica aos efeitos devastadores que a Queda
teve sobre a natureza humana.
Urn quarto ponto que merece critica e que a oposiedo entre a razao e as
"faculdades inferiores" ensinada por Tomas de Aquino sugere uma especie de
desvalorizacao do corpo como a sede da "natureza inferior" do homem. Em
Tomas de Aquino, a virtude é normalmente definida como a sujeiedo das pai-
xO"es a razao. "Agora tudo o que as virtudes sac) é urn conjunto de perfeieOes
pelas quais a razao é dirigida a Deus e as faculdades inferiores sao governadas
de acordo corn o padrao da razao."28Uma implicagao dessa afirmagao é que a
razao humana esta sempre correta e nunca errada uma concepgdo que tern
mais em comum corn o pensamento grego do que corn a concepedo biblica do
homem.' Alem disso, falar de certos aspectos da natureza humana como "fa-
culdades inferiores" do homem sugere uma dicotomia estranha a Escritura, en-
tre o que é "nobre" em nos (o intelecto) e o que é "ignobil" em nos (as paixOes e
emoeO'es). Segundo a Escritura, porem, nao encontramos no homem faculda-
des superiores e inferiores; o ser humano como uma totalidade foi criado por
Deus, e nenhum aspecto seu é "inferior" ou "menos nobre" do que outros.
Uma outra implicagdo da ideia de que a virtude consiste numa supressao
dos apetites fisicos é a de que o corpo (onde situam-se as "faculdades inferio-
res") é a principal fonte do pecado. A esta, seguem varias outras implicagOes.
Alguem pode ver, por exemplo, como o monasticismo, comum na igrej a me-
dieval, se encaixa nesta descried(); pensava-se que monges e freiras que se
submetiam a extremos rigores corporais e que abdicavam do casamento havi-
am alcangado urn nivel moral e espiritual mais elevado do que aqueles que
satisfaziam seus apetites mediante urn modo de vida comum. E tambem possi-
vel ver como disso se origina a exigencia do celibato clerical: urn homem que
permanece solteiro e nega a si mesmo a satisfacao de seus apetites sexuais é
visto como se estivesse num nivel mais elevado de santidade do que aquele que
JOAO CALVING
A Reforma Protestante retornou a uma concepcao mais biblica do homem
em reacao a antropologia escolastica da Idade Media. Seth, pois, extrema-
mente importante examinarmos a seguir a compreensao da imagem de Deus
encontrada em Joao Calvino, o grande Reformador, que viveu de 1509 a 1564.
A primeira pergunta que fazemos a Calvino respeito da sua concepcao da
imagem divina 6 esta: onde situa-se a imagem de Deus no homem? Segundo
Calvino, a imagem de Deus 6 encontrada fundamentalmente na alma do ho-
Calvino continua dizendo que, no comeco, a imagem de Deus era visIvel "na
iluminacao da mente, na retidao do cora*, e na perfeicao de todos os dons".38
Em outro lugar, acrescenta o pensamento de que, naquele tempo, o homem
verdadeiramente excedia em tudo o que era born."
Com base em Colossenses 3.10 e Efesios 4.24, Calvino conclui que a ima-
gem de Deus no homem inclufa originariamente o verdadeiro conhecimento,
justica e santidade." Entre os "dons sobrenaturais" que os seres humanos pos-
sufam no comeco — dons que foram perdidos na Queda — estavam fe, amor a
Deus, caridade de cada urn para corn o proximo e zelo por santidade e reti-
dao 41 seu estado original, o homem era capaz de comunicar-se e de rela-
cionar-se bem corn Deus e corn outros seres humanos."
Calvin() combate aqueles que identificam a semelhanca de Deus corn o do-
mini° sobre a terra que foi dado ao homem.43 Mesmo assim, ele prontamente
" Institutes of the Christian Religion, org. por Jonh T. McNeil, trad. por Ford Lewis Battles (Philadel-
phia: Westminster, 1960), 1.15.3.
" Ibid.
3' Comm. On I Cor 15:49. Pode-se notar que, de acordo corn Calvino, inclusive os anjos foram criados
semelhanca de Deus. (Inst., 1.15.3).
32 Inst., 1.15.3
38 Ibid., 1.15.4.
Calvin() insta seus leitores a amarem mesmo aqueles que os odeiam pois
devemos "lembrar de levar em consideracao nab as mas intencoes dos homens
mas a imagem de Deus neles, que cancela e apaga as suas transgressoes e que,
corn sua beleza e dignidade, atrai-nos a ama-los e a acolhe-los".58
Em resposta a. nossa pergunta, portanto, Calvino de fato afirma que, embo-
ra o pecado tenha deformado e distorcido a imagem de Deus, ha urn importante
aspecto em que o homem decaido ainda deve ser visto como urn portador da
imagem de Deus. De fato, ele insiste que nosso reconhecimento da imagem de
Deus em todas as pessoas hoje deveria nos persuadir a honra-las e ama-las, ate
mesmo corn sacrifIcio.
Como bem se sabe, contudo, Calvino tinha convicgOes firmes quanto ao
efeito destrutivo do pecado sobre a imagem de Deus. A pergunta seguinte que
fazemos a Calvino é esta: 0 que, entao, a queda do homem em pecado fez a
imagem de Deus?
Calvino responde da seguinte maneira: "Portanto, muito embora admitamos
que a imagem de Deus nao tenha sido totalmente aniquilada e destrufda nele [no
homem], todavia ela ficou tao corrompida [pelo pecado] que tudo quanto perma-
E, em um dos Sermo'es sobre o Livro de J6, ele faz a seguinte afirmacao: "E
verdade que quando chegamos a este mundo, trazemos algum resquicio da
imagem de Deus corn a qual Adao foi criado: ainda que essa mesma imagem
seja tao desfigurada que estejamos repletos de injusticas e nao haja senao ce-
gueira e ignorancia em nossa mente".61 Essa distorcao da imagem significa que o
homem alienou-se de Deus, de si mesmo e de seus iguais.62
Ao contrario de muitos teologos medievais e tambem de Irineu, Calvino
sustentava que o que aconteceu na Queda nao foi meramente uma questa() de
perda da semelhanca de Deus e de retencao da imagem de Deus, visto que
Calvino nao via nenhuma diferenca basica entre essas duas.63 0 que aconteceu,
todavia, foi que quaisquer dons ou habilidades que o homem reteve, tais como a
razao e a vontade, foram pervertidos e deturpados pela Queda. "Ora, por
causa da depravacao da natureza, todas as faculdades do homem sao tao vi-
ciadas e corrompidas que ameacam, em todas as suas awes, desordem e a
intemperanca permanentes."64 Neste mesmo sentido, lemos as seguintes pala-
vras do Comentario ao Evangelho de Joao:
Pois visto que nenhuma parte ou faculdade da alma esta incorrupta mas desapartada do
que e correto, o fato de que os homens vivem, respiram e sao dotados de sentidos,
entendimento e vontade, tendem a sua destruicdo. Assim d que a morte reina em toda a
parte. Porque a morte da alma é a alienagdo de Deus.65
77 Comm. On II Corinthians 3.18 (traducgo de Smail [Grand Rapids: Eerdmans, 1979]). "
Comm. On Genesis 1.26.
79 Inst., 1.15.4
A ImAGEm DE DEUS: UM PANORAMA HISTORIC° 63
KARL BARTH
Passamos agora para as ideias de urn teologo mais recente, Karl Barth
(1886-1968), conhecido como o pai da neo-ortodoxia. Precisamos fazer a
mesma pergunta antes dirigida a Tomas de Aquino e a Calvino: Onde situa-se a
imagem de Deus? Para Barth, a imagem de Deus no homem na'o se encontra em
seu intelecto ou razdo. Barth rejeita totalmente a afirmacao de Polanus, urn
teologo do seculo XVI, de que o homem é "urn ser dotado de razao" (animal
ratione praeditum)—umadefinicao derivada de Aristoteles.8° Como vimos, foi
precisamente esse aspecto do homem que Tomas de Aquino havia caracte-
rizado como a essencia da imagem de Deus. Alem disso, Barth recusa-se a
situar a imagem de Deus no homem em qualquer especie de "descricao" antro-
pologica "do ser humano, sua estrutura, disposicao, capacidades, etc".81Ern-
bora teologos precedentes houvessem dedicado muito tempo tentando locali-
zar as estruturas e qualidades exatas nas quais consistiria a imagem de Deus,
Barth conclui que todos procuraram no lugar errado.
Teologos precedentes, Barth continua, cometeram o erro de nalo examinar
de forma clara e cuidadosa o texto da Bfblia que descreve a criacdo do homem a
imagem de Deus: "Criou Deus, pois, o homem a sua imagem, a imagem de Deus
o criou; homem e mulher os criou" (Gn 1.27).
Poderia alguma coisa ser mais Obvia do que concluir dessa indicacao clara que a
imagem e semelhanca do ser criado por Deus significa existencia em confrontacdo,
isto é, nessa confrontacRo, na justaposicao e conjuncdo de ser humano e ser humano
que é esta de homem e mulher...?"
0 fato de que fomos criados ser humano do sexo masculino e ser humano do
sexo feminino significa para Barth que o ser humano foi dotado por Deus da
possibilidade de confrontacao entre o homem e mulher. 0 homem pode ser urn
"eu" para a mulher e a mulher pode ser urn "eu" para o homem. 0 homem pode
ser tambem urn "tu" para a mulher e a mulher pode ser urn "tu" para o homem.
Esta confrontacao "eu-tu", no entanto, nab diz respeito apenas a relacdo entre
homem e mulher, mas tambem a relacao entre ser humano e ser humano.
Barth chama essa relacao confrontadora de imagem de Deus porque essa
mesma relacao confrontadora existe entre Deus e o homem. Deus é um ser que
3° Karl Barth, Church Dogmatics, III/2 (Edinburgh: T. & T. Clark, 1960), pp. 76-77.
31 Church Dogmatics, III/I, p. 195.
32 Ibid., p. 195.
64 CR1ADOS A IMAGEM DE DEUS
se confronta conosco e entra numa relacao "eu-tu" conosco. 0 fato de o ho-
mem ter sido criado corn a capacidade para uma relacao semelhante corn seus
iguais significa, portanto, que ele foi criado a imagem e semelhanca de Deus.
0 homem 6 criado por Deus em analogia a esta relacao e diferencia0o [entre o eu e o tul
em Deus mesmo: criado como urn tu a quem Deus pode se dirigir mas tambem como
urn eu responsavel diante de Deus; no relacionamento de homem e mulher no qual o
homem 6 urn tu para a sua companheira e, portanto, ele mesmo urn eu corn
responsabilidade diante desta reivindicacao."
Entre Deus e o homem ha, portanto, para Barth, nao uma analogia do ser
(analogia entis) mas uma analogia da relacao (analogia relationis). Deus criou o
homem para ter comunhao pactual consigo mesmo e comunhao corn outros; por
isso assim o fez. Barth resume tudo isso da seguinte maneira:
Que o homem real 6 determinado por Deus para a vida corn Deus tern sua correspon-
(acia inviolavel no fato de que seu ser na qualidade de criatura é urn ser de encontro —
entre eu e tu, entre homem e mulher. E humano neste encontro e, nesta humanidade,
6 uma semelhanca do ser de seu Criador."
EMIL BRUNNER
Sera proveitoso examinar a seguir a concepcao da imagem de Deus en-
contrada num teOlogo contemporaneo de Barth, representante tambem da as-
sim chamada Teologia Dialetica, Emil Brunner (1889-1966). Devemos notar
que, a exemplo de Barth, Brunner rejeita a historicidade de Addo e da queda do
homem em pecado.9° Isso nao significa, contudo, que Brunner negue a pe-
caminosidade do homem como tal:
Se, por urn lado, afirmamos que nao podemos pensar em termos copernicos sem
renunciar a histOria de Ada°, por outro lado, porem, devemos tambem dizer que nao
podemos crer, em termos biblicos e cristaos, sem manter firmemente a distincAo entre
Criacdo e Pecado e, por conseqUencia, a ideia de uma Queda. Renunciar a isso signi-
fica abandonar a fe biblica como um todo.9'
" Emil Brunner, The Christian Doctrine of Creation and Redemption, trad. por Olive Wyon (Philadel-
phia: Westminster, 1953), pp, 48-49.
9' Ibid., p. 51.
A 1MAGEM DE DEUS: UM PANORAMA HISTORIC° 67
afirmar que o homem hoje nao esta no mesmo estado ou condicao em que
Deus o criou, mas existe agora em urn estado pecaminoso. De fato, algumas
vezes, Brunner fala da queda do homem em pecado, colocando a expressdo
entre aspas ("esta ruptura entre imagem formal e material, do ponto de vista de
Deus, nao deveria existir; ela é o resultado da queda em pecado' ...").92 Esta
linguagem 6 de fato confusa. Brunner aparentemente quer descrever o homem
como se tivesse cal& em pecado apesar de, ao mesmo tempo, rejeitar o pensa-
mento de que realmente houve uma queda historica do homem em pecado. Ele
quer afirmar que houve uma Queda e, ocasionalmente, ate mesmo quer falar do
"evento"93 da Queda, embora negue que tal evento tenha jamais acontecido.
Se perguntassernos a Brunner onde deve se encontrar a imagem de Deus no
homem, ele certamente rejeitaria corn firmeza, assim como Barth, a ideia de que a
imagem se encontra fundamentalmente na razao humana. Brunner repudia esta
concepcdo como uma reliquia do escolasticismo medieval. Para ele, a ima-
gem de Deus encontra-se acima de tudo na area da relacao do homem corn
Deus, de sua responsabilidade perante Deus, e na possibilidade de comunhao
com Deus. A razdo ilk 6, portanto, o que ha de mais elevado no homem mas
apenas o meio pelo qual o homem 6 capaz de cumprir sua verdadeira fungdo, a
de ter amorosa comunhdo corn Deus.
Pode-se descrever o homem como um sistema hierarquico. Ha nele um "acima" e um
"abaixo" ...0 Idealismo sup6e que aquele [o "acima"] é a Razdo Divina da qual o
homem participa; a f6 crista o identifica corn a Palavra de Deus, aquela Palavra que se
doa e que exige, ern Quern o homem tem seu fundamento como ser humano ...... A Razdo
0", por assim dizer, somente o instrumento da relaydo do homem corn Deus."
92"Reply to Interpretation and Criticism," em The Theology of Emil Brunner, orig. por Charles W.
Kegley. (New York: Macmillan, 1962), p. 333.
93"Frieden auf Erden," Grundriss 6, n° 5 (1944).
"Man in Revolt, trad. por Olive Wyon (New York: Scribner, 1939), p. 102.
"Doctrine of Creation, p. 55.
68 CR1ADOS A IMAGEM DE DEUS
Por isso o amago da existencia do homem como criatura 6 liberdade, individualidade,
para ser um "eu", uma pessoa. Somente urn "eu" pode responder a urn "tu", somente
uma personalidade que se autodetermina pode responder livremente a Deus."
0 homem, como originalmente criado, tinha essa liberdade. Nab se tratava
da liberdade para fazer qualquer coisa que the agradasse, mas uma liberdade
restrita ou limitada. Ao homem foi dada essa liberdade limitada para que ele
pudesse responder a Deus corn amor, a fin' de que, por meio dessa resposta,
Deus pudesse ser louvado e glorificado.97
E da essencia dessa liberdade responsavel, Brunner acrescenta, que esse
prop6sito possa ou nao ser cumprido. E é neste ponto que ele introduz a distin-
cao entre a imagem de Deus nos sentidos formal e material:
Assim, a natureza divinamente criada do homem teria de ter urn aspecto formal e urn
material. E fato estabelecido que o homem deve responder, que ele a responsavel;
nenhum grau de liberdade humana, nem do abuso pecaminoso da liberdade, pode
alterar este fato. 0 homem é e permanece responsavel, seja qual for sua atitude
pessoal para com seu Criador. Ele pode negar sua responsabilidade e fazer mau use de
sua liberdade, mas ele nao pode livrar-se de sua responsabilidade. A responsabi-
lidade é parte da estrutura imutavel do ser do homem."
"Ibid., p. 56.
"Ibid.
" Ibid., pp. 56-57.
9 Man in Revolt, p. 510.
9
A IMAGEM DE DEUS: UM PANORAMA HISTORIC° 69
obedecerei a Deus algum". Mesmo esta resposta a uma resposta, que se deve a uma lei
inerente de responsabilidade. Mao é possivel perder essa estrutura essencial for-
mal. Ela é identica a existencia humana como tal e a condicao do ser comum a todos os
seres humanos; ela cessa somente ali onde cessa o viver genuinamente humano — no
limile da imbecilidade ou da loucura.m
Mais adiante, Brunner faz urn afirmacao urn tanto intricada: "Da perspectiva
de Deus, portanto, essa distincao entre o "formal" e o "material" nao existe; ela
nao tern legitimidade. Mas ela existe — erradamente".114Eu preferiria dizer que
esta distincao nao deveria existir (ao inves de nao existe). 0 que Brunner
quer dizer, eu presumo, é que nao era da vontade de Deus que a imagem se
partisse nesses dois aspectos. Deus queria que a imagem permanecesse unit&
ria, mas o pecado a dividiu nesses dois aspectos. Quando a imagem de Deus for
totalmente renovada, ela sera unitaria de novo.
Podemos destacar varios pontos positivos na exposicao que Brunner faz da
imagem de Deus: 1) seu entendimento dinamico da imagem, que para ele deve
ser vista a luz do encontro entre Deus e o homem, o que é essencial para a
existencia humana; 2) a importancia que da ao amor, que ele considera funda-
mental na imagem de Deus, ao inves da razao ou do intelecto; 3) sua enfase
sobre os efeitos devastadores do pecado sobre a imagem de Deus; 4) o fato de
reter a distincao entre os dois aspectos da imagem; e 5) sua afirmacao de que o
homem decaido ainda é, ern urn sentido bastante real, a imagem de Deus.
Ern outros pontos, contudo, faro serias ressalvas a opiniao de Brunner.
Primeiro, quando Brunner nega a Queda historica, ele repudia o ensino de Pau-
lo a respeito do primeiro Adao e levanta serias dtividas a respeito da historici-
dade do segundo Adao, a saber, Jesus Cristo. Estee urn ponto extremamente
importante. Em Romanos 5.12-21, Paulo trap um paralelo entre a condena-
cao que recebemos pela queda do primeiro Adao e a justica que recebemos
pela obediencia do segundo Adao. Se, contudo, o primeiro Adao foi apenas
metaforico ou simbolico, como podemos estar certos de que o segundo Adao, a
quern Paulo se refere na mesma passagem, nao sej a tambem metaforico ou
simbolico? Nesta passagem, Paulo esta falando claramente de dois cabecas —
urn por meio de quem nos calmos em pecado e outro por meio de quern nos
somos salvos. Se fosse aceitavel dizer que o primeiro cabeca nunca existiu, o
que recta do argumento de Paulo?
0 comentario de Paul Jewett sobre este terra é bastante oportuno:
Esta é a doutrina de Paulo: em um determinado tempo e em um determinado lugar, o
G. C. BERKOUWER
Concluimos este estudo historico corn o exame do conceito da imagem de
15 Paul K. Jewett, Emil Brunner's Concept of Revelation (London: James Clarke, 1954), pp. 148-49.
A 1MAGEM DE DEUS: UM PANORAMA HISTORIC° 73
Deus ensinado por urn teologo holandes contemporaneo, Gerrit C. Berkouwer.
Nascido em 1903, foi professor de Dogmatica na Universidade Livre de Ams-
terda de 1945 ate sua aposentadoria em 1973. 0 volume no qual ele expoe
suas ideias sobre o homem é Man, the Image of God.16
Assim como Barth e Brunner, Berkouwer rejeita o pensamento de que a
imagem de Deus no homem situa-se primariamente no intelecto ou razdo do
homem. Em seu julgamento, sdo contrarias a Biblia aquelas definicoes que iden-
tificam a essencia do homem corn sua razdo, visto que elas ndo enfatizam o que
as Escrituras apresentam como a caracteristica singular do homem, a saber, sua
inevitavel relacdo corn Deus."7 Para Berkouwer, o homem deve ser visto sem-
pre tal como se encontra diante da face do Todo-Poderoso, ligado religiosa-
mente a Deus na totalidade de sua existencia. Esta relacdo corn Deus, alem
disso, n5o é algo que foi acrescentado ao homem mas que e constitutivo do seu
ser. Quem tenta ver a pessoa humana a parte de sua relacdo corn Deus jamais a
vera como ela realmente 6.
Com relacdo a isso, Berkouwer diz algo que soa como uma advertencia a
todos os psicologos, sociologos, psiquiatras, medicos, etc.: "As ciencias que
lidam corn certos aspectos podem dar n5o mais do que uma contribuiedo par-
cial para o nosso entendimento do homem, ndo podem desvelar o segredo do
homem todo"."8
0 primeiro grande problema a respeito da imagem de Deus que Berkouwer
aborda é a questa° se é proprio falar da imagem nos sentidos lato e estrito. Os
teologos reformados tradicionalmente tern feito esse tipo de distilled° quando
falam da imagem de Deus. Por exemplo, Louis Berkhof, no seu Manual de
Doutrina Cristil, seguindo o teologo holandes Herman Bavinck, distingue en-
tre a imagem de Deus em um sentido restrito e em urn sentido lato. A imagem
estrita ou restrita, diz Berkhof, consiste "nos qualidades espirituais corn as quais o
homem foi criado, a saber, verdadeiro conhecimento, justica e santidade". A
imagem no sentido lato ou amplo significa que o homem 6 "urn ser espiritual,
racional, moral e imortal; no corpo, ndo como uma substancia material, mas
como o &go da alma; e no dominio do homem sobre a criacdo inferior".19
Costuma-se dizer, entdo, que, enquanto a imagem no seu sentido estrito foi
116 Dirk W. Jellema, (trad.) (Grand Rapids: Eerdmans, 1962). A edicao holandesa original foi publicada
em 1957.
"7 Man, p. 34.
p. 29. Para uma analise mais completa do que segue, veja minha resenha, "Berkouwer on the
Image of God," em Reformed Journal 8, n° 5 e n° 6 (Maio e Junho de 1958).
19 Grand Rapids: Eerdmans, 1953, pp. 129-30.
74 CRIADOS A 1 MAGEM DE DEUS
completamente perdida pela queda do homem em pecado, a imagem no senti-
do lato nab foi perdida mas foi corrompida e pervertida pelo pecado.
Berkouwer lembra que os teologos reformados fizeram esta distilled° por
duas razoes: eles reconheceram, primeiro, que o homem, embora decaido,
ainda permanece homem; e, segundo, que o homem, pela sua queda em pe-
cado, perdeu aquela conformidade corn a vontade de Deus que caracterizava
sua vida antes da Queda. Os eruditos reformados, portanto, comeearam a se
preocupar corn a questa° sobre o que, no homem, nab foi perdido por causa do
pecado.
Berkouwer questiona a validade dessa distinedo entre os aspectos lato e es-
trito da imagem de Deus.12° No segundo capitulo do seu livro, ele apresenta cinco
dificuldades que ele encontra corn o assim chamado conceito duplo de imagem:
1 . A tentativa de descrever a imagem de Deus no sentido lato tende a nos
fazer conceber a imagem primariamente em termos de estrutura ontologica e
psicologica do homem. Quando tentamos definir a imagem de Deus mediante
conceitos tais como razdo, moralidade e liberdade, Berkouwer afirma, somos
logo envolvidos ern especulacOes que nab encontram suporte na Escritura.121
2. Se comeeamos nossa descried° da imagem de Deus tentando descrever a
"essencia" ou o "ser" do homem, entab temos de acrescentar a relacdo do
homem corn Deus como uma especie de apendice. Mas isso estaria em total
desarmonia corn a Escritura, que sempre coloca a relaedo do homem corn Deus
no centro.'"
3. Se tentamos falar de urn aspecto estrito da imagem que foi perdido e de
urn aspecto lato que foi retido, nao estamos operando corn duas concepeOes
divergentes e, talvez, ate contraditorias da imagem? Por imagem no sentido
estrito entendemos uma conformidade ativa corn a vontade de Deus em uma
vida de obediencia; por imagem no sentido lato entendemos uma analogia do ser
ao ser de Deus, que consiste na posse da razao, da vontade e outras quali-
dades. Mas esses dois conceitos de imagem sal° tao distintos que é impossivel
uni-los em uma sintese significativa.'"
4. A distinedo entre a imagem de Deus em urn sentido lato e urn sentido
estrito traz consigo o perigo de se perder de vista a corrupedo radical do ho-
mem por causa do pecado, por sugerir que o aspecto lato da imagem possa
A 1MAGEM DE DEUS:
UM SUMAR10 TEOLC5G1C0
0 proposito deste capitulo sera dar uma descricao teologica de modo resu-
mido do significado e da importancia da doutrina da imagem de Deus. Como ja
vimos, é dito somente a respeito do homem — nao a respeito de qualquer outra
criatura— que ele foi criado a imagem de Deus. Ser a imagem de Deus, portan-
to, deve ser uma indicacao do que é singular a respeito da raga humana. 0
conceito da imagem de Deus é o coracao da Antropologia crista.
Quando a Biblia diz que Deus criou o homem a sua pre:via imagem, certa-
mente ela pretende dizer que o homem no tempo de sua criagao foi obediente a
Deus e amou a Deus de todo o seu coracao (observe, por exemplo, Gn 1.31, "E
viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito born".) Mas a afirmacao:
"Criou Deus o homem a sua propria imagem" (v. 27) obviamente pretende
fazer mais do que descrever a integridade moral e espiritual do homem. Isto e,
ela coloca o homem a parte do restante da criagao de Deus, por indicar que ele
foi formado de urn modo singular. A afirmagao nao meramente nos diz em qual
diregao o homem estava vivendo sua vida no comeco (a saber, em obediencia a
Deus); ela o descreve na totalidade de sua existencia. 0 homem, segundo
essas palavras, 6 urn ser cuja constituicao total reflete e espelha Deus.
Em nossa discussao anterior da ideia de Berkouwer a respeito da imagem de
Deus, eu citei Herman Bavinck, que disse que de acordo corn a Escritura o
homem rat) apenas porta ou tern a imagem de Deus, mas ele é a imagem de
Deus, e que a imagem de Deus estende-se ao homem em sua inteireza.1Tudo
' Ver acima, p. 80. Cf. Karl Barth, Church Dogmatics, 111/I (Edinburgh: T. & T. Clark, 1958), p. 184:
"Ele [o homem] nao seria homem nao fosse a imagem de Deus. Ele 6 a imagem de Deus pelo fato de que
ele 8 homem".
82 CR1ADO5 A IMAGEM DE DEUS
isso sugere que a imagem de Deus nao é algo acidental no homem, e que ele
pode perder sem deixar de ser homem, mas é essencial a sua existencia.
A principal ideia sob a palavra imagem (tselem e demuth no hebraico) é a
de semelhanga; estas palavras nos dizem que o homem, como originalmente
criado, era semelhante a Deus. Genesis 1.26-28, que descreve a criacao do
homem a imagem de Deus, nao nos diz exatamente em que esta semelhanca a
Deus consiste. Voltaremos a essa questao mais adiante. Mas deverfamos ob-
servar, de inicio, que a concepcao do homem como a imagem ou semelhanca de
Deus nos diz que o homem, como originalmente criado, era para espelhar Deus
e para representar Deus.
Primeiro, era para espelhar Deus. Como um espelho reflete, assim o ho-
mem deve refletir Deus. Quando alguem olha para um ser humano, deve ver
nele ou nela urn reflexo claro de Deus. Em outras palavras, no homem Deus
deve tornar-se visivel na terra. Sem dtivida, outras criaturas e ate mesmo os
ceus declaram a gloria de Deus mas somente no homem Deus se torna visivel.
Os teologos reformados falam da revelacao geral de Deus, na qual revela sua
presenca, poder e divindade pelas obras das suas maos. Mas, na criacao do
homem, Deus revelou-se a si mesmo de urn modo singular, fazendo alguem que
era uma especie de imagem de si mesmo refletida no espelho. Honra maior nao
poderia ter sido dada ao homem do que o privilegio de ser uma imagem do
Deus que o fez.
Este fato esta relacionado a proibicao de fazer imagens encontrada no se-
gundo mandamento do Decalogo: "Nao faras para ti imagem de escultura" (Ex
20.4). Deus nao quer que suas criaturas facam imagens dele, visto que ele ja
criou uma imagem de si mesmo: uma imagem viva, capaz de andar e falar.2 Se
voce desej a ver corn que me parego, diz Deus, olhe para a minha criatura mais
nobre: o homem. Isso significa que quando o homem é o que deveria ser, quem o
olha deveria ser capaz de ver algo de Deus nele: algo do amor de Deus, da
bondade de Deus e da benevolencia de Deus.
Segundo, o homem tambem representa Deus. 0 homem foi criado em con-
dicties de fazer isso. Se é verdade que, quando alguem olha para o homem,
deve ver algo de Deus nele, segue-se que o homem representa Deus na terra. Os
monarcas antigos freqtientemente colocavam imagens de si mesmos em re-
gibes remotas de seus dominios; uma imagem desse tipo, naquela epoca, repre-
sentava o monarca, simbolizava a sua autoridade e lembrava a seus suditos que
0 esboco acima do homem coma alguem que espelha e representa Deus descreve os seres humanos
como originalmente criados, antes de sua queda em pecado. Poderia se dizer tambem que o que foi
apresentado aqui descreve o prop6sito de Deus para o homem.
4 The Christian View of man (New York): Mcmillan, 1937), p. 169.
5 Inst., 1,15.3.
6 Dogmatiek, 2:601(citado pelo autor em traducao pr6pria para o ingles). Cf. Berkouwer, Man, pp. 75-
77, 229-32.
84 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
Quando refletimos sobre o homem levando em consideracao os diferentes
relacionamentos nos quais ele atua, vemos confirmada a conclusao de que a
imagem de Deus no homem nao diz respeito apenas a uma parte dele (a "alma"
ou o aspecto "espiritual") mas a pessoa toda.
constantemente confrontado corn alternativas entre as quais ele escoihe, dizendo sim a uma e na'o a
outra". (Somewhat less than God [Grand Rapids: Eerdmans, 1970], p. 84). Para uma via) mais
abrangente desse pensamento, ver o capftulo inteiro (pp. 84-108).
Ver H. Bavinck, Dogmatieck, 2:599; J. G. Machen, The Christian View of Man, pp. 174-77; L.
Berkhof, Systematic Theology, ed. revista e aumentada (Grand Rapids: Eerdmans, 1941), p. 207. Cf.
tambem Catecismo de Heidelberg, Questa° 6; ConfissAo de Westminster, 1V.2; Breve Catecismo,
Questa° 10.
A IMAGEM DE DEUS: UM SUMARIO TEOLOGICO 87
refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou".) e
Efesios 4.24 ("e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justica
e retiddo procedentes da verdade"). Diversos te6logos tern descrito esse as-
pecto da imagem de varias maneiras, como a acdo do homem no sentido de: dar
uma resposta correta a Deus (Brunner);16 viver em amor para corn Deus e para
com seu semelhante (Otto Weber);" viver no relacionamento correto corn Deus,
corn seu proximo e com a criacdo (Hendrikus Berkhof);'8 ou como "san-
tificacdo concretamente visivel" (G.C. Berkouwer).19 Assim, a imagem de Deus
no sentido estrito significa o agir apropriado do homem, em harmonia com a
vontade de Deus para ele.
Esses dois aspectos da imagem de Deus (lato e estrito, estrutural e funcio-
nal, ou formal e material) nunca podem ser separados. Sempre que olhamos
para a pessoa humana, estes dois aspectos devem sempre ser levados em con-
ta. A queda do homem em pecado, porem, causou dano ao modo em que ele
reflete Deus. Enquanto, antes da Queda refletiamos apropriadamente Deus,
alp& a Queda, tido somos mais capazes de, por nossa propria forca, o fazer,
visto que, agora, estamos vivendo em um estado de rebelido contra Deus.
Sendo assim, alguem pode provavelmente pensar que o homem apOs a
Queda tido é mais urn portador da imagem de Deus (e, como ja vimos, alguns
teologos tem de fato pensado isso). A partir dos dados da Escritura que exami-
namos anteriormente, contudo, esta claro que nos ndo devemos dizer isso. Se-
gundo a evidencia biblica (como ja notamos no cap. 3), o homem cal& ainda é
considerado urn portador da imagem de Deus, embora outras evidencias mos-
trem que ele ndo mais reflete Deus apropriadamente e, portanto, deve ser no-
vamente restaurado a imagem de Deus. Assim, ha urn sentido em que o homem
cal& é ainda um portador da imagem de Deus, mas tamb6m ha urn sentido em
que ele deve ser renovado nessa imagem. I\TOs ndo devemos entretanto dizer
que a imagem de Deus foi totalmente perdida pela queda do homem em peca-
do; nos devemos, ao contrario, dizer que a imagem foi pervertida, foi distorcida
pela Queda. Todavia, a imagem ainda esta la. 0 que torna o pecado tao serio é
exatamente o fato de que o homem esta agora usando os poderes e os dons
dados por Deus (e que refletem Deus) para fazer coisas que sdo uma afronta ao
seu Criador.
t° The Christian Doctrine of Creation and Redemption, trad. de Olive Wyon (Philadelphia; Westmins-
ter Press, 1953), p. 58.
17 Foundations of Dogmatics, vol. 1, trad. de Wren L. Guder (Grand Rapids: Eerdmans, 1981), p. 574.
" De Mens Onderweg, pp. 31-41.
Man, p. 112.
88 CRIADOS A 1MAGEM DE DEUS
A distincao entre os aspectos estrutural e funcional da imagem de Deus nos
auxilia a expressar lingtlisticamente a condicao do homem antes e depois da
Queda. Quando o homem foi criado, ele possula a imagem de Deus no sentido
estrutural ou lato e, ao mesmo tempo, refletia apropriadamente Deus no sentido
funcional ou estrito, visto que ele vivia em perfeita obediencia a Deus. Depois
que caiu em pecado, contudo, o homem reteve a imagem de Deus no sentido
estrutural ou lato mas a perdeu no sentido funcional ou estrito. 0 que significa
dizer que os seres humanos decaidos ainda possuem os dons e capacidades
dados por Deus mas, no presente, usam esses dons de maneira pecaminosa e
desobediente.2° No processo de redencao, Deus, por seu Espirito, renova a
imagem nos seres humanos decaidos — isto é, os recapacita a usar seus dons, os
quais refletem a Deus, de forma que possam refletir apropriadamente Deus —
ao menos em principio. Apos a ressurreicao do corpo, na nova terra, a huma-
nidade redimida sera outra vez capaz de refletir Deus perfeitamente.
A imagem de Deus no homem deve, portanto, ser vista como envolvendo
tanto aspectos estruturais do homem (seus dons, capacidades e talentos) como
seus aspectos funcionais (suas acOes, seu modo de relacionar-se corn Deus e
corn os outros e a maneira como usa seus dons). Enfatizar qualquer urn em
prejuizo do outro é ser unilateral ou parcial. Nos devemos ver os dois, mas
precisamos ver a estrutura do homem como secundaria e o seu agir como pri-
mario. Deus nos criou a sua imagem a fim de podermos realizar uma tarefa,
cumprir uma missao e seguir uma vocacao. Para nos dar a capacidade de rea-
lizar essa tarefa, Deus nos conferiu muitos dons — dons que refletem parte de
sua grandeza e gloria. Ver o homem como a imagem de Deus é ver igualmente a
tarefa e os dons. Mas a tarefa é primaria; os dons sao secundarios. Os dons sac
os meios para a realizacao da tarefa.
1° Brunner afirma: "A perda da Imago no sentido material pressupOe a Imago no sentido
formal"(Doctrine of Creation, p. 60).
A IMAGEM DE DEUS: UM SUMARIO TEOLOG!CO 89
fundamental na imagem de Deus nao sao qualidades tais como raid() ou inteli-
gencia mas, pelo contrario, o amor, pois, mais do que tudo, o que se destaca na
vida de Cristo é o seu maravilhoso amor. Em Cristo, portanto, vemos de forma
clara o que esta escondido em Genesis 1, a saber: a imagem perfeita de Deus
que o homem deveria ser.
Observando Jesus Cristo, percebemos haver uma dupla estranheza a res-
peito dele. Ha, primeiro, a estranheza de sua divindade. Ele é o Deus-homem,
aquele que se atreve dizer que ele e o Pai sao um — uma afirmacao que fez os
judeus o acusarem de blasfernia (Jo 10.31-33). E aquele que perdoa pecados —
algo que somente Deus pode fazer. E aquele que ate ousa dizer, "Antes que
Abrado existisse, EU SOU!" (Jo 8.58).
