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Da Campanha ao Governo Lula — Uma Análise das

Mudanças no Programa Econômico do PT 1*


João Machado Borges Neto

1 — Introdução
O novo governo brasileiro será capaz de atender ao compromisso fundamental da
campanha, a mudança, entendida como a transformação do país em favor dos interesses
populares? Mesmo em condições ideais, e com o melhor projeto, esta tarefa já seria
gigantesca, considerando a fragilidade do quadro econômico herdado e a vulnerabilidade
externa do país. A convivência no governo de interesses e orientações opostos reforçam as
dúvidas: a diversidade dos apoios ao governo Lula e a diversidade da própria equipe
ministerial sugerem a ocorrência de tensões fortes, possibilidade que é muito reforçada
quando temos em conta a falta de clareza das definições do governo, a respeito do modelo
econômico defendido2.
Com relação à equipe ministerial3, vale a pena destacar que ela combina a presença de
gente muito distante da tradição política e ideológica do PT (o caso extremo é de Henrique
Meirelles, um banqueiro vinculado a interesses norte-americanos) com uma grande
predominância numérica de filiados do PT, sendo que todo o chamado núcleo de governo
pertence integralmente ao PT.
O objetivo deste trabalho é examinar as definições econômicas do governo Lula desde
a campanha eleitoral até os primeiros seis meses de governo, destacando as modificações que
sofreu.
De fato, podemos identificar até agora três momentos na definição do programa do
novo governo, e um quarto momento anunciado. O primeiro é o da aprovação do texto
Concepção e Diretrizes do Programa de Governo do PT para o Brasil, no XII Encontro
Nacional do PT, em dezembro de 2001. Este texto deveria constituir a orientação geral do
programa de governo, como seu próprio nome indica. Além disso, como a hierarquia das
instâncias do PT define o Encontro Nacional como a autoridade superior, seu conteúdo tem
uma legitimidade especial para o partido.
O segundo momento é o da aprovação, pelo Diretório Nacional do PT, em julho de
2002, do Programa de Governo 2002 da Coligação Lula Presidente, Um Brasil para Todos4.

* Este trabalho é uma versão ampliada e atualizada de parte do artigo “Um governo contraditório” [Revista da
Sociedade Brasileira de Economia Política, junho de 2003].
2 Como veremos, esta falta de clareza se explica mais pela presença de definições contraditórias do que pela
falta de definições.
3 Considerando como parte da equipe ministerial o presidente do BC, pela óbvia importância de sua função, que
tem muito mais peso do que a maioria dos ministérios.
1
Este documento deveria constituir um detalhamento do anterior; de fato, não é o que ocorreu.
No mês de junho, Lula havia divulgado uma Carta ao Povo Brasileiro, em que procurava
apresentar uma face mais moderada, o que foi feito fundamentalmente com a definição da
existência de um “período de transição” entre a situação herdada e a plena implementação do
novo programa. Esta mudança se refletiu no Programa de Governo.
O terceiro momento é o dos pronunciamentos e discursos feitos logo antes e depois da
posse, e das medidas práticas tomadas nos seis primeiros meses de governo. Deveriam
traduzir o programa de governo; não é isto, no entanto, o que vem ocorrendo. De fato, na área
econômica, é possível afirmar que está havendo uma mudança drástica.
O quarto momento, até agora apenas anunciado, deve ser, na perspectiva do governo, a
sua “segunda fase”. Seus delineamentos podem ser encontrados no Plano Plurianual 2004-
2007 e no Roteiro para a Nova Agenda de Desenvolvimento Econômico. Como veremos, esta
“segunda fase” consistiria numa tentativa de adequar as orientações do programa de governo
divulgado durante a campanha com as concepções de política econômica que têm prevalecido
nos primeiros meses da nova administração.
De modo geral, este trabalho se limitará à exposição e à análise dos diversos
momentos do programa econômico do governo Lula. Apenas na última seção, que procurará
fazer uma avaliação das perspectivas, serão feitas algumas observações sobre aspectos
políticos da situação brasileira.

2 — O Programa na Campanha

a) O texto Concepção e Diretrizes do Programa de Governo do PT para o Brasil


Por mais que o PT viesse passando por um processo de moderação crescente ao longo
dos últimos anos, o texto programático aprovado no seu XII Encontro Nacional (realizado no
Recife, em dezembro de 2001) está em linha com as formulações históricas do partido. A
concepção do sentido geral das mudanças propostas fica aí bastante clara.
O texto se abre com o título “A ruptura necessária”, caracterizando o programa
defendido como “democrático e popular” e afirmando expressamente a necessidade de uma
“ruptura global” com o modelo existente, “fundado na abertura e na desregulação radicais da
economia nacional e na conseqüente subordinação de sua dinâmica aos interesses e humores
do capital financeiro globalizado” [Concepção e Diretrizes do Programa de Governo do PT
para o Brasil, dezembro de 2001, §1, p. 15]. A ênfase na subordinação externa da economia
brasileira como maior problema a ser enfrentado percorre todo o documento.

