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Disciplina: Teorias do Texto: Tipos e Gêneros.

 
Identificação da tarefa: Tarefa 1.2. Unidades 1 e 2. Envio de arquivo.
Pontuação: 10 pontos.

Aluna:
Irena Oliveira da Costa
TRECHO

A gente viemos do inferno – nós todos – compadre meu Quelemém instrui. Duns
lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu
aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera
para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos
outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se
come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dôres; e até respirar custa dôr; e
nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho provável. Repenso no campo da Macaúba
da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros – as ruindades de regras
que executavam, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as
crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas,
na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que
subiram lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação
de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam
para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: Veredas. 21ª Ed., Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2015. Pag. 51.

Análise do trecho

Trata-se de texto literário em prosa narrativa que tem como autor João Guimarães Rosa,
um dos decanos mais importantes da literatura brasileira. Dono de uma escrita que
desafiava as regras, o escritor fez uso do amplo conhecimento da gramática para
subverter regras da sintaxe e brincar de criador de novas palavras em Grande Sertões:
Veredas.

O trecho do romance aqui apresentado foi publicado pela editora Nova Fronteira em
uma edição que se baseou no texto da 5ª edição da obra, publicada em 1967, porém
trazendo para esta nova edição um novo projeto gráfico que permitiu uma leitura mais
confortável do texto e que também procurou estabelecer um diálogo com antigas
edições da obra de Guimarães Rosa.
Trata-se de edição que buscou revisar a grafia de palavras respeitando a marca da escrita
do autor. Segundo a nota editorial varias questões de acentuação foram abolidas para
auxiliar na fluidez da leitura da obra ressaltando que foram mantidos certos
neologismos criados pelo autor e suas formas preferenciais, sobretudo, no que se refere
à acentuação; é exatamente o que acontece na manutenção do acento circunflexo nas
palavras dores e dor apresentadas no trecho. Ainda, o projeto editorial da Nova
Fronteira optou por não efetuar qualquer alteração no emprego de hífens para não correr
o risco de interferir no uso tão peculiar que Guimarães Rosa fazia dessa marca gráfica
pois uma alteração como essa interferiria na prosa entrecortada e pedregosa do autor,
construída a partir do uso e de outras marcas, tais como o uso recorrente dos grupos
consonantais e apóstrofos.

Listo ainda as demais questões que o projeto editorial fez questão de manter para
salvaguardar a voz da escrita de Guimarães Rosa nesta edição de Grande Sertão:
Veredas:

a) Grafias em desacordo com as normas ortográficas vigentes: mantidas aquelas


que o autor deixou registrada na edição-base. Sobre isso, a nota editorial expõe:
“[...] lembramos aos leitores que as antigas edições da obra de Guimarães Rosa
apresentavam uma nota alertando justamente para a grafia personalíssima do
autor e que algumas histórias registram a sua decisão em acentuar determinadas
palavras. Além disso, mais de uma vez em suas correspondência, ele observou
que os detalhes aparentemente sem importância são fundamentais para o efeito
que se quer obter das palavras”;
b) Acentos e grafias sem importância, em desacordo com a norma ortográfica
vigente: entendimento de que compõem um léxico literário cuja variação
fonética é tão rica e irregular quanto à linguagem viva com que o homem se
define diariamente. No entanto, a melhor justificativa acerca da manutenção de
tais acentos e grafias provém do conhecimento do escritor acerca da gramática:
“[...] ousamos dizer ainda que, ao lado das, pelo menos, 13 línguas que o autor
conhecia e utilizava em seu processo de voltar à origem da língua, devemos
colocar, em igualdade de recursos e contribuições poéticas, aquela cujos erros
vemos menos um desconhecimento e mais uma possibilidade de expressão e, por
isso também, terá de ser agreste ou inculto o neologista, e ainda melhor se
analfabeto for”.

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