Mas ha tambem a estranheza corn relacao a sua humanidade. Embora ge-
nuinamente humano, é Impar em sua humanidade. E totalmente sem pecado. Sua
obediencia ao Pai é perfeita; sua vida de oracao, incomparavel; seu amor pelas
pessoas, insondavel. E, de repente, percebemos que essa estranheza nos faz
sentir vergonha, porque ela nos diz o que todos nos deverfamos ser. A
estranheza do Jesus humano é como urn espelho colocado diante de nos; é uma
estranheza exemplar, pois nos diz qual a vontade de Deus para cada urn de nos.
Quando observamos mais detalhadamente a vida de Cristo, vemos que ele
era, em primeiro lugar, inteiramente voltado para Deus. No comeco de seu
ministerio, embora extremamente tentado pelo diabo, Jesus resistiu a tentack,
em obediencia ao Pai. Ele costumava passar noites inteiras em °rack) ao Pai.
Ele disse, uma vez, "A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que
me enviou e realizar a sua obra". (Jo 4.34). Ao final de sua vida terrena, quando
defrontava-se corn o terrivel sofrimento que haveria de suportar como Salva-
dor de seu povo, ele orou, "Meu Pai, se possivel, passa de mim esse calice!
Todavia, nao seja como eu quero, e sim como to queres" (Mt 26.39).
Segundo, notamos que Cristo é inteiramente voltado para o proximo.
Quando as pessoas the apresentavam suas necessidades, fossem elas de cura, de
alimento ou e perdao, ele estava sempre pronto a socorre-las. Quando,
exausto de uma Tonga jornada, Jesus descansava junto a urn pogo, esqueceu-se
prontamente de sua propria fadiga para evangelizar uma mulher samaritana. A
Zaqueu, Jesus disse, "Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdi-
do" (Lc 19.10). Noutra ocasido, Jesus disse aos seus discipulos, "Pois o pro-
prio Filho do Homem nao veio para ser servido, mas para servir e dar a sua
vida em resgate por muitos" (Mc 10.45). Certa vez, Jesus indicou qual é o
maior amor que alguem pode demonstrar a outro: "Ninguem tern maior amor
90 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
do que este: de dar a sua propria vida em favor dos seus amigos" (Jo 15.13).
Esse é aquele amor que Jesus mesmo revelou: ele deu a sua vida por seus amigos.
Terceiro, Cristo domina a natureza. Corn uma ordem, Jesus acalmou a
tempestade que amenava a vida dos seus discipulos no lago da Galileia. Mais
tarde, andou sobre as aguas para mostrar o seu dominio sobre a natureza. Foi
tambem capaz de proporcionar uma pesca maravilhosa. Multiplicou os pales e
transformou agua em vinho. Curou muitas doencas, expulsou muitos demonios,
fez os surdos ouvirem, os cegos verem, os paraliticos andarem e, ate mesmo,
ressuscitou mortos.
Foram essas acOes miraculosas uma evidencia da divindade de Cristo ou
revelacOes daquilo que Cristo poderia fazer segundo sua humanidade confian-
do em seu Pai nos cells? Nao podemos separar as naturezas divina e humana de
Cristo; como o Concilio de Calcedonia expressou, essas duas naturezas estao
sempre unidas, sem confusao, mudanca, divisao, ou separacao. Todavia,
algumas afirmacOes biblicas sugerem que Jesus realizou esses milagres segundo
sua humanidade perfeita confiando no poder divino: "Se, porem, eu expulso
demonios pelo Espirito de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre
Os" (Mt 12.28); "Var.Oes Israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazare-
no, varao aprovado por Deus diante de vOs corn milagres, prodigios e sinais, os
quais o proprio Deus realizou por interm6dio dele entre vos, como vos mesmos
sabeis" (At 2.22, do sermao de Pedro no Pentecostes).
Nao se pode ser dogmatic° quanto a isso, no entanto. Jesus era o Deus-
homem e, portanto, tudo o que fez, o fez como aquele que era, a urn so tempo,
divino e humano. Obviamente, nao conseguimos fazer milagres como Jesus; no
podemos acalmar a tempestade ou ressuscitar a mortos. 0 que podemos,
porem, é aprender da vida de Cristo que o dominio sobre a natureza é urn
aspecto essencial do exercicio da imagem de Deus — e nos precisamos encon-
trar nosso proprio modo de exerce-lo.
Em suma, observando Jesus Cristo, que é a imagem perfeita de Deus, apren-
demos que o exercicio pr6prio da imagem inclui o ser voltar-se para Deus, o
voltar-se para o proximo e o dominio sobre a natureza.21
21 Para essa apresentacao da imagem de Deus como vista na vida e obra de Cristo, baseei-me em
Hendrikus Berkhof, De Mens Onderweg, pp. 19-26.
A IMAGEM DE DEUS: UM SUMARIO TEOLOGICO 91
bem deve exercitar-se em tees relacionamentos. Genesis 1. 26-28, descreven-
do a criacao do homem a imagem de Deus, diz:
Tambern disse Deus: Fagamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa seme-
lhanga; tenha ele domfnio sobre os peixes do mar, sobre as ayes dos ceus, sobre os
animais domesticos, sobre toda a terra e sobre todos os repteis que rastejam pela
terra. Criou Deus, pois, o homem a sua imagem, a imagem de Deus o criou; homem e
mulher os criou. E Deus os abengoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos,
enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as ayes dos ceus e
sobre todo animal que rasteja pela terra.
Deus colocou o homem em uma triplice relacho: entre o homem e Deus, entre
o homem e seu semelhante, entre o homem e a natureza. As referencias a criacAo
do homem por Deus, a bench() de Deus sobre o homem e ao mandato que the
foi dado por Deus indicam a primeira e fundamental relacao em que o homem
se encontra: seu relacionamento corn Deus. A relacao do homem corn o seu
semelhante 6 indicado nas palavras "homem e mulher os criou". A nossa rela-
cao com a natureza é referida no fato de Deus nos dar dominio sobre a terra.
Vejamos agora cada uma dessas relacO'es mais detalhadamente. Em assim
fazendo, descobriremos qual o propOsito de Deus para nos, como Deus quer
que vivamos.
Ser urn ser humano e estar voltado para Deus. 0 homem é uma criatura
que deve sua existencia a Deus, que é completamente dependente de Deus e
responsavel, acima de tudo, perante Deus. Esta é a sua primeira e mais impor-
tante relacho. Todas as outras relacOes do homem devem ser vistas como su-
bordinadas e regidas por esta primeira.
Ser urn ser humano no sentido mais verdadeiro, portanto, significa amar a
Deus sobre todas as coisas, confiar nele e obedece-lo, orar a ele e the agrade-
cer. Visto que estar relacionado com Deus é sua relacao fundamental, a sua
vida inteira a para ser vivida coram Deo — como diante da face de Deus. 0
homem esta preso a Deus como um peixe esta preso a agua. Quando urn peixe
procura se libertar da agua, ele perde ao mesmo tempo sua liberdade e sua
vida. Quando nos procuramos nos "libertar" de Deus, tornamo-nos escravos do
pecado.
Essa relacho vertical do homem para corn Deus é basica para uma Antro-
pologia crista, e todas as antropologias que negam esta relacao devem ser con-
sideradas nao apenas nao-cristas, mas anticristas. Todas as opinioes acerca do
homem que nao tem seu ponto de partida na doutrina da criacho e que, portan-
to, o veem como urn ser autonomo que pode chegar ao que é verdadeiro e
justo totalmente a parte de Deus ou da revelacao de Deus na Escritura devem ser
rejeitadas como falsas.
92 CRIADOS A 1MAGEM DE DEUS
Muitos anos atras, Agostinho afirmou isso, dizendo: "Tu [Deus] nos fizes-
te para ti mesmo, e nossos coraciies nao descansam ate encontrarem o seu
repouso em ti".22 Calvino expressou um pensamento semelhante quando es-
creveu: "Todos os homens nascem para viver corn o fim de que possam conhe-
cer a Deus".23 G. C. Berkouwer tem semelhantemente enfatizado a relacao
inescapavel do homem para corn Deus: "A Escritura esta preocupada corn o
homem em sua relacao corn Deus, na qual ele nunca deve ser visto como ho-
mem-em-si-mesmo".24
Isso significa, alem disso, que nos somos completamente responsaveis diante
de Deus por tudo o que fazemos. 0 homem foi criado como urn individuo, como
uma pessoa, capaz de autoconsciencia e de autodeterminacao,25 capaz, portanto,
de dar resposta a Deus, de perguntar a Deus, de ter comunhao corn Deus e de
amar a Deus. Isso tern implicacOes nao somente para a nossa adoracao mas para
a nossa vida total. A intencao de Deus para corn o homem a que ele possa fazer
tudo o que faz em obediencia a Deus e para a sua gloria, de modo que ele use
todas as suas faculdades, seus dons e suas capacidades para servir a Deus.
Ser urn ser human° é ser voltado para seus semelhantes. Estamos, outra
vez, em Genesis 1. Observe a justaposicao, no versiculo 27, de "a imagem de
Deus o criou" e "homem e mulher os criou". Trata-se, aqui, de algo mais do que
diferenciacao sexual, visto que isso é encontrado tambem nos animais e a Biblia
nao diz que os animais foram criados a imagem de Deus. 0 que se diz nesse
versiculo e que a pessoa humana nao 6 urn ser isolado que é completo em si
mesmo, mas que 6 urn ser que necessita do companheirismo de outros, que nao
6 completo separado dos outros.
Esse aspecto fica ainda mais nitido em Genesis 2, que descreve a criacao de
Eva: "Disse mais o SENHOR Deus: Nao é born que o homem esteja so; far-
lhe-ei uma auxiliadora que the seja idonea" (v. 18). A expressao hebraica tradu-
zida como "uma auxiliadora que the seja idonea" `ezer kenegdo. Neged (a pa-
lavra traduzida como "lhe seja idonea") significa "correspondente a" ou "que
responde a". Literalmente, portanto, a expressao significa "uma ajuda que res-
ponda a ele". 0 significado das palavras 6 que a mulher complementa o ho-
mem, suplementa-o, completa-o, 6 forte onde ele pode ser fraco, supre suas
5 Por autodeterminagRo, entendo a capacidade de alguem decidir seus atos sem compulsao exterior.
I•lao quero dizer, corn isso, que o homem decafdo a capaz, por sua prOpria forga, de mudar sua
predilegRo fundamental pelo pecado para amar a Deus.
A IMAGEM DE DEUS: UM SUMARIO TEOLOGICO 93
deficiencias e preenche suas necessidades. 0 homem 6, portanto, incompleto
sem a mulher. Isso é valido tanto para a mulher como para o homem. A mulher
tambem é incompleta sem o homem; o homem suplementa a mulher, comple-
menta-a, preenche suas necessidades, é forte onde ela 6 fraca.
0 que se acabou de dizer, contudo, nao deve ser interpretado como suge-
rindo que somente uma pessoa casada pode experimentar o que significa ser
verdadeira e plenamente humana. 0 casamento, sem ddvida, revela e ilustra
mais plenamente do que outra instituicao humana a polaridade e a interdepen-
dencia da relagao homem-mulher. Mas nao o faz em urn sentido exclusivo. Pois o
proprio Jesus, o homem ideal, nunca foi casado. E na vida por vir, quando a
natureza humana for totalmente aperfeicoada, nao havers casamento (Mt 22.30).
Da relacao homem-mulher, portanto, infere-se a necessidade de companhia
entre seres humanos. Mas o que se diz em Genesis I e 2 a respeito dessa
relacao tem implicaeOes tambem para o nosso relacionamento corn seres hu-
manos em geral. Nao somente 6 o homem incompleto sem a mulher e a mulher
incompleta sem o homem; o homem 6 tambem incompleto sem outros homens e
a mulher a tambem incompleta sem outras mulheres. Homens e mulheres nao
podem alcancar a verdadeirahumanidade em isolamento; eles precisam da com-
panhia e do estfinulo dos outros. Nos somos seres sociais. 0 proprio fato de o
homem receber o mandamento de amar seu proximo como a si mesmo de-
monstra que o homem necessita do seu proximo.
0 homem nao pode ser verdadeiramente humano separado dos outros.
Isso e verdadeiro inclusive no sentido psicologico e social. Quase no final do
s6culo XVIII, numa regiao prOxima da cidade francesa da Aveyron, urn me-
nino pequeno foi aparentemente abandonado por seus pais e entregue a si
mesmo numa floresta de Lacaune. Anos mais tarde o menino foi encontrado.
Ele parecia mais um animal do que um ser humano. Comianozes e frutos silves-
tres. Sua linguagem consistia de grunhidos; ele nunca aprendeu a falar coerente-
mente.26 Haveria de se concluir que, a parte do contato e comunhao corn ou-
tros seres humanos, uma pessoa nao pode desenvolver-se em urn homem ou
muffler normal.
0 fato de que so podemos ser seres humanos completos mediante encon: tros
corn outros seres humanos tambem 6 verdadeiro sob outros aspectos • E
somente por meio de contatos corn outros que descobrimos quern somos e
quais sao as nossas forcas e fraquezas. E somente na comunhao corn outros
Quanto a narrativa sobre esse menino e sua subsequente historia, ver Harlan Lane, The Wild Boy of
Aveyron (Cambridge: Harvard Univ. Press, 1976).
94 CR1ADOS A I MAGEM DE DEUS
que crescemos e nos tornamos maduros. E somente em parceria corn outros
que podemos desenvolver plenamente nossas potencialidades. Isso é valido
para todos os relacionamentos humanos em que nos encontramos: familia, es-
cola, igreja, vocacao ou profissao, organizacoes recreativas, etc.
Enriquecemo-nos uns aos outros. Isso é verdadeiro inclusive no sentido
coletivo. Somos enriquecidos pelas pessoas de outras ragas, de varias origens,
de diversos niveis e tipos de educacao, de diferentes vocacties e profissOes,
al6m das nossas prOprias. Nao é born para uma pessoa ter relacionamento
social somente corn outros "de seu proprio tipo".
A relacao do homem com outros significa que nenhum ser humano deveria
ver os seus dons e talentos como uma avenida para o desenvolvimento pessoal
mas como urn meio pelo qual pode enriquecer a vida de outros. Significa que
deveriamos estar sequiosos de ajudar os outros, curar suas feridas, suprir suas
necessidades, levar os seus fardos e compartilhar suas alegrias. Significa que
deveriamos amar aos outros como a nos mesmos. Significa que cada ser huma-
no tem o direito de ser aceito por outros, de relacionar-se corn outros e de ser
amado por outros. Significa que aceitacao e amor reciprocos sao urn aspecto
essencial de sua humanidade."
Ser urn ser humano e dominar a natureza. Genesis 1.26-28 tambem des-
creve o homem como aquele que governa ou que tern dominio sobre a nature-
za. Ao homem é dado dominio sobre toda a terra e sobre tudo o que ha na
terra. Os teologos, todavia, tern diferido sobre o sentido desse dominio. Alguns
tem pensado desse dominio como sendo somente uma conseqtiencia do fato de o
homem ter sido criado a imagem de Deus, nao como aspecto essencial da
imagem.28 A maioria dos interpretes, contudo, tern crido — corretamente, que o
fato de o homem ter dominio sobre a terra é urn aspecto essencial da imagem de
Deus.29 Como Deus é revelado no primeiro capitulo de Genesis regendo toda
a criacao, assim o homem é descrito, nos versiculos em questdo, como
27 Poderia se acrescentar que a aceitacao dos outros necessita primeiramente de uma aceitacao de si
mesmo. Existe um amor-prdprio indevido, como Agostinho disse ha muito, mas existe tambdm urn
amor-prdprio correto e sadio, que 6 tanto fruto como fundamento de nosso servico a Deus e aos outros.
Mats se dird sobre a questao da auto-imagem humana no Cap. 6.
" Por exemplo, J. Skinner, Critical and Exegetical Commentary on Genesis (New York: Scribner, 1910),
p. 32; H. Gunkel, Genesis (Gottingen: Vandenhoeck e Ruprecht, 1902), p. 99; Berkouwer, Man, pp. 70-
72. A opiniho cautelosa de Calvino sobre esse assunto foi citada acima: "0 fato de o homem ter dominio
sobre a terra encerra uma parte, embora pequena, da imagem de Deus" (acima, p. 56, 57).
9 Lutero, Lectures on Genesis (St. Louis: Concordia, 1958), p. 64; John Laidlaw, The Bible Doctrine
of Man (Edinburgh: T. & T. Clark, 1905), p. 163; Bavinck, Dogmatiek, 2:569-70, 603; L. Vander
Zanden, be Mens als Beeld Gods (Kampen: Kok, 1939), p. 51-54; L. Berkhof, Systematic Theology,
p. 205; H. Berkhof, be Mens Onderweg, pp. 37-41; L. Verduin, Less than God, pp. 27-48; Cairns, The
Image of God on Man, p. 28.
A IMAGEM DE DEUS: UM SUMAR!O TEOLOGICO 95
uma especie de vice-regente de Deus, que domina a natureza como urn repre-
sentante de Deus. Ter dominio sobre a terra, portanto, é essencial a existencia
do homem. 0 homem nao deve ser concebido a parte desse dominio assim
como nao deve ser concebido a parte do seu relacionamento com Deus ou com
seus semelhantes, os outros seres humanos.
Duas palavras sao empregadas em Genesis 1.28 para descrever esse rela-
cionamento do homem corn a natureza: subjugar e ter dominio. 0 verbo tra-
duzido como subjugar esta numa forma do hebraico kabash, que significa
"subjugar" ou "escravizar". Este verbo nos diz que o homem deve explorar os
recursos da terra, cultivar o solo e escavar os seus tesouros enterrados. Nao
devemos, porem, pensar simplesmente na terra, nas plantas e nos animais; de-
vemos tambem pensar na existencia humana na medida em ela é urn aspecto da
boa criacao de Deus. 0 homem é chamado por Deus para desenvolver todas as
potencialidades encontradas na natureza e na humanidade como urn todo. Cabe-
lhe desenvolver nao somente a agricultura, a horticultura e a criacao de animais
mas tambem a ciencia, a tecnologia e a arte. Em outras palavras, temos aqui o
que frequentemente se chama de o mandato cultural: o mandamento de
desenvolver uma cultura que glorifica a Deus. Embora essas palavras ocorram
como parte da bencao de Deus ao homem, a bencao encerrra um mandato.
A outra palavra usada em Genesis 1.28 para descrever esta relacao, traduzi-
da como "ter dominio", é uma forma do verbo hebraico radah, que significa
"governar" ou "dominar". E dito especificamente que a humanidade tern dominio
sobre os animais. Observe tambem, nesse mesmo contexto, Genesis 9.2, onde
Deus diz a Noe, como representante da humanidade "pavor e medo
de \tem virao sobre todos os animais da terra e sobre todas as ayes dos ceus; tudo o
que se move sobre a terra e todos os peixes do mar nas vossas maos serao
entregues". 0 Salmo 8 nao somente ecoa como expande esse pensamento:
Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do gue Deus
e de gloria e de honra o coroaste.
Deste-lhe dominio sobre as obras da tua mao e
sob os seus pes tudo the puseste (vv. 5-6).
" Para urn tratamento adicional dense assunto, ver os capitulos 13-15 (especialmente, pp. 208-11) de
Earth-keeping, org. por Loren Wilkinson (Grand Rapids: Eerdmans, 1980).
A IMAGEM DE DEUS: UM SUMARIO TEOLOGICO 97
relacionadas. 0 homem esta inescapavelmente relacionado corn Deus; essa e, de
fato, a primeira e mais importante relacao. Mas essa relacao nao existe sem as
outras duas e nao é realizada a parte das outras duas. Nossa reindo corn o
prOximo é uma forma na qual nossa relacao corn Deus se concretiza; como a
Biblia freqiientemente ensina, mostramos nosso amor a Deus por mein de nos-
so amor ao proximo. Uma pessoa que nao ama a seu prOximo é urn mentiroso
se diz amar a Deus (1Jo 4.20). Nosso amor a Deus e ao proximo, alem disso,
deveria revelar-se tambem em nosso domfnio e zelo pela criacao de Deus.
Quando amamos o prOximo e lidamos responsavelmente corn a criacao de
Deus, estamos, ao mesmo tempo, servindo a Deus.3'
Devemos observar agora que nenhuma outra criatura vive exatamente na
mesma triplice relacao. Quando dizemos que os seres humanos sao responsa-
veis diante de Deus e que suas vidas devem ser conscientemente dirigidas para
ele, atribuimos ao homem uma relacao corn Deus que nao se encontra em ne-
nhuma outra criatura, a excecao dos anjos. Quando dizemos que os seres hu-
manos sao capazes de comunhao consciente corn seus semelhantes e que suas
vidas devem ser voltadas ao proximo, atribufmos ao homem uma relacao que
nao se ve em outras criaturas, provavelmente nem mesmo nos anjos, que nao
estao ligados uns aos outros como estao os seres humanos. E quando dizemos
que Deus ordenou aos seres humanos dominar e cuidar da terra, atribufmos ao
homem uma relacao que nao é encontrada em nenhuma outra criatura, nem
mesmo nos anjos.
Alem disso, cada uma dessas tees relagoes é uma reflexao do proprio ser de
Deus. A responsabilidade do homem diante de Deus e comunhao consciente corn
Deus é urn reflexo da comunhao e do amor que Deus oferece ao homem. A
comunhao do homem corn os seus semelhantes é urn reflexo da comunhao inter-
trinitaria na Divindade (cf. Jo 17.24, "Porque me amaste antes da fundacao do
mundo" [0 Pai amou o Tambem o domfnio do homem sobre a terra
reflete o dominio supremo de Deus, o Criador, sobre tudo o que fez — tanto que
o autor do Salmo 8 pode dizer, quanto ao domfnio do homem sobre as obras das
maos de Deus, "fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus" (v. 5).
Ja que essa relacao triplice é exclusivamente humana e que o homem reflete
Deus em cada uma dessas relacOes, podemos concluir, como fizemos quando
vimos Cristo como a verdadeira imagem de Deus, que o exercfcio pr6prio da
imagem de Deus deve ser canalizado por estas tits relacOes: corn Deus, corn o
31 Por essa reflexo sobre a triplice relacdo e suas interacoes, novamente baseei-me em Hendrikus
Berkhof, De Mens Onderweg, pp. 41-44.
98 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
pr6ximo e corn a natureza. Deus deu ao homem qualidades e dons que o capaci-
tam a exercer seu papel em cada uma dessas tees reIacO'es. A imagem de Deus
deve ser vista, contudo, nao apenas nessas capacidades, por mais importantes que
sejam, mas fundamentalmente no modo como o homem atua nessas relacOes.
A IMAGEM ORIGINAL
Somos, assim, conduzidos a uma analise mais completa do que ja vimos
anteriormente, a saber: que para entender a imagem de Deus em seu conte6do
biblico pleno, precisamos ve-la a luz da criacao, queda e redencao. 0 que
vemos no principio, antes de o homem cair em pecado, é a imagem original.
Embora nao saibamos exatamente como a imagem de Deus revelou-se naquele
estagio da historia do homem," podemos presumir que o primeiro casal huma-
no refletia Deus sem pecado e obedientemente. 0 homem era entao, para citar
Agostinho, "capaz de nao pecar"." Podemos, portanto, supor tambem que, nesse
estagio, Addo e Eva agiam sem pecado e obedientemente em todas as tres
relacOes que acabamos de expor: na adoracao e no servico de Deus, no amor e
servico de urn para corn o outro, e no dorninio e cuidado por aquele Iugar da
criacdo em que Deus os colocou.
Um comentario adicional precisa ser feito, no entanto. Embora o primeiro
casal humano fosse sem pecado, vivendo no que os teOlogos antigos costuma-
vam chamar de "o estado de integridade", eles nao perseveraram ate o fim
nesse caminho. Aindando haviam se desenvolvido plenamente como possuido-
res da imagem de Deus; deveriam ter avancado para um estagio superior onde a
sua impecabilidade nao se perderia. Bavinck o expressa da seguinte maneira:
Adao, portanto, encontrava-se nao no fim mas no comego do caminho; sua condicao
6 uma condicao provisOria e temporaria, que poderia nao permanecer assim e que
deveria passar ou para urn estado de gloria mais elevado ou para uma queda em
pecado e morte.34
Bavinck conclui ainda que o fato de que Ada° e Eva ainda tinham de viver corn
a possibilidade de pecar era, por assim dizer, afronteira da imagem de Deus:
tinha o posse non pecare (posso nao pecar) mas ainda nao o non posse
pecare (nao posso pecar). Ele ainda vivia na possibilidade de pecar ...; ainda nao
tinha o amor imutavel e perfeito que exclui todo o temor. Os te6logos reformados,
portanto, corretamente afirmaram que essa possibilidade, essa mutabilidade, esse
32 Como esta afirmagao evidencia, a posicdo pressuposta neste livro 6 que a Queda registrada em
Genesis 3 foi urn evento histdrico. Essa questdo sera vista em maiores detalhes no Cap. 7.
3) On Correction and Grace, p. 33. No original latim, "posse non peccare".
34 Dogmatiek, 2:606 (citado pelo autor em traducdo propria para o ingles).
A IMAGEM DE DEUS: UM SUMARIO TEOLOGICO 99
ainda poder pecan.. ao era urn aspecto ou o conteficlo da imagem de Deus mas, ao
inves disso, a fronteira, a demarcagao ou a margem da imagem de Deus."
A IMAGEM PERVERTIDA
Apos a queda do homem em pecado, a imagem de Deus nao foi aniquilada mas
pervertida. A imagem no seu sentido estrutural permaneceu — os dons, talentos
e habilidades humanas nao foram destruidas pela Queda, mas o ho-
mem passou, a partir de entao, a usar esses dons de modo contrario a vontade de
Deus. 0 que mudou, em outras palavras, nao foi a estrutura do homem mas a sua
maneira de agir e o rumo de sua vida. Bavinck, outra vez, traduz isso muito
bem:
0 homem, pela Queda... nao se tornou urn demonio que, incapaz de redencao, nao
pode mais revelar as feigOes da imagem de Deus, Mas, embora tenha permanecido
genufna e substancialmente homem e tenha preservado todas as suas faculdades,
capacidades e habilidades humanas, a forma, a natureza, a disposicao e orientacao de
todos esses poderes foram de tal forma mudadas que, agora, ao inves de fazer a
vontade de Deus, os homens satisfazem a lei da carne."
38 Dogmatiek, 2:595.
A ImAcEm DE DEUS: UM SUMARIO TEOLOGICO 101
deles nao 6 ajudar os outros mas explora-los. 0 lema de muitas pessoas no
mundo de hoje parece ser o seguinte: "Cada urn por si e o diabo fique corn o
resto". 0 homem esta ainda inescapavelmente relacionado aos outros mas, ao
inves de amar aos outros, esta inclinado a odic-los.
Na sociedade contemporanea esta tendencia de odiar os outros toma mui-
tas vezes a forma de indiferenca ou alienacao. A indiferenca para corn os outros
urn fenomeno comum em nossa civilizacao cada vez mais urbana, onde muitas
pessoas dificilmente conhecem o seu vizinho mais proximo e, o que é pior, nao
tem qualquer interesse em o conhecer. A alienagao, em sua forma extrema, é
bem expressana famosa frase de Jean-Paul Sartre: "0 inferno sao os outros".39
Ye-se esta alienacao na sua pior forma no criminoso que odeia tanto o seu
proximo que rouba, brutaliza ou mata para obter o que quer.
A perversao tern tambem ocorrido na terceira relacao, entre o homem e a
natureza. Ao inves de dominar a terra em obediencia a Deus, o homem, agora,
usa a terra e seus recursos para os seus prOprios propositos egoistas. Esque-
cendo-se que foi-lhe dado dominio sobre a terra a fim de glorificar a Deus e
beneficiar os seus semelhantes, o homem, agora, exerce esse domInio de for-
mas pecaminosas. Explora Os recursos naturais sem preocupar-se corn o futu-
ro: derruba florestas sem reflorestamento, planta sem o rodizio de culturas, dei-
xa de tomar medidas para evitar a erosao do solo. Suas fabricas poluem rios e
lagos, suas chamines poluem o ar— e ninguena parece se preocupar. Sua desco-
berta do segredo da fissao nuclear, em vez de ser um beneficio para a humani-
dade, tornou-se uma ameaga estarrecedora que paira sobre nossas cabecas
como a espada de Damocles. E em suas realizaVies culturais — sua literatura,
sua arte, sua ciencia, sua tecnologia, a meta do homem é engrandecer-se a si
mesmo ao inves de louvar ao seu Deus.
De todas essas formas, portanto, corrompeu-se a imagem de Deus no ho-
mem al:6s a Queda. A imagem, agora, é mal-exercida — e, no entanto, ainda
subsiste. A perda da imagem de Deus no sentido funcional pressupeie a reten-
cao da imagem no sentido estrutural. Para ser urn pecador é preciso trazer a
imagem de Deus — e preciso ser capaz de raciocinar, querer, tomar decisoes;
um cachorro, que nao possui a imagem de Deus, nao pode pecar. 0 homem
peca com os dons que o fazem semelhante a Deus.
Na verdade, o que torna o pecado humano realmente grande 6 o fato de
que ele ainda é alguem que traz a imagem de Deus. 0 que faz o pecado tao
" No Exit, em No Exit and Three Other Plays (New York: Vintage Books, 1949), p. 47.
102 CRIADOS A I MAGEM DE DEUS
hediondo é que o homem esta prostituindo dons tab esplendidos. Corruptio
optimi pessima: a corrupcdo do que d (Aim° é a pior.
A IMAGEM RENOVADA
.1a que a imagem de Deus foi pervertida pela queda do homem em pecado, ela
precisa ser renovada. Esta renovacao ou restauracao da imagem é o que
acontece no processo de redencao. Seria o sentido dessa restauracao que se
devolve uma imagem antes total e completamente perdida? Nao; é melhor dizer que
a imagem de Deus que havia se pervertido, embora nao totalmente perdi-
da, esta sendo retificada, esta sendo aprumada outra vez. 0 que acontece no
processo de redencao é que o homem, que usava as faculdades que o fazem
semelhante a Deus de modo errado, agora é capacitado de novo a usar essas
faculdades de modo correto.
No capitulo 3, observamos o ensino do Novo Testamento a respeito da
restauracao da imagem de Deus no processo da redencao." Essa restauracao
comeca na regeneracao, algumas vezes chamada de "nascer de novo" — um
evento que poderia ser definido como "aquele ato do Espirito Santo, que nao
deve ser separado da pregacao e do ensino da Palavra, pelo qual ele primeira-
mente coloca uma pessoa em unido viva corn Cristo e muda o seu coracao de tal
modo que, ela que estava espiritualmente morta se torna espiritualmente viva, a
partir de agora pronta e disposta a crer no evangelho e servir ao Se-
nhor". A renovacao da imagem prossegue no que a BIblia chama de obra da
santificacao — que pode ser definida como "aquela operacao graciosa e conti-
nua do Espirito Santo, envolvendo a participacao responsavel do homem, pela qual
o Espirito progressivamente liberta a pessoa regenerada da corrupcdo do pecado e
a capacita a viver para o louvor de Deus".
Devemos, portanto, notar que a renovacao da imagem de Deus no homem d
fundamentalmente obra do Espirito Santo. Visto que o homem, por causa da sua
queda em pecado, é agora espiritualmente morto, d preciso que o Espirito de a ele
primeiro nova vida espiritual na regeneracao.41 Ja que o homem de-
caido agora usa seus dons que o fazem refletir Deus de forma pervertida, o
Espirito deve capacita-lo a usar esses dons de maneira a glorificar a Deus; isso é o
que acontece no processo de santificacao. A santificacao, portanto, deve ser
entendida como a renovacao progressiva do homem a imagem de Deus.
4
0 Ver , acim a, pp . 35 -41.
41 Cf . E f 2 . 4 -5 , " M as Deu s. .. por causa do seu grande am or co rn que nos amou, e e st and o nos mo rto s em
nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cri sto ".
A IMAGEM DE DEUS: UM SUMARIO TEOLOGICO 103
Essa renovacao, alem disso, nao acontece a parte da influencia, pela pregacao,
ensino ou estudo, da palavra de Deus encontrada na Biblia; por meio dessa
palavra, o Espirito instrui o povo de Deus sobre como eles devem viver em uma
nova obedi6ncia e o capacita a viver desse modo.
Nessa renovacao da imagem, somos novamente capacitados a viver em
amor, nas tres direcOes: a Deus, ao proximo e a natureza. Em outras palavras, a
renovacao ou restauracao da imagem de Deus significa que o homem é nova-
mente capacitado a agir apropriadamente em sua triplice relacao.
A renovacao da imagem, portanto, significa primeiro de tudo que o homem,
agora, é capacitado a estar apropriadamente voltado para Deus. Envolve ado-
rar a Deus do modo correto, orar a Deus em todas as suas necessidades e
agradecer a Deus por todas as suas bencaos. Envolve amar a Deus corn todo o
seu coracao, com toda a sua alma, corn toda a sua mente e corn toda a sua
forca (Mc 12.30). Uma vez que a nossa mais fundamental relagao é corn Deus, a
renovacao da imagem significa que recebemos forca para fazermos tudo o que
fazemos em obediencia a Deus e para a gloria de Deus. Envolve tambem o uso
de nossas faculdades racionais em formas que glorificam a Deus: pensar
segundo os pensamentos de Deus, discernir sob as ordens que regem a nature-
za o planejamento de um Deus sabio e admirar a sabedoria com que o Criador
formou o universo. Envolve usar nossas faculdades volitivas para desejar o que
Deus quer que desejemos, e para nao desejar alguma coisa contraria a vontade
de Deus. Envolve usar nosso senso estetico para apreciar a beleza que Deus
generosamente distribui por sua criacao e para louvar o autor dessa beleza.
Envolve o uso de nosso dom da fala para glorificar a Deus. Inclui a capacidade
de agir em nossa relacao corn os nossos semelhantes e em nossa relacao com a
natureza em obediencia e louvor a Deus.
A renovacao da imagem significa, em segundo lugar, que o homem esta
agora capacitado para voltar-se apropriadamente a seu proximo. Envolve amar
aos nossos semelhantes como a Os mesmos. Envolve uma prontidao em per-
doar os outros quando pecam contra nos. Envolve orar pelo proximo e interes-
sar-se intensamente por seu bem-estar. Envolve interessar-se por justica social,
pelos direitos humanos e pelas necessidades dos pobres e dos desamparados.
Envolve ate mesmo amar os nossos inimigos, visto que, como Jesus ensinou,
esta é uma atividade na qual refletimos a Deus de forma singular (Mt 5.44-45).
Siginifica amar o proximo nao porque o consideramos digno de ser amado, mas
porque Deus o amou primeiro.
A restauracao da imagem nessa segunda relacao significa que o homem é
104 CRIADOS A 1MAGEM DE DEUS
capacitado a viver em prol de outros e no em prol de si mesmo. Envolve o uso
de todos os seus dons no servico do seu proximo. Isso significa usar suas facul-
dades racionais e volitivas para ajuda-lo a fazer o que é do melhor interesse do
seu prOximo. Significa dar-se a si mesmo em favor de seu proximo: comparti-
Ihar de suas alegrias e tristezas, ajudando-o em tempos de necessidade. Envol-
ve o uso do dom da fala nao para desacreditar o seu proximo ou para arruinar
sua reputacao, mas para manter o seu bom nome e para apoid-lo. Significa
resistir a tentacao de desprezar a pessoa por causa da cor de sua pele e estar
pronto e desejoso de aceitar e respeitar as pessoas de diferentes raps e naci-
onalidades como pessoas que, como nos, trazem em si a imagem de Deus.
Envolve usar suas habilidades criativas e artisticas para criar a beleza em varios
meios artisticos para o enriquecimento da vida de outras pessoas. Como Deus
amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigenito, assim devemos amar os
nossos semelhantes para que nos doemos a eles.
A renovacao da imagem de Deus significa, em terceiro lugar, que o homem
agora esta adequadamente capacitado para dominar e cuidar da criac5o de
Deus. Ou seja, agora esta capacitado a exercer dominio sobre a terra e sobre a
natureza de uma forma responsavel, obediente e altruista. Isso significa que o
homem esta, agora, capacitado a ver a si mesmo como um despenseiro da terra e
de tudo que nela existe, e nao como um tirano corn poder absoluto e comple-
tamente arbitrario. Envolve ter propriedades, arar o solo, cultivar arvores fluff-
feras, extrair carvao e perfurar pocos de petrOleo nao para engrandecimento
pessoal mas de forma responsavel, para o beneficio e bem-estar dos seus se-
melhantes. Em nosso presente mundo, isso envolve tambem a preocupacao
corn a conservacdo dos recursos naturais e a oposicao a toda forma de explo-
racdo imprevidente e inconseqUente desses recursos. Envolve o interesse pela
preservacao do meio ambiente e a prevencao de qualquer coisa que o venha
danificar: erosao, destruicao temeraria das especies animais, poluicao do are da
agua. Envolve a preocupacdo corn uma adequada distribuicalo de comida, pre-
vencao da fome e corn melhorias sanitarias. Tambem abrange o avanco da inves-
tigacao, da pesquisa e da experimentacdo cientifica, inclusive a conquista continua
do espaco, de tal modo a honrar os mandamentos de Deus e the render louvor.