4 Sendo o predomínio do PT entre os apoiadores da candidatura Lula muito grande, os outros partidos
manifestaram acordo com este programa.
2
O programa define três “eixos estruturantes” — o social, o nacional e o democrático
—, e deve ser viabilizado por “uma nova coalizão de forças que rompa com os sucessivos
pactos conservadores que vêm dominando o país há décadas” [idem, §22, pp. 27-8].
No eixo social, destaca-se a referência a que “será necessário incidir sobre fatores
estruturais que determinam os padrões de apropriação e distribuição da renda e da riqueza,
como as relações de propriedade da terra e do capital” [§25, p. 30]. Coerentemente com esta
colocação, dá-se ênfase a “medidas redistributivas” e a “transformações na produção e no
investimento que as orientem para um amplo mercado de consumo essencial de massas”
[idem, p. 31]. Neste contexto, fala-se, entre outros aspectos, em economia solidária, em
reforma agrária e reforma urbana, em direito à educação e à saúde pública, na instituição de
uma renda mínima e no combate à fome.
O eixo nacional define inicialmente o objetivo de dotar o Estado de “autonomia para a
formulação e a gestão da política econômica nacional e da regulação social dos mercados”5 e
lograr inserção no mundo de maneira soberana [§45, p. 43]. Isto exigiria “políticas dirigidas a
reduzir de modo significativo a dependência e a vulnerabilidade externas, que constituem, na
atualidade, a restrição fundamental para a retomada e sustentação do crescimento econômico”
[§ 46, p. 44]. E esclarece: “Isso transcende o alcance das políticas tradicionais de ajuste
macroeconômico e de suporte ao funcionamento espontâneo do mercado […]” [idem, p. 44].
Deixando clara a importância que têm nas Diretrizes, as políticas voltadas para a
redução da vulnerabilidade e da dependência externas são bastante detalhadas, e subdivididas
em seis dimensões. A primeira é a “recuperação do saldo comercial e a redução do déficit na
conta de serviços do balanço de pagamentos” [§47, p. 44]. A segunda, a “correção dos
desequilíbrios oriundos da abertura comercial, através da revisão da estrutura tarifária e da
criação de proteção não tarifária, amparada pelos mecanismos de salvaguarda da OMC, para
atividades consideradas estratégicas” [§48, p. 45]. A terceira dimensão merece ser citada mais
extensamente:
implantar mecanismos de regulação da entrada de capital especulativo e reorientar o
investimento direto externo com critérios de seletividade que favoreçam o aumento das
exportações, a substituição de importações, a expansão e a integração da indústria de bens de
capital e o fortalecimento de nossa capacidade endógena de desenvolvimento tecnológico. É
essencial que o capital estrangeiro se vincule à criação de capacidade produtiva adicional e
compense o aumento da remessa de lucros, dividendos e royalties com seu impacto positivo
sobre o saldo comercial [§49, p. 46].
Esta colocação acompanha uma das principais críticas às políticas do governo de F.H.
Cardoso:
Ao elevar as necessidades de financiamento externo a níveis críticos e abolir as restrições ao
movimento de capitais, as políticas aplicadas transformaram a dependência do capital
estrangeiro em um mecanismo de internalização da instabilidade do mercado financeiro

5 No § 55, esta idéia é desdobrada com uma crítica à “ideologia do ‘Estado mínimo’ [da] década de 1990” [p.
50].
3
globalizado e de subordinação do funcionamento da economia nacional às prioridades e
interesses dos credores e investidores externos [§11, p. 21].
A quarta dimensão das políticas que visam reduzir a vulnerabilidade externa é a
“regulamentação do processo de abertura do setor financeiro” [§50, p. 46]. A quinta dimensão
diz respeito ao tratamento da dívida externa6 e à necessidade de “denunciar do ponto de vista
político e jurídico o acordo atual com o FMI, para liberar a política econômica das restrições
impostas ao crescimento e à defesa comercial do país” [§51, pp. 46-7]. A importância do
encerramento do acordo então vigente com o FMI é retomada mais adiante:
Por oposição ao monitoramento de caráter monetarista e ortodoxo do FMI, o novo governo
buscará assumir publicamente um conjunto de compromissos sociais e econômicos em sintonia
com os objetivos e prioridades do novo modelo de desenvolvimento [§63, p. 55].
A sexta dimensão é a da “consolidação da vocação de multilateralidade do comércio
exterior brasileiro” [§52, p. 47]. A ALCA é criticada:
Quanto à ALCA, [...] não se trata de uma questão de prazos ou de eventuais vantagens nesse
ou naquele setor. Tal como está proposta, a ALCA é um projeto de anexação política e
econômica da América Latina aos EUA […]. O que está em jogo, então, são os interesses
estratégicos nacionais, é a preservação de nossa capacidade e autonomia para construir nosso
próprio futuro como nação [§53, pp. 47-8]
Um dos parágrafos mais significativos desta parte do texto é o §54, que trata da “luta
por uma ordem internacional radicalmente distinta da que está sendo construída”, afirma que
“à mundialização do capital e dos mercados devemos opor a solidariedade e o
internacionalismo dos povos” e, neste contexto, menciona “a defesa do socialismo
democrático” [pp. 48-50].
O §57 fala em preservar e consolidar a presença das empresas estatais onde ela ainda é
relevante, e em suspender e reavaliar o programa de privatizações [p. 51]. O §60 trata da
necessidade de reduzir o comprometimento das receitas do governo com o pagamento de
juros da dívida pública, e defende “uma revisão completa das atuais políticas que colocam a
dívida financeira e seus credores como a prioridade número um do Estado brasileiro”. E
prossegue:
Nesses termos, a redução da fragilidade externa deverá promover uma redução das taxas de
juros cobradas nos financiamentos externos, com efeitos positivos sobre a taxa de juros
doméstica de curto-prazo, a qual influencia o custo do financiamento da dívida pública,
diminuindo a carga de juros e a imprevisibilidade de sua trajetória [p. 53].
Na mesma linha, a concepção de orientar a política econômica pelo controle do déficit
público (o que havia começado a ser feito pela definição de metas de superávit fiscal
primário) é diretamente criticada:
a evolução do déficit público não pode estar sujeita a metas de longo-prazo ou a concepções
anacrônicas e marcadamente ortodoxas e monetaristas que postulam o orçamento equilibrado

6 É defendida a renegociação da dívida externa pública.


