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XXVII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Campinas - 2017

Performance vocal: interpretação e corpo em inter-relação

MODALIDADE: COMUNICAÇÃO

SUBÁREA: PERFORMANCE

Daniele Briguente
Escola Municipal de Música de Embu das Artes - cantando.voz@gmail.com

Flávio Apro
Universidade Estadual de Maringá – flavioapro@hotmail.com

Resumo: Este artigo aborda a performance vocal, destacando o corpo do cantor como recurso
técnico e expressivo. Ressalta, ainda, a relação entre o gesto corporal do cantor e a estrutura formal
da obra executada. O conceito de interpretação é considerado como processo criativo
interdisciplinar no qual a personalidade do intérprete, produto de sua história de vida, deve
estabelecer relação com a estrutura formal da obra, a fim de obter um resultado interpretativo
equilibrado.

Palavras-chave: Performance vocal. Gesto corporal. Interpretação.

Vocal performance: interrelationship between interpretation and body

Abstract: this article approaches vocal performance, pointing out the singer body as a technical
and expressive resource. In addition, the article highlights the relation between body gesture of
singer and the formal structure of the played piece. The interpretation concept is considered as an
interdisciplinary creative process, where the interpreter personality, which is the result of their life
history, should set relationship with the formal structure of the piece, in order to achieve a
balanced interpretative result.

Keywords: Vocal performance. Body gesture. Interpretation.

1. Interdisciplinaridade e performance
A voz humana, enquanto recurso fonador integrante da fisiologia humana,
perpassa toda a dinâmica cotidiana. Assim, a voz falada apresenta finalidades práticas e
intenções, além de servir “para expressar sinais biológicos, sensações e sentimentos.”
(VALENTE, 2013, pag. 24). Para realizar os propósitos vocais cotidianos, o indivíduo,
apoiado em sua autopercepção e intuição, desempenha um gerenciamento de sua fisiologia
como um todo, o que inclui movimentos e gestos.
No entanto, as exigências apresentadas pelo alto desenvolvimento do canto, em
suas diferentes estéticas, extrapolam os recursos utilizados no cotidiano, uma vez que as
linhas melódicas tornaram-se mais sofisticadas, “exigiram fôlego e resistência, tessitura ampla
e muito controle, fazendo do corpo um instrumento demasiadamente limitado para os seus
propósitos expressivos.” (VALENTE, 2013, p. 24).
Para Fucci Amato (2006), a arte de cantar requer desenvolvimento técnico e treino
específico para se alcançar determinados resultados estéticos. Para a autora, cantar e falar são

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atividades essencialmente diferentes. No entanto, “o canto deve ser assim entendido como
uma forma de expressão e comunicação dos sentimentos, tanto quanto a fala, sem dicotomizar
a racionalidade que está presente na voz falada e a emoção inserida na voz cantada.” (FUCCI
AMATO, 2006, p. 66).
Para que o cantor obtenha os resultados interpretativos adequados às obras que
executa, é importante dominar amplo conhecimento técnico. Tomando a interpretação como
produto de um processo criativo, entendemos que há aí, “uma correspondência entre música e
as propriedades do corpo, ou seja, entre gestos e sensibilidade, envolvendo o imaginário e o
real traduzidos por símbolos” (LABOISSIÈRE, 2007, p. 114).
O conhecimento amplo e interdisciplinar, coloca-se como condição à qualidade da
performance vocal. Esse posicionamento opõe-se à visão fragmentada das diferentes áreas do
conhecimento, uma vez que isto leva a “conhecimentos estanques, não produtores de ações
eficazes no cotidiano social” (FUCCI AMATO, 2006, p. 66). A autora considera
indispensável para cantores, professores de canto e regentes corais, os conhecimentos
advindos das áreas da fonoaudiologia, otorrinolaringologia e pneumologia e afirma que por
meio do diálogo científico interdisciplinar, será criada “a possibilidade de informação e
formação de profissionais mais aptos e capazes de veicular o ensino de voz cantada com
fundamentos fisiológicos vigorosos, baseados em procedimentos estudados e comprovados.”
(FUCCI AMATO, 2006, p. 67).
Faz-se imprescindível, ainda, combater a dicotomia entre teoria e prática, presente
em nossas instituições. Sobre esse problema, Apro (2006) afirma:

A relação entre interpretação e conhecimento está sendo cada vez mais recolocada
sob bases epistemológicas, mesmo sob olhares céticos. Trabalhos recentes na área
da performance musical no Brasil têm comprovado o efeito salutar da absorção do
conhecimento numa execução: desde história da música, passando por uma sólida
base teórica em harmonia, contraponto etc, até o diálogo com os domínios mais
amplos da história geral, sociologia, filosofia e congêneres. (...) Numa performance,
o que antes era explicado meramente como inspiração divina (intuição), “maneira
correta” (tradição) passa, agora, a ser paulatinamente substituído por consistentes
reflexões teóricas revertidas em conhecimentos aplicados na prática. (p. 27).

Importante salientar que o conceito de performance inclui múltiplos aspectos.


Trata-se de um processo comunicativo que tem por função a transmissão da mensagem
contida na obra, considerando os elementos concretos presentes no momento em que ocorre.
“A performance é ação complexa pela qual a mensagem poética é simultaneamente aqui e
agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário e circunstâncias se encontram

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concretamente confrontados, indiscutíveis.” (ZHUMTOR, 1997 apud VALENTE, 2013, p.


30).
No que se refere ao desempenho do cantor, Davidson (2001) afirma serem
necessárias uma variedade de habilidades e uma peça bem estudada. Para a autora “a intenção
emocional, junto com a estrutura musical estabelecerão restrições à interpretação” (p. 236) e
acrescenta que “a prática garante que aspectos interpretativos da performance tornem-se
integrados com os meios em que o performer usa o corpo para produzir uma interpretação
musical fluente e automatizada” (p. 236).
Importante salientar que o repertório vocal é constituído, quase em sua totalidade,
por peças musicais atreladas a um texto. Este, contem uma mensagem específica que amplia
as possibilidades de significação da performance por parte do intérprete, uma vez que
estabelece relação com inúmeras áreas do conhecimento. Temos, portanto, uma especificidade
interpretativa no caso dos cantores. As obras musicais portadoras de texto, oferecem ao
intérprete um espectro de elementos ainda mais amplo e complexo. Cada um desses
elementos pode, no entanto, representar uma via à “penetração” (PAREYSON, 1993) da obra
e à construção de uma interpretação equilibrada por parte do cantor. De modo que

O instrumentista que interpreta e executa uma peça musical e o ator que representa
um drama no palco, exercem uma atividade que tem como intuito exprimir e traduzir
a obra, fazê-la viver na sua vida própria e executá-la em sua plena realidade audível
e visível. O seu trabalho consiste não somente em decifrar a escrita simbólica e
convencional em que a obra se acha registrada nas páginas ou no pentagrama, nem
somente em apresentar a obra a um público sugerindo-lhe e facilitando-lhe a via de
acesso à obra, mas consiste sobretudo em fazer de tal sorte que esse conjunto de
sons reais, de palavras faladas, de gestos e movimentos que resulta de sua execução
seja a própria obra em sua plena e acabada realidade. (PAREYSON, 1993, p. 211,
itálico do autor).

Em outras palavras, cabe ao intérprete desvendar os aspectos essenciais da obra


que executa. Esses aspectos estão para além da obra, não estão revelados em sua estrutura
formal e são, portanto, subjetivos. Essa condição explica porque as “execuções podem ser
múltiplas e diversas sem que com isso fique comprometida a unidade e a identidade da obra
de arte” (PAREYSON, 1993, p. 216). Para Apro (2006) “não é possível “manter” a essência
de uma obra, mas sim “revelá-la” a partir das diversas leituras que cada executante imprime
em sua interpretação” (p. 29).
Tais afirmações acerca da interpretação, levam-nos ao conceito de múltipla
interpretabilidade (PAREYSON, 1993), no qual a um só tempo a obra exige execução para
viver e “a execução não acrescenta à obra nada que já não lhe pertença” (p. 225). É com

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referência a essas condições, que o intérprete deve orientar-se na busca pelo equilíbrio em
suas performances.