Ela envolve ainda a busca do desenvolvimento de uma cultura crista, como o
cumprimento adequado do assim chamado mandato cultural. Era outras pala-
vras, deveriamos procurar desenvolver a obra filosofica, cientifica, historica e
literaria de urn modo singularmente cristdo. Isso envolve tambem o interesse
pelo desenvolvimento de uma visao de mundo e de vida que venha a influenciar
tudo o que o homem pensa, diz e faz.
A 1MAGEM DE DEUS: UM SUMAR!O TEOLOGICO 105
A renovacao da imagem de Deus, portanto, envolve uma visao geral e abran-
gente da coneepcao crista do homem. 0 processo de santificacao afeta cada
aspecto da vida: o relacionamento do homem corn Deus, corn o seu prOximo e
corn toda a criacao. A restauracao da imagem nap se refere apenas a piedade
religiosa no sentido estrito, o testemunhar as pessoas a respeito de Cristo ou a
atividade de ganhar pessoas para Cristo; no seu sentido mais pleno, envolve o
redirecionamento da vida toda.
A renovacao da imagem de Deus é descrita no Novo Testamento de muitas
formas. Uma das quais ja vimos: o "despojar-se" da velha natureza e o "reves-
tir-se" da nova natureza.42 Outras imagens, contudo, tambem sao usadas. Essa
nova vida significa apegar-se firmemente a palavra de born e reto coracao,
frutificando corn perseveranca (cf. Lc 8.15). A nova vida significa ser transforma-
do pela renovagao da mente (Rm 12.2). Significa viver pelo Espirito e produzir o
fruto do Espirito (015.16, 22). Significa viver uma vida de amor (Ef 5.2), andar
na verdade (2Jo 4), viver nao para si mesmo mas para Cristo (2Co 5.15).
Ser renovado a imagem de Deus significa, alem disso, que nos tornamos
mais e mais semelhantes a Deus, que Deus se torna mais e mais visivel em
nossas palavras e awes. Uma vez que Deus é amor (1Jo 4.16), nosso viver em
amore uma imitacao de Deus.
Porque Cristo é a imagem perfeita de Deus, tornar-se mais semelhante a
Deus, tambem significa tomar-se mais semelhante a Cristo. 0 que significa se-
guir o exemplo de Cristo, procurando viver como ele viveu. Mas ha mais a dizer a
respeito disso. Galatas 3.27 chama esse revestir-se do novo eu ou da nova
pessoa de revestir-nos a Os mesmos de Cristo (cf. Rm 13.14). Revestir-se de
Cristo significa uma nova existencia como membro do corpo de Cristo (1Co
12.12-13); o crente, portanto, reflete Deus como aquele que pertence ao cor-
po deste Cristo que, de modo impar, é a imagem de Deus.43
Entende-se, corn isso, que a renovacao da imagem possui urn aspecto ecle-
siastico. Nao diz respeito a individuos isoladamente; tern a ver corn crentes na
qualidade de membros de Cristo e, portanto, corn a igreja que Cristo esta san-
tificando (Ef 5.26). Isso indica que, hoje, a imagem de Deus é vista em sua
forma mais rica em Cristo juntamente corn sua igreja ou na igreja como corpo
de Cristo.44Mas isso tambem implica que a restauracao da imagem de Deus no
47 Quando minha esposa e eu visitamos a Sufga ha alguns anos, ficamos emocionados ao encontrar essas
palavras em uma placa no local de onde se pode ver o majestoso Matterhorn!
A 1MAGEM DE DEUS: UM $UMARIO TEOLOGICO 111
Deus. Por causa da queda do homem em pecado, nem mesmo os crentes tern
desenvolvido esse mandato cultural da forma pretendida por Deus. Somente na
nova terra esse mandato sera cumprido perfeitamente e sem pecado.
Uma das promessas dadas aos crentes é a de que urn dia eles reinarao corn
Cristo (2Tm 2.12). Em Apocalipse 22.5 lemos inclusive que os crentes glorifi-
cados reinarao para sempre. E no cantico de redencao no mesmo livro afirma-
se especificamente que esse reinado se (lard na terra (Ap 5.10).
Como devemos entender isso? 0 catecismo de Heidelberg, talvez o mais
conhecido credo reformado, nos da uma ideia: sera urn reino pelos santos glo-
rificados sobre toda a criacao." Na vida por vir, os santos ressuscitados e
glorificados nao voarao de nuvem em nuvem em algum lugar distante no espa-
co, mas estarao vivendo em uma terra renovada.49Entao, pela primeira vez, o
homem dominard e cuidara da natureza exatamente da forma que Deus preten-
deu que ele o fizesse. Os seres humanos serao, entao, mordomos, nao explora-
dores, da terra, explorando seus recursos e admirando suas belezas de urn
modo que redundard em permanente louvor a Deus.5° Reinaremos, entao, per-
feitamente sobre toda a criacao, corn e sob Cristo.
Apocalipse 21.24-26 nos diz que "os reis da terra the [a cidade santa que se
achara na nova terra] trazem a sua gloria" e que "lhe trarao a glOria e a honra das
nacOes". Estas palavras fascinantes sugerem que as mais excelentes con-
tribuicOes de cada nacao enriquecefao a vida na nova terra e quaisquer potencia-
lidades e dons que tenham sido de valor nesta presente vida serdo, de algum
modo, retidos e enriquecidos na vida por vir. Isso implica que havers tanto conti-
nuidade como descontinuidade entre a presente vida e a vida por vir e que, por-
tanto, nossos esforcos culturais e cientificos, educacionais e politicos de hoje aju-
dam em nossa preparacao para uma vida mais plena e mais rica na nova terra.5'
As possibilidades que agora surgem diante de nos confundem a mente. Ha-
yeti "melhores Beethovens no ceu", como um autor sugeriu?52 Veremos la me-
lhores Rembrandts, melhores Rafaeis, melhores Constables? Leremos poesia
melhor, drama melhor ou prosa melhor? Continuarao os cientistas a avancar
Catecismo de Heidelberg, Resposta 32: "e para depois reinar com Cristo sobre toda a criacao por
toda a eternidade" (traducao de 1975, Christian Reformed Church).
49 Para uma apresentacao mais completa do ensino biblico sobre a nova terra, ver o meu livro A Mitt e
o Futuro (Sao Paulo: Editora Cultura Crista, 1989), Cap. 20.
5° Cf. o assim chamado cantle() da criacao em Ap 4.11.
51 Cf. Hendrickus Berkhof, Christ the Meaning of History, L. Buurman, trad. (Grand Rapids: Baker,
1979), pp. 188-192. Para urn tratamento mais extenso dessa questao, ver Richard Mouw, When the
Kings Come Marching in (Grand Rapids, Eerdmans, 1983).
52 Edwin H. Palmer, "Better Beethoven in Heaven?", Christianity Today, 16 de Fev., 1979, p. 29.
11 2 CRIADOS A 1MAGEM DE DEUS
nas suas realizacoes tecnolOgicas, os geologos continuarao a explorar os tesou-
ros da terra e os arquitetos continuarao a construir estruturas imponentes e
atraentes? Nao sabemos. Mas o que sabemos a que o domlnio do homem
sobre a natureza sera, entao, perfeito. Deus entao sera magnificado por nossa
cultura por modos que sobrepujarao mesmo os nossos sonhos mais fantasticos.
Na vida futura, portanto, a triplice relacao para a qual o homem foi criado
sera mantida, aprofundada e infinitamente enriquecida. Entao, amaremos a Deus
sobre todas as coisas, amaremos os nossos semelhantes como a nos mesmos e
dominaremos a criacao de urn modo que glorificara a Deus. A imagem de Deus
no homem tera sido, entao, aperfeicoada.
Talvez fosse util, neste ponto, sumarizar brevemente em que consiste a ima-
gem de Deus, como uma breve sinopse deste capftulo. A imagem de Deus,
constatamos, descreve nao apenas algo que o homem tem, mas algo que o
homem é. Ou sej a, os seres humanos tanto refletem como representam Deus.
Portanto, ha urn aspecto sob o qual a imagem inclui o corpo fisico. A imagem
de Deus, vimos ainda, inclui tanto o aspecto estrutural como o funcional (algu-
mas vezes chamados de a imagem lata e a imagem estrita), embora devemos
nos lembrar que, na concepcao biblica, a estrutura é secundaria, ao passo que a
funcao é primaria. A imagem deve ser vista na triplice relacao do homem: corn
Deus, corn os outros e corn a natureza. Quando, no inicio, criados, os seres
humanos refletiam Deus sem pecado em todas as tits relaceies. Depois da Que-
da, a imagem de Deus nao foi aniquilada, mas pervertida, de modo que os seres
humanos agora erram em seu agir em cada uma dessas tres relacties. No pro-
cesso da redencao, contudo, a imagem esta sendo renovada, de forma que o
homem esta agora capacitado a voltar-se apropriadamente a Deus, aos outros e a
natureza. A renovacao da imagem de Deus é vista na sua forma mais rica na
igreja. A imagem , portanto, no é estatica mas dinamica— urn desafio constan-
te a uma vida de glorificacao a Deus. Na vida por vir, a imagem de Deus sera
aperfeicoada; os seres humanos glorificados viverao, entao, perfeitamente em
todas as tees relaceies. ApOs a ressurreicao, o homem redimido estara em urn
estado mais elevado do que o homem antes da Queda do que era antes da
Queda, ja que, entao, nao sera mais capaz de pecar ou morrer,
OBSERVAcOES FINAIS
Algumas poucas observacOes finais sobre a imagem de Deus ainda podem
ser feitas. Primeira, devemos ver o homem sempre a luz de seu destino. Esse é
um ponto importante, que se deve ter em mente. Ao refletir sobre o ser huma-
A IMAGEM DE DEUS: UM SUMARIO TEOLOGICO 113
no, nao devemos ve-lo apenas como ele é agora mas como ele podera vir a ser
urn dia. Ate agora nos ocupamos corn o futuro da imagem de Deus somente
corn relagao aos que creem. A Biblia ensina claramente que o futuro da pessoa
que esta em Cristo é a vida eterna em urn corpo ressuscitado e glorificado — a
imagem aperfeicoada. Mas essa mesma Biblia tambern ensina que o futuro de
uma pessoa que rejeita a Cristo e continua a viver em rebeliao contra Deus sem
arrependimento ou fe é a perdicao eterna.53Devemos, portanto, tratar a nos
mesmos e uns aos outros a luz desse destino futuro.
A possibilidade daperdicao futura para aqueles que nao estao em Cristo
deveria constranger-nos a cortar a mao ou a arrancar o olho que nos leva ao
tropeco, como nos recomendou fazer Jesus, ao inves de gastar a eternidade no
inferno. A ideia de urn semelhante futuro destino para pessoas corn quern con-
vivemos deve ser urn forte incentivo a que Ihes demos testemunho de Cristo e
sua salvacao. Ao mesmo tempo, a perspectiva da "gloria a ser revelada em
nos" deveria nos ajudar a suportar "os sofrimentos do tempo presente" corn
paciencia (Rm 8.18) e a encorajar-nos a prosseguir para o alvo (Fp 3.14). E a
expectativa de que nossos irmaos e irmas em Cristo tambem estao caminhando
para a perfeicao final deveria nos ajudar a nao somente ve-los como pobres e
vacilantes pecadores, que nos cansam corn seus muitos defeitos, mas, ao con-
trario, como tais que brilharao, urn dia, como o sol.
C. S. Lewis expressa esse pensamento vivida e concretamente:
E uma coisa seria... lembrar que a pessoa mais tediosa e desinteressante corn quem se
conversar pode ser, um dia, uma criatura que, se voce a pudesse ver agora, seria
fortemente tentado a adorar, ou, do contrario, urn horror e uma degradagao que, hoje,
voce encontra, se tanto, somente em urn pesadelo. Passamos o dia inteiro, em certa
medida, ajudando uns aos outros em direcao a urn ou outro desses destinos. A luz
destas possibilidades irresistfveis, corn o terror e a circunspecgdo que the cabem, é
que deverfamos conduzir todos os nossos relacionamentos, toda amizade, todo amor,
toda disputa, toda polftica
eterno aquele de quern fazemos troga, corn quem trabalhamos, corn quem casamos, a
quem tratamos corn indiferenca e a quern exploramos — horrores imortais ou esplen-
54
dores eternos.
" Ver, por exemplo, Mt 5.22, 29-30; 10.28; 18.8-9; 25.46; Mc 9.43; Jo 3.36; 2Ts 1.7-9; Rm 2.5, 8-9;
Hb 10.28-29, 31; 2Pe 2.17; Jd 7, 13; Ap 14.10-11; 21.8. Para uma analise dessas passagens, ver A Milo
e o Futuro, Cap. 19.
54 C.S. Lewis, The Weight of Glory (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), pp.14-15.
114 CR1ADOS A 1MAGEM DE DEUS
como vimos, da grande enfase a este ponto: que a existencia do ser humano
como homem e mulher nao é algo secundario a imagem, mas esta na essencia
mesma da imagem de Deus. Isso nao se deve apenas a diferenca de sexo entre
homem e mulher — ja que essa existe tambem nos animais, mas por causa das
diferencas muito mais profundas em termos de personalidade entre os dois. A
existencia humana como homem e mulher significa que o ser humano do sexo
masculino foi criado para associacao com outro ser que é essencialmente igual a
ele e, ao mesmo tempo, misteriosamente diferente dele. Significa que a mulher é a
complementacao da prOpria humanidade do homem e que o homem é intei-
ramente ele mesmo somente em seu relacionamento corn a mulher."
Conclui-se disso que o homem nao é a imagem de Deus por si mesmo e que a
mulher nao pode ser a imagem de Deus por si mesma. Homem e mulher so
podem refletir Deus por meio da comunhao entre si — comunhao que é uma
analogia da comunhao interior com Deus. 0 Novo Testamento ensina que Deus
existe como uma Trindade de "Pessoas" — Pai, Filho e Espirito Santo.56 A co-
munhao hurnana, como entre homem e mulher, reflete ou espelha a comunhao
entre Deus o Pai, Deus o Filho e Deus Espirito Santo. E, no entanto, ha uma
diferenca. Pois as pessoas, como as conhecemos, sao seres ou entidades sepa-
radas, ao passo que Deus é tres "Pessoas" em urn Ser Divino. A comunhao
humana, portanto, é somente uma analogia parcial da comunhao divina— toda-
via, a uma analogia.57
Deve-se lamentar, por isso, que nossa lingua nao tenha um termo corres-
pondente ao alemao Mensch ou ao holandes mens, que siginificam "ser huma-
no, seja homem ou mulher". 0 termo homem tem de servir a duas finalidades:
tanto pode significar (1) "ser humano masculino ou feminino" (no sentido gene-
rico) como, (2) "ser humano masculino". Esse use ambiguo da palavra homem
parece trair uma especie de arrogancia tipicamente masculina, como se o ser
humano do sexo masculino fosse o portador de tudo o que envolve ser uma
pessoa humana. Mas o homem so pode ser plenamente humano em comunhao e
associacao com a mulher; a mulher complementa e completa o homem, como o
homem complementa e completa a mulher.58 Quando usamos o termo ho-
mem no sentido generic°, portanto (como se faz muitas vezes neste livro), pre-
cisamos ter isso sempre em mente.
0 fato de homem e mulher juntos refletirem a imagem de Deus continuard
55 Cf. Paul Jewet, Man as Male and Female (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), pp.38-39.
Se
Cf. Mt 28.19; 2Co 13.13.
57 Jewett, Man as Male and Female, p. 45.
fie Dogmatiek, 2:621-622 (citado pelo autor em tradugdo propria para o ingles).
61When the Kings, p. 47.
64Bavinck, Dognzatiek, 2:603-4.
ifs Jiirgen Moltmann, Man, John Sturdy, trad. (Philadelphia: Fortress Press, 1974), p. 111.
118 CR1ADOS A I MAGEM DE DEUS
Mesmo aqueles que vivem em rebeliao contra Deus e que fazem sua obra
cultural sem o prop6sito de louvar a Deus refletem Deus por meio dos dons que
el'e lhes concedeu —dons pelos quais podemos agradecer ao Senhor. Mas aqueles
nos quais a imagem de Deus esta sendo renovada revelam esta imagem volun-
taria e conscientemente. Nesta renovacao da vida dos que sao povo de Deus,
vemos a imagem de Deus de forma muito mais plena do que podemos ver nas
contribuicoes de nao-cristaos. Vemos a imagem de Deus na sua forma mais rica e
em major esplendor somente quando olhamos para a comunidade crista atra-
yes dos tempos e por todo o mundo — em outras palavras, na igreja universa1.66
Quando olhamos para os grandes santos do passado e do presente — o aposto-
lo Paulo, Francisco de Assis, Martinho Lutero, Joao Calvino, Dietrich Bonho-
effer, Madre Teresa e Billy Graham, apenas para mencionar alguns, vemos como
Deus se parece. E quando experimentamos as alegrias da comunhao crista num
grupo de cristaos onde ha "plena aceitacao, partilha honesta e amor genuino",67
vemos urn reflexo do amor de Deus por nos.
Na vida por vir, veremos a imagem de Deus nab apenas em sua perfeicao,
mas tambem em sua inteireza. Todo o povo de Deus, de toda idade e de todo o
lugar, ressuscitado e glorificado, estard, entao, presente na nova terra, corn todos
os dons dados por Deus e que refletem Deus. E todos esses dons, puri-
ficados agora de pecado e imperfeicao, serao usados pelo ser humano pela
primeira vez corn perfeicao. Entab, por toda a eternidade, Deus sera glorificado
pela adoracao, servico e louvor daqueles que trazem a sua imagem em um
reflexo cintilante e perfeito das suas maravilhosas virtudes. E se tera alcancado o
propos ito para o qual Deus criou a humanidade.
66 Note, nesse contexto, o comentdrio de Calvino a Jo 13.34, "Novo mandamento vos dou: que vos
ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que tambdm vos ameis uns aos outros". Calvino diz: "0
amor 6, de fato, estendido aos de fora, pois somos todos da mesma came e fomos todos criados
imagem de Deus. Mas, porque a imagem Deus brilha mais intensamente nos regenerados, d prdprio que o
vfnculo de amor seja muito mais estreito entre os discfpulos de Cristo"(Comm. On John, traduc8o para
o Mee's; Parker [Grand Rapids: Eerdmans, 1979] ad. loc.).
67 Marion Leach Jacobsen, Saints and Snobs (Wheaton: Tyndale, 1972), pp. 28-29.
CAPITULO 6
A QUESTAO DA AUTO-1MAGEM
"0-wassar
' Cf. Hendrikus Berkhof, De Mens Onderweg (The Hague: Boekencentrum, 1962), p. 27.
120 CRIADOS A 1MAGEM DE DEUS
seja um quarto relacionamento a somar corn os outros tits, 6, todavia, urn
relacionamento muitissimo importante, e deve ser levado em conta em nossa
discussao sobre a concepcao crista do homem.
Uma palavra, primeiro, sobre terminologia. Dois termos geralmente empre-
gados nas discussOes a respeito desse assunto nao serao usados neste capitulo:
amor-proprio e auto-estima. 0 termo amor-proprio pode sugerir que deve-
mos amar aquilo que somos por natureza, a parte da grata de Deus. Amor
desse tipo é vizinho do orgulho; logo, urn cristao nao deve cultiva-lo. Concordo
corn Jay Adams que quando Cristo nos mandou amar ao nosso proximo como a
nos mesmos, nao estava ordenando que nos amassemos a nos mesmos mas que
estava simplesmente partindo do pressuposto de que o amor-proprio é natural
e, portanto, nao necessita de mandamento .2 Tambern estou fundamen-
talmente de acordo corn Paul Brownback em que o amor-pr6prio pode facil-
mente conduzir ao culto de si mesmo:
0 maior perigo do amor-proprio e que ele 6 a adoracao de si mesmo. E idolatria em que o
eu é o fdolo, a antftese da bem-aventuranca legftima que vem daquele que a humilde de
espfrito. Ele conduz ao orgulho corn relacaU a Deus e ao egoismo.3
Jay E. Admans, The Christian Counselor's Manual (Grand Rapids: Baker, 1973), pp. 142-43.
3Paul Brownback, The Danger of Self-love (Chicago: Moody Press, 1982), p. 130. Cf. Paul C. Vitz,
Psychology as Religion: The Cult of Self-Worship (Grand Rapids: Eerdmans, 1977).
A QUESTAO DA AUTO-IMAGEM 121
tacao crista: vermos a nos mesmos nao apenas como somos por natureza, mas
como somos pela grata. Neste capitulo eu tentarei desenvolver brevemente o
que a auto-imagem de urn cristao deveria ser, como urn aspecto importante da
doutrina ciista do homem.
Antes da Queda, quando Ado e Eva ainda estavam no estado de integri-
dade, eles tinham, podemos supor, uma imagem muito positiva de si mesmos.
Nab possufam qualquer senso de culpa, visto que eles ainda nab haviam peca-
do contra Deus. Nem havia qualquer possibilidade de sentirem-se culpados
por terem pecado urn contra o outro. Genesis 2.25, de fato, apresenta urn
quadro de perfeita harmonia e completa ausencia de vergonha: "Ora, urn e
outro, o homem e sua mulher, estavam nus e nab se envergonhavam".
A PERVERSAO DA AUTO-IMAGEM
Por ocasido da Queda, ocorreu uma dupla perversdo da auto-imagem. Em
primeiro lugar, a Queda foi precedida por uma excessiva elevacdo da auto-
imagem do homem. Add° e Eva queriam ser maiores do que Deus. Genesis 3
narra os fatos. Satands, falando por meio da serpente, disse a Eva que se ela
comesse do fruto proibido seus olhos seriam abertos e ela seria igual a Deus (v.
5). "Vendo a mulher que a arvore era boa para se corner, agradavel aos olhos e
arvore desejavel para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu
tambem ao marido, e ele comeu" (v. 6). Desobedecendo a ordem clara de
Deus de nao corner da arvore do conhecimento do bem e do mal, nossos pais se
colocaram virtualmente acima de Deus, tomando em suas prOprias maps a
decisgo quanto ao que era certo e errado, Este ato revelou o orgulho pecami-
noso deles: estavam pensando de si mesmos alem do que convinha (Rm 12.3).
Esse orgulho, essa presuncao e essa perversdo da auto-imagem, em sentido
ascendente, foi a causa do primeiro pecado do homem.
Depois que o pecado foi cometido, ocorreu a segunda perversdo da auto-
imagem, dessa vez, em sentido descendente. Ada° e Eva agora sentiam vergo-
nha de si mesmos; sua auto-imagem tornou-se negativa. A narrativa do Genesis
continua: "Abriram-se, entdo, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam
nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si" (v. 7). A consciencia de
sua nudez significava que agora tinham nocao do que é a vergonha. Ambos
compreenderam que haviam errado e a sua auto-imagem comecou a cair Verti-
ginosamente. Adao demonstrou sua vergonha quando respondeu a voz de Deus,
dizendo: "Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo, e me escon-
di" (v. 10). A vergonha revelou-se no medo - Adab teve medo de Deus. Ele
122 CRIADOS A IMACEM DE DEUS
tambern evadiu-se do problema real: ele deveria ter dito: "tive medo porque
pequei", mas, em vez disso, falou: "porque estava nu, tive medo". A vergonha,
entao, apareceu junto corn uma tentativa de encobrir a culpa.
Podemos observar essa mesma dupla perversao da auto-imagem do ho-
mem ap6s a Queda. A auto-imagem do homem é algumas vezes exagerada-
mente alta (na forma de orgulho pecaminoso) ou excessivamente baixa (na for-
ma de sentimentos de vergonha ou de menosprezo).
Em primeiro lugar, desde a Queda o homem sempre esteve inclinado a ter
uma opinia'o elevada demais a respeito de si prOprio. Agostinho disse ha muito
tempo atras: o orgulho e o pecado original do homem. A parte da grata de
Deus, os seres humanos tendem a considerar-se como aut6nomos ou como
uma lei para si mesmos. Recusando-se a curvarem-se perante Deus e seus
mandamentos, querem viver como lhes agrada. Por natureza, o homem nao
compreende sua dependencia de Deus; pelo contrario, é orgulhoso de suas
proprias realizacOes e tern uma ideia exagerada de sua prOpria importancia.
Talvez o exemplo biblico mais dramatic° dessa atitude seja o rei Nabucodono-
sor que, passeando sobre o palacio real, disse: "Nao é esta a grande Babilonia
que eu edifiquei para a casa real, corn o meu grandioso poder e para a glOria da
minha majestade?" (Dn 4.30). Urn exemplo mais recente dessa mesma carac-
teristica seria Adolf Hitler, urn homem tao inebriado pela suapropria mania de
grandeza que estava disposto a deixar milhoes de pessoas serem mortas corn o
proposito de exaltar o seu proprio ego.4 Essa, vale repetir, é a primeira perver-
sao da auto-imagem.
0 segundo tipo de perversao é tambern normalmente encontrado no ser
humano decaido: a de uma auto-imagem excessivamente baixa. Percebendo
que esta longe de ser o que deveria, uma pessoa tende, muitas vezes, ao me-
nosprezo, desprezo e, talvez, inclusive ao Odio de si mesma. De fato, algumas
vezes, pessoas podem considerar a si proprias como totalmente sem valor.
Criminologistas informam que a maioria dos criminosos tern uma imagem nega-
tiva de si mesmos; odeiam a si mesmos e odeiam a sociedade, expressando seu
Odio em atos de violencia. Mas esse fenOmeno nao é limitado aos criminosos.
Psiquiatras, psicOlogos e conselheiros pastorais relatam que urn grande numero
de pessoas vem a eles corn sentimentos de inferioridade e auto-imagem negati-
va. Carl Rogers, o famoso proponente da terapia centrada no paciente, disse o
seguinte: "A principal dificuldade das pessoas, como posso perceber repetida-
4 Ver Alan Bullock: Hitler: A Study in Tyranny (New York: Harper and Row, 1971).
A QUESTAO DA AUTO-iMAGEM 123
mente... é que na grande maioria dos casos elas se desprezam e se consideram
sem valor e indignas de serem amadas".5
Ambos os desvios brevemente descritos acima sao perverseies da auto-
imagem que Deus quis que tivessemos. Orgulho e presuncao sao detestaveis
aos olhos de Deus porque "Deus resiste aos soberbos, contudo, aos humildes
concede a sua grata" (1Pe 5.5). A perversao oposta, a de uma auto-imagem
extremamente negativa, poderia ser vista como mais salutar do que o orgulho,
visto que uma auto-imagem baixa é a condicao necessaria para verdadeiro ar-
rependimento. Por exemplo, na parabola de Jesus, o publicano que repreendia a
si mesmo voltou para casa justificado, nao o fariseu que congratulava-se con-
sigo mesmo (Lc 18.9-14). Uma pessoa deve, de fato, primeiro reconhecer a
magnitude de seus pecados contra Deus (e isto certamente fail corn que nao
alimente uma auto-imagem lisonjeira de si mesma) antes de sentir a necessidade
de se arrepender de seu pecado e de voltar-se para Cristo corn fe.6 Paulo
descreve exatamente isso ern 2 Corintios 7.10 — "Porque a tristeza segundo
Deus produz arrependimento para a salvagao". Tudo isso e o sadio ensino da
Escritura, mas continua sendo verdade que Deus nao quer manter seu povo em
perpetua servidao a uma auto-imagem extremamente negativa.
A RENOVAcAO DA AUTO—IMAGEM
No processo da redencao, como vimos, a imagem de Deus no homem, que
foi pervertida pela Queda, esta sendo progressivamente renovada. Isso implica
que, nesse processo, a auto-imagem do homem, que, por causa da Queda,
tambem se perverteu, esta sendo igualmente renovada. Esta renovacao da auto-
imagem acontece em duas direcOes.
5 Carl R. Rogers, "Reinhold Niebuhr's The Self and the Dramas of History: A Criticism", Pastoral
Psychology 9 (June 1958): p. 17.
6 No contexto desse assunto, quero discordar do conceito da auto-imagem do cristAo apresentada no
livro recente de Robert H. Schuller, Se ff-Esteem: The New Reformation (Waco, TX: Word Books,
1982). Embora favoravel a enfase de Schuller sobre a importhncia da uma auto-imagem positiva para o
cristAo, desagrada-me o que me parece ser uma ideia superficial do pecado. Na p. 65, Schuller diz que
chamar o pecado de "rebeliAo contra Deus" 6 "superficial e insultante para o ser humano". Respondo,
contudo, que nho so os teOlogos mas a prOpria Biblia 8 que chama o pecado de rebeliho contra Deus (Is
1.2; Ez 2.3-5; Dn 9.5). Na p. 127, Schuller afirma que a mensagem do Evangelho 6 "potencialmente
perigosa se ela tem de levar uma pessoa para baixo antes de levanta-la". Mas uma pessoa nao precisa
conhecer seu pecado para que sinta a necessidade de se voltar para Cristo para perdAo e salvacAo?
Acaso Paulo, na Carta aos Romanos, primeiro nao mostra que "todos, tanto judeus como gregos, estao
debaixo do pecado (3.9) antes de trazer sua mensagem construtiva a respeito da justificacAo pela fe? A
Biblia ensina um conceito muito grave sobre o pecado, o que nao acontece corn Schuller. E, se
alguOm diminui a gravidade do pecado, nAo deprecia tambem a grandeza da graca de Deus? (Cf. Dennis
Voskuil, Mountains into Goldmines [Grand Rapids: Eerdmans, 1983], pp. 146-51; tambOm Kenneth S.
Kantzer corn Paul W. Fromer, "A Theologian Looks at Schuller", Christianity Today 28, no. 11 [10
de agosto, 1984]: pp. 22-24).
1 24 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
Em primeiro lugar, quando nos renova pelo seu Espirito, Deus nos capacita a
renunciar ao orgulho pecaminoso, a primeira perversao da auto-imagem. Ele
nos ajuda a cultivar verdadeira humildade. Isso inclui, entre outras coisas, um
reconhecimento honesty) tanto de nossas forcas como de nossas fraquezas,
de forma a nos conceder uma imagem realista acerca de nos mesmos. A passa-
gem biblica que vem a mente nesse contexto é Romanos 12.3: "Porque, pela
grata que me foi dada, digo a cada urn dentre vos que nao pense de si mesmo
alem do que convem; antes, pense corn moderacao, segundo a medida da fe
que Deus repartiu a cada urn". Humildade abrange, alem disso, uma prontideio
em considerar os outros superiores a nos mesmos (Fp 2.3) — isto é, sermos
mais prontos para louvar aos outros do que a nos proprios. Essa humildade
envolve tambem urn reconhecimento de que todos os nossos dons e talentos
vem de Deus, arrancando assim o orgulho pela raiz. Paulo apresenta isso muito
enfaticamente em 1 Corintios 4.7: "Pois quem é que te faz sobressair? E que
tens to que nao tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como
se o nao tiveras recebido?" Tambem em 2 Corintios 3.5, Paulo escreve: "nao
que, por nos mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se par-
tisse de nos; pelo contrario, a nossa suficiencia vem de Deus". Finalmente, a
humildade significa uma disposic d'o para usar nossos dons no servico a Deus
e no servico aos outros. Quando vemos assim os nossos dons, vamos sempre
reconhecer que poderiamos te-los usado de forma muito menos egoista do que
na realidade os usamos — e, assim, seremos guardados de uma auto-imagem
elevada demais.
Podera ser que o processo da redencao tambern ajuda a corrigir o segundo
tipo de perversao que vimos, a de uma auto-imagem excessivamente negativa?
A resposta é Sim, quando a Escritura é entendida de urn modo equilibrado.
Infelizmente, muitos cristaos evangelicos parecem possuir uma auto-imagem
que é muito mais negativa do que positiva, pois, quando olham para si mesmos, o
que ocupa o centro do seu campo de visao é sua continuada pecaminosidade e
insuficiencia ao inves de sua vida nova em Cristo. Mas associar esse tipo de
auto-imagem negativa corn o Cristianismo biblico é, eu creio, uma grave distor-
cao. Quando a fe crista é apreendida na sua totalidade, se descobrira nela
recursos fantasticos para uma auto-imagem positiva. Tal auto-imagem positiva é
urn dos resultados salutares do processo redentor e um aspecto da renovacao da
imagem de Deus.
Ao explorar os recursos biblicos para uma auto-imagem positiva, eu gosta-
ria de discutir brevemente os ensinos da Escritura sobre justificacao e santifica-
cao. A justificaca'o é aquele ato de Deus pelo qual ele imputa (isto é, credita a
A QUESTAO DA AUTO-I MAGEM 125
favor de) ao que cre a perfeita satisfacao e justica de Cristo. 0 que isso significa
que Deus perdoa completamente todos os pecados daqueles que estao em
Cristo pela fe. A Biblia leva o pecado muito a serio; ela nos ensina que, quando
erramos, nab pecamos apenas contra as outras pessoas mas contra o proprio
Deus. A Biblia tambem nos mostra, contudo, que Deus proporcionou um meio
pelo qual podemos ser libertos nao apenas dos sentimentos de culpa mas da
propria culpa. Visto que Cristo carregou a nossa culpa (1Pe 2.24) e sofreu a
punicao pelos nossos pecados na cruz (Rm 3.24-25; 2Co 5.21), Deus agora
livra da culpa todos aqueles que estao em Cristo. Isso significa que quando
Deus olha para nos que estamos em Cristo, ele nao mais ye nosso pecado e
culpa, mas ye, no seu Lugar, a perfeita justica de Cristo. Essa verdade maravi-
lhosa do perdao divino e o fundamento para uma auto-imagem cristdpositiva.
Santificacao 6 aquela obra de Deus pela qual o Espirito Santo progressiva-
mente liberta o crente da corrupcao do pecado e o torna mais e mais semelhan-
te a Cristo. 0 que essa definicao deixa claro 6 que, por causa do que acontece no
processo de santificacao, o crente nao mais é a mesma pessoa que foi antes da
conversao, mas 6 uma pessoa transformada. Essa mudanca é a segunda razao
pela qual o cristao deveria ter uma imagem de si mesmo que 6 fundamen-
talmente positiva.
Tres conceitos biblicos — novo homem versus velho homem, vida no
Espirito e a nova criatura — ajudam a ilustrar essa vida transformada. Exami-
naremos primeiro a questa() do novo homem versus velho homem. Muitos
cristaos pensam que o crente é tanto urn "velho eu" (ou "velho homem") como
urn "novo eu" (ou um "novo homem"). Antes da conversao, aquele que agora é
urn cristao era somente urn velho homem; por ocasiao de sua conversao, tor-
nou-se urn novo homem — sem, todavia, perder totalmente o velho homem. Ha,
entao, uma luta constante entre estes dois aspectos ou partes do ser do cristao,
visto que o "despojar-se" ou a "crucificacao" do velho homem é considerado
urn processo que dura a vida inteira.
Como vimos antes, contudo, no contexto de uma exposicao de Colossen-
ses 3.9-10,7 esse entendimento da relacao entre o velho homem e o novo ho-
mem nao esta em harmonia corn o ensino bfblico.8 0 falecido professor John
Murray, referiu-se a esse assunto de maneira muito clara:
" Para uma discussao mais completa dos recursos bfblicos para auto-imagem positiva do cristao, ver meu
livro 0 Cristdo Toma Consciencia do Seu Valor (Sao Paulo: Editora Cultura Crista, 1987), caps. 10-12.
Nesse ponto, gostaria de expressar minha discordancia quanto a principal tese do recente livro de
Paul Brownback, The Danger of Self-Love. Brownback crftica 0 Cristdo Toma Consciencia do Seu
Valor porque ele entende que a Bfblia nao nos ensina a pensar positivamente a respeito de n6s mesmos
mas, pelo contrario, ela nos urge a nao termos qualquer auto-imagem (pp. 133, 137). Essa solucao,
porem, serve-se da imaginacao. Al6m disso, Brownback nao faz justica a mudanca real produzida no
interior do crente no processo da santificactio — a saber, a mudanca descrita acima. E significativo que
este autor em lugar algum especifica os capftulos de 0 Cristdo Toma Consciencia do Seu Valor
(capitulos 10-12) nos quais esta mudanca 6 demonstrada.