4
como um valor absoluto e permanente. Tal equilíbrio pode ser alcançado através do
crescimento econômico e da estabilidade macroeconômica (que induzem ao pleno emprego e à
maximização das receitas fiscais) [§61, p. 54].
Em contraposição, o programa defende a adoção de metas de crescimento, de emprego
e de investimento social, ao lado das metas de inflação:
Nesse quadro, caberá estabelecer metas de crescimento econômico, geração de emprego, de
investimento social e da inflação que concretizem e que confiram consistência àquelas
prioridades, viabilizando, ao mesmo tempo, seu amplo controle público [§63, p. 55].
O “eixo democrático” do programa reforça a idéia da necessidade da ruptura com o
modelo econômico-social existente, falando na defesa de uma revolução democrática no país
e em uma disputa de hegemonia com o neoliberalismo. Inclui uma crítica à “cultura da
mercantilização” [§64, pp. 55-6]. Ela se desdobra numa crítica ao predomínio da regulação
pelo mercado:
as bolsas de valores e os mercados financeiros não podem regular a sociedade. O mercado não
produz justiça e não tem qualquer compromisso com a ética democrática e a justiça social. Os
acordos clientelistas e a ‘mão invisível’ do mercado não podem substituir o debate público e
democrático e as decisões daí emanadas […]. Isso exige a desprivatização do Estado, a
constituição de novas esferas públicas de controle social do Estado e o controle social e
democrático do mercado [§65, p. 56].
Na continuidade, é atribuído um papel decisivo à mobilização e à pressão popular para
“equacionar limitações legais e institucionais importantes” [§66, p. 57]. Além disso, é
proposta a redefinição do próprio papel do Estado. Ao lado do planejamento estratégico (ou
gestão estratégica), a gestão participativa é vista como indispensável. Dentre as suas
modalidades, destaca-se o orçamento participativo [§73, pp. 61-2].
A concepção econômica de conjunto destas Diretrizes pode talvez ser chamada de
“social-desenvolvimentista”. Combina uma retomada das propostas desenvolvimentistas com
uma maior preocupação com a distribuição de renda e principalmente com a defesa de maior
participação dos trabalhadores e do povo na direção do processo, bem como com uma maior
ênfase no caráter nacional do projeto de desenvolvimento. Aponta, além disso, a necessidade
de “ruptura global” com o modelo existente, como vimos. Assim, embora sua formulação seja
mais moderada do que o “programa democrático e popular” tradicional do PT, esta concepção
pode legitimamente ser considerada como uma versão deste programa — como aliás é
sugerido na sua frase inicial: “A implementação de nosso programa de governo para o Brasil,
de caráter democrático e popular…”[Concepção e Diretrizes do Programa de Governo do PT
para o Brasil, dezembro de 2001, §1, p. 15].

b) A idéia de uma “transição” e o programa Um Brasil para Todos


Em junho de 2002, sob pressão do ambiente de incertezas motivado por intensa
especulação contra o real e contra os títulos brasileiros (com a queda do real e subida do
chamado “risco Brasil”), Lula divulgou uma Carta ao Povo Brasileiro, em que procurava

5
sobretudo tranqüilizar os mercados. Aí, além de reafirmar seus compromissos com as
mudanças desejadas pela população, introduziu a idéia de um período de transição:
O PT e seus parceiros têm plena consciência de que a superação do atual modelo, reclamada
enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um dia para o outro. […]
Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a
sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado
em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais de governo, tal
como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de
uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um
novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade. Premissa dessa
transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. As recentes
turbulências financeiras devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual
modelo e de clamor popular pela sua superação [Lula, Carta ao Povo Brasileiro, 22/06/2002].
O sentido da “transição” nesse enunciado é claro: trata-se de um período de mudança
gradual e negociada entre o modelo vigente e o novo modelo desejado. A necessidade de
mudança, aliás, é enfatizada em seguida no texto, visto que Lula afirma que a causa
fundamental das turbulências é a fragilidade da economia brasileira, acentuada pela política
do governo de F. H. Cardoso.
O programa Um Brasil para Todos retoma a idéia de “uma lúcida e criteriosa
transição”, esclarecendo que a superação das fragilidades da economia brasileira exige
mudança de políticas. Uma ênfase especial é colocada na necessidade de superar “o dilema da
âncora fiscal”:
A volta do crescimento é o remédio para impedir que se estabeleça um círculo vicioso entre
juros altos, instabilidade cambial e aumento da dívida pública em proporção ao PIB. […] A
superação desses obstáculos à retomada do crescimento acontecerá por uma lúcida e criteriosa
transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica [Um Brasil para Todos,
julho de 2002, p. 16].
[…] Já tivemos a armadilha cambial. Saímos dela em 1999 com muitas dores, mas
sobrevivemos. Agora, temos o dilema da âncora fiscal. A questão é como superá-la, sem
atentar contra a estabilidade da economia. Nosso governo vai preservar o superávit primário o
quanto for necessário, de maneira a não permitir que ocorra um aumento da dívida interna em
relação ao PIB, o que poderia destruir a confiança na capacidade do governo de cumprir seus
compromissos. (...) O nosso governo não vai romper contratos nem revogar regras
estabelecidas. Compromissos internacionais serão respeitados. Mudanças que forem
necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais [pp. 16-7].
O que se propõe é transitar da “âncora fiscal” para o “motor do desenvolvimento”:
A rigidez da atual política econômica pode provocar a perda de rumo e de credibilidade. O
Brasil já demonstrou, historicamente, uma vocação para crescer em torno de 7% ao ano. É essa
vocação que o nosso governo vai resgatar, trabalhando dia e noite para que o País transite da
âncora fiscal para o motor do desenvolvimento. O Brasil precisa navegar no mar aberto do
crescimento [p. 17].

