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ARENDT, Hanna h.
Respo nsabil idade e Julga mento .
Comp anhia das Letras . 2004. 375 P.
Natália "Pensar sem corrimão" e "privar o presente tendências à esquerda e à direita, sendo que es-
Salgado Bueno da paz descuidada da complacência". Estas du- ta coletânea tampouco se abstém de gerar polê-
as expressões de Hannah Arendt resumem, mica.
Graduanda do
mas não esgotam, as contribuições que a cole- Os ensaios estão divididos em duas partes. A
Curso de Ciências
tânea de artigos, ensaios, conferências e dis- primeira parte, denominada "Responsabilida-
Sociais I UFMG de", é composta por quatro ensaios que são,
cursos recentemente compilados oferece.
Responsabilidade e Julgamento é o título des- em sua maioria, textos escritos para suas au-
ta coletânea que está no rastro de reflexão que las e versam principalmente sobre discussões
se encontra no livro Eichmann em Jerusalém - que só são insinuadas em Eichmann, como a ca-
Um relato sobre a banalidade do Mal (1999). pacidade de juízo e de pensar do homem, a atri-
Esta obra fez com que H. Arendt fosse expulsa buição de responsabilidade a atos cometidos no
de vários meios judaicos, além de conseguir, ao e pelo Estado, a atribuição de responsabilidade
mesmo tempo, criar atritos com intelectuais de coletiva, outras discussões de filosofia moral e
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o famoso termo da banalidade do mal. A segun- Inspirada em Sócrates, Arendt indica que, na
da parte, ':Julgamento", reúne considerações medida em que ao pensar entra-se num diálogo
de Arendt sobre eventos contemporâneos à silencioso consigo mesmo, o indivíduo torna-se
sua escrita, denotando, novamente, que Arendt dois-em-um. Ou seja, o indivíduo é apenas um pa-
narrava a história e refletia sobre sua época de ra os outros e a única companhia certa para si
forma inusitada e esclarecedora, fornecendo mesmo até a morte, mas no momento da ativi-
"uma trilha para a terra dos mortos"(ARENDT, dade de pensar manifesta-se como múltiplo.
1991 , p. 160J, iluminando pedaços do passado Dessa forma, pode-se começar a entender a vi-
através do julgamento de seu sentido histórico são arendtiana da fórmula socrática, a saber:
e filosófico. "É melhor sofrer o mal do que o cometer". Ao co-
O primeiro ensaio, "Responsabilidade pesso- meter o mal, entra-se em conflito consigo mes-
al sob a ditadura", trata exatamente do debate mo, pois, afinal de contas, ninguém quer convi-
furioso decorrente de Eichmann, discussão que ver com um assassino e cada um é a única pes-
é continuada no segundo texto, ''Algumas ques- soa com a qual se é forçado a viver. Cometer o
tões de filosofia moral". No primeiro texto, a au- mal e exercer a atividade de pensar leva a situa-
tora já desmonta o que ela chama de "tolices ela- ções limites, nas quais o homem não mais con-
boradas" como: "Quem sou eu para julgar?", segue viver consigo. A figura de Ricardo 111, figu-
que traduz a idéia de que ninguém é realmente li- ra exemplar de vilão, de Shakespeare, mostra
vre e de que a atribuição de culpa igualmente a como o diálogo do indivíduo consigo mesmo traz
todos assegura que ninguém seja realmente à tona contradições que impediriam a execução
responsabilizado. A quebra das noções comuns do mal, uma vez que ao estar só Csolitudel, ele (o
e irresponsáveis se faz necessária na medida em vilão) sente ódio de si mesmo'.
que delas podem advir situações novas, como, No entanto, é bom deixar claro, que a capaci-
por exemplo, "a criminalidade no domínio públi- dade de pensar e lembrar [toughtfulnessl não é li-
co". Tal crítica visa demonstrar que existe uma mitada à uma elite de pensadores, intelectuais
"confusão moral", na qual é o ato de julgar que ou governantes. Para Arendt, todos nós temos
se torna condenável. Arendt coloca que a com- o potencial para exercer a atividade de pensar e
preensão da exacerbação da criminalidade no do- esta capacidade potencialmente comum a to-
mínio do público - a saber, o nazismo- só pode dos é embasada por Arendt ao aproximar a capa-
ser entendida pela percepção do colapso do jul- cidade de julgar aos julgamentos estéticos des-
gamento pessoal. Se a moral, entendida como critos por Kant. Assim como a capacidade de jul-
hábitos e costumes, pode ser mudada de um dia gar, o julgamento estético em Kant não segue
para o outro, de acordo com as conveniências, regras gerais evidentes por si mesmas. Além do
só a capacidade de julgar e pensar impede o ho- mais, ambos julgamentos se pautam no senso
mem de se barbarizar, de ir contra si. Sendo as- comum, ou seja, "julgamentos que venham con-
sim, a capacidade de pensar e lembrar ter certa validade geral, ainda que talvez não uni-
[thoughtfulnessl, que todos os indivíduos possu- versai"CARENDT, 2004, p.204l. Ou seja, julgar
em,. seria o meio de impedir o mal, o mal sem raí- não é inteiramente subjetivo, uma vez que eu le-
zes, tão banal a ponto de o indivíduo que o per- vo em consideração a voz dos outros.