12 Brownback, Danger, p. 14.
13 Vez ou outra se diz que Joao Calvino, por sua forte anfase na pecaminosidade do homem, ensinou aos
seus seguidores a nutrirem uma auto-imagem muito mais negativa do que positiva (cf. W. M. Counts,
"The Nature of Man and the Christian's Self-Esteem", em The Journal of Psychology and Theology
A QUESTAO DA AUTO-I MAGEM 129
Dizem que algumas vezes um piloto de avido nao sabe com certeza se o
avid() que esta pilotando esta voando de ponta-cabeca ou corretamente. Quan-
do isso ocorre, ele precisa olhar para o seu painel de instrumentos para tirar sua
ddvida. Por analogia, talvez pudessemos imaginar a Biblia como nosso painel
de instrumentos. Manter nossos olhos sobre a Biblia nos ajudard a lembrar
quem realmente somos.
1, n° 1 [Janeiro 1973], pp. 28-44). Para uma refutacRo qualificada e completa dessa opinido erronca,
ver Louis A. Vos, "Calvin and the Christian Self-Image", em Exploring the Heritage of John Calvin,
org. por David E. Holwerda (Grand Rapids: Baker, 1976), pp. 76-109.
CAP iTULO 7
A OR1GEM DO PECADO
' Conferir, por exemplo, os seguintes credos Reformados: Catecismo de Heidelberg, Perguntas 6-8;
Confissgo Belga, Art. 14; Cdnones de Dort, 1.1; 111-1V.2; Confissdo de Fe de Westminster, Cap. 6.
= Karl Barth, Church Dogmatics, 1V/1, G. W. Bromiley (Edinburgh: T. & T. Clark, 1961), p. 508.
A ORIGEM DO PECADO 131
exemplarmente, o representante de todos que o seguiram;3 alem do mais, nao
houve um tempo em que o homem nao fosse urn transgressor e que, portanto,
estivesse sem culpa diante de Deus.4 Emil Brunner, como ja vimos, rejeita o que
chama de "a historicidade da historia de Adao"; para o homem moderno, diz
Brunner, nao existe mais a possibilidade de aceitar tal historicidade.5 Mais re-
centemente, H. M. Kuitert, urn professor de Teologia da Universidade Livre de
Amsterda, afirmou que nao devemos entender Adao como uma figura historica
mas, isto sim, como um exemplo pedagogic° ou como urn "modelo didatico" —
uma ilustracao do que acontece a cada ser humano, o qual nos ajuda a entender a
importancia e a realidade de Jesus Cristo.'
Estou convicto de que a negacao de que Adao e Eva foram pessoas reais que
urn dia viveram nesta terra e a interpretacao de Adao e Eva como simbolos ou
"modelos didaticos" é baseada num entendimento incorreto das Escrituras. A
narrativa do Genesis nao é a tInica referencia biblica ao primeiro homem. A
genealogia no primeiro capitulo de 1 Cr6nicas comeca corn Adao (v. 1), tratan-
do-o evidentemente como uma pessoa historica. Da mesma forma, a genealo-
gia de Jesus em Lucas 3 termina corn as seguintes palavras: "Caina, filho de
Enos, Enos filho de Sete, e este, filho de Adao, filho de Deus" (v. 38). Esse
versiculo coloca Adao evidentemente no comeco de uma lista de pessoas his-
tOricas e afirma que Adao nao veio a existencia por meio de geracao natural
mas pelo ato criador de Deus.
Al6m disso, quando os fariseus indagaram a Jesus sobre o divorcio (Mt 19.4-
6; Mc 10.6-8), ele citou as palavras encontradas ern Genesis 1.27 e 2.24. Essas
passagens afirmam que Deus criou homem e mulher e que um homem deixa pai e
mae para se unir a sua mulher. 0 apelo de Jesus ao comeco das coisas confor-
me registrado no Genesis nao teria qualquer relevancia para a situacao ern seus
dias se o homem e a mulher descritos nesses versiculos fossem meros simbolos.
As palavras de Jesus pressupOe que foram um casal humano real.
G. C. Berkouwer, The Triumph of Grace in the Theology of Karl Barth, trad. de H. Boer (Grand
Rapids: Eerdmans, 1956), p. 84.
4 Barth, Church Dogmatics, IV 11, p. 495.
Emil Brunner, The Christian Doctrine of Creation and Redemption, trad. de Olive Wyion (Philadel-
phia: Westminster Press, 1952), p. 48.
6 H, M. Kuitert, Do You Understand What You Read? trad. de Lewis B. Smedes (Grand Rapids:
Eerdmans, 1970), p. 40. Contudo deverfamos observar, tamb6m, que a negacao da historicidade da
Queda nao 6 nova, mas remonta a Antigidade. Filo, o sabio judeu (c. 30 a. C. — c. 45 A. D), ensinou que o
relato de Adao e Eva lido era urn registro de um fato historic° mas simplesmente um mito (J. N.
D. Kelly, Early Christian Doctrines [London: Adam and Charles Black, 1958], 20). Tambem Orfgenes,
um te6logo de Alexandria (c. 185-c. 254), ensinou que a narrativa do Genesis sobre a Queda era urn mito
cosmic°, refletindo a experiencia de cada homem e mulher, visto que todos os seres humanos haviam
cafdo em pecado durante um estado de pre-existencia (ibid., pp. 180-82).
132 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
Paulo tambem aceitou a historicidade de nossos primeiros pais. Em 1 Tim6-
teo 2.13 ele da a seguinte base para o seu mandamento de que as mulheres nao
deveriam ensinar ou exercer autoridade sobre os homens: "Porque, primeiro, foi
formado Adao, depois Eva". Tais palavras indicam que Paulo aceitou a
sucessao temporal da criacao de Eva depois de Adao, como esta descrito em
Genesis; sucessao temporal implica sucessao historica. Paulo acrescenta: "E
Adao nao foi iludido, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressed' (v.
14). A afirmacao de que a "mulher foi enganada" reflete as palavras de
Genesis 3.13, onde a narrativa traz Eva dizendo: "A serpente me enganou, e eu
comi". As palavras de Paulo aqui mostram que ele aceitava plenamente a
historicidade do relato biblico da Queda.
Paulo refere-se novamente a Adao em sua Carta aos Corintios: "Visto que a
morte veio por um homem, tambem por um homem veio a ressurreicao dos
mortos. Porque, assim como, em Adao, todos morrem, assim tambem todos
sera() vivificados em Cristo" (1Co 15.21-22). Observe que Paulo compara
aqui dois homens: um por meio de quem a morte entrou no mundo e outro por
meio de quern veio a ressurreicao; o versiculo 22 especifica que o primeiro
homem era Ada() e que o segundo homem era Cristo. Adao e Cristo sao colo-
cados lado a lado aqui. Paulo obviamente cria que Cristo era uma figura histo-
rica — uma pessoa que viveu sobre a terra em determinada epoca da hist6ria.
Nao implica, o fato de Paulo tracar urn paralelo entre Adao e Cristo, que ele
cria que Adao tambem era uma pessoa historica? Se Adao fosse tao-somente
uma figura mitica ou simbolica, como alguns teologos recentes insistem, poderf-
amos parafrasear o versiculo 22 mais ou menos assim: "Como em Pandora
[personagem da mitologia grega que teria aberto a caixa da qual safram todos
os males que tem afligido a humanidade desde entao] todos morrem, assim
tambem todos serao vivificados ern Cristo". Acaso essa interpretacao nao ar-
rufna a estrutura do pensamento de Paulo? 0 contraste que Paulo faz aqui nao é
claramente entre urn e outro cabeca da raca humana? E se o segundo cabeca foi
uma pessoa historica, nao somos compelidos a concluir que o primeiro ca-
beca tambem foi uma pessoa historica? Paulo fala de dois homens; se o primei-
ro foi apenas urn simbolo, que base temos para crer que o segundo (nosso
Senhor Jesus Cristo) nao foi urn simbolo?
Urn pouco mais tarde, na mesma carta, Paulo fala outra vez de Adao como
o primeiro homem em contraste corn Cristo como o segundo homem: "Pois
assim esta escrito: 0 primeiro homem, Adao, foi feito alma vivente. 0 ultimo
Adao, porem, é espirito vivificante... 0 primeiro homem, formado da terra, é
A ORIGEM DO PECADO 133
terreno; o segundo homem é do ceu" (15.45-47). 0 comentario de John Mur-
ray sobre essa passagem é preciso:
0 paralelismo e contraste [nesses versiculos] exigem que Adao, como o primeiro
homem, tenha uma identidade hist6rica comparavel a do prOprio Cristo. De outra
forma, perde-se a base de comparacao e contraste. Adao e Cristo detain, respectiva-
mente, vfnculos Impares em relagao a humanidade, mas para que detenham tais vin-
culos é preciso que ambos sejam figuras hist6ricas de modo a tornar possiveis e
relevantes esses vinculos.7
9 Sobre a questAo da historicidade de Adair), ver tambdm J. P. Versteeg, Is Adam a "Teaching Model" in the
New Testament?, trad. de Richard B. Graffin, Jr. (Nutley, NJ: Presbyterian and Reformed, 1978) —
A ORIGEM DO PECADO 135
A rejeicao da historicidade de Adao nao é somente contraria a Escritura,
tambem tem conseqUencias devastadoras para a doutrina do homem. Segundo
cre o professor Kuitert, a narrativa da Queda nao é um relato de urn evento
historico mas urn exemplo didatico, nao houve um tempo em que o homem nao
era pecador e nao existiu urn estado de perfeicao anterior ao nosso presente
estado de corrupcao. Se essa interpretacao da narrativa do Genesis estivesse
correta, no entanto, se daria a entender que a pessoa humana, como vem das
maos do seu Criador, é um ser que invariavel e inevitavelmente cai ern pecado.
Essa concepcao uniria o pecado de forma inseparavel a finitude do homem, sua
condicao de criatura, a sua humanidade. Mas se o pecado esta inevitavel-
mente ligado a humanidade do homem, 6 possivel redimi-lo do pecado? Deve a
pessoa humana tornar-se, entao, uma criatura completamente diferente do que
6 — digamos, urn anjo — para poder se tornar sem pecado?
A narrativa da Queda, contudo, nos diz que o homem foi criado em um
estado de perfeicao mas caiu em urn estado de corrupcao por causa de urn fato
real ocorrido no tempo. Embora a narrativa desse evento em Genesis 3 nab nos de
uma explicaccio para a entrada do pecado no mundo (urn misted() que jamais
podera ser explicado), ela nos diz que, em urn determinado ponto no tempo, o
pecado entrou no mundo dos homens. 0 sentido disso é que o peca-
do é acidental, mas nao essencial ao homem. Significa, alem disso, que a reden-
cao do pecado e possivel: os seres humanos podem vir a ser outra vez livres do
pecado sem cessarem de ser humanos. Visto que a pecaminosidade nao 6 es-
sencial a natureza humana, Jesus Cristo, embora sem pecado, era urn homem
genuino. Por causa do primeiro cabeca, Adao, tornamo-nos pecadores; por
meio do segundo cabeca, Cristo, podemos nos tornar inocentes (sem pecado).
Poderia se observar, corretamente, que o principal proposito de Paulo corn a
apresentacao do paralelo entre Adao e Cristo em Romanos 5.12-21 é apre-
sentar as bencaos vindas a nos por meio de Cristo — bencaos que excedem em
muito os danosos resultados de nossa uniao corn Adao. Isso e verdade. Mas
nao devemos esquecer que a obra que Cristo fez por nos 6 apresentada aqui
numa estrutura de historia redentora — uma histOria que tern inicio em nosso
vinculo com Adao, nosso primeiro cabeca. Herman Ridderbos diz o seguinte:
"0 paralelo entre Cristo e Adao 6 de fundamental importancia para a corn-
preensao da influencia da historia da salvacao na pregacao paulina do evange-
uma resposta direta a Kuitert. Cf., ainda, J. Murray, "Historicity of Adam"; Paul K. Jewett, Emil Brunner
Concept of Revelation (London: James Clarke, 1954), pp. 148-49; G. C. Berkouwer, Sin, Philip C.
Holtrop (1958, 1960; Grand Rapids: Eerdmans, 1971), p. 274; E. J. Young, In The Beginning (Edinbur-
gh: Banner of Truth, 1976), pp. 86, 90-91; James Daane, "The Fall", ISBE, vol. 2 (1982): pp. 277-78.
/ 36 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
lho."1° Sobre este mesmo ponto J. P. Versteeg tem palavras incisivas a dizer:
A correlacdo redentora-histOrica entre Adao e Cristo determina a estrutura em que —
particularmente para Paulo — a obra redentora de Cristo tern seu Lugar. Essa obra de
redencao nao pode mais ser confessada de acordo corn o significado da Escritura se
esta divorciada da estrutura em que se encontra. Quem divorcia a obra da redencAo da
estrutura em que ela se encontra na Escritura rejeita a palavra como norma Sue
determina todas as coisas."
'° Aan de Romeinen (Kampen: Kok, 1959), p. 112 (citado pelo autor em traducao prdpria para o Mee's). "
Teaching Model, p. 66.
A ORIGEM DO PECADO 137
obras tao importante que ele afirma mais de uma vez que o pacto das obras e o
pacto da grata permanecem ou caem juntos.I2
Outros teologos reformados que tem ensinado e defendido a doutrina do
pacto das obras sdo Charles Hodge°, Robert L. Dabney°, William G. T. Shedd'',
Geerhardus Vos° e Louis Berkhof.° Mais recentemente, a doutrina do pacto das
obras foi defendida por doffs teologos do Antigo Testamento, Meredith Kline'8 e
0. Palmer Robertson.° Tanto Kline como Robertson, contudo, preferem
chamar esse pacto corn Addo antes da Queda de "o pacto da criacdo".
Em anos recente, contudo, alguns teologos reformados tern se posiciona-
do contra o conceito de urn pacto de obras antes da Queda. Já em 1958, G.
C. Berkouwer escreveu sobre suas reservas quanto a doutrina do pacto das
obras.2° Em sua obra Reformed Dogmatics, publicada em 1966, Herman
Hoeksema rejeita a doutrina do pacto das obras, expondo cinco objecOes a
ela.21 John Murray, em urn ensaio sobre "A Administracdo Adamica", apre-
senta duas razaes porque o termo "pacto das obras" ndo deveria ser usado.22
Embora ndo necessariamente concordando com todas as objecties men-
cionadas por esses tres autores, compartilho da sua conviccdo de que ndo de-
vemos chamar o acordo que Deus fez com Add° e Eva antes da Queda de
"pacto das obras".
Primeiro, a ideia de chamar pacto de obras a esse acordo nao faz justica
aos elementos da grata inclusos nessa "administracdo addmica". Porque, em-
bora seja verdade que Addo e Eva receberiam a bengal° da vida sem-fim em
comunhdo com Deus pelo caminho "das obras" (a saber, pela perfeita obedien-
cia ao mandamento de Deus), de modo algum segue-se que portal obediencia é
que alcancariam ou mereceriam essa comunhdo permanente, incluindo, como
12 Para o ensino de Bavinck sobre o pacto da obras, ver Dogmatiek, 2:602-24; 3:90-96, pp. 137, 176-
77, 229, 236-240. Urn resumo ern ingles desse material pode ser encontrado ern minha dissertacdo,
Herman Bavinck's Doctrine of the Covenant (Dissertacho de Doutorado, Princeton Seminary, 1953),
pp. 70-102. Uma cdpia dessa dissertacao pode ser encontrada na Calvin Theological Library (Biblio-
teca TeolOgica Calvino), em Grand Rapids, Michigan, EUA.
13 Systematic Theology, vol. 2 (1871; Grand Rapids: Eerdmans, 1940), pp. 117-22.
14 Lectures in Systematic Theology (1878; Grand Rapids: Zondervan, 1972), pp. 302-5.
15 Dogmatic Theology, vol. 2 (1888; Grand Rapids: Zondervan), pp. 152 e seg.
'6 Dogmatiek, 1.2 (Grand Rapids, 1910, mimeografada), pp. 34-39, 95-96. Ver tambdm, do mesmo
autor, Biblical Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1948), pp. 32, 37-51.
17 Systematic Theology, ed. revisada e aumentada (Grand Rapids: Eerdmans, 1941), pp. 211-18.
'8 By Oath Consigned (Grand Rapids: Eerdmans, 1968), pp. 27-29, 32, 37.
19 The Christ of the Covenants (Grand Rapids: Baker, 1980), pp. 55-57, 67-87.
2
0 Sin, pp. 207-8.
21 Reformed Dogmatics (Grand Rapids: Reformed Free Publishing Association, 1966), pp. 217-20.
" "The Adamic Administration", Collected Writings of John Murray, vol. 2 (Edinburgh: Banner of
Truth Trust, 1977), p. 49.
138 CR1ADOS A IMAGEM DE DEUS
muitos interpretam, a vida eterna. Deus tinha, de fato, o direito a perfeita obe-
diencia da parte de suas criaturas humanas; nao estava, contudo, obrigado a
lhes dar uma recompensa por tal obediencia. 0 fato de ele ter prometido (con-
forme se infere) dar ao homem tal recompensa deve ser entendido como urn
dom da grata de Deus.
Segundo, a BIblia nao chama esse acordo de pacto. A imica excecao pos-
sfvel é Oseias 6.7, que descreve as transgressOes do povo de Efraim contra
Deus. 0 texto diz: "Mas eles transgrediram a alianca, como Adao; eles se por-
taram aleivosamente contra mim". Sendo correta essa traducao da passagem,
daria a entender que houve, de fato, urn pacto que Adao transgrediu no Parai-
so. Contudo, a traducao de ke'adam (o hebraico original vertido por "como
Adao" na NIV) nao 6 inteiramente segura. A NIV, inclusive, informa em nota de
rodape: "Ou Como em Adam; ou igual aos homens". Outras versiies tern "igual
aos homens" (KJV, ASV), ou "como urn homem" (Septuaginta). Ainda outras
verseies sugerem que a preposicao ke ("como" ou "igual a") deveria ser lida
como be ("em") e, portanto, traduz as palavras em questa() como "em
Adam" (RSV, BIblia de Jerusalem). Nao parece sabio, portanto, basear uma
doutrina numa simples passagem como essa, cuja traducao e sentido nao sao
totalmente certos.
Uma terceira objecao ao conceito de urn pacto das obras antes da Queda é
que nao ha qualquer indicacao nesses primeiros capftulos do G8nesis de urn
juramento de pacto ou de uma cerimonia de ratificacao de urn pacto. Quando
lemos a respeito de urn mandamento probatorio ou de teste em Genesis 2.16-
17, nada e dito a respeito de um juramento de pacto ou de uma cerimonia de
ratificacao. Muita luz tern sido lancada sobre a natureza dos pactos nos tempos
antigos, incluindo os mencionados na Biblia, por pesquisas recentes sobre os
tratados pactuais do antigo Oriente Proximo. Esses pesquisadores verificaram
que os pactos do Antigo Testamento — particularmente os descritos nos capftu-
los posteriores de Genesis (comecando corn o capItulo 15), Exodo e Deutero-
nomio — eram sempre ratificados por um juramento e geralmente acompanha-
dos de uma cerimonia, que em alguns casos envolvia o esquartejamento e/ou
sacrificio de animais. Se tais juramentos confirmatorios eram caracteristicos de
pactos naqueles tempos, como a evidencia agora indica, nao parece que esta-
mos autorizados a concluir que o acordo que Deus fez corn Adao e Eva antes da
Queda foi pactual em sua natureza.
Esse conceito da natureza dos pactos nos tempos biblicos é apoiada por
diversos eruditos. M. Weinfeld diz o seguinte sobre esse assunto:
A 0 RIGEM DO PECADO 139
Berith como urn compromisso precisa ser confirmado por um juramento...: Gn 21.22s;
26.26s; Dt 29.9s; Js 9.15-20; 2Rs 11.4; Ez 16.8; 17.13s; o qual, muito provavelmente,
inclula uma impreeacao condicional: "Aconteca assim e assim comigo se eu viola a
obrigacao". 0 juramento (Id ao compromisso seu valor obrigat6rio e, portanto, en-
contramos na Biblia assim como nos documentos gregos e mesopotamicos o par de
palavras: berith ye 'alah, "pacto e juramento" (Gn 26.28; Dt 29.11, 13, 20 [12, 14, 21]; Ez
23
16.59; 17.18) em hebraico.
sa "Berith", no Theological Dictionary of the Old Testament, org. por G. J. Botterweck e R. Ringgren;
trad. por J.T. Willis, vol. 2, ed. rev. (Grand Rapids: Eerdmans, 1977), p. 256.
" "Ancient Oriental and Biblical Law", The Biblical Archaeologist 17, n. 2 (Maio, 1954): p. 28. Ver
tambbm, do mesmo autor, "Covenant Forms in Israelite Tradition", ibid., 17, n. 3 (Setembro 1954):pp.
56-57.
By Oath Consigned, 16. Cf. tambdm Meredith G. Kline, Treaty of the Great King (Grand Rapids:
Eerdmans, 1963); Dennis J. McCarthy, Treaty and Covenant (Rome: Pontifical Biblical Institute,
1963); e M. Weinfeld, "The Covenant of Grant in the Old Testament and in the Ancient Near East",
Journal of the American Oriental Society 90 (1970): pp. 184-203.
Contra a argumentagao oferecida acima poderia-se dizer, corretamente, que nao ha qualquer
mencao de um juramento de pacto ou cerimenia de ratificagao de pacto no caso do pacto corn Nob,
descrito em Gn 6.18 (antes do dildvio) e em Gn 9.11-13 e 15-17 (apos o Mas visto que a Bfblia
chama claramente de pacto essa outorga da graga divina, devemos tambdm reconhece-la como tal,
ainda que nao haja nenhum registro quer de urn juramento pactual quer de uma ratificagao pactual. Em
nenhum lugar da Escritura, contudo, exceto na referencia incerta de Osdias 6.7, o acordo de Deus feito
corn Adao e Eva antes da Queda d chamado de pacto.
26 Corn a possfvel excecao de Osbias 6.7.
140 CRIADOS A 1MAGEM DE DEUS
detras do conceito do pacto das obras. Devemos, por exemplo, afirmar que
Adao realmente foi o cabeca e representante da raga humana que descendeu
dele; que a ele foi dada uma "ordem probatoria" para testar a sua obediencia;
que sua desobediencia aquela ordem trouxe o pecado, morte e condenacao ao
mundo; e que ele foi, portanto, urn tipo de Cristo, nosso segundo cabeca, cha-
mado "o ultimo Adao" ern 1 CorIntios 15.45, por meio de quern somos liberta-
dos dos infelizes resultados do primeiro pecado de Adao.
" Observar, por exemplo, Ap 12.9 e 20.2, onde "o diabo ou Satands" d identificado corn "a antiga
serpente".
" Pedro refere-se a anjos que pecaram (2Pe 2.4). A tftulo de comparacAo, em 1Tm 5.21, Paulo menciona
"anjos eleitos".
29 "Pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos cells e sobre a terra, as visiveis e as invislveis, sejam
tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para de."
A ORIGEM DO PECADO 141
anjos, Ela ocorreu necessariamente antes da queda do homem. A passagem
que mais se aproxima de uma descricao da natureza do pecado dos anjos 6
Judas 6: "e a anjos, os que nao guardaram o seu estado original [archen, no
grego], mas abandonaram o seu proprio domicflio [apolipontas to idion oike-
terion], ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o jufzo do
grande Dia". Parece que esses anjos nao ficaram satisfeitos corn o lugar onde
Deus os havia colocado, mas desejaram uma posicao de maior autoridade. A
raiz de seu pecado, portanto, parece ter sido o orgulho, que conduziu a rebelido
contra Deus. Que a raiz do pecado de Satanas e dos outros anjos foi o orgulho é
mencionado tambem em 1 Timoteo 3.6: "nao seja neofito, para nao suceder que
se ensoberbega, e incorra na condenacao do diabo".
0 que é significativo aqui é que o pecado nao se originou no mundo dos
seres humanos mas no mundo dos espfritos. Esses espfritos nao foram tentados
ao pecado por alguma forca ou poder fora deles proprios; &es tropegaram em e
por si mesmos. Jesus, na verdade, disse que o diabo foi urn homicida "desde o
principio" (e que, quando mente, "fala do que the e pr8prio" (Jo 8.44; ek ton
idion, no grego). Em outras palavras, o diabo, na qualidade de lIder dos anjos
cafdos, produziu a mentira de si pre:Trio?
No mundo humano, contudo, a tentagao veio de fora. Ada° e Eva foram
tentados pelo diabo, que apareceu na forma de uma serpente. 0 diabo, por
meio da serpente, apelou para o que o Novo Testamento chama de "a concu-
piscencia da came, a concupiscencia dos olhos e a soberba da vida" (1 Jo 2.16).
Embora nao desculpe de modo algum o pecado do homem, nem ofereca uma
explicacao para ele, esse fato aponta para uma diferenca importante entre o
pecado do homem e o pecado dos anjos.31
1° Sobre a queda dos anjos, ver H. Bavinck, Dogmatiek, 3:11, pp. 52-53, 60. Ver tambem L. Berkhof,
Systematic Theology, pp. 148-49, 220-21.
Bavinck, Dogmatiek, 3:52-53. Alguns tern, inclusive, proposto que o fato de que o primeio pecado
humano originou-se em uma tentagao exterior indica a razao pela qual os homens decaldos podem ser
salvos enquanto que os anjos catdos, cujo pecado originou-se neles pr6prios, nao podem. Independen-
temente do valor que se da a essa pequena especulacao, a diferenga entre o modo como o pecado surgiu no
mundo angelical e na raga humana 6 importante e nao deveria ser ignorada ou esquecida.
142 CRIADOS A 1MAGEM DE DEUS
Embora aceitando que a Queda tenha ocorrido em certo momento da Historia,
deverfamos, por isso, interpretar literalmente todos os aspectos dessa narrativa?
Ou deverfamos interpretar alguns aspectos de urn modo nao-literal ou simbolico?
A primeira coisa que deverfamos notar a que o genero literario de Genesis
1-3 6 diferente dos estilos de literatura encontradas em outras panes da Biblia,
particularmente em outras secOes histOricas. Normalmente, os escritores da
Biblia escreveram a hist6ria baseados no que eles ou seus informantes tinham
testemunhado ou experimentado; algumas vezes, tinham ate mesmo acesso a
determinados documentos escritos.32 Mas nao houve realmente testemunhas de
alguns dos eventos descritos em Genesis 1-3, tais como a criacao do univer-
so e o que aconteceu em cada urn dos dias da criacao, a formacao do homem do
p6 da terra e a formacao da mulher da costela de Ada°. Tambem parece
igualmente improvavel que tenha havido uma tradicao oral remontando a Adao da
qual o escritor de Genesis 1-3 pudesse extrair informacao a respeito dos
eventos descritos nesses capitulos. Segundo recentes evidencias cientificas, pa-
rece que os seres humanos encontram-se na terra ha cerca de centenas de
milhares de anos, tornando extremamente improvavel que pudesse ter havido
uma tradicao oral fidedigna remontando ate o comeco. Alem disso, segundo
Josue 24.2 e 14, o verdadeiro conhecimento de Deus havia sido perdido por
Abraao e seu pai antes deles terem deixado Ur da Caldeia;33conseqiientemen-
te, a cadeia de uma tradicao verdadeira sobre esses eventos primevos, se hou-
ve tal tradicao, teria se rompido. Uma vez que o escritor de Genesis 1-3, por-
tanto, nao poderia ter consultado testemunhas oculares dos eventos que des-
creveu e que nao havia aparentemente nenhuma tradicao oral fidedigna a qual
pudesse apelar, devemos concluir que o getter° literario destes capitulos 6 dife-
rente do das outras secOes historicas da Bfblia.34
Nao significa, contudo, que o que esta escrito em Genesis 3 nao seja Hist&
ria. A narrativa da queda em Genesis 3, como ja vimos, deve ser entendida
como urn evento ocorrido na Historia. Mas a narrativa envolve uma forma dife-
rente de se escrever Historia daquela encontrada, digamos, em Reis ou Croni-
cas. Isso levanta a questa° quanto a interpretacalo literal ou nao-literal de varios
elementos da narrativa da Queda. Devemos interpretar a serpente literalmente?
Observar, por exemplo, as referencias ao assim chamado Livro dos Justos em Js 10.13 e 2Sm 1.18 e cf.
3'
Lc 1.1-4.
33 "Entflo, Josue disse a todo o povo: Assim diz o SENHOR, Deus de Israel: Antigamente, vossos pais,
Tera, pai de Abrado e de Naor, habitaram dalenn do Eufrates e serviram a outros deuses." (Js 24.2).
Sobre esse tema, ver. J. L. Koole, "Het Litterair Genre van Genesis 1-3", Gereformeerd Theologisch
Tijdschrift 63, n. 2 (Maio 1963): pp. 81-122.
A ORIGEM DO PECADO 143
O que dizer sobre a serpente falar? 0 que dizer sobre as duas arvores: a arvore
do conhecimento do bem e do mal (Gn 2.17) e a arvore da vida (Gn 3.22, 24)?
Houve e ha teologos dentro da tradicao reformada que, embora concor-
dando que a narrativa da Queda em Genesis 3 descreva uma queda histOrica,
creem que tais detalhes necessariamente nao tern de ser entendidos literalmente,
podendo ser interpretados de urn modo figurativo e simbolico. Essa, por exem-
plo, é a posicao dos signatarios do Majority Report (Relatorio da Maioria) da
comissa"o de estudos corn respeito a declaracao doutrinaria aceita no Sinodo de
Assen, da Igreja Reformada na Holanda (1926 ) — um relatorio apresentado ao
Sinodo Geral da Igreja Reformada realizado em Amstercla e Lunteren, em
1967-68. Essa comissdo foi incumbida de dar urn parecer sobre a questa° de se
a Igreja Reformada deveria continuar a manter e a fazer cumprir o carater
obrigatorio do seguinte pronunciamento doutrinario do Sinodo de Assen:
Que a arvore do conhecimento do bem e do mal, a serpente e sua fala, e a arvore da
vida, segundo a intencao evidente da narrativa escriturfstica de Genesis 2 e 3, devem ser
entendidas num sentido literal e nao simbOlico, tendo sido, portanto, realidades
perceptiveis aos sentidos [zintuiglijk waarneembare werkelijkheden].35
" Bijlagen bij de Acta van de Generale Synode van de Gereformeerd Kerken in Nederland, Amsterdam
en Lunteren, 1967-68, p. 249 (citado pelo autor em traducao propria pars o ingles).
" Para o texto desse relatorio da maioria, bem como o do relatdrio da minoria assinado por J. Schelhaas
(que defendia a permanencia do carater obrigatbrio de Assen 1926), ver ibid., pp. 248-66.
" Hoe Lezen Wij Genesis 2 en 3? (Kampen: Kok, 1972), p. 174.
144 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
é de menor importancia. Nao obstante, estou convencido de que deverfamos
interpretar os detalhes da narrativa dos Genesis acima mencionados (a serpen-
te, a fala da serpente, as duas arvores) literalmente, nao simbolica ou figurada-
mente. As razoes desta minha posicdo se tomarao evidentes a medida que
examinarmos alguns dos argumentos daqueles que afirmam a historicidade da
Queda, mas acreditam que nAo precisamos interpretar literalmente os detalhes
da narrativa do Genesis.
Ja mencionamos o primeiro desses argumentos: que os eruditos tern mani-
festado dtividas a respeito de ter havido uma cadeia ininterrupta de tradicao
desde os dias de Ada° ate os do escritor de Genesis 3 (presumidamente Moi-
ses). Como vimos, duas razOes sac apresentadas em apoio a essas duvidas: a
idade da humanidade e as afirmacOes de Josue 24.2 e 14 de que Abraao e seus
pais serviam a outros deuses e nao a Yahweh. A luz do conhecimento recente,
tanto das ciencias naturais como da pesquisa biblica, devemos concluir que,
embora tal cadeia de tradicao nao sej a totalmente impossivel, é vista agora
como extremamente improvavel.
Contudo, o fato de provavelmente nAo ter havido uma cadeia ininterrupta
de tradicao, necessariamente nab significa que os quatro itens mencionados
acima nao devam ser interpretados literalmente. Realmente, nao sabemos como o
escritor de Genesis tomou conhecimento das coisas da narrativa que p8s por
escrito em Genesis 3. 0 mais provavel, ao que tudo indica, e que houve uma
revelacao divina particular a esse autor quanto a esses eventos do inicio da
hist6ria humana.38 Se Deus revelou a narrativa de Genesis 3 a Moises — uma
narrativa que descreve uma queda historica — que base temos para dizer que os
quatro itens acima mencionados nab devam ser entendidos literalmenter
Um segundo argumento é o de que muitos antropomorfismos encontrados
nesses primeiros capitulos de Genesis nao devem ser interpretados literalmente.
Urn antropomorfismo é a atribuicao de caracterlsticas humanas a coisas ou seres
nao-humanos — neste caso, a Deus. Por exemplo, em Genesis 2.7, lemos: "for-
mou o SENHOR Deus ao homem do p6 da terra e the soprou nas narinas o
folego de vida". Sobre essa passagem C. Ch. Aalders, falecido professor de
Antigo Testamento na Universidade Livre de Amstercla, faz o seguinte comentario:
Uma vez que afirmaeOes como essas — segue seu argumento — ndo devem
ser tomadas literalmente, tambem a serpente capaz de falar ou as duas arvores
mencionadas nesses capitulos tido deveriam ser entendidas literalmente.
Todavia, os antropomorfismos ndo ocorrem apenas nesses capitulos, mas
tambem em outras partes da Escritura. Em outros lugares do Antigo Testamen-
to, se descreve Deus como tendo pes (Ex 24.10), mao (Is 59.1), coracdo (Os
11.8) e olhos (S134.15). Encontram-se antropomorfismos nas narrativas de
Abrado (Deus vem a Abrado na forma de urn homem, Gn 18), de Jaco (que luta
corn Deus na forma de urn homem, Gn 32.24-32) e de Moises (o Senhor
encontra-se corn Moises e procura mata-lo, Ex 4.24-26). 0 fato de haver tais
antropomorfismos nas narrativas relacionadas a Abrado, JacO e Moises ndo
implica que a histOria traeada nessas narrativas dev a ser descartada como sim-
plesmente representativa ou simbolica.
E obvio que interpretar literalmente as expressOes antropomOrficas sobre
Deus encontradas em Genesis 2-3 distorceria a descried() biblica de Deus como
urn espirito (Jo 4.24) e o rebaixaria ate o nivel de urn mero homem. Mas isso de
forma nenhuma implica necessariamente que as afirmacoes sobre a serpente ou
as arvores situadas no jardim do Eden nab devam ser entendidas literalmente.
Urn terceiro argumento é que certos aspectos da narrativa da Queda tern
urn significado simbOlico. As duas arvores, por exemplo, sdo urn caso tipico. A
arvore do conhecimento do bem e do mal representa a possibilidade de tenta-
ea°, de aprender o que é born e o que 6 mau de maneira prejudicial. A arvore da
vida representa a possibilidade de comunhdo eterna e indestrutivel corn Deus. A
serpente tambem tern urn sentido simbolico: obviamente, urn poder maligno
43 0 parecer de que a serpente de Genesis 3 foi uma serpente real que Satan& usou como seu instrumento
na tentacao de Adfto e Eva 6 sustentada pelos seguintes te6logos: H. Bavinck, Dogmatiek, 3:9: Geerhar-
dus Vos, Biblical Theology, p. 44; John Calvin, Commentary on Genesis, 1:142; L. Berkhof, Systematic
Theology, p. 224; E. J. Young, Genesis 3 (London: Banner of Truth, 1966), pp. 22-23; G. C. Aalders, De
Goddelijke Openbaring in de Eerste Drie Hoofdstukken van Genesis (Kampen: Kok, 1932), pp. 485-88; Keil
and Delitzsch, Commentary on the Old Testament, vol, 1, The Pentateuch, trad. de James Martin
(1861; Grand Rapids: Eerdmans, 1951), pp. 92-93; Johannes Fichtner, "ophis", TDNT, 5:573.
44 Cf. H. Bavinck, Dogmatiek, 3:8; L. Berkhof, Systematic Theology, p. 223.
A ORIGEM DO PECADO 149
0 ENIGMA DO PECADO
0 fato de podermos discernir esses estagios na tentacao e queda de nossos
primeiros pais, contudo, nao significa que encontramos na narrativa de Genesis
uma explicacao para a entrada do pecado no mundo humano. 0 que temos aqui
6 a narrativa biblica da origem do pecado, mas nao uma explicacao para essa
origem. Uma das coisas mais importantes que devemos lembrar a respeito do
pecado, tanto na vida do homem como na dos anjos, 6 que ele 6 inexplicavel. A
origem do male, como diz Herman Bavinck, um dos maiores enigmas da vida.45
Poderia se dizer, 6 claro, que a possibilidade de pecar estava presente em
nossos primeiros pais ja quando foram criados. Agostinho coloca isso negati-
vamente: o homem, como originalmente criado, poderia ser descrito comopos-
se non peccare isto 6, como urn ser que era capaz de nao pecar.46 Essa
afirmacao, todavia, sup& que a possibilidade de pecar estava presente em
Adao e Eva no principio. Mas como essa possibilidade veio a ser realidade
jamais deixard de ser para nos urn misterio insondavel. Jamais saberemos como a
duvida originalmente surgiu na mente de Eva. Nunca entenderemos como uma
pessoa que havia sido criada no estado de retidao, sem pecado, pode
comecar a pecar.