6
Um pouco adiante, uma referência à necessidade de responsabilidade fiscal
(mencionada ao lado de “compromisso social”) repete que “só a volta do crescimento pode
levar o País a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro” [p. 18].
No item do programa que detalha a concepção de transição (A Transição para o Novo
Modelo tem como Alvo o Crescimento) a retomada do crescimento é apontada como o
“instrumento essencial” para a superação do círculo vicioso criado pelo governo:
A atuação essencial do nosso governo será, portanto, a busca incessante da retomada do
crescimento econômico como meio privilegiado para a geração de empregos e a distribuição
de renda. Esse será o instrumento essencial para a superação do círculo vicioso entre déficit
externo, juros elevados, instabilidade cambial e aumento da dívida pública, criado pelo atual
governo. Exatamente por isso, o esforço pelo crescimento será estruturado simultaneamente a
uma criteriosa e responsável transição entre o que temos hoje e o que a sociedade brasileira
reivindica. Mesmo porque o agravamento da vulnerabilidade de nossa economia não se
originará da mudança do atual modelo econômico, mas sim da sua continuidade [p. 48].
Além da introdução desta noção de “transição”, o programa Um Brasil para Todos
assinala uma clara preocupação de evitar temas mais “radicais”. Assim, os conceitos de
“ruptura global com o atual modelo econômico” ou de “revolução democrática” estão
ausentes. Do mesmo modo, não se fala em denunciar acordos com o FMI; esta instituição só é
mencionada numa passagem em que se defende a sua “democratização” [p. 13]. Por outro
lado, a crítica à ALCA está presente; ela continua a ser vista, nas atuais condições, como um
“processo de anexação econômica do Continente” [p. 13].
Outra idéia que pode ser considerada “radical”7 não aparece: a do controle dos fluxos
internacionais de capital. No entanto, ao explicitar que “o primeiro passo para crescer é
reduzir a atual fragilidade externa” [p. 17], o programa diz criticamente que “a abertura
financeira executada aumentou a vulnerabilidade externa e reduziu a capacidade de
financiamento das atividades produtivas, em especial no que se refere ao investimento” [p.
35] e que “a liberalização dos fluxos de capitais sujeitou a taxa de juros doméstica às regras
de formação dos mercados financeiros globais” [p. 35]. Assim, embora não defenda
explicitamente controle de capitais, trata a liberalização de seu fluxo como um problema.
Com relação às taxas de juros, cuja redução é essencial para “superar o dilema da
âncora fiscal”, o programa diz que responsabilidade fiscal e inflação sob controle contribuirão
para a sua queda gradativa [p. 48]. Mas afirma também que “nosso governo terá uma atitude
ativa no sentido de buscar a redução das taxas de juros”, e que para tanto “vai concentrar
esforços para diminuir de forma rápida e continuada o déficit em transações correntes” [p.
48]. Em outras passagens, a vinculação entre altas taxas de juros e vulnerabilidade externa é
ainda mais enfatizada; o programa diz que o governo “vai trabalhar firmemente para reduzir a
vulnerabilidade externa e com ela as taxas de juros que hoje asfixiam as contas públicas e o
setor empresarial produtivo” [p. 17].

7 Se é que se pode chamar de “radical” um procedimento que era o padrão internacional até alguns anos atrás,
que continua não sendo incomum ainda hoje, e que tem sido admitido até mesmo por membros do FMI.
7
A vulnerabilidade externa seria reduzida por meio da montagem de um “sistema
combinado de crédito e de políticas industriais e tributárias”, com o objetivo de “viabilizar o
incremento das exportações, a substituição competitiva de importações e a melhoria da infra-
estrutura” [p. 17].
As idéias da necessidade da “ação reguladora do Estado sobre o mercado” e de
“controle social” são mantidas. De modo enfático, o programa diz que:
“Trata-se de um equívoco a idéia de que basta um equilíbrio macroeconômico, abertura e livre
ação das forças de mercado para que o desenvolvimento flua naturalmente. Nos últimos oito
anos, esse tipo de política produziu instabilidade cambial, juros astronômicos que asfixiaram o
financiamento de novos negócios, desestímulo à inovação tecnológica e enfraquecimento das
exportações” [p. 20].
Levando em conta o programa Um Brasil para Todos no seu conjunto, podemos
concluir que ele representou um movimento na direção de maior moderação, mas que isto não
aconteceu tanto por ele defender uma concepção diferente do texto das Diretrizes, e sim por
não explicitar algumas das conseqüências mais “radicais” da concepção defendida. A própria
idéia de “transição” é vinculada à busca de um modelo de desenvolvimento muito diferente
daquele do governo de F. H. Cardoso. De conjunto, o programa permanece nos marcos do
“social-desenvolvimentismo”.
Por outro lado, a referência ao “respeito aos contratos e obrigações do país”, presente
na Carta ao Povo Brasileiro, podia dar margem a muitas interpretações, sobretudo quando
algumas semanas depois Lula avalizou o novo acordo com o FMI assinado pelo governo de F.
H. Cardoso. O acordo com o FMI previa, na verdade, a continuidade da política vigente.
Desta forma, podemos concluir que ao final da campanha eleitoral não estava claro qual seria
o modelo econômico perseguido pelo governo Lula. Entretanto, como toda a ênfase da
campanha (inclusive, como vimos, da própria Carta ao Povo Brasileiro) era na direção da
mudança, o que se podia esperar seria um esforço genuíno para abandonar as políticas do
governo de F. H. Cardoso.

3 — O Programa no Governo

a) A orientação da área econômica do governo Lula nos primeiros meses


Quando consideramos o que se está passando desde o início do governo Lula, o
quadro muda. A orientação da área econômica tem sido de forte continuidade com a do
segundo mandato de F. H. Cardoso8. A política de taxas de juros elevadas foi mantida (com
duas elevações das taxas nominais básicas nos primeiros cem dias, e uma tímida redução no
mês de junho); a “responsabilidade fiscal” foi reforçada, e a meta de superávit primário subiu
para 4,25% do PIB, o que obrigou a cortes9 importantes até mesmo nos gastos sociais. Outros

