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Memorial do Convento

. Adelino Fernandes Nº1 12ºC | 25/04/2020

Iconografia de 1784 intitulada "Passarola".


site Wikipedia. créditos: Wienerische Diarium.

A Passarola e o Padre Bartolomeu L. de Gusmão

Citação: Saramago, José, “O Voador”, em «Memorial do Convento», 35.ª edição,


Lisboa, Editorial Caminho, p. 35.

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Memorial do Convento
. A Passarola e o Padre Bartolomeu L. de Gusmão

Antes de entrar no assunto propriamente dito, cabe-me realizar alguns


apontamentos relativamente ao contexto temporal. Foram os homens e mulheres
que partiram para o estrangeiro que aprenderam, o que, mais tarde, cobiçavam
empregar em Portugal: as vigentes ideias que corriam na Europa.
Pode-se afirmar que, em virtude do comentado, o atraso determinado pelo
ambiente hostil e reservado de um país que, ao contrário, por exemplo, da Holanda
do século, se mantinha preso às doutrinas aristotélicas ¹ e ignorava os avanços que
se estavam a fazer nas ciências físicas e sociais.
Observando o cenário, começo por destacar alguns dados biográficos, que
serviram de ponto de partida para a personagem concebida por, Saramago, em
«Memorial do Convento».
Bartolomeu Lourenço de Gusmão, nasceu no inverno, de 1685, em Santos,
Brasil, até aquele tempo, território português. Em plena adolescência veio para
Portugal, tendo frequentado a Faculdade de Cânones de Coimbra ², “[...] de tanto
estudo e memória que, sendo moço de quinze anos, prometia, e muito fez do que
prometeu [...]” (Saramago, 1986: 36), onde se doutorou.
Entre 1713 e 1716 viajou pela Europa na tentativa de modernizar os seus estudos
nas ciências físicas. No seu regresso a Portugal, ignorou as intolerâncias religiosas
do seu tempo. Questionando alguns dos princípios dogmáticos da casa de Deus.
Retratado, assim, de forma forçosamente sucinta, o itinerário de Bartolomeu de
Gusmão, analisemos mais concretamente, os eventos que se envolvem com a
construção da “Passarola”,“[...] tirou um papel que desenrolou, onde se via o
desenho de uma ave, a passarola seria, [...]” (Saramago, 1986: 40) e que estão
presentes no enredo narrativo de «Memorial do Convento».
Com a ratificação de conceitos documentados. Em 1709, Bartolomeu de Gusmão,
já teria o abstrato conceito de construir um aparelho voador. Apaixonado com a sua
invenção, encaminha ao rei “D. João, quinto do nome na tabela real [...]” (Saramago,
1986: 1), uma petição em que assegura para a sua identidade uma patente ³ sobre
os proveitos de um instrumento, que nada mais, nada menos, os iria fazer pairar
sobre o ar. Nesse documento, enumera os prós do desenvolvimento posterior do
seu invento: tanto para a guerra como para o comércio. Sabe-se, meramente, que o
rei deliberou favoravelmente a petição.
Em tempo algum, até então, se tinha assistido a nada semelhante. Porém,
factualmente, a viagem aeronáutica confirmada cabe, indubitavelmente, aos irmãos
franceses Étienne e Joseph Montgolfier ⁴.
Não obstante, decerto, a persistência, a coragem e a ousadia de Bartolomeu de
Gusmão terão cativado Saramago, que decidiu incluir no seu romance de 1986, a
memória do padre e da sua célebre, “Passarola”.

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. A Passarola e o Padre Bartolomeu L. de Gusmão

Assim sendo, do mesmo modo que aconteceu com o ‘verdadeiro’ Bartolomeu de


Gusmão, em «Memorial do Convento», o padre Bartolomeu ficcionado, por
Saramago, também tem uma ambição: a construção da Passarola. Evidentemente,
a posteriori, sabe que sozinho não será capaz de concretizar esse utópico projeto.
Conta, diante disso, com o contribuição do rei D. João V, “[…] el-rei não falemos,
que sendo tão moço ainda gosta de brinquedos, por isso protege o padre […]”
(Saramago, 1986: 58), que o “patrocina”, fornecendo-lhe, não só, recursos
económicos para a criação do engenho, como, concede-lhe um atelier, localizado
na Quinta de S. João da Pedreira, local mágico, ao qual só subscrevem o respetivo
padre, Sete-Sóis “[...] Baltasar entrou logo atrás do padre, curioso, olhou em redor
sem compreender o que via [...]” (Saramago, 1986: 40) e Sete-Luas “[...] Blimunda
vem ajudar, e, chegando ela, acaba-se a rebelião [...]” (Saramago, 1986: 57) e, mais
tarde, o conceituado músico Domenico Scarlatti “Boas tardes, Baltasar, trouxe hoje
comigo um visitante a ver a máquina, [...]” (Saramago, 1986: 114), contratado para
dar lições ao irmão de D. João V, o infante D. António, passando depois a ser
professor da infanta D. Maria Bárbara.
O Padre Bartolomeu Lourenço forma com Baltasar e Blimunda o núcleo mágico e
trágico do romance, e com quem, segundo as suas afirmações, formam “[...] uma
trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito Santo, [...]” (Saramago, 1986: 116).
Convive com uma obsessão. Levantar o engenho de voar, o que o leva a,
Holanda, numa busca incessante do saber “Partirei breve para a Holanda, que é
terra de muitos sábios, e lá aprenderei a arte de fazer descer o éter do espaço, de
modo a introduzi-lo nas esferas, porque sem ele nunca a máquina voará, [...]”
(Saramago, 1986: 59).
Como dedicado inventor, menospreza os fanatismos religiosos da época e
contesta alguns princípios dogmáticos da Igreja. A ânsia de voar domina-o de tal
modo que não se inibe de integrar no seu projeto um casal não abençoado pela
casa de Deus, e de aceitar e usufruir das capacidades heréticas de Blimunda que
farão, enfim, voar a “Passarola”.
No romance de Saramago, de fato, a “Passarola” inventada pelo padre não voa
graças às leis da moderna aerodinâmica, mas através da alquimia. Eis o ponto
crucial, a máquina levanta voo através de um sistema de atração solar no qual dois
cilindros de metal reservam vontades. Sim, vontades. “[...] também pensei que o
éter, afinal, fosse formado pelas almas que a morte liberta do corpo, [...], mas o éter
não se compõe das almas dos mortos, compõe-se, sim, ouçam bem, das vontades
dos vivos.” (Saramago, 1986: 83). As vontades são, de acordo com o padre, nuvens
fechadas no íntimo das pessoas, que só Sete-Luas pode ver.
Diante disso, o padre Bartolomeu encarrega Blimunda a colher vontades para
encher os cilindros, algo que só se cumpre, inteiramente, quando dos padecimentos

