Você está na página 1de 3

20/04/13 Folha de S.

Paulo - Os ossuários da purificação étnica - 10/3/1996

Assine 0800 703 3000 SAC Bate-papo E-mail E-mail Grátis Shopping BUSCAR

São Paulo, domingo, 10 de março de 1996

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os ossuários da purificação étnica


JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na introdução de seu grande livro "As Palavras e as Coisas", Michel


Foucault evocava a classificação burlesca de "uma certa enciclopédia
chinesa" citada por Jorge Luis Borges, na qual os animais são divididos em
"pertencentes ao imperador", "embalsamados", "leitões", "que se agitam
como loucos", "que acabam de quebrar a bilha" e outras categorias do
mesmo gênero. O que nos chama a atenção, dizia ele, nessas listas que
misturam todas as categorias do Mesmo e do Outro, é a pura e simples
impossibilidade de pensar isso.
Aparentemente, a razão ocidental fez progressos desde então. E as
cabeças pensantes das grandes potências políticas apadrinharam
recentemente um acordo de paz para a ex-Iugoslávia, reconhecendo de
fato a partilha da Bósnia-Herzegovina entre três etnias: a etnia sérvia, a
etnia croata e a etnia muçulmana. A lista, sem dúvida, é menos rica em
imaginação que a inventada por Borges, mas de forma alguma menos
aberrante.
Dentro de qual gênero comum poderia um filósofo ensinar-nos a distinguir
entre a espécie croata e a espécie muçulmana? Qual etnólogo nos diria,
por acaso, quais são os traços que distinguem uma "etnia muçulmana"?
Poderíamos imaginar um bom número de variações sobre tal modelo. Por
exemplo, uma nação americana recortada em etnia cristã, etnia feminina,
etnia atéia e etnia imigrante. Alguém dirá que a matéria não se presta a
gracejos. Disso tenho plena consciência.
Hegel dizia que as grandes tragédias da história do mundo são encenadas
pela segunda vez como comédias. Aqui, ao contrário, é a farsa que se
torna tragédia.
A guerra bósnia é uma manobra militar que, além de destroçar um país,
permitiu impor como "dado objetivo" da fria razão uma maneira de utilizar
as categorias do Mesmo e do Outro que faz vacilar os próprios
fundamentos de nossa lógica.
Se a descrevermos em termos clássicos, a guerra da Bósnia foi uma guerra
de anexação movida separadamente por dois Estados, a Sérvia e a
Croácia, contra um outro Estado, a Bósnia-Herzegovina, com o apoio das
populações irredentistas locais.
Ora, todo o esforço dos agressores foi impor, no lugar dessa descrição
clássica, uma nova descrição dos acontecimentos: segundo ela, o que se
opunha na frente de batalha eram três etnias cuja identidade, história e
cultura impediam a coexistência.
O obstáculo lógico a essa descrição é que não há uma etnia bósnia, e que
as populações de diversas origens e religiões que povoam a Bósnia-
Herzegovina coexistiram, bem ou mal, ao longo de séculos, como
www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/3/10/mais!/3.html 1/3
20/04/13 Herzegovina coexistiram, bem Folha de S.Paulo
ou mal, - Os ossuários
ao longo da purificação
de séculos, como étnica - 10/3/1996
geralmente se coexiste debaixo do sol. Mas sabemos, desde Hegel, que a
morte é dialética, e os ossuários da purificação étnica resolveram o
problema. Matar o Outro como Outro é o meio mais seguro de investi-lo
em sua identidade, de impor a todos e a ele próprio a evidência dessa
identidade.
Ao massacrar sistematicamente as populações muçulmanas das zonas
conquistadas, os agressores sérvios provavam efetivamente que elas eram
uma etnia. É claro, uma "etnia" definida por uma crença religiosa não quer
dizer nada. Mas o problema aqui não é saber se os critérios são sensatos.
Basta que eles existam e façam coincidir uma diferença específica com o
traçado de uma linha sobre o mapa.
Tal coincidência, como sabemos, é o que reclama uma certa razão: a
razão geopolítica das grandes potências. As próprias grandes potências,
ao conter as ambições territoriais dos agressores, também lhes concedeu o
essencial: a "racionalidade" de seu princípio de partilha, conferindo a cada
etnia seu território. Ao que tudo indica, elas pouco se importaram com a
possível contradição entre as sonoras proclamações da Europa
supranacional e a carnificina "étnica" desse pequeno recanto da mesma
Europa.
Mas, pensando bem, talvez não haja contradição. A própria lógica das
grandes potências repousa sobre uma partilha simples. Os grandes
espaços supranacionais estão reservados à democracia.