Nao podemos achar nenhuma razao para o pecado na boa criacao de Deus
ou nos dons que ele deu ao homem. Esses dons eram tais que Adao e Eva
deveriam ter sido capazes de resistir a tentacao do diabo e de permanecerem
obedientes a Deus. Devemos reconhecer que nao poderiam ter permanecido em
sua integridade moral a parte da forca do Espirito Santo que neles habita-
va.47 Mas a verdade 6 que Adao e Eva poderiam e deveriam ter permanecido
em p6. A razao porque car= nao deve ser atribuida a criacao de Deus.
Tambem nao podemos dizer que Deus foi a causa da queda de nossos
primeiros pais em pecado. Como poderia Deus levy-los a fazer o que era con-
trario a sua vontade? Esse pensamento vai de encontro a tudo o que a Biblia
nos ensina a respeito de Deus. Como lemos na epistola de Tiago: "cada um é
tentado pela sua propria cobica, quando esta o atrai e seduz" (1.14). Adao e
Eva foram tentados pelos seus prOprios desejos de pecar, mas jamais entende-
remos como ou par que.
4' Dogmatiek, 3:33. Para uma discussAo mais abrangente desse tema, ver Berkouwer, "The Riddle of
Sin," Sin, pp. 13-48.
" On Rebuke and Grace, p. 33.
" The City of God, vol. 2, Nicene and Post-Nicene Fathers, First Series (reimpressho; Grand Rapids:
Eerdmans, 1983), p. 230 (Livro 12, Capftulo 7).
49 Berkouwer, Sin, p. 146. Cf. Bavinck, Dogmatiek, 3, pp. 54-55, onde ele chama o pecado de tolice,
absurdo, ilegitimo e irracional.
5° Enchiridion, org. e revis. por Albert C. Outler, vol. 7, Library of Christian Classics (Philadelphia;
Westminster Press, 1955), 399 (Cap, 26:100). Cf. Calvin, Institutes, 1.18.3.
CAPfTULO 8
A DISSEM1NA00 DO PECADO
2 Observer as referencias a inimigos "Iamber o p6" (SI 72.9; Is 49.23 e Mq 7.17). Esta Ultima passagem
particularmente associa esse tipo de humilhagito corn aquela da serpente: "[As nacoes] lamberao o p6
como serpentes; como r6pteis da terra".
A DISSEMINA00 DO PECADO 153
voce tenha me rejeitado ao corner do fruto proibido, cOntinuarei send° urn amigo
para voce; permanecerei ao seu lado. A primeira reagao de Deus, p9rtanto, ao
pecado humano é uma manifestagao da grata.
Essa inimizade entre a mulher e a serpente (isto 6, o diabo, que estava por
tras da serpente) devia continuar no futuro: "Porei inimizade entre ti e a mulher e
entre a tua semente e a sua semente" (Gn 3.15, RC; "entre a tua descendencia e o
seu descendente" — RA). A "tua semente" nao significa literalmente a des-
cendencia fisica da serpente mas, ao inves disso, aqueles seres humanos que
viriam compartilhar dos prop6sitos e da vontade do diabo e que, como este,
portanto, viriam a ser inimigos de Deus. Isso nos lembra as palavras de Jesus
aos judeus que se opunham a ele: "V& sois do Diabo, que 6 o vosso pai, e
quereis satisfazer-lhe os desejos" (Jo 8.44). Por outro lado, "a sua [dela] se-
mente" significa os descendentes da mulher que viriam a ser povo de Deus —
aqueles que viriam a crer nas promessas de Deus e viver segundo os propositos
de Deus. Assim, nessa parte do texto, estende-se a inimizade entre a mulher e
Satands a inimizade entre dois grupos de pessoas. A historia do mundo a partir
de entao passaria a ser uma historia de antftese, de oposigao, entre o povo de
Deus (a semente da mulher) e os oponentes de Deus (a semente da serpente).
Na illtima parte da passagem, Deus parece passar da compreensao coletiva
para a individual no que se refere aos dois tipos de descendencia. "Este ["o des-
cendente" ou "a semente" da mulher, entendido agora como urn individuor to
ferira a cabega [a cabega da serpente, ou, melhor, do diabo que esta por tras da
serpente]." Visto que devemos entender "ferir" como "esmagar", esse a quem se
refere o texto 6 apresentado como aquele que derrotard completamente a
Satands ou o diabo. Embora, segundo presumimos, Adao e Eva nao entende-
ram tudo isso clara ou plenamente, o restante das Escrituras nos ensinam que o
nosso Senhor Jesus Cristo é este que haveria de ferir mortalmente a Satands.
Assim, ja aqui, em Genesis 3, temos a promessa do Redentor que viria.
"E to [a serpente — isto 6, o diabo] the feriras o calcanhar [o calcanhar do
"descendente" ou "semente" da mulher — isto 6, o calcanhar de Cristo]." A ima-
gem aqui é a de urn homem pisando na cabega de uma serpente para esmaga-la,
mas tendo o seu calcanhar ferido nesse processo. Assim, o Redentor que havia
de vir sofreria no processo de obter vitoria sobre Satanas (pensamos nos sofri-
mentos de nosso Senhor, particularmente sobre a cruz), mas ele venceria no final.
Nesta bela passagem vemos as maravilhas da grata de Deus. Genesis 3.15,
que, na verdade, 6 parte da maldicao de Deus sobre a serpente, contem, em
germe, tudo o que Deus pretende fazer para a redencao daqueles cujos primei-
154 CRIADOS A JMAGEM DE DEUS
ros pais cafram em pecado. Todo o restante da Bfblia sera um desvendar do
conteudo dessa promessa maravilhosa.
Encontramos no versiculo 16 o juizo de Deus sobre a mulher. Uma das
conseqiiencias do primeiro pecado para a mulher é a dor ao dar a luz filhos: "E a
mulher disse: Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da tua gravidez; em meio
de dores daras a luz filhos". A gravidez sera, obviamente, uma bencao — um
cumprimento do mandato dado aos nossos primeiros pais para que fossem
fecundos e se multiplicassem (Gn 1.28). Mas a dor e o desconforto do parto
sao conseqiiencia da Queda. A segunda metade do julgamento diz: "o teu de-
sejo sera para o teu marido, e ele te governard". "Desejo" significa provavel-
mente aqui o ardor da esposa pela comunhao sexual corn o seu marido; esse
desejo continuard a despeito da previsibilidade das dores de parto.
A afirmacdo "ele te govemard" nos diz que uma das conseqiiencias da Que-
da, para a mulher, é que ocupara uma posicao de subordinagdo em relagao ao
seu marido. A palavra traduzida como "govemara" (mashabtambem é empre-
gada para descrever a autoridade exercida por um monarca. Por causa da
queda em pecado, a relacao harmoniosa entre marido e mulher se corrompeu.
Ao inves daquele relacionamento peculiar em que, ainda que o marido seja o
cabega da mulher e que ele ocupe um papel de lideranca no casamento, sua
mulher, nab obstante, permanece ao seu lado numaposicAo de igualdade, como
"uma auxiliadora... idonea" (Gn 2.20), a mulher agora estard subordinada ao
seu marido em uma condicao de servidao ou subservioncia. Por causa do peca-
do, o governo do marido sabre a esposa tenders a se tornar tiranico e domina-
dor. Nas culturas de muitos povos orientais, onde as esposas tem sido tratadas
quase que como escravas pelos seus maridos, vemos uma das piores formas
desse "governo".3 Na comunidade crista, rao é necessario dizer, devemos ten-
tar reverter esse resultado da Queda e procurar restaurar o relacionamento
entre esposo e esposa conforme o proposito divino original.
Vamos, agora, ao juizo de Deus sobre o homem, encontrado em Genesis
3.17-19. Embora o julgamento pronunciado nesses versiculos seja dirigido ao
homem, é significativo observar que todos os elementos desse julgamento se
aplicam a mulher tanto quanto ao homem. Primeiro, Deus diz a Adao: "maldita é
a terra por tua causa" (v. 17). Essa é segunda maldicao: a natureza sofre
juntamente corn a humanidade; deve compartilhar corn a humanidade as conse-
qtiencias do pecado. Dessa forma, os seres humanos sera° continuamente le,m-
brados de sua transgressao contra Deus e de sua necessidade de arrependi-
Cf. G. Ch. Aalders, Genesis, vol. 1, trad. de W. Heynen (Grand Rapids: Zondervan, 1981), pp. 108-109.
A DISSEMINA00 DO PECADO 155
mento. A maldicao da terra significa que, sob determinado aspecto, Deus retira o
seu favor de sobre a terra — embora, como Calvino nos lembra, nao o fard
totalmente.4Asseguram-nos isso passagens como: "a terra esta cheia da bon-
dade do SENHOR" (S133.5), e: "as suas ternas misericordias permeiam todas
as suas obras" (SI 145.9). A Escritura descreve o efeito dessa maldicao da
terra de tres maneiras, as quais veremos a seguir:
1. "Em fadigas obteras dela [da terra] o sustento durante os dias da tua
vida" (v. 17). 0 termo traduzido como "fadigas" ('itsabon)e o mesmo que foi
traduzido como "dores" no verslculo 16, onde se narra o julgamento de Deus
sobre a mulher. Como a mulher havera de gerar filhos corn dor, assim o homem
hayera de comer o fruto da terra por meio do trabalho penoso. Ao passo que o
trabalho de Ado no jardim antes da Queda era excepcionalmente prazeroso e
agradavel, de agora em diante o seu trabalho (e o dos seus descendentes) seria
desagradavel, seguido de cansaco e tribulacao.5 Embora esse trabalho penoso
sej a um dos resultados da Queda, tais palavras implicam ainda uma WO°.
Pois os seres humanos continuarao a se alimentar do que o solo produz; suas
vidas sera° sustentadas. Podemos, portanto, destacar dois elementos nesse
julgamento de Deus: (1) continuidade em relacao a ordem original — o homem
deve continuar a cultivar a terra, que continuard provendo aliment° para o ho-
mem; (2) descontinuidade em relacao a ordem original — o trabalho do homem
agora sera visitado pelo sofrimento. Observamos uma situacao semelhante quan-
to ao julzo sobre a mulher, em que houve, em relacao a ordem original, continui-
dade — a mulher continuaria a dar a luz filhos — mas tarnbem descontinuidade — o
parto se tornaria agora muito doloroso. No julgamento sobre o homem e a
mulher, portanto, podemos ver igualmente bencao e punka°.
2. "Ela [a terra] produzird tambern cardos e abrolhos" (v. 18). Haveriam de
surgir, agora, especies indesejaveis de plantas e ervas daninhas se multipli-
cariam, tornando o cultivo do solo muito mais dificil do que antes. Observa-
mos que, aqui, se mencionam apenas alguns dos aspectos da maldicao que se
aplicam a agricultura. Mas, certamente, entre as conseqUencias, tambern de-
vem ser incluidos os desastres naturais — enchentes, terremotos e coisas que
tais e germens de doencas, de viroses e insetos que espalham doencas.
Calvino, sobre isso, disse o seguinte: "A ordem da natureza toda foi subver-
tida pelo pecado do homem".6 Paulo tambem, vale lembrar, nos falou da
7Por exemplo, Celestus, Socinus e Karl Barth (ver A Blblia e o Futuro [Sao Paulo: Editora Cultura
Crista, 1989, cap. 7])
Englobava necessariamente tambem a morte espiritual — a ruptura da comunhao do homem corn
Deus. Em illtima andlise, a menos que interviesse a graca de Deus, seguir-se-ia a morte eterna — isto é, a
separacao eterna do favor de Deus na vida por vir (ver Ibid., p. 98).
9 Por exemplo,. Herman Bavinck, Dogmatiek, 3:159; Abraham Kuyper, De Gemeene Gracie, vol. 1
(Amsterdam: Haveker & Wormser, 1902), pp. 209-17; G. Ch. Aalders, Genesis, 1:93, 110-11; L.
Berkhof, Systematic Theology, ed. rev. e aumentada (Grand Rapids: Eerdmans, 1941), p. 670.
Geerhardu Vos, Biblical Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1948), pp. 48-49. Outros exemplos
biblicos deste use da expressao citada por Vos sao 1Rs 2.37 e Ex 10.28.
A DISSEMINAcA0 DO PECADO 157
As palavras de Gn 3.19 indicam que, de agora em diante, a morte no senti-
do fisico seria inevitavel para a rata humana. Do estado "posso nao morrer"
(posse non mori) a rap humana passou para um estado de "nao posso nao
morrer" (non posse non mori).11
Deverfamos acrescentar que, uma vez que, segundo a Escritura, o significa-
do mais profundo da vida é a comunhao com Deus, o significado mais profundo
da morte precisa ser o rompimento da comunhao com Deus que o homem
desfrutou antes da Queda, e esse rompimento é a morte espiritual. Por conse-
citiencia, a morte que sobreveio ao homem e a mulher na Queda incluiu neces-
sariamente a morte espiritual — nesse sentido, poderia se dizer que nossos pri-
meiros pais morreram imediatamente quando o primeiro pecado ocorreu. Como
umaconseqiiencia adicional, cada ser humano desde a Queda é nascido em um
estado de morte espiritual (cf. Ef 2.1-2). Com a Queda, a raga humana tambem
ficou sujeita ao que chamamos de morte eterna — isto é, a separacao eterna da
presenca amorosa de Deus.
Se a grata de Deus nao tivesse intervindo, a morte em todos os tres senti-
dos — fisico, espiritual e eterno — teria sido o destino de todo ser humano,
inclusive o de nossos primeiros pais. Mas agradecemos a Deus que sua grata
interveio, comecando corn os nossos primeiros pais. Pois, ja para eles, como
vimos, Deus deu sua graciosa promessa-mae e nao temos nenhuma raza'o para
duvidar de que Adao e Eva aceitaram e creram nessa promessa.
Resta ainda algo a dizer sobre a ultima conseqiiencia do pecado menciona-
do neste capitulo: a expulsao de nossos primeiros pais do jardim do Eden.
Encontramos o relato disso nos versiculos 22-24:
Entao, disse o SENHOR Deus: Eis que o homem se tornou como um de nos, conhece-
dor do bem e do mal; assim, que nao estenda a mao, e tome tambem da arvore da vida, e
coma, e viva eternamente. 0 SENHOR Deus, por isso, o Iancou fora do jardim do
Eden, a fim de lavrar a terra de clue fora tornado. E, expulso o homem, colocou queru-
bins ao oriente do jardim do Eden e o refulgir de uma espada que revolvia, para
guardar o caminho da arvore da vida.
Alguns eruditos da Biblia creem que a afirmacao de Deus, "0 homem agora
se tornou como um de nos, conhecedor do bem e do mal", d uma especie de
santa ironia.12 Webster define ironia como "o use de palavras para expressar
algo diferente e especialmente o oposto do sentido literal".'3 Isto é, Deus, de
uma forma um tanto sarcastica, esta comunicando a Adao e Eva que eles, de
14 Keil and Delitzsch, Biblical Commentary on the Old Testament, vol. 1, The Pentateuch, trad. de
James martin (Grand Rapids: Eerdmans, 1951), pp. 106-7; Aalders, Genesis, 1:112-13; Leupold,
Genesis, 1:180.
Muitos eruditos da Bfblia, tanto antigos como modernos, veem nessa refer6ncia igualmente A
singularidade ("Deus disse") e a pluralidade ("urn de nes") de Deus uma alusao do que mais tarde seria
desenvolvida como a doutrina da Trindade, encontrando aqui analogia as palavras de Gn 1.26: "Tam-
bem disse Deus: Facamos o homem...".
16 Poderia se dizer que, ao dar ouvidos i1 serpente, nossos primeiros pais estavam aceitando a perversho da
imagem de Deus feita por Satands. Eles estavam tentando tornar-se "iguais a Deus" ao modo de
Satands.
" 0 homem devia conhecer o bem e o mal do modo como Deus os conhece: a saber, abstendo-se do
mal. Ao haves disso, ele agora conhecia o bem e o mal de urn modo errado: cometendo mal.
A DISSEMINKAO DO PECADO 159
dar o dia em que receberemos de Cristo, na ressurreicao final, urn novo corpo
que sera "igual ao corpo de sua glOria" (Fp 3.21). E nos que estamos em Cristo
tambem agradecemos a Deus por podermos ter a expectativa de, na nova ter-
ra, na vida por vir, corner novamente daquela arvore da vida, da qual nossos
primeiros pais foram banidos (Ap 22.2).
A UNIVERSALIDADE DO PECADO
Em vista da Queda, o pecado se tornou universal; com excegao de Jesus
Cristo, nenhuma pessoa que tenha vivido em qualquer tempo nesta terra esteve
isenta do pecado. Esse triste fato é reconhecido ate mesmo por aqueles que
nao seguem o Cristianismo nem acreditam na Bfblia.
O reconhecimento de que ha alguma coisa errada corn a natureza moral do
homem manifesta-se em todas as religioes. Nas religities primitivas, muitas ofertas
— dentre as quais inclusive sacrificios humanos — sao feitas para propiciar os
deuses pelas transgressoes humanas. 0 Alcorao, livro sagrado do Islamismo,
admite a pecaminosidade universal do homem, definindo tal pecaminosidade
como violacao da vontade de urn deus pessoal. No Hinduism°, nao se confessa
urn deus pessoal e, por isso, o pecado é considerado uma ilusao; todavia, os
livros sagrados do Hinduism° dedicam bastante atencao ao pecado, prescre-
vendo muitas penitencias pelas quais o pecado pode ser removido. 0 Budismo
nega inteiramente a existencia de Deus; afirma, contudo, a universalidade do
pecado — para o budista, o pecado consiste essencialmente no desejo, seja
qualquer desejo, ou particularmente o desejo egoista.
A maioria dos filosofos tambem afirma que a inclinacao para o mal esta
presente em todos os seres humanos. Plata°, por exemplo, ensinou que as
pessoas erram quando seguem seus apetites e paixoes, ao inves de serem go-
vernadas por seus intelectos. Immanuel Kant pensava que ha em todas as pes-
soas urn mal radical (das radikale que os conduz invariavelmente a
praticar o erro.
O impulso inevitavel do homem para praticar o erro tambem é reconhecido
na literatura. Romancistas renomados tais como Fyodor Dostoyevski, Aldous
Huxley, George Orwell, William Faulkner, Albert Camus, Graham Greene e
William Golding, unanimemente descrevem a natureza humana como funda-
mentalmente defeituosa ou imperfeita e inclinada a varias formas de mal, hipo-
crisia e pecado. Dois livros recentes (nao-ficcao) defendem esse mesmo ponto
de vista. Em Whatever Became of Sin? [0 que aconteceu corn o pecado?],"
0 PECADO ORIGINAL
Devemos abordar agora a questa° do pecado original, que sempre foi urn
aspecto essencial da doutrina crista do homem. Primeiro, devo indicar a neces-
sidade de distinguirmos entre pecado original e pecado atual. Pecado original é o
estado e condicao pecaminosos em que todo ser humano nasce; por pecado
atual, contudo, entende-se todos os pecado por acao, palavra ou pensamento
que o ser humano comete. Voltaremos depois a uma analise mais completa do
pecado atual.
Usamos a expressao "pecado original" por duas razeies: (1) porque o pecado
tern a sua origem na epoca da origem da raga humana e (2) porque o pecado que
162 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
chamamos "original" é a fonte de nossos pecados atuais (embora nao de um
modo que nos isente de responsabilidade pelos pecados que cometemos).
Antes de eu expor a doutrina do pecado original, temos de salientar que
muitos teOlogos recentes rejeitam essa doutrina no sentido tradicional. 0 ensino
tradicional da igrej a crista é que a Queda foi urn evento historic° pelo qual
Ada° e Eva rebelaram-se contra Deus comendo do fruto proibido. Por causa
desse primeiro pecado, todos os descendentes de Ada° e Eva nascem agora
corn uma natureza corrompida e encontram-se debaixo de uma sentenca de
condenacdo por causa de seu vinculo com Adao, que, ao cometer o primeiro
pecado, agiu como cabeca e representante deles. No entanto, teologos moder-
nos tem ensinado de outra maneira.
Ja fiz referencia a Karl Barth (1886-1968), cuja negacao da Queda como
evento historic° foi discutida acima,2° mas cito aqui duas afirmacOes que mos-
tram corn clareza a sua posicao:
No que se refere a desobediencia e depravacao humana, nao ha urn "antes" em que o
homem ainda nap era urn transgressor e, como tal, inocente.21
Nunca houve uma idade de ouro. Mao faz nenhum sentido relembra-la saudosamente.
0 homem primitive ja era pecador "desde o princfpio.22
" Emil Brunner, The Christian Doctrine of Creation and Redemption, trad. de Olive Wyon (Philadel-
phia: Westminster Press, 1952), p. 104.
27 Philip E. Hughes, Scripture and Myth (London: Tyndale Press, 1956), p. 7.
" The Nature and Destiny of Man, vol. 1 (New York: Scribner, 1941), pp. 267-68.
29 "Reinhold Niebuhr," em Creative Minds in Contemporary Theology, org. por Philip E. Hughes
32 A New Catechism: Catholic Faith pot. Adults. trad. de Kevin Smyth (New York: Herder and Herder,
1967), pp. 267, 269.
Glen Rock: Newman Pres, 1968, trad. de John A. Ter Haar (publicado originalmente em holand8s em
1965), p. 18.
34 New York: Sheed and Ward, 1969, Dorothy Thompson (publicado originalmente em alemao em
1966).
35 Ibid., pp. 106-7. Devemos observar, contudo, que a reinterpretagAo da doutrina do pecado original
encontrada nesses autores mais recentes ndo 6 de todo nova. JA se encontra, por exemplo, em F. R.
Tennant, The Origin and Propagation of Sin (Cambridge: Cambridge University Press, 1902). Ten-
A DISSEMINAc.Ao DO PECADO 165
Gracas a tal reinterpretacao, essa doutrina, ainda que sob o rOtulo de "pe-
cado original", no mais descreve o pecado original. 0 que os autores mencio-
nados acima entendem por pecado original é, na verdade, pecado atual: o se-
guir o exemplo de "Adao" ou o pecado deliberado dos membros da raga hu-
mana desde o principio. Poderfamos, entao, perguntar: Mas por que os seres
humanos invariavelmente pecam? Como podemos, entao, explicar a deploravel
situacao reconhecida ate por Emil Brunner, a saber, que o pecado é uma "forca
dominante [na vida humana], e... que todos os homens estao unidos na solida-
riedade do pecado... ?"36
Abordei, antes, a questa° da historicidade da Queda e da interpretacao da
narrativa da Queda encontrada em Genesis 3. Nessa discussao, defendi a po-
sicao de que a narrativa da Queda realmente descreve urn evento ocorrido na
Historia e que os detalhes da narrativa nao deveriam ser alegorizados, mas
entendidos literalmente. Fundamentei essa interpretacao, observando o ditado
bem-conhecido de que a Escritura é a melhor interprete da Escritura, basica-
mente nos ensinos do Novo Testamento, particularmente naqueles encontrados
nos escritos de Paulo, que claramente indicam uma Queda historica.
Os autores mencionados acima, contudo, baseiam a sua interpretacao da
doutrina do pecado original fundamentalmente na evidencia das ciencias naturais a
respeito da idade da terra, da idade do homem e da natureza do homem primiti-
vo. Contra este metodo de interpretar a Escritura, a posicao Reformada hist&
rica tern sido a de que o contetido da fe crista nab pode ser determinado pelos
resultados da ciencia natural, independentemente do valor que esses resultados
possam ter, mas precisa ser extraldo fundamentalmente da propria Biblia.
E, obviamente, muito importante que nos mantenhamos informados a res-
peito dos crescentes resultados da investigacao cientifica nas areas de Paleon-
tologia, Geologia, Biologia e Antropologia fisica. E ja aconteceu de nosso en-
tendimento da Biblia de fato ser modificado por conclusOes provenientes da
ciencia natural — haja vista a revolucao copernicana do seculo XVI. Por causa
da pesquisa cientifica recente, a maioria dos eruditos cristaos agora admite que a
terra é muito mais antiga do que antigamente se acreditava e que a presenca do
homem na terra é muito anterior ao previamente se pensava.37 Mas isso nao
nant, como os demais autores ja citados, rejeita a historicidade da Queda e da doutrina tradicional do
pecado original corn base na concepcao evolucionista da origem do homem.
36 Doctrine of Creation, p. 103.
" Estimativas da idade do homem variam de 30.000 a 50.000 anos, ou mais. Ver Bernard Ramm,
Offense to Reason (San Francisco: Harper & row, 1985), p. 113. Ver tambem William Smalley e Marie
Fetzer, Modern Science and Christian Faith (Wheaton: Van Kampen, 1950) pp. 185-87.
166 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
significa, de forma alguma, que tais conclusOes (obviamente experimentais por
natureza) a respeito da idade da terra e do homem contradigam os ensinos da
Biblia. Como diz John Jefferson Davis, "as concepcOes das origens do homem
conforme apresentadas em Genesis e pela Antropologia [fisica], quando ambas
sac, propriamente entendidas, nab estao em contradicdo, mas formam um todo
complementar".38
Uma vez que o Novo Testamento ensina claramente que a queda do ho-
mem foi urn evento na Historia e que houve de fato um primeiro casal humano
cujo pecado afetou toda a historia subsequente, é imperioso que continuemos a
sustentar a doutrina hist6rica do pecado original. As dificuldades que a pesquisa
cientifica moderna tem nos colocado com relacao a narrativa do Genesis39 de-
vem, portanto, ser consideradas como problemas corn os quais temos de con-
viver, na esperanca de que solucOes adequadas sejam urn dia encontradas,
antes do que uma informacao que remova o claro ensino da
Ao avancarmos, portanto, para a exposicdo da doutrina do pecado origi-
nal, é necessario lembrar o comentario de Herman Bavinck: "A doutrina do
pecado original é um dos mais importantes mas tambern dos mais dificeis t6pi-
cos ern dogrnatica".4' A razdo pela qual essa doutrina é tao importante é dupla:
(1) a Biblia a ensina, e: (2) somente quando compreendemos qual a condicao do
homem por natureza (a saber, a parte da grata de Deus) é que podemos
entender sua necessidade de renascimento e de completa renovacao efetuada
pela redengdo em Cristo.
A doutrina do pecado original nos diz quais sao os efeitos do pecado de
Ada° para nOs.42 Por causa do pecado de Ada°, cada ser humano agora nasce
em estado pecaminoso. Trataremos mais adiante, neste capftulo, da questao de
como o pecado de Adao é transmitido a nos.
0 pecado original inclui duas coisas: culpa e corrupolo. A culpa é um
38 "Genesis, Inerrancy, and the Antiquity of Man", in: Inerrancy and Common Sense, org. por Roger
Nicole e J. Ramsey Michaels (Grand Rapids: Baker, 1980), pp. 158-59.
" Um desses problemas, por exemplo, 6 o "da transiedo de Genesis 3 para Genesis 4, onde os descen-
dentes imediatos de Addo ja exibiam urn nfvel altamente desenvolvido de cultura" (Ibid., 143). Uma
resposta 6 que Moises descreveu "o ambiente do primeiro homem empregando a descried° do homem
antigo comum nos tempos de Moises" (Davi Holwerda, "The Historicity of Genesis 1-3", Reformed
Journal 17, n. 8 fOutubro 1967]: p. 13). Ver o restante do artigo para maiores detalhes nessa questa°. 4"
Sobre esse tema, ver tambem Bernard Ramm, Christian View, e Philip E. Hughes, Christianity and the
Problem of Origins (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1964).
4' Dogmatiek, 3:89,
41 Embora Eva tenha pecado no paraiso tanto quanto Addo, o pecado original 6 particularmente
associado ao pecado de Ada° porque ele era o primeiro cabeca da rap humana. Quando Ada° pecou,
agiu como nosso representante. Mais adiante, o tema da primazia de Addo como cabeca da humanidade
sera tratado em pormenores.
A DISSEMINA00 DO PECADO 167
conceito judicial ou legal que descreve a relacdo de uma pessoa corn a lei —
neste caso, especificamente corn a lei de Deus. A culpa é a condicdo de se
merecer a condenacdo ou de se estar sujeito a punicdo porque a lei foi violada.
Quando dizemos que o pecado original inclui culpa, ndo queremos dizer corn
isso que cada um de nos é considerado pessoalmente responsavel pelo que
Add() fez. Voce e eu nab podemos ser considerados diretamente responsaveis
por algo que uma outra pessoa fez. Mas, pela doutrina do pecado original,
entende-se que estamos compreendidos na culpa do pecado de Add° porque ele
agiu como nosso representante quando cometeu o primeiro pecado. Ja men-
cionei, acima,43 que, embora nao possamos mais defender o ensino de que
Deus fez urn pacto de obras corn o homem antes da Queda, devemos manter a
verdade de que Add° foi nosso cabeca e representante.
0 apostolo Paulo, particularmente, ensina que Addo é o nosso represen-
tante. Em 1 Corintios 15, Paulo esboca urn contraste entre Addo e Cristo — urn
contraste, contudo, que tambem envolve uma certa similaridade. Embora os
efeitos de nossos vineulos corn Addo e corn Cristo sejam diversos, todavia
igualmente Addo e Cristo sdo descritos como cabecas por meio de quern a
desventura ou a Ventura que cada qual encerra nos sobrevem: "Porque, assim
como, em Addo, todos morrem, assim tambem todos sera() vivificados em Cristo"
(v. 22). Paulo apura o paralelo entre Addo e Cristo no versiculo 45: "Pois assim
esta escrito: 0 primeiro homem, Addo, foi feito alma vivente. 0 ultimo Addo,
porem, é espirito vivificante". Quando Paulo, aqui, chama Cristo de "o Ultimo
Addo" (eschatos Adam), infere que a relacdo de Addo para conosco é andlo-
ga a de Cristo. Addo e nosso cabeca sob certo aspecto, enquanto Cristo é
nosso cabeca sob outro aspecto.
0 fato de que Addo foi nosso cabeca e representante é desenvolvido de
forma mais completa em Romanos 5.14-18. No versiculo 14, Paulo chama
Add° de "figura [typos] daquele que havia de vir" (v. 14, RC; RA: "o qual
prefigurava aquele que havia de vir"). Como poderia Add° ser um tipo de Cris-
to? Obviamente ndo no sentido em que ele agiu como urn libertador do seu
povo (como fez Moises, por exemplo, que foi um tipo de Cristo), nem no sen-
tido de que Add() foi um exemplo segundo o qual devessemos modelar a nossa
vida. Addo foi urn tipo de Cristo no sentido de que ele, igual a Cristo, foi nosso
cabeca e representante; o que ele fez afetou a todos nos que estamos nele — ou
seja, todos os seres humanos. No versiculo 16, Paulo diz: "Porque o julgamen-
to derivou de uma so ofensa [o pecado de Addo], para a condenacdo". Aqui,
44 0 texto grego, aqui, 6 dificil de ser traduzido. Uma traducao literal seria: "Assirn, entao, portanto,
como por uma ofensa [transgressao] a todos os homens para a condenagao...". As palavras "veio o
juizo" (RC [em italico] e RA) nao constam no original mas procuram tornar o sentido mais clam
45
Agostinho chamou a concupiscencia envolvida no pecado original tanto de filha como de mae do
pecado (On Marriage and Concupiscense, 1.27).
* N.T.: "generalizada" — nao so sentido de "comum a todos" mas de "que se propaga interiormente a
todas as partes", como em "infeccao generalizada". No original, pervasive.
A DISSEMINA00 DO PECADO 169
eventualmente poderia vir a ser; (2) que pessoas ndo-regeneradas ndo tenham
uma consciencia por meio da qual possam distinguir entre o bem e o mal; (3)
que pessoas ndo-regeneradas se entregardo inevitavelmente a todo tipo conce-
Wye' de pecado; ou (4) que as pessoas ndo-regeneradas sejam incapazes de
realizar certas awes boas e uteis na opinido de outros.46 Visto que para muitas
pessoas "a depravacdo total" sugere esses entendimentos erroneos, eu prefiro
usar o termo "depravacdo generalizada".
Deprava(do generalizada significa, portanto, (1) a corrupcdo do pecado
original que se propaga e afeta todas as partes da natureza humana: da razdo e
vontade das pessoas aos seus apetites e impulsos; (2) por natureza, o homem
tido tern o amor a Deus como principio motivador de sua vida.
Qual é a prova da Escritura para a doutrina da depravacdo generalizada? Na
verdade, essa doutrina é subjacente a todo o ensinamento do Novo Testa-
mento. A afirmacdo de Jesus de que "se alguern ndo nascer de novo, ndo pode
ver o reino de Deus" (Jo 3.3), suptie que os seres humanos, em seu estado
natural e irregenerado, nao podem sequer ver o reino de Deus, quanto mais
entrar nele. Toda a mensagem do Novo Testamento é dirigida a pecadores, os
quais, por natureza, ndo amam a Deus, ndo amam uns aos outros, mas que
precisam ser radicalmente transformados pelo Espirito Santo para que possam
fazer o que é agradavel aos olhos de Deus.
Vejamos, agora, determinadas passagens. Urn texto do Antigo Testamento
que ocorre nesse contexto é Jeremias 17.9: "Enganoso 6 o coracao [o mais
profundo interior do ser humano], mais do que todas as coisas, e desesperada-
mente corrupto, quem o conhecera?" Duas passagens dos evangelhos sao rele-
vantes corn relacdo a esse topic°. Jesus, em uma disputa corn os fariseus quan-
to a necessidade de lavar as mdos antes de corner, explica que nab 6 o que
entra no homem, mas o que sai dele que o contamina: "Porque de dentro, do
coracao dos homens, 6 que procedem os maus designios, a prostituicdo, os
furtos, os homicidios, os adulterios, a avareza, as malicias, o dolo, a lascivia, a
invej a, a blasfernia, a soberba, a loucura. Ora, todos estes males vem de dentro e
contaminam o homem" (Mc 7.21-23). Discutindo corn os judeus no contexto da
cura de urn homem no dia do sabado, Jesus disse: "sei, entretanto, que ndo
tendes ern vos o amor de Deus" (Jo 5.42).
Uma serie de passagens nas epistolas paulinas ensina a doutrina da depra-
vagao generalizada. Uma delas 6 Romanos 7.18: "Porque eu sei que em mim,
46 E preciso lembrar que existe a graga comum, pela qual Deus refreia o pecado nos irregenerados em
certa medida (ver Capftulo 10).
170 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
isto é, na minha came, ndo habita bem nenhum, pois o querer o bem esta em
mim; ndo, porem, o efetua-lo". Devemos observar aqui que, embora nem sem-
pre use a palavra came em urn sentido negativo, Paulo a emprega caracteristi-
camente para denotar o instrumento volitivo do pecado. Nessa passagem e na
que é citada logo abaixo, portanto, came ndo se refere ao corpo fisico do
homem mas designa, isto sim, a sua natureza toda enquanto dominada ou escra-
vizada pelo pecado. Esse conceito de came, em outras palavras, é precisamente o
modo biblico para descrever o que eu chamei de depravaedo generalizada.
A outra passagem que fala da came é Romanos 8.7a: "Por isso o pendor da
came é inimizade contra Deus". Esse texto, como se pode ver, confirma o se-
gundo aspecto da definigdo, dada acima, de depravaedo generalizada, a saber,
que o homem por natureza ndo ama a Deus, mas é seu inimigo.
Encontramos outra descried° vivida da depravagdo generalizada em Efe-
sios 4.17-19:
Isto, portanto, digo e no Senhor testifico que nao mais andeis como tambem andam os
gentios, na vaidade dos seus pr6prios pensamentos, obscurecidos de entendi-
mentos, alheios a vida de Deus por causa da ignorancia em que vivem, pela dureza de
seu coracao, os quais, tendo se tornado insensfveis, se entregaram a dissolucdo
para, corn avidez, cometerem toda sorte de impureza.
Em outra epistola, contudo, Paulo nos diz que mesmo aqueles que agora
creem estiveram uma vez no mesmo estado de depravagdo em que se encon-
tram tais gentios impios:
Ele vos deu vida estando Os [isto é, os cristaos de Efeso ou, possivelmente, de toda a
Asia Menor] mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora,
segundo o curso deste mundo, segundo o principe da potestade do ar, do espfrito que
agora atua nos filhos da desobediencia; entre os quais tambem todos nos andamos
outrora, segundo as inclinacCies da nossa came, fazendo a vontade da came e dos
pensamentos; e eramos, por natureza, filhos da ira, como tambem os demais. (Ef. 2.1-3)
Sobre a questdo de se o crente ainda deve ser chamado de "totalmente depravado", ver meu livro 0
Cristdo Toma Consciencia do Seu Valor (Sao Paulo: Editora Cultura Crista, 1987), caps. 6 e 7.