8 É bem conhecido que do primeiro para o segundo mandato de FHC houve alterações significativas na política
cambial e na política fiscal.
8
aspectos da política do governo anterior têm sido igualmente defendidos, embora ainda não
postos em prática10: a continuidade da privatização dos bancos públicos estaduais e a
concessão de “autonomia operacional” para o Banco Central.
Além disso, as Cartas de Intenção enviadas ao FMI (datadas de 28 de fevereiro e de 28
de maio) seguem o mesmo modelo das do governo anterior.
A continuidade da política econômica vem causando perplexidade, desconforto ou
oposição entre os integrantes do PT. Até agora, a maioria do partido tem defendido a linha
seguida, com a justificativa de que ela era necessária dada a “herança maldita” recebida do
governo anterior, e de que representa apenas uma fase de transição, provisória, a ser
brevemente superada. Entretanto, uma análise mais cuidadosa da natureza das medidas
implementadas e das propostas apresentadas, e especialmente das suas justificativas, aponta
para uma conclusão diferente: o sentido de “transição” foi inteiramente redefinido, e de fato
vem sendo feita uma alteração drástica do programa anunciado, até mesmo com relação à
versão já “moderada” de Um Brasil para Todos.
Talvez a maior diferença entre o que o governo tem feito e o que anunciou na
campanha esteja no conteúdo do que é chamado de “transição”. O ministro Antônio Palocci,
em seu discurso de posse, procurou esclarecer o sentido deste conceito:
O tema da transição despertou ansiedade sobre o que viria depois da fase de transição,
especulou-se sobre o fim dos superávits primários, o fim das metas de inflação e do regime de
câmbio flutuante e a adoção de medidas não convencionais e inventivas na condução da
política macroeconômica. A essas legítimas perguntas respondemos de forma inequívoca: o
novo regime já começou; a boa gestão da coisa pública requer responsabilidade fiscal e
estabilidade econômica. O governo que ontem se encerrou tem méritos nesse tema, o que não
nos constrange reconhecer. Porém, esse não é um patrimônio exclusivo seu, assim como não o
será da nossa administração. […] Assim, a transição do modelo que temos e o que o País
reivindica é a superação das dificuldades de curto prazo. [A. Palocci, Discurso de posse,
02/01/2003].
Não há portanto, segundo o pensamento do ministro, transição no respeito aos
“princípios básicos da política econômica”. O “novo regime” já começou; o “período de
transição” consiste apenas no tempo necessário para a superação das dificuldades de curto
prazo, não constitui uma fase de mudança de modelos econômicos.
O documento divulgado em 10 de abril pelo Ministério da Fazenda, Política
Econômica e Reformas Estruturais11, radicaliza esta linha. Pretendendo tomar como base a
Carta ao Povo Brasileiro e o programa Um Brasil para Todos, diz que o “período de

9 O governo tem preferido usar o eufemismo “contingenciamento”.


10 Em grande parte por resistências no interior do PT e da base aliada.
11 Trata-se de um documento preparado pela Secretaria de Política Econômica (dirigida por Marcos Lisboa), e
assinado também pelo ministro Palocci e pelo secretário executivo Bernard Appy, que amplia vários temas
presentes no discurso de posse do ministro Palocci, e consiste claramente num desdobramento da “Agenda
Perdida”.
9
transição” “inclui um processo de ajuste das condições macroeconômicas e a implementação
de reformas estruturais” [Ministério da Fazenda, Política Econômica e Reformas Estruturais,
abril de 2002, p. 3], e que “será necessária uma cuidadosa e criteriosa transição entre o que
temos hoje e um novo ciclo histórico em que o Brasil reencontre e desenvolva todas as suas
potencialidades de crescimento econômico” [p. 6].
A “transição”, portanto, é definida como um processo de ajuste das condições
macroeconômicas, de implementação das chamadas “reformas estruturais”, e é pensada em
termos de um prazo histórico. O aspecto central do ajuste é o “ajuste fiscal de longo prazo”,
definido como “primeiro compromisso da política econômica” [p. 6]. Para enfatizar, afirma-se
que a fixação da meta de superávit primário fiscal de 4,25% do PIB representa “uma mudança
estrutural em relação ao governo anterior” e repete-se que “o compromisso do governo é
diminuir o endividamento em proporção ao PIB, nos próximos quatro anos” [p. 8]. As
reformas estruturais (da Previdência, Tributária, autonomia do Banco Central e do mercado de
crédito12) são justificadas como imprescindíveis, direta ou indiretamente, para este ajuste [p.
9]. São feitas simulações para a evolução da dívida líquida do setor público, com a
manutenção do superávit primário de 4,25% do PIB, até o ano de 2011.
Fica claro, portanto, que, na concepção do Ministério da Fazenda, esta “transição”
entre ciclos históricos, centrada no ajuste fiscal, ocupará todo o mandato do presidente Lula, o
eventual segundo mandato, e ainda irá além. A ênfase no ajuste fiscal representa em si mesma
uma “mudança estrutural” e veio para ficar!
Naturalmente, não foi disto que se falou durante a campanha. Além do prazo, o
conteúdo da nova transição é radicalmente alterado: a lógica básica da política econômica que
vem sendo posta em prática é o aprofundamento da “âncora fiscal” tão criticada em Um Brasil
para Todos.
Naquele programa, era sobretudo a superação da vulnerabilidade externa que abriria o
caminho para a redução das taxas de juros e para a viabilização do crescimento econômico, do
aumento do emprego e da distribuição da renda; e seria o crescimento que permitiria a
superação do círculo vicioso entre déficit externo, juros elevados, instabilidade cambial e
aumento da dívida pública. Além disso, insistia-se em que seria “um equívoco a idéia de que
basta um equilíbrio macroeconômico, abertura e livre ação das forças de mercado para que o
desenvolvimento flua naturalmente”. Destacava-se, portanto, a necessidade da “ação
reguladora do Estado sobre os mercados”. Podemos resumir a dinâmica defendida com as
idéias: superação da vulnerabilidade externa — busca do crescimento econômico — papel
ativo do Estado.
Na lógica atual do Ministério da Fazenda, a preocupação com a vulnerabilidade
externa quase desaparece. Ela seria combatida com o próprio ajuste fiscal (que permitiria
ganhar a confiança dos mercados) e com o aumento do volume de comércio com o exterior
[Política Econômica…, pp. 5-6] (a idéia é que, com um maior volume de comércio, variações