1. What do I fear? Myself?
petuou não saiba distinguir o que fez como cer- Nos dois últimos textos da primeira parte, There's none else by./Richard
loves Richard: that is: I am I.
to ou errado. Este tipo de mal é o cometido por "Responsabilidade coletiva" e "Pensamentos e ls there a murderer here? No.
Yes, I am:/Then fly: What!
Ninguém, ou seja, aquele ser humano que sere- considerações morais", os temas desenvolvi- From myself? Great reason
why:
cusa a ser pessoa. Além de se recusar a ser pes- dos nos dois primeiros ensaios são complemen- Lest I revenge. What! Myself
upon myself? I Alack! llove
soa, este indivíduo, mesmo que se proclame co- tados e mais bem elaborados. Em "Responsabi- myself. Wherefore? For any go·
od /That I myself have done un-
mo um "dente da engrenagem", se esquece de lidade coletiva", por exemplo, a diferença entre to myself?/0 no! Alas, I rather
hate myself/ for hateful deeds
que na política, por não ser um "jardim de infân- culpa e responsabilidade é estabelecida. Napo- committed by myself./I am a
villain. Yet I lie, I am not./ fool,
cia", obediência significa apoio e é assim, dotan- leão, por exemplo, colocou-se como responsável of thyself speak well. Fool, do
not flatter. (ARENDT, 2004,
do os indivíduos de autonomia de pensar, de apoi- para resolver todos os problemas gerados pe- p.253)
Que temo? A mim mesmo?
ar e de assumir responsabilidade, é que eles po- los antigos governantes da França, mas não po- Não há mais ninguém aqui: /Ri-
cardo ama Ricardo: quer dizer:
dem ser julgados pelo mal cometido. de ser taxado como culpado deles. Tal diferenci- Eu sou eu./Existe um assassino
aqui? Não. Sim, eu: I Então fu-
Mais especificamente no segundo texto, ação se baseia na constatação de que não se po- jas: Como! De mim mesmo?
Boa razão para isso: /A fim de
Arendt se utiliza de pensadores como Sócrates de culpar alguém por atos que não cometeu. No que não me vingue. Como! De
mim contra mim mesmo?/Ora!
e Kant para refletir e discutir a relação entre o entanto, por termos um mundo em comum e vi- Eu me amo. Pelo quê? Por al-
gum bem./ Que eu tenha feito
pensar e o mal. Ao colocar que "o pensamento vermos em comum na esfera pública, é nesta es- a mim mesmo?/Oh! Ai de
mim! Pelo contrário, eu me
não cria valores, não irá descobrir, de uma vez fera que assumimos responsabilidades que afe- odeio./Pelos abomináveis atos
cometidos por mim./Sou um vi-
por todas, o que é 'o bem', e não confirma as re- tam a todos. Obviamente, o grau de responsabi- lão. E, contudo, minto, não
sou./ Tolo, falas bem de ti mes·
gras aceitas de condutas, mas antes dissolve- lidade e culpa variam. O Judenrat!, ao selecionar mo: tolo, não te adules.