Os países do antigo bloco comunista poderão atingi-la quando, por suas
instituições representativas e sobretudo por seu desenvolvimento mercantil
e o controle de seus orçamentos, tiverem provado que são "bons alunos",
aptos a ingressar na grande circulação planetária de homens e capitais.
Quanto ao resto do mundo, se o estágio de seu desenvolvimento não
puder se dar ao "luxo" da democracia, é melhor que seja partilhado e
governado à antiga, segundo os critérios "naturais" de nascimento, tribo e
religião.
Dentro dessa lógica, três etnias valem mais que um povo indefinível e
dividido. A inescrutável etnia "muçulmana" encaixa-se naturalmente, então,
na partilha mais constante da razão ocidental, a mesma com a qual
brincava o texto de Borges: quem diz "muçulmano" diz "oriental", e a
partilha da Bósnia é uma maneira de fazer passar no seio da velha Europa
uma linha demarcatória ideal: a que separa o mundo da razão ocidental,
rumo a um futuro de prosperidade racional comum, e um mundo "oriental",
condenado por tempo indeterminado às classificações irracionais e à
obscura lei de identidade das tribos, da religião e da pobreza.
Essa geografia simbólica, que situa o Japão a oeste e a Bósnia no Oriente,
e essa política imaginária que identifica cada vez mais a universalidade
democrática com a lei mundial da riqueza esquecem apenas o que ocorreu
há 20 séculos, um pouco a leste de Sarajevo.
Nessa época, um ateniense chamado Clístenes fez adotar por seus
concidadãos uma estranha reforma. Até então, Atenas estava dividida em
tribos dominadas por chefias locais de aristocratas, que revestiam seu
poder de proprietários fundiários com a dignidade lendária de sua
tradição. Clístenes substituiu essa partilha natural por uma partilha artificial:
dali em diante, cada tribo seria constituída, por sorteio, de grupos
territoriais separados: um da cidade, um da costa e um do interior.
Tais circunscrições territoriais chamavam-se em grego "demos", e
Clístenes inventou assim a democracia. A democracia não é simplesmente
o "poder do povo". É o poder de um certo tipo de povo: um povo
"inventado" com o propósito de revogar ao mesmo tempo o velho poder
de nascimento e o que se oferece com toda naturalidade a sucedê-lo, o
poder da riqueza; um povo que afirma, aquém das diferenças de
www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/3/10/mais!/3.html 2/3
20/04/13 Folha de S.Paulo - Os ossuários da purificação étnica - 10/3/1996
poder da riqueza; um povo que afirma, aquém das diferenças de
nascimento, a simples contingência do fato de ter nascido em tal lugar e
não em outro; um povo que opõe as demarcações abstratas do território
às duvidosas divisões da natureza.
A democracia é antes de tudo isso: a revogação da lei de nascimento e da
riqueza; a afirmação da pura contingência que faz com que indivíduos e
populações se encontrem em tal lugar; a tentativa de construir um mundo
comum sobre a base dessa única contingência. E é exatamente isso que
estava em jogo no conflito bósnio: face aos agressores sérvios e croatas,
mas também face às reivindicações de uma Bósnia muçulmana, os
democratas bósnios procuraram afirmar o princípio de uma república
unitária: um território no seio do qual a lei comum seria o único princípio
de coexistência -o povo como "demos".
Mas quem triunfou, de fato, foi o outro povo: o povo como "ethnos", o
povo supostamente unido por laços de sangue e pela lei dos ancestrais,
ainda que míticos. Esse triunfo não é talvez um simples exemplo isolado de
uma pequena extremidade da Europa. Talvez seja a profecia que nos
proclama a irrupção de sectarismos étnicos, religiosos e outros mais.
Enquanto "socialistas" e "liberais" identificarem em uníssono o governo
democrático com a lei mundial da riqueza, os partidários da lei dos
ancestrais e da separação das "etnias" estarão autorizados a se
apresentarem como a única alternativa ao poder da riqueza. E as
classificações apropriadas jamais lhe faltarão. Pois todo absurdo torna-se
racional quando esquecemos que a primeira palavra da razão política é o
reconhecimento da contingência da ordem política.

Tradução de José Marcos Macedo.

Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch


Próximo Texto: Gente solene, pomposa e mal-humorada
Índice

Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.

www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/3/10/mais!/3.html 3/3

Você também pode gostar