12 Nesta, sobressai a proposta da Lei de Falências.


10
relativamente pequenas da taxa de câmbio produziriam automaticamente o equilíbrio
externo). Trata-se, portanto, justamente da idéia de que “basta um equilíbrio
macroeconômico, abertura e livre ação das forças de mercado”.
O modelo econômico proposto pelo Ministério da Fazenda representa claramente um
aprofundamento do de F. H. Cardoso; isto fica muito claro até quando consideramos as
críticas que lhe têm sido feitas. O ministro Palocci, no discurso em que apresentou as
conclusões dos trabalhos da “equipe de transição” entre os dois governos, que ele
coordenou13, fez duas críticas ao governo anterior.
A primeira foi à política cambial, e se dirige à sobrevalorização do real até 199814.
Mas a política cambial foi mudada no segundo mandato; e a seguida desde então tem tido
explicitamente o acordo do ministro (até em seus aspectos mais questionáveis, como o da
inexistência de controles dos movimentos de capitais). O grande objetivo que o novo ministro
aponta nesta área — a estabilização da taxa de câmbio — é compartilhado pela antiga equipe
de FHC, e o mesmo acontece com o remédio básico proposto agora — a recuperação da
“confiança dos mercados”.
A segunda crítica se dirigiu ao conjunto do mandato anterior, e diz respeito à
excessiva fé no mercado, à ausência de um projeto nacional e de mobilização em torno dele, e
à carência de “planejamento estratégico”. Vale a pena citar o ministro:
O planejamento atingiu um nível de esvaziamento brutal quanto às funções de definição de
desenho institucional e construção de sistemas de gestão e coordenação. Não apenas nas
estruturas do Ministério do Planejamento, mas no conjunto das áreas estratégicas responsáveis
por articular o desenvolvimento do país. Não seria exagero afirmar, no que se refere ao
Planejamento Estratégico, que o Estado Brasileiro vive um prolongado ‘apagão’[…]. O atual
governo difundiu, junto com parcelas da comunidade internacional, a ilusão de que o
crescimento econômico e a redução da exclusão social seriam resultante natural do
desenvolvimento dos mercados e do uso, sem contra-indicações, da abundante poupança
externa disponível no início dos anos noventa […] [Dirigindo-se a Lula] Temos consciência
de que os votos recebidos por V.Excia. vieram para corrigir a excessiva sedução pelos
mercados que marcou a atuação do governo nos últimos anos [A. Palocci, Discurso em
27/12/2002].
Esta colocação retoma temas do programa Um Brasil para Todos15. No entanto, não
parece estar tendo conseqüências visíveis na ação econômica do Ministério da Fazenda16.
Pelo contrário, há muitas indicações de que ele vem sofrendo do mal da “sedução pelos
mercados”. Uma prova disto é dada, como vimos, pelo documento Política Econômica e
Reformas Estruturais.

13 Esse foi seu pronunciamento mais crítico ao governo de F. H. Cardoso.


14 Crítica correta; esta sobrevalorização foi responsável por boa parte dos problemas econômicos posteriores.
15 A própria expressão “apagão”, relacionada à falta de planejamento estratégico, já aparecia aí [p. 13].
16 Podemos avaliar que tem tido conseqüências na ação de outros ministérios, como o do Planejamento, e na
ação do BNDES.
11
Por outro lado, voltando à análise deste documento, é importante assinalar que ele
retoma a crítica à política cambial do primeiro mandato de F. H. Cardoso [p. 6]17, e
acrescenta uma outra crítica ao governo anterior: à política fiscal, especialmente do primeiro
mandato, mas mesmo do segundo, vista neste caso como pouco consistente e de má
qualidade18. Coerentemente, propõe agora aprofundar a política de ajuste fiscal (ou seja, a
“âncora fiscal”), inclusive levando adiante as “reformas” propostas desde o governo anterior.
Talvez a demonstração mais clara de continuidade entre a política que se vem
praticando e a do governo F. H. Cardoso tenha sido dada na votação da emenda ao artigo 192
da Constituição, que tornou possível a concessão da autonomia para o Banco Central. A
proposta defendida pelo governo, apresentada anteriormente por José Serra, foi apoiada
enfaticamente pelo PSDB e pelo PFL (que declararam, com razão, estar apoiando uma
proposta que lhes pertencia) e encontrou oposição nas bancadas do PT e de outros partidos de
esquerda que formam parte da base do governo19.
Outra demonstração inequívoca de continuidade do governo Lula com relação ao
governo de F. H. Cardoso é sua proposta de reforma da Previdência. Em primeiro lugar, pelo
seu objetivo central, claramente assinalado no documento Política Econômica e Reformas
Estruturais: o do ajuste fiscal20. Por este objetivo esta reforma é julgada fundamental para a
ampliação da confiança dos mercados. Em segundo lugar, esta reforma expressa continuidade
pelo seu próprio conteúdo: procura ir até onde a reforma de F. H. Cardoso não foi, em grande
parte por ter enfrentado, na época, a oposição do PT.

b) O novo momento anunciado: o Plano Plurianual


Desde fins de abril, as críticas à orientação econômica cresceram muito. Inclusive de
dentro do governo: nesse particular, a economista Maria da Conceição Tavares, em
declarações no dia 21 de abril [na Folha de S. Paulo], deu a partida.