2. Corpo: limitador e meio à interpretação


O corpo, portador de recursos expressivos, deve ser gerenciado pelo intérprete
com a finalidade de imprimir significados à obra musical executada. O intérprete deve
respeitar a estrutura formal da obra, recusando-se a acrescentá-la elementos expressivo e/ou
significados que lhe sejam estranhos. Assim sendo

A iniciativa do leitor consiste em formular uma suposição sobre a intentio operis.


Essa suposição deve ser aprovada pelo conjunto do texto como um todo orgânico.
Isso significa que sobre um texto se pode formular uma e só uma suposição
interpretativa. A princípio, se podem formular infinitas. Mas, ao final, as suposições
deveram ser provadas sobre a coerência do texto, e a coerência textual não poderá se
não desaprovar algumas suposições aventuradas. (ECO, 1992, p. 41, tradução
nossa).

Dessa forma, o intérprete cantor deve construir a unidade entre os recursos


corporais expressivos e a estrutura formal da obra que executa. Segundo Davidson (2001),
pesquisas na área têm confirmado o papel fundamental dos movimentos corporais na
transmissão da mensagem musical. A autora afirma haver um link entre as intenções
identificáveis do intérprete e a estrutura musical, explicando que

(...) pareceu provável que momentos estruturais chave (um trecho de cadência, por
exemplo) foram os mais óbvios indicadores da intenção expressiva no movimento.
Em outras palavras, um momento estrutural significante forneceu um ponto central
em torno do qual uma expressão de movimento específica poderia ser organizada.
(DAVIDSON, 2001, p. 239, tradução nossa).

No exemplo acima, fica clara a inter-relação existente entre estrutura formal e


gesto corporal. A mesma autora observa como alguns gestos miméticos aprendidos de
professores ou outros performers podem fornecer intenção expressiva à performance dos
cantores. E alerta que
(...) esses gestos podem ter efeitos positivos ou negativos na performance.
Positivamente, eles podem fornecer informação que ajuda a entender a performance,
uma vez que os gestos podem intensificar e clarear os significados mesmo quando o
movimento em si é supérfluo à produção do todo musical. Em outras palavras, eles
podem ser um nível de movimento “superficial” – uma espécie de retórica – que o
intérprete adiciona à performance. No lado negativo, se esses gestos não são
consistentes com a intenção do intérprete, eles podem criar tensões físicas que
podem inibir a fluência técnica e prejudicar os ouvintes com incoerências entre os
gestos adotados e a intenção da performance. (DAVIDSON, 2001, p. 240, tradução
nossa).

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Na análise acima, temos um problema interpretativo comum aos músicos e, mais


especificamente, aos cantores: a construção de unidade entre a estrutura da obra, as intenções
e a expressão corporal do intérprete. Para alcançar esse resultado, intérpretes devem buscar
equilíbrio entre suas personalidades, constituídas de determinadas história e cultura, com os
elementos objetivos da obra. A performance (entendida como produto de um processo
criativo) que se mostra negligente, ou mesmo indiferente a essa fundamental necessidade,
comete necessariamente uma falha ética e corre o risco de fracasso, no que se refere à estética
e à transmissão da mensagem contida na obra.
Apro (2004) alerta que “pelo fato de que o executante não escapa das condições
de sua existência tais como tempo, formação, cultura, ideologia, psicologia, momento
histórico etc., sua mediação está sempre sujeita a uma atividade mais criativa e produtora e
menos conservadora e protetora” (p. 37). Assim, a dificuldade ineliminável do trabalho do
intérprete está em afastar-se, o quanto possível, dos elementos que compõe sua personalidade,
aproximando-se da essência da obra (sua lei interna). Esta deve direcionar todas as ações do
performer. Esse exercício Pareyson (1993) denomina congenialidade. O autor observa que a
interpretação bem sucedida não requer a total neutralidade do executante, mas que a
compreensão da obra “pressupõe congenialidade” (p. 234). Segue afirmando:

A penetração [da obra] constitui o prêmio da simpatia, a descoberta ocorre como ato
de sintonia e a revelação corresponde à afinidade espiritual: isso explica as
dificuldades e as falhas da interpretação, quando a diferente espiritualidade produz
situações não congeniais e incompatíveis e provoca antipatia e insensibilidade
(PAREYSON, 1993, p. 234).