" Visto que a expressao "incapacidade total" sugere para muitas pessoas que as pessoas irregeneradas
nao podem fazer o bem sob forma alguma e que isso nao e o que a expressao significa, prefiro dizer
"incapacidade espiritual".
172 CR!ADOS A IMAGEM DE DEUS
Nicodemos precisava ouvir que uma pessoa nao pode ver nem entrar no reino
de Deus inaugurado por Jesus a nao ser que passasse por uma mudanca radi-
cal, uma mudanca chamada aqui de urn novo nascimento. Em Joao 6.44, Jesus
diz a alguns judeus que estavam discutindo corn ele: "Ninguem pode vir a mim
se o Pai, que me enviou, nao o trouxer". Jesus expressou, assim, em palavras
vividas, a incapacidade de os seres humanos voltarem-se para Cristo por suas
proprias forcas. Na alegoria da videira e dos ramos, Jesus Cristo tambem des-
creve a incapacidade do homem de produzir fruto espiritual sem ele:
Permanecei em mim, e eu permanecerei em vos. Como nao pode o ram o produzir fruto de
si mesmo, se nao permanecer na videira, assim, nem v6s o podeis dar, se nao
permanecerdes em mim.
Eu sou a videira e v6s os ramos. Quem permanece em mim, e eu nele, esse cid muito
fruto; porque sem mim nada podeis fazer (Jo 15.4-5).
" 0 iermo "homem natural" como empregado aqui significa a pessoa irregenerada.
A DISSEMINACAO DO PECADO 173
um modo mais impressivo de descrever a nossa impotancia espiritual do que
dizer que nos somos, por natureza, espiritualmente mortos; precisamente isso é o
que Paulo diz, em Ef 2.4-5, sobre o antigo estado dos crentes: "Mas Deus,
sendo rico em misericOrdia, por causa do grande amor corn que nos amou, e
estando nos mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, —
pela grata sois salvos".
Como vimos, a Escritura tern muito a dizer a respeito do pecado original.
Todavia, mesmo como crentes, freqUentemente deixamos de enfatizar esse en-
sino. Temos de reconhecer a necessidade de urn conhecimento maior da dou-
trina do pecado original. Como Philip Hughes diz,
0 pecado original, por mais misteriosa que seja a sua natureza, nos diz que a realidade do
pecado 6 mais profunda do que o mero cometimento exterior de atos pecaminosos... Faz-
nos saber que existe uma raiz interior de pecaminosidade que corrompe a verdadei-
ra natureza humana e da qual brotam seus atos pecaminosos. Igual a urn veneno mortal, o
pecado penetrou e infectou o verdadeiro centro do ser humano: dal sua necessida-
de de uma completa experiacia de renascimento pela qual, pela grata de Deus em
Cristo Jesus, efetua-se a restauracao da sua verdadeira humanidade."
A PROPAGACAO DO PECADO
Acima, neste capitulo, examinamos a questao da primazia de Adao como
cabeca e o fato de permanecermos, todos, debaixo de condenacdo por causa do
pecado de Add°. A questdo que temos de responder agora é a seguinte: Qual
e a natureza precisa da relacdo entre Adao e os seus descendentes? De que
modo a pecaminosidade e a culpa de Add° foram transmitidas a nos?
Varias respostas foram dadas a essa dificil pergunta. Alguns teologos ne-
gam que haja qualquer conexa'o entre o pecado de Adao e os nossos proprios
pecados. 0 defensor mais proeminente dessa ideia foi Pelagio, um monge e
teologo ingles que se estabeleceu em Roma por volta do ano 400 A. D.. Pela-
gio e seus seguidores eram da opiniao de que nao ha uma relacao necessaria
entre o pecado de Adao e o dos seus descendentes. Adao foi criado neutro:
nem born nem mal. 0 homem hoje nasce na mesma condicao. Nao existe peca-
do original; nao existe transmissao de culpa, como tambem de corrupcao, des-
de Adao ate nos. 0 pecado nao é uma condicao em que se nasce; ha somente
atos pecaminosos, e esses atos sempre tem um carater pessoal. A vontade,
5° "Another Dogma Falls", Christianity Today 13, n. 17 (Maio 23, 1969): p. 13. Essa necessidade
tambern d afirmada em Thomas M. Gregory, "The Presbyterian Doctrine of Total Depravity," em
Soli Deo Gloria, A Festschrift to John H. Gerstner, org. par R. C. Sproul (Philadelphia: Presbyterian
and Reformed, 1976), pp. 36-54.
174 CR1ADOS A IMAGEM DE DEUS
corn a qual os seres humanos sao dotados, é inteiramente livre; os homens
podem praticar o bem ou o mal, o que preferirem. Quando o ser humano co-
mete urn erro, sua natureza nao 6 afetada; mais tarde, é capaz de fazer o que 6
certo tanto quanto o era antes de cometer o erro. Como uma porta de vaivem,
que se abre para dentro ou para fora, o homem sempre volta a posicao neutra.
Pelagio disse ate que uma pessoa pode, se quiser, guardar os mandamentos de
Deus sem pecar; a Escritura, alegou, aponta para muitos exemplos de vidas
irrepreensiveis.
A que, entao, Pelagio atribui a universalidade do pecado? A imitacao. Adao
deixou mau exemplo aos seus descendentes. Todos estamos inclinados a imitar
os maus exemplos de nossos pais, irmaos, irmas, esposas ou maridos, amigos e
conhecidos. Esse 6 o modo pelo qual o pecado 6 propagado de geragao em
geracao e de uma pessoa a outra.
Em outras palavras, os seres humanos nao precisam ser regenerados ou nas-
cer de novo a fim de fazerem o que 6 agradavel a Deus; des possuem essa
capacidade por natureza. A grata divina e concebida por Pelagio como pura-
mente exterior. Grata, para ele, nao 6 uma Ka° interior, motivadora, do Espirito
Santo, que conduz nossa vontade para o que é born, mas consiste unicamente de
dons exteriores e faculdades naturais, tais como a natureza racional e o livre-
arbitrio do homem, a revelacao da lei de Deus na Escritura e o exemplo de Cristo.51
A concepgao pelagiana do homem era muito deficiente; de fato, a igrej a a
rejeitou categoricamente.52 Podemos refutar seu pensamento fazendo algumas
observacCies.
Primeira, a ideia de Pelagio 6 contraria a Escritura. Romanos 5.12-21 cla-
ramente indica que ha uma ligacao absolutamente real entre o pecado de Adao e
o dos seus descendentes (a natureza exata desta ligacao sera discutida poste-
riormente neste capftulo). Em Efesios 2.3, Paulo, escrevendo a crentes, afirma:
"E eramos, por natureza, filhos da ira, como tambem os demais". Por que al-
guem deveria ser, por natureza, objeto da ira se todos os seres humanos tives-
sem nascido em um estado moralmente neutro?
Segunda, a posicao de Pelagio 6 contraria a nossa experiencia. 0 pecado
nao deixa nossa natureza imaculada mas a afeta profundamente. Alp& urn ato
' Sobre Pelagio, ver J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines (London: A. & C. Black, 1958), pp. 357-
5
61; Joseph C. Ayer, A Souce Book for Ancient Church History (New York: Scribner, 1913), pp. 457-
60; B. B. Warfield, Two Studies in the History of Dogma (New York: Christian Literature Co., 1897); John
Ferguson, Pelagius: A Historical and Theological Study (Cambridge: Heffer, 1956); e Robert F. Evans,
Pelagius; Inquiries and Reappraisals (New York: Seabury Press, 1968).
52 0 pelagianismo, que inclui as ideias de Celestus, discfpulo de Pelagio que se tornou o lfder do
movimento, foi condenado pelo Concilio de Cartago em 418 e pelo Concilio de Efeso em 431.
A DISSEMINA00 DO PECADO 175
pecaminoso, nao somos mais os mesmos. Os atos pecaminosos fluem de uma
natureza ma que, quando nao controlada, leva a habitos pecaminosos e, final-
mente, a escravizacao ao pecado. Ocorrem a memoria as palavras de Jesus:
"Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do
pecado" (Jo 8.34).
Terceira, os maus exemplos necessariamente nao corrompem. Lembre-se de
Jose no Egito e de Daniel na corte de Nabucodonosor. 0 ambiente pode oca-
sionar o pecado mas nao o causa. A raiz do pecado 6 mais profunda: esta no
coracao corrupto do homem. Uma outra id6ia insatisfatOria da transmissao do
pecado de Ada() para nos, é a chamada "imputacao mediata". Imputacao, segun-
do o use comum dessa palavra na Teologia, é um termo legal ou juridico que
significa "atribuir algo a conta de alguem". 0 termo 6 usado em tress sentidos na
Teologia crista: "Para denotar os atos judiciais de Deus (1) pelos quais a culpa do
pecado de Adao 6 imputada a sua posteridade, (2) pelos quais os pecados do
povo de Cristo sao imputados a ele, e (3) pelos quais a justiga de Cristo é impu-
tada a seu povo"." Discutiremos, aqui, o primeiro desses tress sentidos.
A ideia da imputacao mediata foi defendida primeiramente por Josue De La
Place (ou Placeus, 1596-1655) da Escola de Saumur, na Franca. Suas ideias
foram condenadas pelo Sinodo de Charenton, reunido em 1645, e pela For-
mula Consensus Helvetica, uma confissao de fe sufga publicada em1675.54
Nao obstante, as ideias de Placeus foram largamente aceitas na Franca, Ingla-
terra, Sufga e nos Estados Unidos. Na America, teologos como Samuel Ho-
pkins, Timothy Dwight e Nathaniel Emmons, da Nova Inglaterra, ensinaram
essa doutrina."
Placeus ensinou que a imputacao a nos da culpa do pecado de Adao nao foi
imediata mas mediata— isto 6, nao direta mas indiretamente, corn intermediacao
de algo. Todos nos herdamos a corrupcao pecaminosa de Adao de nossos
pais. Devido a essa corrupgao, tambem tomamos parte na culpa da queda de
Adao. Somos considerados culpados porque nascemos em urn estado de cor-
rupcao. A imputagao da culpa de Adao a nos 6, portanto, mediata: mediada
" C. W. Hodge, "Imputation", ISBE, vol. 2 (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), 812; Cf. tambhm R. K.
Johnston, "Imputation", no Evangelical Dictionary of Theology, Walter A. Elwell (Grand Rapids:
Baker, 1984), pp. 554-55.
'4 Uma traducao em ingles dessa confissao pode ser encontrada em A. A. Hodge, Outlines of Theology
(Grand Rapids: Eerdmans, 1957), pp. 656-63.
H. Bavinck, Dogmatiek, 3:88-89; Outras analises da doutrina da imputacao de Placeus podem ser
encontradas em G. F. Karl Milner, "Placeus", Realencyklopildie fur Protestantische Theologie and
Kirche, org. por J. J. Herzog, vol. 15 (Leipzig: Hinrichs, 1904), pp. 471-72; John Murray, The
Imputation of Adam's Sin (Grand Rapids: Eerdmans, 1959), pp. 42-64; G. C. Berkouwer, Sin, trad. de
P. Holtrop (Grand Rapids: Eerdmans, 1971), pp. 454-58.
176 CRIADOS A I MAGEM DE DEUS
pela corrupcao em que nascemos. E facil entender a motivacao por tras desse
pensamento. Placeus e seus seguidores queriam evitar a ideia de que Deus
imputa culpa a pessoas que nao sao culpadas. Para explicar a aparente arbitra-
riedade da imputacao do pecado de Adao a humanidade, Placeus argumentou
que a corrupcao em que nascemos é que nos torna culpados. Assim, a imputa-
cao da culpa de Adao fundamenta-se em uma "culpabilidade" que 6 nossa de
nascimento. Nao podemos aprovar essa ideia por tees razOes:
1. A corrupcao em que nascemos é uma implicacao e, portanto, uma con-
seqiiencia, do pecado de Adao; nao pode, em vista disso, ser considerada a
base da imputacao a nos do pecado de Adao. Afirmar isso é quase como dizer
que somos culpados do pecado de Adao porque todos nos temos de morrer.
2. Se a culpa de Adao é mediada a nos pela corrupcao em que nascemos,
por que Deus nao nos imputa a culpa de todos os pecados de todos os nossos
antepassados?
3. Nao ha qualquer indicacao na passagem chave em que se baseia a dou-
trina da imputacao da culpa de Adao (Rm 5.12-21) de que a imputacao da
culpa do pecado de Adao seja mediada pela nossa corrupcao. Nos versiculos
16 e 18, Paulo afirma claramente que a condenacao recaiu sobre nos por causa
de uma so transgressao de Adao; de maneira que, dizer que essa condenacao
baseou-se na depravacao pecaminosa em que nascemos é introduzir algo que
nao esta no texto.
Passaremos, agora, a duas outras ideias sobre a transmissa'o a nos do peca-
do de Adao — chamadas de "realismo" e "imputacao imediata" — as quais fazem
mais justica ao contetido biblico do que as opinioes vistas acima. Antes, porem,
pode ser proveitoso lembrar-nos que estamos diante de algo profundamente
misterioso. Simplesmente nao conseguimos entender como pecamos em Adao; a
Biblia nao o revela. Tambem nab conseguimos entender como a culpa do
pecado de Adao é imputada a n6s; a Biblia nao responde tambem a essa ques-
tao. 0 que a Biblia nos diz a que pecamos em Adao e que a culpa do primeiro
pecado de Adao é imputada a nos; e nao devemos it alem. 0 pecado permane-
ce urn misterio, nao so no que se refere a sua comissao mas tambem quanto sua
transmissao.
A ideia da relacao entre o pecado de Adao e o dos seus descendentes
comumente denominada "realismo" nab 6, absolutamente, nova. Na igreja anti-
ga, Tertuliano e Agostinho a sustentaram; mais recentemente, William G. T.
Shedd, Augustus H. Strong, S. Greijdanus e K. Schilder a defenderam.56
$6 W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. 2 (1888-94; Grand Rapids: Zondervan, sem data), pp. 181-
A DISSEMINA00 DO PECADO 177
Sucintamente, segundo esse ponto de vista, Deus originalmente criou uma
natureza humana generica que, no decorrer do tempo, dividiu-se em muitos
individuos separados. Adao, contudo, possufa a totalidade dessa natureza hu-
mana. Assim, quando pecou, toda a natureza humana pecou. Portanto, somos
todos culpados do pecado de Adao, visto que, como parte dessa natureza
humana generica, realmente cometemos o primeiro pecado nele e com ele.
Agostinho explicou isso assim:
Estavamos, pois, todos nos naquele tinico homem, visto que eramos, todos nos,
aquele unico homem que caiu em pecado... pois nao havia ainda a forma particular
criada e distribufda a Ms na qual, como indivIduos, haverfamos de viver, mas apenas a
natureza seminal ja existia, da qual haverfamos de nos propagar; e, sendo essa [a
natureza seminal] corrompida pelo pecado, presa pelas cadeias da morte e justamente
condenada, o homem nao poderia ser gerado pelo homem em nenhum outro estado."
92; A. H. Strong Systematic Theology, vol. 2 (Philadelphia: Griffith and Rowland, 1907-1909), pp. 619-
37; S. Greijdanus, Toerekeningsgrond van het Peccatum Originans (Amsterdam: Bottenburg, 1906); K.
Schilder, Heidelbergsche Catechismus, vol. 1 (Goes: Oosterbaan and Le Cointre, 1947), pp. 331-58.
57 City of God, trad. de M. Dods, Bk. 13, Chap. 14, vol. 2, in Nicene and Post-Nicene Fathers, First
Series (reimpressao; Grand Rapids: Erdmans, 1983), p. 251.
se
Uma expressAo comumente usada por aqueles que mant6m essa icleia é que nos todos esthvamos "nos
lombos de Adao" quando ele pecou.
59
Traducho latina da Biblia feita por Jer8nimo, completada em 404 A.D.
178 CR1ADOS A I MAGEM DE DEUS
Tern-se apontado uma serie de dificuldades no que diz respeito a essa ideia.
Passemos ao exame de algumas delas e vejamos se tais objecOes podem ser
respondidas.
Os que se opOe ao realismo sustentam que essa opiniao de fato nao solu-
ciona o problema da relacao do pecado de Adao e nos proprios. Mao solucio-
namos o problema assentindo que estavamos todos nos presentes em Adao
quando ele pecou, pois nao estavamos presentes nele como indivicluos, mas
como "frac6es" de uma indistinta e total natureza humana. Isso evidentemente
nao explica a nossa responsabilidade pessoal na comissao do primeiro pecado
de Adao.
Essa objecao, contudo, pode ser respondida. Hebreus 7.9-10 explica que
Levi pagou os dizimos a Melquisedeque por meio de Abraao, visto que "ainda
ele estava nos lombos de seu pai" (v. 10, RC; no grego: en to osphui tou
patros) quando Abraao encontrou-se com Melquisedeque. E claro que Levi,
bisneto de Abraao, nao estava ciente de ter pago dizimos a Melquisedeque 180
anos ou mais antes de haver nascido; nao obstante, o autor de Hebreus diz que
Levi, coin efeito, pagou dizimos a Melquisedeque. Se aceitamos o fato de que
Adao foi o pai da raga humana, como a Biblia diz que ele foi, entao todos nos
estavamos, em certo sentido, "nos lombos de Adao" quando este cometeu o
primeiro pecado.6°Embora nao possamos entender como pecamos, entao, em
Adao, assim como tambem nao podemos entender como Levi, antes de nascer,
pagou dizimos a Melquisedeque, a necessario que, em algum sentido, o tenha-
mos realmente feito.
Uma segunda dificuldade quanto ao conceito realista 6 que nao esclarece
porque estamos comprometidos somente corn a culpa do primeiro pecado de
Adao e nao, tambem, corn os outros pecados de Adao ou corn os pecados de
nossos pais ou corn o de nossos ancestrais.
Essa objecao tambem pode ser respondida. Como muitos teologos tern
apontado, Adao agiu como uma "pessoa publica" quando cometeu o primeiro
pecado. isto 6, agia, naquele momento, como nosso cabeca — o que nao se
poderia dizer dele quando cometeu os pecados subseqtentes, nem de nossos
pais e ancestrais quando estes pecaram.
Terceiro, a analogia entre Adao e Cristo em Romanos 5.12-21 apresenta
60 Os proponentes do realismo ndo sac) os tinicos a usar esta expressAo ("nos lombos de Adao") para
descrever a situacao de todos os seres humanos no momento do primeiro pecado de AdOo. Cf. a
Formula Consensus Helvetica (1675), Par. 11; Zacharias Ursinus, Schatboek over den Heidelbergs-
che Catechismus, 3" ed., vol. 1, trad. de F. Hommius (Gorinchem: Goetzee, 1736), p. 92; Synopsis
Purioris Theologiae (Lugduni Batavorum: Donner, 1881), 15, 11; H. Bavinck, Dogmatiek, 3:91.
A DISSEMINA00 DO PECADO 179
um obstaculo a interpretacao realista. Pois nao ha, em Cristo, uma natureza
humana generica que é individualizada em todos os que creem nele. 0 paralelis-
mo entre Adao e Cristo presente nessa passagem, portanto, parece impossibi-
litar a relacao entre Adao e nos como afirmada pela concepcAo realista.
Em resposta a essa 0*cdo, deverfamos lembrar de urn pormenor muito
importante: embora Romanos 5.12-21 estabeleca urn paralelismo entre Adao e
Cristo, esse paralelismo nao é total. Ha diferencas significativas entre a primazia
de Adao e a de Cristo, nao so no sentido de recebermos coisas mas de Adao e
coisas boas de Cristo, mas tambem na maneira como estamos relacionados corn
urn e corn outro. Os proponentes do realismo mostram61 que tais diferen-
gas em nossa relacdo corn Adao e Cristo envolvem dois aspectos: (1) Nunca
estivemos "nos lombos de Cristo", mas estivemos "nos lombos de Addo"; e:
(2) visto que estivemos nos lombos de Adao quando este pecou, nos, em de-
terminado sentido, pecamos em Adao, de forma que o fato de sermos conside-
rados pecadores por Deus por causa de nosso vinculo corn Adao nao é algo
que nao se coadune corn a nossa efetiva situagdo. No caso de Cristo, todavia,
sua justica nos é imputada de tal modo que Deus, agora, nos ye "como se
nunca tivessemos pecado... e como se tivessemos sido perfeitamente obedien-
tes assim como Cristo foi obediente por [nos]".62 Embora nossa justica em
Cristo seja uma justica tipo "como se" — nao nossa mas de outrem nossa
pecaminosidade em Adao nao é tipo "como se"; ela é, de fato, nossa propria.
Eu creio que essas ideias presentes na visa° realista da transmissAo do pe-
cado de Add° a nos sao importantes e que refletem ensinos escrituristicos mui-
to significativos. Nao sao, porem, suficientes; necessitam ser complementados
por uma concepcalo que faz mais justica ao carater representativo da primazia
de Adao do que a realista o faz. Herman Bavinck, inclusive, sobre esse assunto,
disse o seguinte: "0 federalismo [a ideia da imputacao imediata ou direta, que
sera discutida abaixo] nao exclui a verdade obscuramente presente no realis-
mo; pelo contrario, aceita plenamente essa verdade; decorre dessa verdade,
mas nao fica parado 15.".63 Em geral, os teologos reformados tern separado
essas duas linhas de interpretacao (realismo e imputacao imediata). E minha
conviccao, contudo, que devam ser combinadas. Em outras palavras, a decisao
que devemos fazer corn relacao a essas duas compreensOes da transmissao do
pecado nao é do tipo ou-uma-ou-outra mas tanto-uma-como-a-outra.
Bavinck, Dogmatiek, 3:96-102; J. G. Machen, The Christian View of Man (New York: Macmillan, 1937),
pp. 255-62; A. D. R. Polman, Woord en Belijdenis (Franeker: Weyer, 1957) 1:268-70; John Murray, The
Imputation of Adam's Sin, pp. 36-41, 64-70; L. Berkhof, Systematic Theology, pp. 242-43.
Rs Muitos proponentes da imputagdo direta tambem defendem a doutrina do pacto das obras. Embora
no capftulo anterior (ver pp. 136-140) eu tenha rejeitado a doutrina do pacto de obras, isso nho
implica a rejeigao da imputagdo direta, conquanto mantenhamos que Adho foi de fato o cabega e o
representante da raga humana. E significativo que John Murray, urn dos mais decididos defensores da
imputagdo direta, igualmente rejeite a doutrina do pacto das obras.
6
6 A dnica excegdo, naturalmente, 6 Jesus Cristo. Mas visto que ele 6 uma pessoa divina que assumiu a
natureza humana, dificilmente ele pode ser chamado de "uma pessoa humana".
" Nesse ponto, a concepgao realista complementa a concepgdo da imputagao direta. Segundo a
concepgdo realista, nascemos em um estado de corrupgdo tido apenas porque Addo era nossa represen-
tante e, assim, trouxe a imputagdo de culpa sobre n6s, mas tambem porque esthvamos realmente em
Adao quando ele pecou, momento em que nossa natureza humana se corrompeu.
A DISSEMINACAO DO PECADO 181
nao a transmissao da corrupcao. Em outras palavras, ha uma imputacao direta
de culpa e uma transmissao mediata de corrupcao.
Provavelmente, a maior dificuldade em relacao a essa concepcao seja o
fato de parecer indicar que Deus nos imputa a culpa de um pecado que nao
cometemos. Observe, por exemplo, o comentario de Berkouwer: "No federa-
lismo [a concepcao da imputacao direta] a ideia de uma `representacao' une-se
de tal forma a da imputacao que deixa a impressao de que os inocentes sao
apenas "declarados" culpados". Os teologos que expressam esta objecao usual-
mente citampassagens68como a seguinte para mostrar que Deus nao considera
os filhos culpados dos pecados de seus pais:69
Os pais nao sera() mortos em lugar dos filhos, nem os filhos, em lugar dos pais; cada
qual sera morto pelo seu pecado (Dt 24.16).
Naqueles dias, jd nao dirk): Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos 6
que se embotaram. Cada urn, porem, sera morto pela sua iniqiiidade; de todo homem
que corner uvas verdes os dentes se embotardo (Jr 31.29-30).
A alma que pecar, essa morrerd; o filho nao levard a iniqiiidade do pai, nem o pai, a
iniqiiidade do filho; a justiga do justo ficard sobre ele, e a perversidade do perverso
cairn sobre este (Ez 18.20).
" E. F. Harrison, Romans, in: Expositor's Bible Commentary series (Grand Rapids: Zondervan, 1976),
p. 62. William Hendriksen, Romans, vol. 1 (Grand Rapids: Baker, 1980), pp. 178-79.
A DISSEMINAcA 0 DO PECADO 183
Devemos, pelo que foi exposto, entender a oracao "porque todos peca-
ram" como referindo-se nao aos pecados atuais mas ao pecado original. Mao
devemos entende-la no sentido de "porque nos todos fomos considerados
pecadores em Adao" mas no sentido preferivel de "porque nos todospecamos
em Adao", ja que nos estavamos todos "nos seus lombos" quando ele pecou.
Essa, diz Paulo, é a razao porque a morte passou a todos os seres humanos por
causa da transgressao de Aclao.7'
Devemos refletir, por urn momento, sobre a altima oracao do versiculo 14,
onde lemos: "Adao, o qual é a figura [typos] daquele que havia de vir" (RC;
RA: "o qual prefigurava"). Typos, na Biblia, é uma figura, modelo ou padrao de
alguma outra coisa ou pessoa — nesse caso, de uma pessoa que ainda estav a
por vir, a saber, Jesus Cristo. Ja analisamos em qual sentido Adao foi um tipo
de Cristo." Como Cristo agiu como nosso representante e em nosso lugar,
assim o fez Adao; a exemplo de Cristo, Adao foi, ao mesmo tempo, nosso
cabeca e nosso representante. Herman Bavinck diz, sobre isso, o seguinte: "Houve
dois homens apenas cuja vida e obras afetaram em extremo a humanidade, cuja
influenci a e dominio se estenderam aos confins da terra e a prOpria eternidade.
Sao eles Adao e Cristo."" F. F. Bruce cita uma frase de Thomas Goodwin, urn
teologo britanico do seculo XVII: "Aos olhos de Deus, ha somente dois ho-
mens — Adao e Jesus Cristo — e esses dois homens tern todos os outros homens
pendurados nas tiras de suas cintas".74
Ja analisamos brevemente os versiculos 16 e 18 em relacao a primazia de
Adao.75Devemos acrescentar aqui, nao obstante, que o vocabulario desses
versiculos pertence A linguagem legal ou juriclica. Condenacao (declarar alguem
culpado) optie-se a justificacao (absolver alguem de culpa). Desses dois versi-
culos, aprendemos que uma so ofensa (o pecado de Adao) foi a causa da
condenacao de todas as pessoas.
" Corn relacAo ao conceito de "todos por meio de urn" que comanda Romanos 5.12-21, chama-se a
atencAo para o conceito hebraico de "personalidade corporativa". No Antigo Testamento, urn grupo
6 freqiientemente apresentado agindo por meio de e/ou sendo representado por um lider, de forma que o
lider e o grupo se identificam (isto 6, o use de nomes como Jaco, Israel, Judd e Efraim indicam tanto o
indivicluo como o povo formado por seus descendentes). A iddia de que AdAo representa e age por
todos os seus descendentes, portanto, nAo 6 estranha as Escrituras. Sobre o conceito de personalidade
corporativa, ver H. Wheeler Robinson, The Christian Doctrine of Man (Edinburgh: T. & T. Clark,
1911), pp. 27-30; idem, Inspiration and Revelation in the Old Testament (Oxford: Clarendon Press,
1946), pp. 70-71, 82-83; H. H. Rowley, The Re-discovery of the Old Testament (Philadelphia: West-
minster Press, 1946), pp. 216-17,
72 Ver acima, p.167.
Dogmatiek, 3:95-96 (citado pelo autor em traducAo propria para o ingl8s).
74
F. F. Bruce, Romans, Tyndale New Testament Commentary series (Grand Rapids: Eerdmans, 1963),
p. 127; Cf. A. Oepke, "'en" TDNT, 2:542.
" Ver acima, p. 167.
184 CRIADOS A I MAGEM DE DEUS
Paulo, é verdade, nao usa o verbo imputar (no grego, logizomai) nesses
versiculos. 0 que o apOstolo nos diz aqui 6 que todos os seres humanos estao
debaixo de condenacdo por causa do pecado de Addo, mas nab diz exatamen-
te como essa condenacao o transmitida a nos. Considerando que a linguagem
desses versiculos 6 juridica e que imputacao é urn conceito legal, podemos, se
desejarmos, identificar nesses versiculos o ensino da imputacdo direta da culpa e
da condenacdo de Adalo para nos. Mas devemos nos lembrar, nesse caso, o
conceito de imputacao é uma inferencia do ensino da Escritura.76
Poderia se fazer a seguinte pergunta: esse ensino implica que todas as crian-
gas pequenas que morrem estao eternamente perdidas? Nao necessariamente.
Sem dtivida, todas as criancas estao debaixo da condenacdo do pecado de
Addo tao logo nascem. Mas a Biblia claramente ensina que Deus julgard cada
qual segundo as suas obras.77 E aqueles que morrem em tenra idade sac, inca-
pazes de fazer quaisquer obras, sej am elas boas ou mas. Ninguem pode ser
dogmatico a respeito dessa questao. Mas podemos encontrar conselho nas
palavras de um teologo reformado altamente respeitado, Herman Bavinck:
Corn respeito a salvacao... dos filhos que morrem na infancia, nao podemos, corn base na
Escritura, senao nos abster de emitir um julgamento categOrico e conclusivo [bes-
list en stellig oordeel] quer positivo ou negativo. E digno de nota, tao somente, que, no
que se refere a essas questOes importantissimas, a Teologia reformada esta numa
posicao muito mais favoravel do que qualquer outra teologia... pois, primeiro, os
reformados nab quiseram... determinar o grau ou extensao do conhecimento consi-
derado indispensavel para salvacao. E, em segundo lugar, afirmaram que os meios da
grata nao sao absolutamente necessarios para a salvacao, mas que Deus poderia
tamb6m regenerar para a vida eterna a16m da Palavra e os sacramentos, ou sem estes.78
76 Mesmo John Murray, urn firme proponente da doutrina da imputagdo direta, admite isso: "Quando
falamos que o pecado de Ada° 6 imputado it posteridade, concede-se que em lugar nenhum da Escritura a
nossa relagdo corn a transgressdo de Adao 6 expressamente definida ern termos de imputagdo".
(Imputation of Adam's Sin, p. 71).
" Cf. passagens tais como Mt 16.27; Rm 2.6. Ap 20.12; 22.12. Ver, deste autor, The Bible and the
Future, pp. 261-62.
Dogmatiek, 4.810 (citado pelo autor ern tradugdo propria para o ingles). Bavinck refere-se aqui a
Calvino, Institutes, 1V.16.19. A afirmagdo de Bavinck refere-se a todos aqueles que morrem na inffin-
cia. Corn respeito aos filhos dos crentes, contudo, a promessa do pacto da graga, de que Deus sera tanto o
Deus de n6s, os crentes adultos, como de nossos filhos, deve certificar os pais cristdos de que seus
filhos pequenos que morrem nao estao perdidos (cf. Canones de Dort, 1.17: "pais piedosos nao devem
duvidar da eleigdo e salvacao daqueles seus filhos a quem Deus chama desta vida na infancia" (citado
pelo autor em tradugao propria para o ingles).
A DISSEMINAcA0 DO PECADO 185
versiculo. Dentre os significados de kathistemi listados no Greek-English Le-
xicon ofA rndt and Gingrich, a escolha aqui esta entre dois grupos de sentido:
ordenar ou apontar e fazer ou causar. A maioria das versOes traduz essas
duas ocorrencias de kathistemi neste versiculo da seguinte forma: "foram fei-
tos/se tornaram pecadores" e "serdo feitos/se tomardo justos". Dentre as tra-
dugOes para o ingles, somente a versao Berkeley traduz como "foram/serao
colocados na posicao de" pecadores/ justos (uma tradugao que esta proxima de
ordenar ou apontar). Qual é a melhor traducao?
A segunda metade do versiculo usa linguagem legal ou forense: dikaioi ka-
tastathesontai refere-se a justificagao — um ato judicial ou legal de Deus pelo
qual declara que somos justos em Cristo. Que tais palavras nao se referem
santificagao (a obra renovadora do Espirito Santo onde ele nos tom mais san-
tos) flea claro pelas freqiientes referencias a justificacao como um ato judicial
tanto no contexto geral (vv. 1 e 9) quanto no contexto mais especifico ( vv. 16,
17 e 18). Alem disso, somente no capitulo 6 é que Paulo abordard o topico da
santificacao mais profundamente. Portanto, ja que devemos entender a segun-
da metade do versiculo 19 em urn sentido legal ou forense, a traducao de Berke-
ley, "colocados na posicao de justos", é uma tradugao mais exata dessa metade
do texto do que a encontrada em outras versoes em ingles.
Se a segunda metade do versiculo deve ser entendida em sentido legal, por
analogia, a primeira metade do versiculo deveria ser entendida de modo seme-
lhante. Aqui, de novo, a forma de kathistemi empregada nao significafazer/
tornar mas ordenar ou apontar. A traducao de Berkeley deve ser, tambem
aqui, preferida: "pela obediencia de urn so homem, muitos [lit., os muitos/a
maioria] foram colocados na posigao de pecadores". Albrecht Oepke, escre-
vendo sobre Romanos 5.19, comenta o seguinte: "Aqui... a enfase recai sobre a
sentenga judicial de Deus, a qual, com base no ato do cabega, determina o
destino de todos".79 De acordo corn a primeira metade deste versiculo, portan-
to, a desobediencia de Addo colocou todos os seres humanosw na posigao de
pecadores, na categoria de pecadores, e, assim, foram considerados como
culpados em Adao.
Na interpretagao acima de Romanos 5.12-21, combinei as abordagens da
imputacao direta e do realismo. Porque Addo foi nosso representante como
cabega quando pecou, a culpa de seu pecado é atribuida a nos (imputagao
A NATUREZA DO PECADO
' Art. 1, Negativa VII, apud F. Schaff, Creeds of Christendom, vol. 3 (New York: Harper, 1877), p. 102.
Sobre Flacius, ver Berkouwer, Man, pp. 130-36.
188 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
cristaos desde Agostinho tem afirmado que o pecado deve ser entendido
como urn defeito em algo que 6 born. Nesse sentido 6 que o oponente de
Flacius, Victorinus Strigel, chamou o pecado de "acidental" a natureza
humana. Muito antes, Agostinho havia chamado o pecado de privatio boni, ou
seja, a privacao ou a perda do que é bom.2 0 pecado 6 como a cegueira que
rouba a visa° de uma pessoa que antes enxergava. Ou, para usar uma
ilustracao diferente, o pecado 6 igual a uma mao ferida. 0 fato de que a
mao esta somente ferida implica que ela pode ser curada. Segundo esse
entendimento, o pecado do homem pode, ern illtima analise, ser vencido e
removido. Se o pecado fosse uma substancia, se fosse, agora, realmente
parte da essencia da natureza humana, como poderia ser jamais vencido?
0 fato de que o pecado nao 6 parte da essencia de nossa natureza tornou
possivel a Cristo assumir uma natureza humana que nao era outra sena° a
mesma do homem decaldo, porem, sem pecado.
Esse entendimento infere que o pecado nao mudou a nossa essencia,
mas a direcdo para a qual nos movemos. Quando examinamos o tema da
imagem de Deus, mostrei que os seres humanos ainda retem, depois da
Queda, a imagem no sentido estrutural mas a perderam no sentido funcio-
nal.' Isto 6, embora o homem decaido ainda traga em si a imagem de Deus, ele
agora usa iniquamente essa qualidade de portador da imagem de Deus. Isso,
na verdade, torna o pecado extremamente abominavel. 0 pecado 6 um
modo perverso de usar as faculdades que Deus deu ao homem para que fosse
sua imagem.4
0 pecado, portanto, nab 6 alguma coisa fisica mas etica. Ele nao foi dado
corn a criacao mas surgiu depois da criacao; 6 uma deformacao do que exis-
te. Descrever o pecado comoprivatio boni pode nao ser uma definicao total-
mente satisfatOria do pecado, visto que o pecado 6 mais do que uma ausencia
do bem, e tambem uma rebeliao ativa contra Deus. Nao obstante, essa defi-
nicao contem uma importante verdade quanto a natureza do pecado.