17 No entanto, declarações recentes do ministro, dizendo-se despreocupado com uma possível continuidade da
valorização cambial em curso, obrigam a pensar que o sentido desta crítica não foi suficientemente assimilado.
Além disso, a idéia de que se deve deixar que o mercado estabeleça a taxa de câmbio sem interferências —
defendida, em seu momento, por Gustavo Franco — é uma manifestação clara (e perigosa) da “sedução pelos
mercados”.
18 “A ruptura com o passado de ausência de disciplina fiscal não pode ser baseada em arrecadações temporárias
nem na expansão sem freio de contribuições em cascata que distorcem o sistema de preços relativos” [p. 7].
19 Só foi possível convencer a maioria da bancada do PT a votar a favor com ameaças de punição e com o
compromisso enfático de que não se levaria a autonomia do BC à votação sem uma “discussão exaustiva”; de
qualquer maneira, houve duas declarações de voto de deputados do PT que expressaram oposição a esta
autonomia, uma mais à esquerda, com 35 signatários, e outra mais moderada, com 19 — somaram 54 assinaturas
em 86 presentes. A Bancada do PSB fez uma declaração de voto semelhante, o PC do B esclareceu que votava
por confiança no presidente e o PDT se absteve.
20 Outra questão é que a reforma proposta daria origem, segundo as projeções realizadas pelo próprio governo,
a ganhos fiscais muito modestos.
12
Depois do excesso de continuísmo representado pelo documento Política Econômica e
Reformas Estruturais, o governo começou a anunciar que haveria mudanças. Seu principal
esforço tem sido o de dizer que a política econômica ortodoxa dos primeiros meses estaria
preparando o caminho para uma “segunda fase” de crescimento.
Dois documentos divulgados são mais importantes nesta linha: o Plano Plurianual
2004-2007 — Orientação Estratégica de Governo — Um Brasil para Todos: Crescimento
Sustentável, Emprego e Inclusão Social, divulgado em maio pelo Ministério do Planejamento,
e o Roteiro para a nova agenda de Desenvolvimento Econômico, divulgado em junho em
conjunto pelos Ministérios do Desenvolvimento, da Fazenda, do Planejamento e pela Casa
Civil.
O primeiro é sem dúvida mais importante, embora seu título expresse uma ambição
que não é respaldada pelo seu conteúdo. O mais significativo deste documento é que procura
recuperar o programa de governo apresentado na campanha, a começar pelo título, que inclui
a expressão Um Brasil para Todos. De fato, algumas ênfases do texto de 2002 reaparecem,
em particular a preocupação com a superação da vulnerabilidade externa, a definição de um
papel central do Estado e a inclusão da participação da sociedade brasileira como um tema
importante.
Com relação à questão da vulnerabilidade externa, algumas passagens parecem mesmo
uma polêmica direta com as posições do Ministério da Fazenda. O Plano afirma por exemplo
que “ciclos de crescimento caracterizados por uma política macroeconômica frágil e
vulnerável a choques externos inevitavelmente resultam em crises”, e fala que a “estabilidade
macroeconômica” tem “três dimensões — externa, fiscal e de estabilidade de preços” [§§ 12 e
13, p. 6]. Mais à frente, na “dimensão econômica” da estratégia de desenvolvimento, o
“fortalecimento das exportações e da substituição competitiva de importações” é definido
como “prioridade” [§ 56, p. 20]. Além disso, o Plano propõe para o setor externo “medidas
voltadas à promoção substitutiva de importações e, principalmente, ao estímulo das
exportações” [§ 28, p. 10]. Ora, como observamos na primeira parte desta seção,
“vulnerabilidade externa” é um tema que não faz parte das preocupações da Fazenda, que
supõe que a solidez fiscal resolva a questão, ajudada pelo aumento do volume de comércio. E
como se sabe, as políticas de substituição de importações são um dos alvos principais das
críticas liberais.
O papel do Estado é destacado no Plano: “Para implantar este projeto de
desenvolvimento, é preciso que o Estado tenha um papel decisivo, como condutor do
desenvolvimento social e regional e como indutor do crescimento econômico” [§ 8, p. 4]. O
papel do Estado perpassa de fato todo o documento, com ênfase em políticas industriais,
comerciais, agrícolas, de emprego etc. Em todos estes aspectos, nota-se uma visão muito
diferente da noção central do documento Política Econômica e Reformas Estruturais, que é
de que o Estado deve sobretudo abrir caminho para o mercado.
O caráter participativo do Plano se mescla com a importância dada à “dimensão
democrática” do desenvolvimento. Aí aparece até uma antiga idéia dos programas do PT:
fala-se que “será promovido um gigantesco esforço de desprivatização do Estado”! [§ 77, p.
13
26, grifo acrescentado] Outro aspecto interessante do documento é a definição da dinâmica de
crescimento a partir de um “círculo virtuoso: aumento dos rendimentos das famílias
trabalhadoras/ ampliação da base de consumo de massa/ investimentos/ aumento da
produtividade e da competitividade/ aumento do rendimento das famílias trabalhadoras” [§
45, p. 15]. Ou seja, é retomada a idéia central do programa do PT de 1994, de um modelo de
crescimento baseado no consumo de massa, em “ganhos de produtividade associados ao
tamanho do mercado interno” [§ 43, p. 15]. Esta preocupação com o mercado interno também
se contrapõe às concepções liberais.
No entanto, o Plano apresenta incoerências importantes, que podemos resumir dizendo
que ele aceita se colocar no quadro geral da orientação liberal defendida de forma muito mais
firme pelo Ministério da Fazenda. Ele adota, por exemplo, a concepção de “equilíbrio
macroeconômico” centrado no “ajuste das contas do setor público” como meio para obter uma
“evolução favorável da relação dívida/PIB” [§ 57, p. 20]. Ora, seria muito mais coerente com
o conjunto do Plano defender a busca de uma “evolução favorável da relação dívida/PIB” por
meio de taxas de juros mais baixas e de maior crescimento econômico. Além disso, para
piorar as coisas, este parágrafo inclui a reforma da Previdência como um dos meios de
realizar o ajuste das contas do setor público, aderindo assim a uma concepção fiscalista desta
reforma21.
Com relação à reforma da Previdência, aliás, o Plano presta homenagem a uma outra
idéia conservadora, a de que “a expansão dos Fundos de Pensão contribuirá para ampliar a
poupança financeira aplicável em investimentos produtivos” [§ 57, p. 21]. Além disso, ele
aceita o argumento de que a redução do spread bancário será obtida mediante maior
“segurança jurídica dos contratos” e portanto da mudança da Lei de Falências [§ 19, p. 8 e §
57, p. 21].
Finalmente, o Plano prevê o enfrentamento das restrições orçamentárias derivadas da
política da Fazenda por intermédio de uma proposta que vinha do governo FHC: a parceria
Público-Privado.
O Roteiro para a nova agenda… não tem o alcance do Plano Plurianual. Talvez seu
aspecto que mais mereça ser citado seja o de que combina uma ênfase em políticas industriais,
inclusive com a promoção de setores estratégicos (idéia do Plano Plurianual) com a
afirmação de que o objetivo central deve ser o aumento do volume de comércio exterior (idéia
defendida pela Fazenda). Da maneira com que ele faz isto, o predomínio das concepções
liberais do Ministério da Fazenda fica claro: a idéia de políticas de substituição de
importações (que naturalmente se contrapõe à ênfase no aumento no volume de comércio) não
aparece no texto.
A análise destes documentos permite concluir, portanto, que a “segunda fase”
pretendida pelo governo não será caracterizada por outra orientação macroeconômica, mas
apenas pela tentativa de superpor políticas de desenvolvimento a um arcabouço