Cabe ao intérprete, identificar e despertar a congenialidade de que dispõe, quando


esta não se apresenta da maneira espontânea durante o processo de “penetração” da obra. Em
síntese, a compreensão da obra em nível mais profundo, é condição para que o cantor
intérprete construa uma performance na qual as diferentes retóricas (música, texto, gestos)
apresentem coerência na transmissão da mensagem contida na obra. Assim sendo

Cada intérprete é ao mesmo tempo e necessariamente um executante. A recíproca


não é verdadeira. (...) Mas por escrupulosamente notada que esteja uma música e por
garantia que se tenha contra qualquer equívoco na indicação dos tempi, matizes,
ligaduras, acentos, etc..., contem sempre elementos secretos que escapam a
definição, já que a dialética verbal é impotente para definir inteiramente a dialética
musical. Estes elementos dependem, pois, da experiência, da intuição, do talento, em
uma palavra, daquele que está chamado a apresentar a música (STRAVINSKY,
1996, p. 147).

Tornar-se evidente a insuficiência da partitura enquanto meio para se alcançar


uma compreensão profunda da obra e, por consequência, construir uma performance

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“multimídia” (VALENTE, 2013). Na atividade dos cantores, “os movimentos de uma


performance musical mostram como música e ação combinam-se para criar um trabalho
“diferente”, não simplesmente uma peça musical (...)” (COOK, 2000 apud DAVIDSON,
2001, p. 246, tradução nossa).
Nossa reflexão, procurou delinear os contornos do papel do corpo humano, em
suas múltiplas dimensões, na construção do processo interpretativo e da realização da
performance vocal. Acreditamos estar, minimamente evidente, que o corpo oferece
simultaneamente, uma infinidade de recursos e limites ao desempenho dos cantores. Sendo
assim, investigações e recomendações relativas à saúde e hábitos, são de fundamental
importância para futuros trabalhos na área da performance vocal.

Referências

APRO, Flávio. Interpretação musical: um universo (ainda) em construção. In: LIMA, Sonia
Albano de (Org.) Performance e Interpretação Musical: uma prática interdisciplinar. São
Paulo: Musa editora, 2006. p. 24-37.
APRO, Flávio. Os Fundamentos da Interpretação Musical: aplicabilidade nos 12 estudos
para violão de Francisco Mignone. São Paulo, 2004. 121 p. + anexos. Dissertação de
Mestrado – Mestrado em Música, Instituto de Artes, UNESP, São Paulo, 2004.
DAVIDSON, J. The role of the body in the production and perception of solo vocal
performance: a case study of Annie Lennox. 2001 Disponível em:
http://msx.sagepub.com/content/5/2/235. Acesso em: 25 abr. 2016.
ECO, Umberto. Los Limites da la Interpretacion. Tradução de Helena Lozano. Barcelona:
Lumen, 1992.
FUCCI AMATO, Rita de Cássia. Voz cantada e performance relações interdisciplinares e
inteligência vocal. In: LIMA, Sonia Albano de (Org.) Performance e Interpretação Musical:
uma prática interdisciplinar. São Paulo: Musa editora, 2006. p. 65 - 79.
LABOISSIÈRE, Marília. Interpretação Musical: a dimensão recriadora da “comunicação”
poética. São Paulo: Annablume, 2007.
PAREYSON, Luigi. Estética: teoria da formatividade. Tradução de Ephraim Ferreira Alves.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1993.
STRAVINSK, Igor. Poética Musical em 6 Lições. Tradução de Luiz Paulo Horta. Rio de
Janeiro: Zahar Editora, 1996.
VALENTE, Heloísa de A. Duarte; Os grãos quase graúdos da voz. In: VALENTE, Heloísa de
A. Duarte & Coli, Juliana (org.). Entre Gritos e Sussurros: os sortilégios da voz cantada. São
Paulo: Letra e Voz, 2013. p. 21-33.

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