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ocasionados pela epidemia, “Come o pão, disse Baltasar, e Blimunda respondeu,


ainda não, primeiro vou ver a vontade daqueles homens.” (Saramago, 1986: 84).
Evidentemente, as ideias iluministas, e a sua heresia: ao questionar a ortodoxia
católica para dar crédito ao judaísmo, “Eu sei do que me acusarão, se a minha hora
chegar, dirão que me converti ao judaísmo, e é verdade, [...]” (Saramago, 1986:
131). O padre Bartolomeu não passa indiferente ao algoz, Tribunal do Santo Ofício,
que o persegue.
A “Passarola” fica, sem tardar, pronta e voará. Após muito emprego, a
“Passarola”, de facto, voou e, simbolicamente, transformou-se num meio de evasão
de um lugar onde, dominava a influência e intolerância. Ela materializou o sonho
dos seus, peculiares, construtores e materializou o valor, o esforço, a vontade e a
razão do ser Humano.
O padre reconheceu o perigo em que estava e decidiu evadir-se para Espanha. É
sabido, mais a frente, pelo músico Scarlatti que Bartolomeu tinha vindo a falecer, em
Toledo, alegadamente alienado ⁵, “Vim-te dizer, e a Baltasar, que o padre
Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é em Espanha, para onde tinha
fugido, dizem que louco [...]” (Saramago, 1986: 156).
Após a morte do padre, Baltasar entretém-se da passarola e, um dia, num
descuido, desaparece com ela nos céus. Blimunda procurou-o, desesperadamente,
durante nove anos. Numa das vezes em que permanecia em Lisboa, apercebeu-se
que estava a decorrer um auto de fé ⁶. Aproximou-se, constatando que, entre os
condenados estava um maneta. Sim. O seu Baltasar.
Em síntese, a “Passarola”, é o símbolo da concretização da visão de um
visionário, e elo ao longo da narrativa: é ela que une Baltasar, Blimunda e o Padre,
mas também é ela que vai acabar por separá-los – o delírio e morte, de Bartolomeu
de Gusmão, a morte de Baltasar Sete-Sóis no auto de fé e eterna solidão de
Blimunda Sete-Luas.
Termina assim «Memorial do Convento», com a fragmentação do trio envolvente,
que um dia alimentou uma incrível quimera. Voar.

Referências Bibliográficas

“Curso de Cânones” Wikipédia, a enciclopédia livre. Acessado a 25 de maio de 2020.


https://pt.wikipedia.org/wiki/Faculdade_de_Direito.
“Irmãos Montgolfier” Wikipédia, a enciclopédia livre. Acessado a 26 de maio de 2020.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Irmãos_Montgolfier.
“Lógica Aristotélica” Wikipédia, a enciclopédia livre. Acessado a 25 de maio de 2020.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lógica_aristotélica.
Saramago, José (1986). “Memorial do Convento”, 35.ª edição, Lisboa, Editorial Caminho.

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Páginas da Internet com informações relevantes sobre o trabalho:

“Bartolomeu De Gusmão” Wikipédia, a enciclopédia livre. Acessado a 25 de maio de 2020.


https://pt.wikipedia.org/wiki/Bartolomeu_de_Gusm%C3%A3o.
Fernandes, Cláudia. “MEMORIAL DO CONVENTO” Nota Positiva, n.d. Acessado a 25 de
maio de 2020. https://notapositiva.com/memorial-do-convento-4/#.
Queirós, Luís Miguel. “Bartolomeu De Gusmão” abrancoalmeida. Acessado a 26 de maio de
2020.
https://abrancoalmeida.com/2009/08/08/bartolomeu-de-gusmao/.

Notas
———————————
¹ Trata-se do estudo formal da lógica. Fundamentado no que havia para saber sobre o estudo formal
do raciocínio, já estaria no trabalho desenvolvido pelo filósofo grego Aristóteles, na Antiguidade.
² Em 5 de dezembro de 1836, o Curso de Cânones foi fundido com o Curso de Leis, dando origem à
actual Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
³ Perante a época, o conceito “patente”, não existia de acordo com a legislação, no entanto, era
equivalente a uma “petição de privilégio”.
⁴ Foram dois irmãos inventores franceses, que construíram o primeiro balão tripulado do Mundo,
que elevou, Étienne aos céus, em 1783.
⁵ Até ao século XX, as pessoas que sofriam de doenças mentais, eram consideradas alienadas da
sua própria natureza.
⁶ Os autos de fé foram, rituais de penitência pública de hereges e apóstatas, que ocorreram quando
a Inquisição Portuguesa tinha decidido a sua punição, seguido pela sua execução.

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