Enchiridion, pp. 11 e 12, Albert C. Outler, vol, 7, na colegdo Library of Christian Classics (Philadelphia:
Westminter Press, 1955).
3 Ver acima, pp. 84-88.
A "norma da lei gravada no seu coracao", isto é, das pessoas que ja-
mais viram uma Biblia, todavia, encontra-se especificamente exposta no
Decalogo ou os Dez Mandamentos, em Exodo 20 e DeuteronOmio 5. Des-
sa mesma Biblia, o fiel aprende que quebrar os mandamentos de Deus é
pecado. Em outras palavras, conforme tambem diz o Catecismo de Heidel-
berg, o cristao conhece o seu pecado pela lei de Deus.6 As seguintes passa-
gens da Escritura confirmam isto: "pela lei vem o pleno conhecimento do
pecado" (Rm 3.20b); "mas eu nao teria conhecido o pecado, senao pelo
intermedio da lei; pois nao teria eu conhecido a cobica, se a lei nao dissera:
rid() cobicards". (Rm 7.7b); "se, todavia, fazeis acepcao de pessoas, come-
'5A palavra grega traduzida como "culptivel" é hypodikos, que significa "sujeito a condenacAo ou puniedo",
obviamente pressupondo culpa.
16 Ver acima, pp. 140-141.
17 City of God, M. Dods, trad. Livro 14, Cap. 13, vol. 2 em Nicene and Post-Nicene Fathers, First Series
(Grand Rapids: Eerdmans, 1983), p. 273.
18 The Problem of Pain (New York: Macmillan Paperbacks Edition, 1983), p. 75.
194 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
0 pecado geralmente e dissimulado. Essa é uma das mais frustrantes
caracteristicas do pecado. 0 pecado é urn elemento generalizado de nos-
sa vida e, no entanto, todos nos, sem exceed°, muitas vezes nao consegui-
mos reconhece-lo. Podemos, nessa questa°, tracar tress observaci5es como
regra geral:
1.0 pecado é sempre cometido por "alguma boa razao". Eva comeu do
fruto proibido porque imaginou que fosse urn modo de tornar-se mais se-
melhante a Deus. Uma pessoa rouba porque pensa que necessita mais do
dinheiro do que o dono e, afinal, &just° que, desse modo, o rico contribufa
para o bem-estar do pobre. Urn assassino mata porque sua vitima é consi-
derada uma ameaca para a sociedade, a qual seria melhor sem ela. Uma
pessoa poderia at cometer urn adulterio como urn modo, assim imagina, de
mostrar amor a uma pessoa solitaria.
Visto que somos criaturas "racionais", sempre queremos ter razOes para
fazer as coisas. Se as raziies que damos quando pecamos sao as reais ra-
zOes, isso é uma outra historia. Os psicOlogos chamam esse processo de
"racionalizacao" — as pessoas tendem a inventar razoes para fazer o que
sabem que nao deveriam fazer, mas, apesar disso, querem fazer.
2. Nao conseguimos, muitas vezes, reconhecer o nosso proprio pecado.
Vemos, corn muita nitidez, o pecado nos outros, em nos mesmos, porem,
apenas muito vagamente. Foi Davi quern orou no Salmo 19.12: "Quern ha
que possa discernir as proprias faltas? Absolve-me das que me sao ocul-
tas". Moises admitiu diante de Deus no Salmo 90.8: "Diante de ti puseste as
nossas iniqtiidades e, sob a luz do teu rosto, os nossos pecados ocultos". Jesus
falou desse mesmo problema quando disse que somos capazes de ver o
argueiro [cisco] no olho do irmao, porem, incapazes de perceber a trave [o
pedaco de madeira] que esta nos nossos olhos (Mt 7.3 [BLH]). Os nossos
pecados, como alguem ja disse, sac) como manchetes presas as nos-
sas costas; apenas nos nao as enxergamos.
Assim o erro como o pecado tern esta propriedade: quanto mais graves sac), menos
suas vitimas suspeitam da existencia deles; sao males dissimulados... Podemos per-
manecer satisfeitamente em nossos pecados."
20 Em Dorothy Sayers, Four Sacred Plays (London: Victor Gollancz, 1948), pp. 7-103.
196 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
mente, ele significa "errar o alvo", exprimindo o pensamento de que toda
transgressao é urn fracasso quanto a maneira que Deus quer que os seus
filhos vivam. 0 pecado, esse termo cid a entender, significa ter fracassado no
cumprimento do proposito para o qual Deus nos criou.
Outros termos do Antigo Testamento sao `awon, iniquidade ou culpa;
pesha', rebeliao, revolta, insubmissao a autoridade; `abhar, transgressao
(lit., "passar alem de"); resha`, maldade ou impiedade ; maldade ou
perversidade; ma 'al, violagao ou ato de traicao; e ' awen, idolatria, iniqui-
dade ou vaidade.
Dentre os vocabulos para pecado no Novo Testamento, o mais comum é
hamartia, que é o termo grego equivalente ao hebraico chatta `th, o qual
tambern significa "errar o alvo" — on, na linguagem do Novo Testamento,
"estar destituido" ou "carecer" da gloria de Deus (Rm 3.23, RC e RA,
respectivamente). Menos empregados, ha os seguintes: anomia, ilegalida-
de ou a quebra da lei; paraptoma, derivada de parapipto (desviar-se) e,
portanto, significando delito ou passo em falso; parabasis, derivado de
parabaino (ir alem de) e, portanto, significando transgressao ou dar urn
passo alem do limite daquilo que é correto; asebeia, impiedade; parakoe
(lit. desobediencia a uma voz), nao ouvir quando Deus esta falando; e adi-
kia, falta de retidao, injustica ou erro. Cada uma dessas palavras lanca luz
sobre o modo como a Escritura entende o pecado.
A exposicao classica desses sete pecados é encontrada em Tomas de Aquino, Summa Theologica, 1-11, Q. 84,
Art.4.
A NATUREZA DO PECADO 197
Dentre outras classificaciies de pecados, estao as seguintes: Pecados
contra Deus, o proximo e nos mesmos; pecados de pensamento, palavras e
noes; pecados que tem suas rafzes na "concupiscencia da came", na "con-
cupiscencia dos olhos" e na "soberba da vida" (1Jo 2.16);22 pecados de
fraqueza, ignorancia ou malicia; pecados de omissao ou de comissao; pe-
cados secretos ou pecados notorios; pecados privados ou pecados pdblicos.23
GRADS DE PECADO
Todas as formas de pecado desagradam a Deus e acarretam culpa. Con-
tudo, nem todos os pecados sao igualmente graves. Podemos e devemos
reconhecer determinados graus na gravidade do pecado.
Dediquemo-nos, primeiramente, a tradicional distincao catolico-roma-
na entre pecados mortais e veniais — uma distincao feita ja por Tertuliano e
Agostinho,24 e posteriormente aprimorada por escolasticos como Pedro
Lombardo e Tomas de Aquino.25 Essa distincao ainda tern um papel im-
portante na compreensao catOlico-romana do sacramento da penitencia,
cujo prop6sito é o perdao dos pecados cometidos depois do batismo.
As descricties que seguem foram selecionadas de fontes catolico-ro-
manas. 0 pecado mortal é definido como
um completo desviar-se de Deus que resulta na morte (por isso o termo "mortal") da
grata santificante na alma. Tres condicbes sdo geralmente estabelecidas como
necessarias a fim de que uma ofensa seja julgada um pecado mortal: (1) A ofensa
em si deve ser urn erro grave, quer objetivamente (como o adulterio ou assassina-
to) ou subjetivamente (isto é, o ofensor considera a ofensa um erro grave); (2) o
ofensor deve saber que a ofensa é um erro grave; (3) o ofensor deve ser livre na
comissdo da ofensa.26
"Cf. a traducao na NEB: "everything the world affords, all that panders to the appetites ou entices the eyes, all
the glamour of its life".
23 Algumas vezes, pecados cometidos em segredo podem mais tarde se tornar ptiblicos, como quando relagao
sexual fora do casamento resulta em gravidez.
" Tertuliano, On Modesty [Da Modestia], Cap. 2, 3, 19; Against Marcion [Contra Marcitlo], 1V.9. Agosti-
nho, Enchiridion [Enquirfclio], pp. 44, 71; City of God [Cidade de Deus], Livro 21, Cap. 27.
" Pedro Lombardo, Sentences [Sentencas], 11, Dist. 42; Aquino, Summa Theologica, 1-11, Q. 88, 89.
26 The New Catholic Peoples' Encyclopedia, vol. 3, edicao revisada (Chicago: The Catholic Press, 1973), p. 639.
198 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
Visto que ele 6 uma rebelido grave contra Deus, uma pessoa que morre em pecado
mortal morre separada de Deus."
27 Albert J. Nevns (org.), The Maryknoll Catholic Dictionary (New York: Grosset and Dunlap, 1956),p.
529.
" Ibid., p. 530.
29 New Catholic Peoples' Encyclopedia, 3:178.
30 Institutes, 11.8.59.
A NATUREZA DO PECADO 199
estado continuo de ansiedade e temor ("Acaso cometi urn pecado mortal e
estou, por isso, perdido?") ou de produzir uma despreocupacao leviana
quanto ao pecado, por sugerir o pensamento de que a maioria dos pecados é
venial e, por isso, pouco graves.
Rejeitar a distincao entre pecados mortais e veniais, contudo, nao im-
plica que nao ha diferencas ou graus quanto a gravidade do pecado. Quatro
dessas diferencas podem ser observadas.
A distinciio entre "pecados do espirito" e"pecados do corpo". Na pri-
meira parte deste capitulo,3I mencionei que, de acordo corn Agostinho, a
raiz do pecado humano é o orgulho; ele tambem ensinou que o que ele
chamou de "concupiscencia", e que nos chamariamos de "sensualidade" ou
"apetite carnal", era secundario ao orgulho e uma consequencia
0 que Agostinho quis dizer foi que a rebeliao contra Deus, que é primaria-
mente urn "pecado do espirito" (embora, naturalmente, o corpo tambem
esteja envolvido), é uma transgressao mais grave da vontade de Deus do
que um, por assim dizer, pecado do corpo, como o adulterio (embora em tal
pecado o "espirito" esta tambem envolvido).
Lutero defendeu uma posicao semelhante. Ele ensinou que muitas pes-
soas buscam a virtude somente por causa de sua propria honra, revelando
assim sua "carnalidade" mesmo em seus objetivos "mais nobres".33 Lute-
ro, na verdade, distinguiu duas especies de pessoas carnais: sinistrales (aque-
las de esquerda) e as dextrales (as da direita). As primeiras, ele disse, mos-
tram sua carnalidade cedendo as suas paixoes e lascivia (como os beber-
roes e os adaeros); os tiltimos mostram a sua carnalidade mesmo quando
dominam sua lascivia e ostensivamente praticam a virtude. Dentre os dois
grupos, os tiltimos, disse ainda Lutero, sao os piores.' Isso lembra a de-
mincia dos fariseus por Jesus, os quais eram tao desprezivelmente maus
precisamente porque pensavam que eram bons.
C. S. Lewis, urn cristao leigo corn reflexOes profundas sobre a fe, certa
vez escreveu::
Se algudm pensa que os cristaos consideram a impureza o vicio supremo, engana-se.
Os pecados da came sao prejudiciais, mas sao os menos prejudiciais dos pecados. Os
mais prejudiciais dos piores prazeres sao, todos, puramente espirituais: o prazer
0 PECADO IMPERDOAVEL
Embora todas as formas de pecado sejam desagrad4veis a Deus, a
Biblia fala de urn pecado que 6 imperdoavel — na'o por ser grande demais
para Deus perdoar, mas porque exclui, por natureza, a possibilidade de
arrepen di mento.
Examinaremos, primeiro, as principais passagens da Escritura que des-
crevem esse pecado. Provavelmente, o texto mais vezes citado seja Mar-
cos 3.28-30 (a qual correspondem Mt 12.31-32 e Lc 12.10). Mateus nos diz
que nessa ocasido Jesus havia curado urn homem possesso de dem6-
nio, que era cego e mudo. Quando os fariseus ouviram falar desse milagre,
contrapuseram que Jesus estava expulsando os dem6nios somente pelo
poder de Belzebu, o principe dos demonios. Em sua repreens56 aos fari-
seus Jesus disse que expulsava os demonios pelo Espirito de Deus, como
evidencia de que o reino de Deus havia chegado sobre eles (Mt 12.22-28).
Jesus, entao, proferiu estas c6lebres palavras:
Em verdade vos digo que tudo sera perdoado aos filhos dos homens: os pecados e as
blasfemias que proferirem. Mas aquele que blasfemar contra o Espirito Santo nao
tern perdao para sempre, visto que é reu de pecado eterno. Isto, porque diziam: Esta
possesso de um espfrito imundo.
37Systematic Theology, ed. revisada e aumentada (Grand Rapids: Erdmans, 1941), p. 252. Sobre essa ques-
t8o, ver tambem H. Bavinck, Dogmatiek, 3:148-51; e G. C. Berkouwer, Sin, cal:auto 9, pp. 285-322.
204 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
feito pelo poder do Espirito de Deus. A conjugacao no imperfeito do verbo
proferir (elegon) no versiculo 30 indica que os fariseus disseram isso nao
apenas uma vez, mas continuamente. Esse pecado, portanto, nao foi come-
tido na ignorancia. Os fariseus viram o milagre e ouviram Jesus dizer que o
havia feito pelo poder do Espirito Santo. Nao obstante, persistiam em
atribuir esse ato maravilhoso ao diabo.
0 que salta aos olhos aqui é a expressao que Jesus usa para descrever
essa transgressao: quem a comete "é reu de pecado eterno" (aioniou ha-
martematos, Mc 3.29). Esse é o tinico lugar na Biblia onde essa expressao
ocorre. Urn pecado eterno é aquele que permanece para sempre — isto é,
nunca podera ser perdoado.
Uma outra passagem que trata do pecado imperdoavel é encontrada em 1Jo
5.16, onde Joao escreve:
Se alguem vir a seu irmao cometer pecado nao para morte, pedira, e Deus the dara
vida, aos que nao pecam para morte. Ha pecado para morte, e por esse nao digo que
rogue.
38 A traducAo da RSV [Revised Standard Version], "mortal sin" [pecado mortal], é bastante confusa, lern-
brand° a distincao cat6lico-romana entre pecados mortals e veniais. Na praxe cat6lico-romana, contudo, os
"pecados mortals" podem ser perdoados se tiverem sido devidamente confessados.
3
9 The Epistles of John, Tyndale New Testament series (Grand Rapids: Eerdmans, 1964), pp. 188-89,
A NATUREZA DO PECADO 205
Mas, agora, como podemos nos mortals, corn nosso conhecimento e percepcao limi-
tados, jamais estar certos de que urn homem alcancou essa condicao de alma? Deve-
se observar que Joao nao diz que o pecado para morte possa ser, acima de qualquer
davida, reconhecido como tal. A conclusao pratica, entao, a qual essa passagem nos
conduz, 6, possivelmente, a de que devemos continuar ern oragao, exercendo o crite-
rio da caridade.4°
4° The Epistles of James and John (Grand Rapids: Eerdmans, 1954), p. 221.
206 CR1ADOS A IMAGEM DE DEUS
dos" usam a linguagem do Antigo Testamento para expressar o carater
imperdoavel deste pecado.41
Este pecado é descrito corn expressOes muito concretas: A pessoa que
esta cometendo tal pecado desprezou completamente a Cristo ("calcou aos
pes o Filho de Deus"), pisoteou e repudiou o sangue derramado por Cristo
corn o proposito de aproxima-la de Deus, tambem insultou e bateu na face do
Espirito Santo, por meio de quern recebemos graca. Por causa disso, a
maioria dos comentadores, Calvino inclusive, ye tambem nessas palavras
uma descried() do pecado imperdoavel,
Louis Berkhof definou o pecado imperdoavel como
A rejeicao e a blasfemia voluntaria, maliciosa e consciente, inconteste..., do teste-
munho do Espfrito Santo relativo a graca de Deus em Cristo, atribuindo-a, por odic) e
inimizade, ao principe das trevas.42
a Dogmatiek, 3:157 (citado pelo autor em traduce° prOpria para o ingles). Sobre o pecado imperdoavel, ver
s
tambdm Berkouwer, Sin, capitulo pp. 10, 323-53.
CAPITULO 10
0 REFREAMENTO DO PECADO
,a‘a&zattar
City of God, Livro 5, Capitulos 12-20, Nicene and Post-Nicene Fathers, primeira sdrie, vol. 2 (reimpres-
sao; Grande Rapids: Eerdmans, 1983); On Marriage and Concupiscense, 1.4.
As Institutas, Livro 2.3.3 [em portugues: trad. de Waldyr Carvalho Luz (Sao Paulo: Casa Editora Presbite-
riana, 1985), pp. 50-51].
O REFREAMENTO DO PECADO 211
de humana tambem se mostra no aprendizado dessas porque todos nos temos certa
aptidao. Em vista disso, com boa razao somos compelidos confessar que seu princi-
pio [isto 6, o principio de aptiddo ou talento nas artes] é inato a natureza humana.
Pois essa evidencia claramente testifica em favor de uma apreensao universal de
razao e entendimento implantados por natureza nos homens. No entanto, tao univer-
sal 6 esse bem que cada ser humano esta obrigado a, nele, reconhecer por si mesmo a
singular grata de Deus)"
Sempre que deparamos corn essas coisas [contribuigOes de valor na arte e na ci6n-
cia] em autores seculares, permitamos que esta admirdvel luz de verdade que brilha
neles nos ensine que a mente humana, embora inteiramente decaida e pervertida, 6,
nao obstante, revestida e ornada corn os dons excelentes de Deus. Se considerarmos o
Espirito de Deus como a 'Mica fonte da verdade, nao rejeitaremos a propria verda-
de, nem a desprezaremos onde quer que ela aparega, a menos que desejemos deson-
rar o Espirito de Deus. Pois, tomando os dons do Espirito em pouca conta, desde-
nhamos e difamamos o proprio Espirito."
Podemos resumir aqui o que Calvino diz nessa ultima citacao: (1) os
incredulos podem ter a luz da verdade brilhando neles; (2) os incredulos
podem estar revestidos dos dons excelentes de Deus; (3) toda verdade vem do
Espirito de Deus; (4) portanto, rejeitar ou desprezar a verdade quando
proferida por incredulos é insultar o Espirito Santo de Deus.
Num outro lugar, Calvino diz:
Ndo nego que todas as notaveis qualidades que se manifestam entre os incredulos sej
am dons de Deus... Pois existe tamanha diferenca entre o justo e o injusto que ela
aparece mesmo em seus retratos. Porque, se confundimos essas coisas, que ordem
restard no mundo? Por isso, o Senhor nao s6 gravou a distingao entre atos honrados e
impios na mente dos pr6prios homens mas tambem a confirma muitas vezes pela
dispensagdo de sua providencia. Pois vemos que concede muitas bOncaos da vida pre-
sente sobre aqueles que cultivam virtudes entre os homens... Todas essas virtudes — ou
antes, imagens de virtudes — sao dons de Deus, visto que nada é de algum modo louvd-
vel que no venha dele)2
14 H. Bavinck, De Algemeene Genade (Grand Rapids: Eerdmans-Sevensma, 1922), p. 17 (citado pelo autor
em traducAo propria para o ogles).
's Ibid., p. 27 (citado pelo autor em traducdo propria para o fogies). Ver tambem o capitol° de Bavinck, "Calvin and
Common Grace" em Calvin and the Reformation, org. por Wm. P. Armstrong (New York: Revell, 1909). '6 A
obra completa teve tres volumes. Foi publicada por Hoveker e Wormser em Amsterdam entre 1902 e 1904.
O REFREAMENTO DO PECADO 213
ria do mundo, a igreja, a providencia, a maldicao e a cultura. 0 Volume III, a
secao pratica, aplica o conceito de graca comum a topicos como governo,
igreja e estado, familia, educacao e sociedade.
G. C. Berkouwer, que trata da doutrina da graca comum no capitulo 5,
"Corruption and Humanness" [Corrupcao e Natureza Humana], de Man:
the Image of God [Homem: a Imagem de Deus], reconhece a contribuicao de
Kuyper para o estudo da graca comum. Segundo Berkouwer, Kuyper
segue os passos de Calvino em sua id6ia da graca geral ou graca comum de Deus...
Segundo Kuyper, esse ensino...forma uma parte indispensavel da doutrina reforma-
da. Tern sua origem na confissao do carater mortal do pecado e nao de alguma tenta-
tiva de relativizar a extensao da corrupcao. Kuyper, semelhantemente a Calvino,
esta encantado corn as belas e imponentes realizagoes humanas fora da igreja. Esse
fato inegavel, diz Kuyper, coloca-nos diante do aparente dilema de ou negar todas
essas realizacOes ou, entao, de ver o homem como nao sendo, apesar de tudo, total-
mente decaido. Mas a doutrina reformada recusa-se a escolher qualquer uma das
alternativas do dilema. Por urn lado, esse bem nao pode e nao deve ser negado; por
outro lado, a inteireza da corrupcao nao pode ser diminufda. Ha somente uma solu-
cao: que a graca esta em acao mesmo no homem decaido, para reprimir a destruicao
que 6 inerente ao pecado."
(Kalamazoo: Dalm, 1923); H. Hoeksema, A Triple Breach in the Foundation of Reformed Truth (Grand
Rapids: C. J. Doom, 1924); H. Hoeksema, The Protestant Reformed Churches in America, Part 11 (1936;
Grand Rapids: pelo proprio autor, 1947); H. Hoeksema, Reformed Dogmatics (Grand Rapids: Reformed Free
Publishing Association, 1966).
" (Traduzido para o ingles e condensado pelo autor) 0 texto completo desses tres pontos podem ser encon-
trados em Acts of Synod of the Christian Rweformed Church — 1924, pp. 145-47.
21 Ver K. Schilder, Is the Term "Algemeene Genade" Wetenschappelijk Verantwoord? (Kampen: Zalsman,
O REFREAMENTO DO PECADO 215
As ideias de Schilder levaram a ampla discussao e debate. 0 Sinodo
Geral da Gereformeerde Kerken [Igreja Reformada] que reuniu-se entre
1940 e 1943 discordou de Schilder e seus seguidores na questao da grata
comum e adotou o seguinte parecer corn quatro afirmacoes sobre o assun-
to: (1) Que Deus, em sua longanimidade, ainda tolera este mundo decaido a
despeito de sua ira contra a pecaminosidade do homem, fazendo o bem a
todos os seres humanos. (2) Que Deus fez permanecer no homem certos
pequenos remanescentes dos dons originais da criacao e uma certa luz da
natureza, embora essa luz seja insuficiente para a salvacao. (3) Que esses
remanescentes e bencaos servem para restringir o pecado temporariamen-
te, de modo que as possibilidades dadas na criacao original ainda possam
desenvolver-se de certa forma neste mundo pecaminoso. (4) Que Deus,
desse modo, demonstra bondade imerecida a bons e maus — uma bondade que
chamamos de grata comum (algemeene genade ou gemeene gratie), a qual,
no entanto, devemos distinguir da grata salvadora revelada aqueles que
foram dados a Cristo pelo Pai.22
1947); esse volume reuniu duas prelecties, uma de 1942 e outra de 1946. Cf. seu Heidelbergsche Catechis-
mus, vol. 1 (Goes: Oosterbaan en Le Cointre, 1947), pp. 175 e seg., 116-20, 278, 284, 295, 109-110.
22 (Traduzido para o inglds e condensado pelo autor) 0 texto completo dessa declaracho, que foi adotada em
1942, pode ser encontrado em Acta van de Voortgezette Generale Synode van de Gereformeerde Kerken in
Nederland, 1940-43, pp. 95-96.
216 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
Em sua carta aos Romanos, Paulo descreve o que acontece aqueles que,
embora tivessem conhecimento de Deus, nab o glorificaram como Deus:
Por isso, Deus entregou (no grego, paredoken) tais homens a imundicia, pelas con-
cupiscencias de seu proprio coracao, para desonrarem o seu corpo entre si... Por
causa disso, os entregou Deus a paixOes infames... E, por haverem desprezado o
conhecimento de Deus, o proprio Deus os entregou a uma disposicao mental repro-
vdvel, para praticarem coisas inconvenientes (Rm 1.24, 26, 28).
No verso 18 deste capitulo, Paulo nos diz que a ira de Deus se revela do
ceu contra a impiedade e perversao de homens e mulheres que suprimem a
verdade. No que se refere a tal supressao da verdade, sao indesculpaveis
"porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque
Deus lhes manifestou" (v. 19). Porque recusaram-se a glorificar a Deus como
Deus, muito embora tivesse se revelado a eles na natureza, Deus os entregou a
impureza sexual, a paixOes infames e a muitos outros tipos de conduta
pecaminosa e arrogante. Tres vezes nesses versiculos, Paulo emprega a for-
ma aoristo paradoken, que significa: os "entregou" ou "abandonou" a seus
pr6prios pecados. 0 tempo aoristo do verbo paradidomi indica que houve
epocas epecificas na vida dessas pessoas quando esse "abandonar" ou "en-
tregar" aconteceu. Isso implica claramente que, antes desse "entregar", Deus
estava restringindo a manifestacao do pecado em suas vidas; num determi-
nado ponto, contudo, essa restricao foi retirada. Charles Hodge, comentando
esta passagem, diz o seguinte: "Ele [Deus] retira do Impio a restricao de sua
providencia e grata, e os entrega ao dominio do pecado".23
Um das maneiras pelas quais o pecado é refreado na vida dos seres
humanos é pelas penas impostas pelo estado sobre criminosos e outros
transgressores da lei — punicOes tais como multas, sentencas de prisao e,
algumas vezes, inclusive a pena de morte. Como Paulo mostra,
os magistrados nao sao para terror, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal.
Queres to nao temer a autoridade? Faze o bem e terds louvor dela, visto que a autorida-
de 6 ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque nao 6
sem motivo que ela traz a espada; pois 6 ministro de Deus, vingador, para castigar o
que pratica o mal (Rm 13.3-4).
Quando Paulo nos diz aqui que toda autoridade humana é ministro de
Deus, ele evidentemente indica que Deus é quem, por meio de tais autori-
dades, esta restringindo o pecado.
De maneira semelhante, Pedro escreve:
" Commentary on the Epistle to the Romans (1886; Grand Rapids: Eerdrnans, 1964), p. 40.
O REFREAMENTO DO PECADO 217
Sujeitai-vos a toda instituigao humana por causa do Senhor; quer seja ao rei, como
soberano; quer as autoridades, como enviadas por ele [isto 6, pelo , tanto para castigo
dos malfeitores como para louvor dos que praticam o bem (1Pe 2.13-14).
Paulo nao nos diz quem ou o que esta detendo a manifestacao do homem do
pecado. 0 que causa perplexidade aqui é que Paulo fala desse restringir ou
deter tanto de forma pessoal como impessoal: "E, agora, sabeis, o que o
detem" (v. 6) e "aquele que agora o detem" (v. 7). Nao podemos identificar o
poder ou pessoa que esta restringindo o homem do pecado, mas esta claro
nessa passagem que ha urn poder ou uma pessoa que o detem. Alem do mais,
uma vez que a aparicao do homem da iniquidade introduzird um perlodo de
grande impiedade, no qual um homem proclamard a si pr6prio como Deus
(v. 4) e a obra de Satands se evidenciard em toda es/366e de mal (vv. 9-10),
nao ha d6vida de que deter essa encarnacao da impiedade equivale a
restringir o pecado. Que o controle gracioso de Deus esta por tras dessa
restricao é tao Obvio que sequer se precisa mencionar.24
Sobre a questao sobre que/quem detem o homem da iniqiiidade, ver, do autor, A Biblia e n Future (Sao
Paulo: Editora Cultura Crista, 1989), cap. 12. Ver tambem H. Ridderbos, Paul, trad. de John R. De Witt
(Grand Rapids: Eerdmans, 1975), pp. 521-26.
218 CR!ADOS A IMAGEM DE DEUS
diz que os seres humanos, por sua propria razao e vontade, estao capacitados a
refrear o pecado e a praticar certas virtudes. Esta foi, em geral, a posicao
defendida pelos te6logos escolasticos. Tomas de Aquino, por exemplo, cria
que a razao do homem é capaz de controlar suas paixoes inferiores. Embora
possa haver alguma verdade nessa ideia, ela deve ser considerada deficiente
por, no minimo, duas razaes. Primeira, ela 6 individualista demais — refreia-
se mais o pecado pela conk) social do que pelo raciocinio de urn indivkluo.
2) Como se demonstrou acima,25 muitas vezes, usamos nossa razao simples-
mente para justificar as coisas erradas que queremos fazer, urn processo que os
psicologos chamam de racionalizacdo. A razao, portanto, pode ser usada tanto
para defender uma acao ma como para evita-la. Urn trapaceiro esperto
realmente mais perigoso do que urn tolo.
Urn importante meio pelo qual Deus refreia o pecado naqueles que nao sao
seu povo 6 pela revelacdo geral, que tern urn impacto sobre a consci-
encia de cada ser humano. A revelacao geral é urn termo teologico que
quer dizer a revelacao que Deus faz de si mesmo por meio da natureza,
dirigida a toda a humanidade e cujo objetivo 6 a revelacao de suficiente
conhecimento de Deus para tornar homens e mulheres indesculpaveis quan-
do nao servem nem glorificam a Deus. Em sua carta aos Romanos, Paulo
descreve o papel da revelacao geral no refreamento do pecado:
Quando, pois, os gentios que nao tern lei, procedem, por natureza, de conformidade
corn a lei, nao tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma de
lei gravada nos seus coracoes, testemunhando-lhes tambour a consciencia e os seus
pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se (Rm 2.14-15).
Um outro meio pelo qual Deus refreia o pecado na vida humana é por
meio dos diferentes tipos de punicao ao erro impostas pelo governo huma-
no — por meio de leis, codigos de conduta e medidas coercitivas pelas quais se
faz cumprir essas leis. Esse ponto ja foi comentado acima.
G. C. Berkouwer menciona um terceiro meio pelo qual o pecado é re-
freado na sociedade humana, que ele chama de mede-menselijkheid. Esse
termo é dificil de traduzir; literalmente, traduz-se "co-humanidade" mas
talvez fosse melhor traduzido como "relacionamentos sociais". 0 que
Berkouwer quer dizer é isto: uma vez que o homem nunca existe em isola-
mento, mas sempre inserido em determinada relacao corn outros seres hu-
manos, seu pecado é refreado por esse relacionamento. Por exemplo, mui-
tas vezes deixamos de cometer um erro que porventura estivessemos incli-
nados a cometer porque somos casados corn alguem a quem tal ato mago-
aria, ou porque nossa ma acdo poderia fazer nossos filhos sofrerem, ou,
talvez, porque envergonhariam nossos pais. Somos, algumas vezes, impe-
didos de pecar porque temos vizinhos e colegas de trabalho que observam
atentamente as nossas awes, e porque gozamos de uma boa reputacao en-
26 Os C&nones de Dort, 111-IV.4 (citado pleo autor em traducAo prdpria par o MON). As citagoes do texto
latino sao extrafdas de J. N. Bakhuizen Van den Brink, De Nederlandsche Belijdenisgeschriften (Amster-
dam: Holland, 1940), p. 246.
0 REFREAMENTO DO PECADO 221
tre os que convivem conosco a desejamos mante-la. Deixamos de fazer
coisas mas porque temos amigos que ficariam profundamente ofendidos por
tal conduta de nossa parte. Todavia, como Berkouwer nos adverte, esse
vInculo social nem sempre evita que pequemos, visto que, algumas vezes,
toda a sociedade em que vivemos pode ser tao corrupta a ponto de exercer
uma influencia negativa sobre nos.27 Temos em mente, por exemplo, o
modo como o povo da Alemanha (com algumas exceceies memoraveis)
cegamente seguiu seu Fiihrer [Guia] em seu programa demonfaco de as-
sassInio e destruicao durante os anos da guerra nazista.
A nova terra, diz Paulo, nao sera urn mundo sem qualquer continuida-
de corn esta terra, mas sera a antiga criacao completamente libertada da
sua atual escravidao a degeneracao, a corrupcao e ao pecado. Em outras
palavras, havera continuidade assim como descontinuidade entre esta terra e
a nova terra. Isso significa que nossa vida e o nosso trabalho nesta terra tell
urn sentido duradouro para a nova terra que esta por vir.31
3° Nesse contexto, ver Christ and Culture de H. Richard Niebuhr, especialmente o capftulo 6, "Christ the
Transformer of Culture" (New York: Harper and Row, 1951).
Ver o capftulo 20, "A Nova Terra", de A Biblia e o Futuro, do autor. Ver tambdm Hendrikus Berkhof, Christ the
Meaning of History, trad. de Lambertus Buurman (1962; Grand Rapids: Baker, 1979), pp. 188-93.
224 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
Segundo Apocalipse 21.24 e 26, "a gloria e a honra das nacOes" serao
trazidas a santa cidade que existira na nova terra. Essas palavras intrigan-
tes deixam entender que as contribuicoes singulares da cada nacao para a
vida da presente terra enriquecerao, de alguma forma, a vida na nova terra.
Como isso acontecera, nao sabemos. Mas essa afirmacao e as palavras de
Apocalipse 14.13 de que as obras ou awes (erga) dos mortos que morrem no
Senhor os acompanharao, sugerem alguma especie de continuidade entre o que
se faz se realiza nesta terra e o que se realizara na vida futura. Jean
Danielou o expressa assim:
Cada urn de nes sera eternamente o que tivermos feito de nes mesmos nesta terra.
Igualmente, os novos cells e a nova terra serao a transfiguracao deste mundo, tal
como a realizacAo do homem tiver contribufdo para constituf-lo. Nesse sentido, a
histeria das civilizacoes, assim como a do cosmos, introduz-se no curso completo da
histeria da salvacao."
32 "The Conception of History in the Christian Tradition", The Journal of Religion 30, n. 3 (Julho de 1950),
p. 176. Para uma discussAo fascinante da relacao entre o presente mundo e a vida na nova terra, ver Abraham
Kuyper, De Gemeene Gracie, 1:454-94,
When the Kings Come Marching In (Grand Rapids: Eerdmans, 1983), pp. 6-7.
CAPITULO 11
A PESSOA 1ND1V1SA
G. C. Berkouwer, De Mens het Beeld Gods (Kampen: Kok, 1957), p. 211 (citado pelo autor em traducao
prOpria para o ingles). Cf. Ray S. Anderson, On Being Human (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), p. 213.
226 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
de vista da psicologia analitica e da fisiologia, o use do vocabulario no Antigo Tes-
tamento é caotico: ele é o pesadelo do anatornista quando qualquer parte pode, a
qualquer momento representar o todo.2
TRICOTOMIA OU DICOTOMIA?
Vez por outra, entretanto, é proposta a interpretacao de que o homem
consiste de certas "partes" especificamente distinguiveis. Uma dessas inter-
pretacOes é geralmente conhecida como tricotomia — a ideia de que, segundo a
Biblia, o homem consiste de corpo, alma e espirito. Urn dos mais antigos
proponentes da tricotomia, como vimos, foi Irineu, que ensinava que, en-
quanto os incredulos tern apenas alma e corpo, os crentes possuem tambem
espirito, criado pelo Espirito Santo.' Urn outro teologo geralmente associa-
do a tricotomia é Apolinario de Laodicea, que viveu entre c. 310 a. C. 390 A.
D. A maioria dos interpretes atribui a ele a ideia de que o homem consiste de
corpo, alma e espirito ou mente (pneuma ou nous), e que o Logos ou a natu-
reza divina de Cristo tomou o lugar do espirito humano na natureza humana
que Cristo assumiu.8 Berkouwer, contudo, assinala que Apolinario desen-
volveu a sua cristologia enonea primeiramente em relacao a dicotomia.9 Mas
J. N. D. Kelly diz que é uma questao de importancia secundaria se Apolina-
rio era urn dicotomista ou tricotomista.1°
A tricotomia foi, no seculo XIX, ensinada por Franz Delitzsch," J. B.
Heard,12 J. T. Beck' 3 e G. F. Oehler.I4Mais recentemente, foi defendida por
escritores como Watchman Nee,15 Charles R. Solomon (que afirma que
por meio do seu corpo, o homem relaciona-se corn o ambiente, por meio de
sua alma corn os outros e do seu espirito corn Deus)16 e Bill Gothard."
" The Scofield Reference Bible (New York: Oxford University Press, 1909), nota (n. 1) a lTs 5.23; The New
Scofield Reference Bible (New York: Oxford University Press, 1967) nota (n. 2) a lTs 5.23.
19 Bijbelsche en Religieuze Psychologie, 53. Cf. TDNT, 6:395.
A PESSOA 1NDIVISA 229
nas Escrituras. Podemos ver isso mais claramente quando observamos
que as palavras hebraica e grega traduzidas como alma e espirito sd"o em-
pregadas muitas vezes indistintamente nas Escrituras.