(Tradução livre de Bethãnia
as"CARENDT, 2004, p. 128 l, a autora não pre- alguns judeus para ir para os campos de exter- Assy, 2003, p.164)
tende afirmar que o pensamento é fonte da mo- mínio, assumiu uma parcela de culpa, o prisio- 2. Judenrat: conselhos judeus
eram formados por líderes regi-
ral superior, mas sim que o pensamento destrói neiro que manejava o gás, possuía outro tanto onalmente reconhecidos, aos
quais os nazistas davam enor-
a crença na obediência cega à moral, nos valo- de culpa, infinitamente menor. Mas, mesmo as- mes poderes. Pare;~ mais deta-
lhes sobre os Conselhos Jude-
res determinados como superiores. E é desta sim, o grau de responsabilidade e culpa dos indi- us, vejam: ARENDT, 1999 e
HILBERG, 1961. The Destrueti-
afirmação - da característica desestabilizadora víduos identificáveis nos exemplos acima não se on of the European Jews
do pensamento - que Arendt estabelece a rela- aproximam de, por exemplo, Adolf Eichmann,
ção entre a ausência do mal e o pensar. chefe da seção B-4, subordinada ao Bureau IV
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"Não matarás" se torna "Matarás") surgiu e se fesa jogava com a repetida "teoria do dente-da-
estabeleceu sem grande resistência (nem da engrenagem" que, neste caso, reforçou-se, po-
lgreja!J, não só na Alemanha, como em várias is os réus faziam parte do baixo-escalão, não es-
partes da Europa. Em tal contexto, a confusão tavam entre os assassinos burocratas (usual-
moral, a irreflexão, a ausência do pensar, é tão in- mente condenados com maior severidade). Este
tensa que ainda temos dificuldade em estabele- fato demonstrava um certo ressentimento dos
cer responsabilidades e apontar pulpados. E é subalternos com relação aos grandes coman-
apontando culpados e responsabilidade que Han- dantes, pois aqueles que diziam que só estavam
nah Arendt escreve "Auschwitz em Julgamen- seguindo ordens e cumprindo deveres enquanto
to". soldados estavam sendo responsabilizados in-
Cerca de dois mil homens trabalharam em justamente por atos que decorreram de ordens
Auschwitz e alguns foram selecionados para um superiores. No entanto, toda esta argumenta-
julgamento em separado em Frankfurt. Como ção desfoca do que realmente estava em ques-
quase todos os julgamentos do pós-guerra, que tão: as atitudes criminosas, muitas vezes sádi-
ocorreram depois de Nuremberg, o julgamento cas, atribuídas aos réus. Talvez o que Arendt
perdeu o apoio e o incentivo da opinião pública. chama de "momentos de verdade" possa escla-
Este julgamento continha, no entanto, especifi- recer a estirpe dos crimes em questão: "Há o
cidade. Os réus em questão eram julgados por réu Boger, que encontra uma criança comendo
serem criminosos do regime, ou seja, por have- uma maçã, agarra-a pelas pernas, esmaga sua
rem extrapolado regras que existiam para os cabeça contra a parede, e calmamente, pega a
próprios funcionários dos campos de concen- maçã para comê-la uma hora mais tarde"
tração. No entanto, a defesa tentava tornar o CARENOT, 2004, p. 3251. É bom ressaltar que
julgamento um ato de revanchismo dos judeus, nenhum dos réus era clinicamente sádico, to-
manipulando a opinião pública que estava em par- dos viviam bem e eram bem vistos em suas co-
te incomodada, em parte indiferente ao julga- munidades: eles só foram para Auschwitz por-
mento, e o governo Adenauer, que possuía nos que não estavam aptos de alguma forma para a
seus quadros ex-membros do partido nazista. batalha. Isso nos leva a crer em H. Arendt ao cá-
Aliada à manipulação dos elementos acima, a de- locar que "os piores criminosos do século XX
são os homens que não pensam" 6 .
O último ensaio~ "Tiro pela culatra", diferen-
cia-se dos outros por sua temátic·a que é, pri-
mordialmente, pensar a República norte-
americana- seu livro Crises da República (19991
trata de forma mais completa sobre o assunto.
Escrevendo nos momentos após a renúncia de
Nixon, Arendt percebe vários elementos de de-
cadência na República. O macarthismo, o as-
sassinato de Kennedy, o desastre do Vietnã e a
administração corrupta de Nixon que desembo-
cou em Watergate são os pontos mais impor-
tantes para Hannah Arendt. Segundo a autora,
a República cada vez se afasta mais dos seus
princípios fundadores e se torna uma mera som-
bra da grandeza que possuía num passado re-
cente.