1. 0 homem é descrito na Biblia tanto como alguem que e corpo e
alma como alguem que é corpo e espirito: "Ndo temais os que matam o
corpo e ao podem matar a alma" (Mt 10.28); "Tambem a mulher, tanto a
vidva como a virgem, cuida das coisas do Senhor, para ser santa, assim no
corpo como no espirito" (1Co 7.34); "Assim como o corpo sem o espirito é
morto, assim tambem a fe sem as obras é morta" (Tg 2.26).
2. A tristeza é atribuida tanto a alma como ao espirito: "levantou-se
Ana, e, corn amargura de alma, orou ao SENHOR, e chorou abundante-
mente" (1Sm 1.10); "Porque o SENHOR to chamou como a mulher de-
samparada e de espirito abatido; como a mulher da mocidade, que fora
repudiada, diz o teu Deus" (Is 54.6); "Agora, esta angustiada a minha alma" (Jo
12.27); "Ditas estas coisas, angustiou-se Jesus em espirito" (Jo 13.21);
"Enquanto Paulo os esperava em Atenas, o seu espirito se revoltava em
face da idolatria dominante na cidade" (At 17.16); "porque este justo [L6],
pelo que via e ouvia quando habitava entre eles, atormentava a sua alma
justa, cada dia, por causa das obras iniquas daqueles" (2Pe 2.8).
3. 0 louvor e o amor a Deus sdo atribuidos tanto a alma como ao espi-
rito: "A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espirito se alegrou em
Deus, meu Salvador" (Lc 1.46-47); "Amards, pois, o Senhor, teu Deus, de
todo o teu coracdo, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de
toda a tua force (Mc 12.30).
4. A salvacdo é associada tanto a alma como ao espirito: "acolhei, corn
mansiddo, a palavra em vas implantada, a qual é poderosa para salvar a
vossa alma" (Tg 1.21); "que o autor de tal infamia seja... entregue a Sata-
nas, para a destruicdo da came, a fim de que o espirito seja salvo, no dia do
Senhor" (1Co 5.3,5).
5. Morrer é descrito igualmente como a partida da alma ou do espirito:
"Ao sair-lhe a alma (porque morreu), deu-lhe o nome de Benoni" (Gn
35.18); "E, estendendo-se tees vezes sobre o menino, clamou ao SENHOR e
disse: 0 SENHOR, meu Deus, rogo-te que facas a alma deste menino
tornar a entrar nele" (1Rs 17.21); "Nao temais os que matam o corpo e nao
podem matar alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno
tanto a alma como o corpo" (Mt 10.28); "Nas tuas malos, entrego o meu
espirito" (S1 31.5); "E Jesus, clamando outra vez corn grande voz, entre-
230 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
you o espfrito" (Mt 27.50); "Voltou-lhe o espfrito, ela imediatamente se
levantou" (Lc 8.55); "Entao, Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas maos
entrego o meu espfrito!" (Lc 23.46); "E apedrejavam Estevao, que invoca-
va e dizia: Senhor Jesus, recebe o meu est:litho!" (At 7.59).
6. Refere aos que ja morreram como almas, algumas vezes, e como espi-
ritos, outras vezes: Mt 10.28 (citado acima); "Quando ele abriu o quinto
selo, vi debaixo do altar, as almas daqueles que tinham sido mortos por cau-
sa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam" (Ap 6.9); "e
a Deus, o Juiz de todos, e aos espfritos dos justos aperfeigoados" (Hb
12.23); "Pois tambem Cristo morreu... para conduzir-vos a Deus; morto,
sim, na came, mas vivificado no espfrito, no qual tambem foi e pregou aos
espiritos em prisao, os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a
longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noe" (iPe 3.18-20).
Os tricotomistas freqiientemente apelam para duas passagens do Novo
Testamento, Hebreus 4.12 e 1 Tessalonicenses 5.23, como prova de sua
opiniao, o que nenhuma dessas passagens faz.
Hebreus 4.12 diz o seguinte:
Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de
dois gumes, e penetra ate o ponto de dividir alma e espfrito, juntas e medulas, e é
apta para discernir os pensamentos e propositos do coragdo.
20 Sobre a interpretag5o de Hb 4.12 e 1Ts 5.23, ver tabem Bavinck, Bijbelsche Psychologie, pp. 58-59; Louis
Berkhof, Systematic Theology, ed. rev. e aumentada; Berkouwer, Man, p. 210; Sobre Hb 4.12, ver, ainda, F.
F. Bruce, The Epistle to the Hebrews, serie New International Commentary on the New Testament, (Grand
Rapids: Eerdmans, 1964), pp. 80-83. Em defesa da tricotomia, ver F. Delitzsch, The Epistle to the Hebrews,
(Edinburgh: T. & T. Clark, 1882), pp. 202-14, especialmente pp. 212-14.
=1 Systematic Theology, p. 192. Cf. A. H. Strong, Systematic Theology, vol. 2 (Philadelphia: Griffith and
Rowland, 1907), pp. 483-88; J. T. Mueller, Christian Dogmatics, (St. Louis: Concordia, 1934), p. 184; H.
C. Thiessen, Introductory Lectures in Systematic Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1949), pp. 225-26;
Gordon H. Clark, The Biblical Doctrine of Man (Jefferson, MD: The Trinity Foundation, 1984), pp. 33-45.
232 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
mia no sentido em que os antigos gregos a ensinaram. Platao, por exem-
plo, defendeu a ideia de que se deve considerar o corpo e a alma como duas
substancias distintas: a alma racional, que é divina, e o corpo. Dado que o
corpo é composto da substancia inferior chamada materia, seu valor é infe-
rior ao da alma. Na morte, o corpo simplesmente se desintegra, mas a alma
racional (ou nous) retorna "aos ceus", se seu curso de nail) foi justo e
honrado, e continua a existir para sempre. A alma é considerada uma subs-
tancia superior, intrinsicamente indestrutivel, enquanto o corpo é inferior a
alma, mortal, e fadado ao aniquilamento. No pensamento grego, portanto,
absolutamente nao ha lugar para a ressurreicao do corpo.22
Mas mesmo a parte do entendimento grego da dicotomia, que é clara-
mente contrario a Escritura, é necessario rejeitarmos o termo dicotomia
como tal, ja que ele nao é uma descricao precisa da concepcao biblica do
homem. A palavra em si mesma é questionavel. Ela vem de duas razes
gregas: diche, que significa "dupla" ou "em duas"; e temnein, significando
"cortar". Ela, portanto, sugere que a pessoa humana pode ser cortada em
duas "partes". Mas o homem, nesta vida presente, nao pode ser separado
dessa maneira. Como veremos, a Biblia descreve a pessoa humana como
uma totalidade, urn todo, urn ser unitario.
0 melhor modo de determinar a concepcao biblica do homem como
uma pessoa integral é examinar os termos usados para descrever os varios
aspectos do homem. Antes de fazermos isso, contudo, cabem duas obser-
vacoes: (1) Como foi dito, a preocupacao primaria da Biblia nao é a cons-
tituicao psicologica ou antropologica do homem mas a sua inescapavel
relacao com Deus; e (2) devemos ter sempre em mente o que J. A. T. Ro-
binson diz a respeito do uso desses termos no Antigo Testamento: "Qual-
quer parte, em qualquer momento, pode significar o todo",23 e o que G. E.
Ladd afirma a respeito do seu uso no Novo Testamento: "A pesquisa mo-
derna tern reconhecido que termos tais como corpo, alma e espirito nao sao
separaveis ou diferentes do homem mas diferentes modos de considerar o
homem todo".24
Corn isso em mente, veremos primeiro os termos do Antigo Testamen-
to e, depois, os do Novo Testamento.
" Cf., do autor, A Willa e o Futuro (Rio Paulo: Editora Cultura CristA, 1989), cap. 7. Sobre essa questfto,
ver tambem Berkouwer, Man, pp. 212-22.
23 The Body, p. 16.
" G. E. Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p. 457.
A PESSOA INDIVISA 233
Segue-se, portanto, que nao se deve considerar ruach como urn aspec-
to separado do homem, mas como a pessoa toda vista de uma determinada
perspecti v a.
Francis Brown, S. R. Driver e Charle Briggs, Hebrew and English Lexicon of the Old Testament (New
York: Houghton Mifflin, 1907).
26 Provavelmente o exemplo mais conhecido do use dessa palavra em referOncia ao homem seja Gn 2.7 —
"Entao formou o SENHOR Deus ao homem do p6 da terra e the soprou nas narinas o Mega de vida, e o
homem passou a ser alma vivente (nephesh chayyah)".
" "Psyche", TDNT, 9:620.
3
8 The Pauline View of Man (London: Macmillan, 1956), p. 90.
234 CRIADOS A 1MAGEM DE DEUS
Olhamos a seguir para as palavras do Antigo Testamento geralmente
traduzidas como "coracao": lebh e lebhabh. Brown-Driver-Briggs da dez
significados para estas duas palavras, dentre os quais, os seguintes: "o ho-
mem interior ou a alma", "mente", "resolucoes da vontade", "conscien-
cia", "carater moral", "o proprio homem", "a sede dos apetites", "a sede
das emocoes", "a sede da coragem". F. H. Von Meyenfeldt, em seu estudo
definitivo do termo, conclui que lebh ou lebhabh representa de modo geral a
pessoa toda e tem um significado predominantemente religioso.29
O termo coracao é empregado no Antigo Testamento nao so para des-
crever a sede do pensamento, do sentimento e da vontade; é tambem a sede do
pecado (Gn 6.5; Si 95.8, 10; Jr 17.9), a sede da renovacao espiritual (Dt
30.6; SI 51.10; Jr 31.33; Ez 36.26), e a sede da fe (S128.7; 112.7; Pv 3.5).
Mais do que qualquer outro termo do Antigo Testamento, a palavra co-
rardo significa o homem no centro mais secreto de sua existencia, e como
ele é nas profundezas do seu ser. Herman Dooyeweerd, o filosofo holandes,
descobriu que, na Escritura, coracao é "a origem religiosa da existencia in-
teira do homem";" a filosofia por ele elaborada enfatiza que o coracao é o
centro e a fonte de toda atividade religiosa, filosofica e moral do homem.
Ray Anderson chama o coracao de "o centro da personalidade subjetiva"; e
"a unidade do corpo e da alma em sua ordem verdadeira — é a pessoa".3I
Todos os tres termos do Antigo Testamento examinados ate aqui, por-
tanto, descrevem o homem em sua unidade e totalidade, embora vendo-o de
perspectivas ligeiramente diferentes. H. Wheeler Robinson comenta: "Nao
e possivel fazer uma diferenciacao exata dos campos de acao defini-
dos por `coracao', nephesh e ruach, pela simples razao de que nunca se fez
uma diferenciacao precisa assim".32
Vemos, agora, a proxima palavra, basar, que é geralmente traduzida
por "came". Brown-Driver-Briggs lista seis significados, incluindo os se-
guintes: "came" (o corpo), "parentes consangtifneos", "homem, em con-
traposicao a Deus", "raga humana". N. P. Bratsiotis diz que basar é mais
freqtientemente usado no Antigo Testamento para "o aspecto exterior e
carnal da natureza humana".33 Ele diz ainda que, mesmo quando basar
"F. H. Von Meyenfeldt, Het Hart (Leb, Lebab) in het Oude Testament (Leiden: E. J. Brill, 1950), pp. 218-19. "
Wijsbegeerte der Wetsidee, vol. I (Amsterdam: H. J. Paris, 1935), p. 30.
" On Being Human, p. 211.
i2 The Christian Doctrine of Man (Edinburgh: T. & T. Clark, 1911), p. 26.
" "Basar", em G. Johannes Botterweck e Helmer Ringgren (org.), Theological Dictionary of the Old Testa-
ment, trad. de John T. Willis, vol. 2, ed, rev. (Grand Rapids: Eerdmans, 1977), p. 325.
A PESSOA INDIVISA 235
significa o aspecto exterior do homem, em distincao a nephesh como o
aspecto interior, jamais devemos interpretar essas palavras no sentido de
urn dualismo entre alma e corpo no sentido platonico.
Ao contrario, basar e nephesh devem ser entendidos como aspectos diferentes da exis-
tencia do homem como uma entidade dual. E precisamente esta totalidade antropolo-
gica enfatica que 6 determinante para a natureza dual do ser humano. Ela exclui qual-
quer nocao de uma dicotomia entre basarenephesh... como irreconciliavelmente opostas
uma a outra, e revela o miltuo relacionamento psicossomatico vital entre elas.34
Ibid., p. 326.
n Anthropologie des Alten Testaments (Munich: Chr. Kaiser, 1973), p. 55. '6
F. B. Knutson, "Flesh", ISBE, 2.314.
"Corpo", ibid., 1:528-29. Observe tambern o comentario de J. Pedersen: "Alma e corpo [na terminologia do
Antigo Testamento] sdo tao intimamente unidos que ndo se consegue fazer distilled° entre eles. Eles sdo mail
do que 'unidos'; o corpo 6 a alma em sua forma exterior" (Israel: Its Life and Culture, vol. 1 [London: Oxford
University Press, 1926], p. 171).
" The Christian Doctrine of Man, p. 27.
236 CR1ADOS A IMAGEM DE DEUS
44 Ibid., p. 654.
45
"Pneuma", TDNT, 6:435.
A PESSOA INDIVISA 237
ciencia do homem (1Co 2.11).46 W. D. Stacey argumenta que Paulo ndo ye o
pneuma como algo que somente pessoas regeneradas tem: "Todos os
homens tern pneuma desde o nascimento, mas o pneuma cristdo, na comu-
nhdo corn o Espirito de Deus, assume um novo miter e uma nova digni-
dade" (Rm 8.10).47
interessante observar que pneuma tambem pode indicar a vida apps a
morte. Como já vimos, Hebreus 12.23 descreve santos mortos como "os
espiritos dos justos aperfeicoados"; tambem Cristo (Lc 23.46) e Estevdo
(At 7.59), ao morrer, encomendaram seus espiritos a Deus o Pai ou a Deus o
Filho, respectivamente. Tambem se afirma de Cristo que ele pregou aos
"espiritos em prisdo", numa referencia &via a pessoas falecidas (1Pe 3.19).
Pneuma 6, portanto, empregada em grande parte como sinonimo de
psyche, sendo muitas vezes usadas indistintamente no Novo Testamento.
Ladd faz, contudo, uma distilled° entre elas: "Espirito é freqiientemente
usado em referencia a Deus; alma nunca é usada dessa forma. Isso indica
que pneuma representa o homem em seu aspecto de ser orientado para
Deus, enquanto que psyche representa o homem em seu aspecto huma-
4
no". 8 Em geral, estou de acordo, mas ha excecoes. Por exemplo, a psyche
6 descrita algumas vezes como louvando e magnificando o Senhor (Lc
1.46), e Tiago diz que a palavra implantada em nos é capaz de salvar as
nossas almas (psychas, Tg 1.21). Pneuma, esta claro, pode ser usado para
designar a pessoa toda; assim como psyche, descreve urn aspecto do ho-
mem em sua totalidade.
A proxima palavra que analisaremos é kardia, termo do Novo Testa-
mento equivalente a lebh e lebhabh, traduzida geralmente como "cora-
cdo". Arndt-Gingrich indica como o sentido principal da palavra o seguin-
te: "a sede da vida fisica, espiritual e mental". Ele 6 tambem descrito como o
centro e a fonte de toda a vida interior do homem, corn seu pensamento,
sentimento e voliedo. 0 coraedo tambem é descrito como o lugar da habi-
taedo do Espirito Santo.
Johannes Behm igualmente descreve o coraedo no Novo Testamento
como o principal orgdo da vida psiquica e espiritual, o lugar no ser humano no
qual Deus dd testemunho de si mesmo. 0 coracdo é o centro da vida
interior de uma pessoa: de seus sentimentos, entendimento e vontade. 0
Podemos resumir nossa analise das palavras biblicas usadas para des-
crever os varios aspectos do homern da seguinte forma: deve-se entender o
homern como um ser unitario. Ele tern um aspecto fisico e urn aspecto
mental ou espiritual, mas nao devemos separar esses dois. Deve-se en-
tender a pessoa humana como uma alma corporalizada ou urn corpo
5
"almatizado". 4 A pessoa humana deve ser vista ern sua totalidade, nao
como um combinacao de diferentes "partes". Esse é o ensino claro tanto do
Antigo como do Novo Testamento."
Urn estudo idoneo, embora mais antigo, a respeito do significado de sarx nos escritos de Paulo 6 Wm. P.
Dickson, St. Paul's Use of the Terms Flesh and Spirit (Glasgow: Maclehose, 1883). Urn estudo mais recente
6 J. A. Robinson, The Body (1952).
" "Body", 1SBE, 1, p. 529.
53 Ibid.
G. C. Berkouwer, "The Whole Man", em Man, pp. 194-233; C. A. Van Peursen, Body, Soul, Spirit: A Survey of
the Body-Mind Problem, trad. de H.H.Hoskins (London: Oxford University Press, 1966); H. Ridderbos, Paul:
An Outline of His Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), pp. 64-68, 114-26; Rudolf Bultmann, Theology of
the New Testament, trad. de K. Grobel, vol. 1 (New York: Scribner, 1951), pp. 190-227; Werner
G. Kiimmel, Man in the New Testament (London: Epworth, 1963); Robert Jewett, Puul's Anthropological
Terms (Leiden: E. J. Brill, 1971).
S6 John Cooper, "Dualism and the Biblical View of Human Beings", Reformed Journal 32, n°", 9 e 10
(Setembro e Outubro de 1982).
" Man, p. 211.
" On Being Human, p. 209. Ver tambem Robert H. Gundry, Soma in Biblical Theology (Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1976), p. 83. De acordo corn Gundry, tanto o Antigo como o Novo testamento
ensinam "dualidade" , nao "dualismo" .
"Esse termo tambem 6 usado por John Murray, "Thrichotomy", em Collected Writings of John Murray, vol,
2 (Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1977), p. 33 ("o homem 6 urn ser psicossomdtico"); e por G. W.
Bromiley, "Anthropology", ISBE, 1, p. 134 ("o homem tern urn aspecto fisico e um aspecto espiritual...
ambos pertencem a uma unidade psicossomatica"). Ver tambem Henry Stob, Ethical Reflections (Grand
Rapids: Eerdmans, 1978), p. 226.
A PESSOA 1NDIVISA 241
muitos aspectos que constituem urn todo indivisivel, Donald M. MacKay faz
estes comentarios significativos a respeito da relagao entre mente e cerebro:
Nos nao precisamos imaginar a "mente" e o "cerebro" como duas especies de "subs-
tancias" interativas. Nao precisamos conceber os eventos mentais e os eventos cere-
brais como dois conjuntos distintos de eventos... Parece-me suficiente, ao inves dise so,
descrever os eventos mentais e seus eventos cerebrais correlatos como os aspec-
tos "interiores" e "exteriores" de uma anica seqiiencia de eventos, que em sua plena
natureza sac) mais ricos — ha mais neles — do que pode ser expresso em uma so
categoria, mental ou ffsica.6°
Nos estamos considerando ambos [minha experiencia consciente e o funcionamento de
meu cerebro] como dois aspectos igualmente reais de uma so unidade misteriosa.
0 observador externo ve urn aspecto, o de urn padrao ffsico de atividade cerebral. 0
prOprio agente conhece urn outro aspecto, o de sua experiencia consciente... 0 que
estamos dizendo é que esses aspectos sao complementares.m
0 ESTADO INTERMEDIARIO
Defrontamo-nos, agora, porem, corn uma pergunta importante: E o pe-
rIodo entre a morte e a ressurreicao, o chamado "estado intermediario"?
Quando uma pessoa morre, o que acontece? Visto que nao se é completo
sem urn corpo, uma pessoa simplesmente cessa de existir ate o dia da res-
surreicao? Ou ela "existe" em urn estado totalmente inconsciente? Ou ime-
diatamente alp& a morte recebe seu corpo da ressurreicao? Ou recebe uma
especie de corpo intermediario, para ser substituido mais tarde pelo corpo da
ressurreicao?
A ideia de que o homem cessa de existir entre a morte e a ressurreicao,
sustentada pelas Testemunhas de Jeova e pelos Adventistas do Setimo Dia,
60 Donald M. MacKay, Brains, Machines and Persons (Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p. 14.
61 Ibid., 83. Mais tarde, nesse livro (p. 101), MacKay descreve a vida futura do cristAo de um modo que
parece deixar lugar somente para a ressurreicao do corpo e nao para uma existencia do crente durante o
estado intermedibrio (ver, abaixo, pp. 241-245). Se esta 6 a posicao de MacKay, eu nao concordaria com ele.
Podemos ainda aceitar as afirmag6es feitas nas citag6es acima como descrig6es corretas da unidade da
mente com o cerebro durante esta presente vida.
62 Ver, do autor, The Bible and the Future, cap. 17 e cap. 20.
242 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
deve ser rejeitada como nao-biblica." A ideia de que imediatamente ap6s a
morte as pessoas recebem corpos "intermediarios" tambem nao encontra
base escrituristica. 0 contraste no Novo Testamento é sempre entre o cor-
po presente e o corpo ressuscitado (cf. Fp 3.21; 1Co 15.42-44). Os que
advogam essa opinido, as vezes, citam 2 Corintios 5.1 para provar que
receberemos tais corpos "intermediarios": "Sabemos que, se a nossa casa
terrestre deste tabernaculo se desfizer, temos da parte de Deus urn edificio,
casa nao feita por maos, eterna, nos cells". Mas essa passagem fala a res-
peito da casa eterna no c6u. Se tivessemos que entender essa "casa eterna"
como se referindo a urn novo corpo, ela nao designaria urn corpo "interme-
diario", temporario.64
Uma outra ideia, comumente chamada de "sono da alma", e a de que o
homem, ou sua "alma" , existe num estado inconsciente entre a morte e a
ressurreicao. Essa ideia tern sido sustentada por varios grupos cristdos.
Joao Calvino escreveu sua primeira obra teologica, Psychopannychia, para
combater ensinamentos sobre o sono-da-alma sustentados pelos anabatis-
tas da sua epoca.65 Mais recentemente, essa posicao tern sido defendida
por G. Vander Leeuw,66 Paul Althaus67 e Oscar Cullrnann.68
Herman Dooyeweerd, ao rejeitar a dicotomia alma-corpo, afirma urn
novo entendimento dos dois aspectos do homem: coracao e "capa-de-fun-
cao" (functie-mantel), sendo que este ultimo termo refere-se ao corpo, o
qual e a totalidade de sua existencia temporal e a estrutura inteira de todas as
suas funcOes temporais.69 0 coracao e a capa-de-funcao nao devem ser
entendidos como duas substancias distintas dentro do ser humano, mas, ao
inves disso, como descricOes do homem em sua totalidade unitaria.
Mas isso nao responde a nossa pergunta sobre o que acontece ao ser
humano entre a morte e a ressurreicao. Quando Dooyeweerd foi perguntado:
Que tipo de fungO'es ainda podem ser deixadas para a "alma" (anima rati-
onalis separata, alma racional separada) quando ela for separada de sua
conjuncao temporal corn as funcoes pre-psiquicas 70 (isto 6, apos a morte),
" Ver, do autor, The Four Major Cults (Grand Rapids: Eerdmans, 1963), pp. 345-71.
64 Para uma interpretagdo diferente da "casa eterna no cdu", ver The Bible and the Future, pp. 104-6,
Em Calvino, Tracts and Treatises of the Reformed Faith, vol. 3, trad. de Henry Beveridge (Grand Rapids:
Eerdmans, 1958), pp. 413-90.
66
Onsterfelijkheid of Opstanding, 2' ed. (Assen: Van Gorcum, 1936).
Die Letzten Dinge, 7' ed. (1922: Giitersloh: Bertelsmann, 1957).
" Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead? (New York: Macmillan, 1964), pp. 10-11.
69 William S. Young, "The Nature of Man in the Amsterdam Philosophy", Westminster Theological Journal
Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar, as almas daqueles que tinham
sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustenta-
vam (Ap 6.9).
Assim, as vezes, o Novo Testamento diz que nos que somos crentes,
continuaremos a existir num estado provisorio de alegria entre a morte e a
ressurreicao, ao passo que em outras vezes ele diz que as "almas" ou "es-
piritos" dos crentes ainda existirao durante aquele estado. Mas a Biblia
nao usa palavras como "alma" e "espirito" no mesmo modo que nos o
fazemos; dessa forma, essas passagens querem nos dizer tao-somente que os
seres humanos continuardo a existir entre a morte e a ressurreicao, en-
A PESSOA INDIVISA 245
quanto esperam a ressurreicao do corpo. A Biblia nab nos da qualquer
descricao antropologica da vida nesse estado intermediario. Podemos es-
pecular a respeito dela, podemos tentar imaginar como esse estado sera,
mas nao conseguimos formar uma ideia clara da vida entre a morte e a
ressurreicao. A Biblia a ensina, mas nao a descreve. Como Berkouwer diz, o
que o Novo Testamento nos diz a respeito do estado intermediario nao passa
de urn sussurro.75
Embora o homem exista agora no estado de unidade psicossomatica, tal
unidade podera ser e sera temporariamente rompida no momento da
morte. Em 2 Corintios 5.8, Paulo ensina claramente que os seres humanos
podem existir a parte de seus corpos presentes. Essa afirmacdo tambem
esta registrada em duas outras passagens do Novo Testamento:
a fim de que seja o vosso coracao confirmado em santidade, isento de culpa, na
presenca de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, com todos os
seus santos (ITs 3.13).
Pois, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim tambem Deus, mediante Je-
sus, trard, em sua companhia, os que dormem (ITs 4.14).
Esses textos falam a respeito dos "santos" e "os que dormem" como tais
que existem apos a morte e antes da ressurreicao — observe que a res-
surreicao daqueles que dormiram em Cristo é mencionada mais tarde em 1
Tessalonicenses 4 (v. 16)." Pode se observar tambem que, nesse versiculo, a
oracdo "Deus, mediante Jesus, trara, em sua companhia, os que dormem"
[RC: "aos que em Jesus dormem Deus os tornara a trazer corn ele"} clara-
mente sugere que os crentes falecidos permanecem em algum estado de
existencia ate a ressurreicao.
A unidade psicossomatica d o estado normal do ser humano. Na ressur-
reicao, o ser humano sera plenamente restaurado a essa unidade e se torna-
rd, dessa forma, novamente completo. Mas devemos reconhecer que, se-
gundo o ensino biblico, os crentes podem existir temporariamente em um
estado provisorio de alegria separados de seus corpos atuais durante o "tem-
po" entre a morte e a ressurreicao. Esse estado intermediario é, todavia,
incompleto e provisorio. Aguardamos a ressurreicao do corpo e a nova
terra como o climax final do programa redentor de Deus.
75 De Wederkomst van Christus, vol. 1 (Kampen: Kok, 1961), p. 79. Sobre o estado intermedidrio, ver ainda
Berkouwer, The Return of Christ, James Van Oosterom (Grand Rapids: Eerdmans, 1972), pp. 32-64; e The
Bible and the Future, pp. 92-108.
76 Sobre esses dois versiculos, ver W. Hendriksen, I and II Thessalonians, New Testament Commentary
(Grand Rapids: Baker, 1955), ad loc; e Leon Morris, The First and Second Epistles to the Thessalonians,
New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1959), ad loc.
246 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
IMPLICACOES PR A.TICAS
A compreensao do ser humano como uma pessoa indivisa, como apre-
sentada neste capitulo, tem importantes implicacoes praticas.
Primeira, a igreja deve estar preocupada corn a pessoa integral. Em sua
pregacao e ensino, a igreja nao deve se dirigir somente ao intelecto daqueles a
quern ministra, mas tambern ao seu sentimento e vontade. A pregacao que
meramente comunica informacao intelectual a respeito de Deus ou da Biblia
tem graves lacunas; o ouvinte deve ser movido em seu coracao e motivado a
louvar a Deus. Professores de escola biblica devem fazer mais do que sim-
plesmente dar aos alunos um "conhecimento" decorado de versiculos da
Biblia ou de postulados doutrinarios; seu ensino deve buscar uma resposta
que envolva todos os aspectos da pessoa. Os programas da igreja para a
juventude nao deveriam negligenciar o corpo; os esportes e as atividades
externas deveriam ser encorajadas como urn aspecto da vida crista global.
Em sua tarefa evangelistica e missionaria, a igreja deveria se lembrar
tambern de que esta tratando corn pessoas indivisas. Embora o proposito
principal da missao seja confrontar as pessoas corn o evangelho, de forma
que elas possam se arrepender de seus pecados e serem salvas por meio da fe
em Cristo, todavia a igreja nab deve esquecer jamais que os que sao alvo de
sua acao missionaria tem necessidades tanto fisicas quanto espirituais.
Mantendo em mente o fato de que o homem é urn ser unitario, devemos
evitar expressoes como "salvar almas" para descrever a tarefa do missio-
nario e optar por uma abordagem missionaria holistica ou inclusiva. Tal
abordagem, que algumas vezes é conhecida como "o ministerio da palavra e
das awes", direciona o missionario a estar preocupado nao somente a
respeito de ganhar convertidos para Cristo, mas tambem em melhorar as
condicOes de vida desses convertidos e seus vizinhos, trabalhando em are-
as como agricultura, alimentacao e sable. 0 estabelecimento de escolas
para a educacao crista do povo local e a manutencao de clinicas e hospitais
para o cuidado da sadde regular e de emergencia, entretanto, no deve ser
considerado algo fora da esfera da nab missionaria da igreja, mas como urn
aspecto essencial desta. Arthur F. Glasser, ex-deco da School of World Mis-
sion at Fuller Theological Seminary [Escola de MissOes Mundiais do Semi-
nario Teologico Fuller], diz que na atividade como missionarios cristaos,
o desenvolvimento da fe individual e interior deve ser acompanhado por uma obedien-
cia solidaria e exterior ao mandato cultural extensamente detalhado na Escritura Sa-
grada. 0 mundo deve ser servido, nao evitado. A justica social deve ser promovida, e
A PESSOA INDIVISA 247
questoes como guerra, racismo, pobreza e desequilibrio econOmico devem se tornar
uma preocupacao ativa e participativa daqueles que professam crer ern Jesus Cristo,
Nrio a suficiente que a missdo crista seja redentora; ela tambem deve ser profeiica."
77 "Missiology", no Evangelical Dictionary of Theology, org. por Walter A. Elwell (Grand Rapids: Baker,
1984), p. 726. Ver, tambdm, William Dyrness, Let the Earth Rejoice: A Biblical Theology of Holistic Mis-
sion (Westchester, IL: Crossway Books, 1983); Francis M. Dubose, God who Sends: a Fresh Quest for
Biblical Mission (Nashville: Broadman Press, 1983); e J. H. Boer, Missions: Heralds of Capitalism or
Christ? (Ibadan, Nigeria: Day Star Press, 1984).
" The American Holistic Medical Association, fundada em Maio de 1978.
" "Holistic Medicine", Encyclopedia Americana, vol. 14 (Danbury, CT: Grolier, 1983), p. 294. "
Ibid.
248 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
Em um livro fascinante, entitulado Anatomy of an Illness [Anatomia de
uma Doenca], Norman Cousins comenta que um dos aspectos mais
importantes na recuperacao de uma doenca esta na "vontade de viver": "A
vontade de viver nao é uma abstracao te6rica, mas uma realidade fisiolOgi-
ca corn caracteristicas terapeuticas".8' Cousins relata que centenas de me-
dicos the disseram que "nenhum remedio que pudessem dar aos pacientes foi
tao potente como o estado de espirito com que um paciente encara sua
propria doenca".82 Segundo Cousins, na cerimonia de formatura da Johns
Hopkins University School of Medicine [Faculdade de Medicina da Uni-
versidade Johns Hopkins], em 1975, o dr. Jerome D. Frank disse aos for-
mandos "que qualquer tratamento de uma doenca que nao ministre tam-
bem ao espirito humano é completamente falho".83 A conclusao é clara: a
cura e a manutencao da satide fisica envolve a pessoa toda. Medicos, en-
fermeiras, pastores e pacientes devem se lembrar sempre disso.84
Finalmente, o conceito da pessoa indivisa tem implicacOes importan-
tes para a psicologia e para o aconselhamento. Estudos recentes de psico-
logia tem colocado uma nova enfase na totalidade do homem — uma enfase que
é chamada, algumas vezes, de "teoria organismica"." Hall and Lin-
dzey afirmam que a nova enfase, em psicologia, na pessoa toda 6 uma
rend° contra o dualismo mente-corpo, a psicologia das faculdades e o
behaviorismo. Esta nova enfase, segundo eles, tem sido grandemente aceita:
Quem na psicologia hoje nao defende as principais iddias da teoria organfsmica de
que o todo a alguma coisa mais do que a soma de suas partes, de que o que acontece a
uma parte acontece ao todo, e que nao existem compartimentos separados dentro do
organismo?"
" Karl Menninger, et al. The Vital Balance (New York: Viking Press, 1963), p. 335.
" Mental Health Through Christian Community (Nashville: Abingdon, 1965), p. 20.
" "What God Hath Joined: The Psychospiritual Unity of Personality", The Bulletin: Christian Association
for Psychological Studies 5, n. 2 (1979), p. 11.
" Sobre a pessoa indivisa, ver tambem Salvatore R. Maddi, Personality Theories, ed. (Homewood, IL:
Dorsey Press, 1980).
CAP iTULO 12
A QUESTA.° DA L1BERDADE
,owalialtatv
A CAPACIDADE DE ESCOLHA
Voltamos a nossa atencao agora para a primeira das duas expressoes, a
' Para uma critica perspicaz da psicologia das faculdades, ver John Locke, An Essay Concerning Human
Understanding (Oxford: Clarendon Press, 1894), Livro 11, Cap. 21, Segao 6, pp. 14-17.
A palavra vontade pode, 6 claro, ser corretamente entendida no sentido do processo de escolher ou querer
alguma coisa — urn processo que envolve a pessoa toda. Tat querer, na verdade, jamais 6 feito sem conside-
racaes racionais e impulsos ou apetites emocionais. 0 querer 6 sempre uma fungao da pessoa toda.
3 As vezes, no entanto, as palavras "liberdade" e "livre" serao usadas em urn sentido mais geral, como
quando elas se referem a "liberdade de expressao" ou "o mundo livre".
252 CRIADOS A IMAGEM DE DEUS
saber, a capacidade de escolher (ou aptidao para escolha). Essa capacida-
de ou aptidao é um aspecto inalienavel da natureza humana normal. h.
afirmei isso antes. No CapItulo 2, vimos que a capacidade de fazer esco-
lhas fundamenta-se no fato de que o ser humano é uma "pessoa criada".4
Tarnbem fiz notar que a capacidade de fazer escolhas é um aspecto da
imagem de Deus no seu sentido lato ou estrutural.5 0 entendimento de que os
seres humanos tern essa capacidade de escolha e de que retem esta capa-
cidade mesmo apps a Queda é, portanto, uma enfase essencial na doutrina
crista do homem. A Biblia sempre se dirige aos seres humanos como pes-
soas que podem tomar deciseies e que sao responsaveis pelas deciseies que
tomam. Deus nao trata corn os seres humanos como se fossem urn "pedaco de
pau" ou uma "pedra", mas como pessoas que tem de the responder e que
sao consideradas responsaveis pela natureza de sua resposta.6
Na perspectiva crista, o homem é e permanece, como diz Leonard Ver-
duin, "uma criatura de opcOes, alguem que é constantemente confrontado
corn alternativas entre as quais ele escolhe, dizendo sim a uma e nao a ou-
tra".7 Essa capacidade de fazer escolhas distingue os seres humanos de todas as
outras criaturas na terra: montanhas, plantas e animais. Alguns animais
podem parecer capazes de fazer escolhas, mas o que parece ser escolhas
neles é, na verdade, o resultado tanto do instinto (por exemplo, quando os
salmeies encontram urn determinado rio e nadam rio acima para a desova ou
quando macaricos-dourados migram do ensolarado sul para seu previo habi-
tat no node) como de treinamento pelo homem (por exemplo, quando urn
cachorro é treinado para obedecer a seu dono por meio de recompensas e
punicoes). De fato, em sua capacidade de fazer escolhas os seres humanos
revelam uma semelhanca a Deus. C. S. Lewis trata desse assunto no seu
livro The Great Divorce [0 Grande Divorcio], onde reproduz uma conversa
imaginaria corn seu professor, George Macdonald, nestes termos:
0 tempo é a lente por excelencia para voces poderem ver — em uma imagem reduzida e
nftida, como quando se olha pelo lado contrario do telesc6pio, o que de outra forma
pareceria grande demais para vocos enxergarem. Liberdade [aqui, no sentido de capa-
cidade de escolher]e isto: o dom que mais os torna semelhantes ao seu Criador.8