Há um trecho que é especialmente interes-
sante para se pensar os EUA hoje e sua atual ad-
ministração (George W. Bushl:
Em retrospectiva, o que parece é que não exis-
tiam essesplanos grandiosos, mas apenas a
'resolução' firme de abolir qualquer lei, consti-
tucional ou não, que se interpusesse no cami-
nho de tramas astuciosas, inspiradas por ma-
is ganância e desejo de vingança do que pela
busca do poder ou qualquer programa político
coerente. Em outras palavras, é como se um
bando de vigaristas, mafiosos de pouco talen-
to, tivesse conseguido se apropriar do gover-
6. O mal, em Arendt, é não é
no da 'maior potência sobre a Terra' ente compositor da natureza
humana, muito menos possui
CARENOT, 2004, p. 3371. dimensão demoníaca. O mal é
um fenômeno factual que, no
Seguindo com suas palavras audazes e um caso de Eichmann, sua absolu-
ta superficialidade e desenrai-
pouco sem medida para alguém que passou de- zamento trouxeram conse-
qüências nefastas ao
zoito anos como apátrida, grande parte deles vi- ambiente político.
vendo nos EUA, Arendt analisa como tais posi-
ções no governo resultam em falta de credibili-
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dade no exterior e instabilidade dentro de suas bárie no mundo comum a todos, o público. Nes-
fronteiras. tas questões e em outras, Hannah Arendt não
Este curto sobrevôo sobre Responsabilidade pretende dar a palavra final, nem ser guia obri-
e Julgamento pode trazer algumas questões re- gatório para o pensamento dos outros, mas sim
levantes, não só para entender esta autora que chamar a atenção para elas, de modo que o ho-
está se configurando como uma das principais mem, por mais comum que seja, não se aproxi-
(ao menos, uma das mais polêmicas 7 l pensado- me da banalidade do mal. Finalizo então com
ras do século XX, mas também para pensar so- Churchill, político homenageado por Arendt no lr-
bre pontos que não devem ser deixados descan- vro aqui resenhado, e que durante as fases inici-
sár numa "paz descuidada". Esses pontos, nos ais da 11 Guerra foi o único obstáculo efetivo de
quais Arendt coloca o nazismo como referência Hitler de uma dominação rápida da Europa con-
notória, são o distanciamento do homem da es- tinental. Este foi o mesmo homem que, não se
fera pública e seu perigoso recolhimentO ao mun- iludindo pelas promessas de vanguarda, sereni-
do privado, sua incapacidade de julgar e exercer dade e racionalidade, prometidas por Hitler,
o juízo moral no ambiente público. A questão não manteve-se firme em suas crenças não deter-
é eliminar a esfera privada ou sobrepujá-la pela minadas, mas cadenciadas por um passado que
pública, mas somente colocá-las de modo que, se tornou, no momento certo, não em fardo,
mesmo que as palavras do Conselheiro Aires se- mas em memória e capacidade de lembrar, ou se-
jam verdadeiras- "Não há alegria pública que va- ja, fez o uso da história como Arendt o prescre-
lha uma boa alegria particular" (ASSIS, 1961, ve. Churchill, então, no espírito de Hannah
p. 1221 -, devemos estar atentos para que a Arendt, diz que: "O preço da grandeza é a res-
tranqüilidade privada de alguns não gere a bar- ponsabilidade".
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. (1 9611. Memorial de Aires. São Paulo, Cultrix.
ARENDT. Hannah. (1 9911, A Vida do Espírito. Tradução de Antônio Abranches. César Augusto César de Almeida, Helena Mar-
tins. Rio de Janeiro, Relume Dumará/Editora UFRJ.
ARENDT, Hannah. (19991, Eichman em Jerusalém- Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira.
São Paulo, Companhia das Letras.
ARENDT, Hannah. (20041, Responsabilidade e Julgamento. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo, Companhia das Le-
tras.
LAFER, Celso. (2003), "Reflexões de um antigo aluno de Hannah Arendt sobre o conteúdo, a recepção e·o legado de sua
obra, no 25o aniversário de sua morte", in E. J. de Moraes & N. Bignotto (orgs.l, ·Hannah Arendt: Diálogos, reflexões, me-
7. Celso lafer lembra que "al-
mórias, Belo Horizonte, Editora UFMG.
gumas de suas idéias tem o
dom de enfurecer seus interlo-
cutores" {lafer, 2003, p.177). ASSY, Bethânia. (20031, "Eichmann, Banalidade do Mal e Pensamento em Hannah Arendt", in E. J. de Moraes & N. Bignotto
(orgs.1, Hannah Arendt: Diálogos, reflexões, memórias, Belo Horizonte, Editora UFMG.
SOUKI, Nádia. (19981, Hannah Arendt e a Banalidade do Mal. Belo Horizonte, Editora UFMG.