21 Por outro lado, o Plano reproduz também o argumento de que esta reforma faria parte de uma “política de
redistribuição de renda” [§ 53, p. 19].
14
macroeconômico já definido. Além disso, o governo conta com que a queda da inflação, e o
ganho de mais “confiança” dos mercados, permitirão uma redução das taxas de juros dentro
da lógica da política em vigor, e serão seguidos pela elevação do investimento privado, tanto
interno quanto externo.
Esta orientação poderá permitir um crescimento importante da economia, com redução
do desemprego e das desigualdades sociais? Enquanto a concepção macroeconômica liberal
prevalecer, é muito improvável. As políticas propostas no Plano Plurianual, que de fato se
contrapõem a esta orientação, teriam muito pouco espaço para ser desenvolvidas. De fato, não
estaríamos indo muito além das políticas de F. H. Cardoso; a continuidade ainda estaria
prevalecendo.
Com o gasto público em geral e o investimento público em particular muito
comprimidos, e ainda com a renda da população reduzida, será necessária uma situação
externa excepcionalmente favorável, que leve à combinação de crescimento das exportações
com crescimento dos investimentos estrangeiros, para que a economia possa ter um
crescimento razoável. Neste caso, talvez seja possível conseguir em algum momento um
crescimento do PIB algo acima de 4% ao ano, como aconteceu em 2000 (e como o governo
tem projetado para 2006). Seria muito pouco para chegar a uma redução significativa do
desemprego e a uma melhora significativa dos indicadores sociais. Mas o pior é que este
crescimento hipotético não seria sustentável: além de que qualquer reviravolta na situação
internacional poderia jogar a economia brasileira de volta à crise, a própria política cambial
adotada pelo BC faria que o crescimento das exportações se estancasse22.

4 — Conclusão

a) A linha geral do governo — tentativa de sistematização


Por que o governo tem defendido de forma tão inflexível sua orientação
macroeconômica? Desde meados de maio, o debate sobre os níveis das taxas de juros e as
maneiras de fazê-las baixar vem se ampliando, e as manifestações críticas à política seguida
pelo BC se multiplicam. De fato, o único setor que ainda parece dar-lhe apoio integral é o do
mercado financeiro. O governo, no entanto, tem resistido às críticas. Apenas em junho o BC
começou a reduzir a taxa nominal básica, e o fez em apenas 0,5%, insuficiente para fazer cair
a taxa real de juros (diante da queda mais pronunciada das expectativas de inflação).
Como compreender uma situação como essa num governo do PT? Talvez isto possa
ser conseguido com a seguinte sistematização da orientação geral seguida:
a) manutenção, de forma atenuada, da política geral expressa no programa Um Brasil
para Todos. Como este programa já significou uma atenuação das Diretrizes aprovadas no

22 Sem uma intervenção do BC para manter algum controle sobre o câmbio, uma situação de entrada de capital
estrangeiro e de crescimento das exportações tenderia a ser seguida por uma apreciação do real que inibiria as
exportações.
15
Encontro do PT (por sua vez mais moderadas que programas anteriores do PT), isto implica
uma moderação ao quadrado ou ao cubo — um grau de moderação bastante considerável;
b) sobreposição a esta linha da orientação macroeconômica estritamente
liberal/conservadora, praticada nos seis primeiros meses, codificada no documento Política
Econômica e Reformas Estruturais, e cujas marcas estão presentes no Plano Plurianual.
A racionalidade que podemos inferir desta combinação talvez possa ser expressa pela
seguinte diretriz: pôr em prática o máximo possível do programa do PT, com a condição de
não entrar em choque, ou mesmo de não desagradar os “mercados”, e em particular os
mercados financeiros. Esta linha seria justificada, de um lado, pela idéia de que não é possível
enfrentar os “mercados” e, de outro, pela crença de que é possível conseguir a colaboração
deles para um projeto de desenvolvimento. De fato, o núcleo do governo parece acreditar em
que é possível fazer um governo em alguma medida à esquerda sem um choque com os
“mercados” e os capitais, e portanto mantendo uma política econômica basicamente
neoliberal. Isto talvez explique o paradoxo da combinação de um “governo muito petista”
com uma política econômica continuísta. Permite até uma interpretação muito generosa das
mudanças operadas na orientação econômica da campanha ao governo: mesmo tendo
promovido uma grande mudança no programa, em certos aspectos drástica, o núcleo do
governo talvez acredite que está sendo fiel ao seu conteúdo.
Por outro lado, o mínimo que podemos dizer é que a viabilidade desta linha é
extremamente duvidosa: ela depende antes de qualquer coisa, como vimos, de uma bonança
externa permanente inexistente nos últimos anos. O núcleo do governo estaria fazendo assim,
na melhor das hipóteses, uma aposta muito arriscada. Se o respeito às exigências dos
mercados for mantido, o mais provável é que o governo fracasse: não conseguirá cumprir,
nem sequer aproximadamente, as promessas de mudança pelas quais foi eleito. Pior ainda, há
até mesmo a possibilidade de que o governo Lula fique caracterizado como um governo
predominantemente de retrocesso social. Vai nesta direção a proposta conservadora de
reforma da Previdência.
De fato, a incompatibilidade entre a linha liberal do Ministério da Fazenda e do BC
(presente também em outros setores do governo, como o debate sobre a “focalização” dos
serviços sociais mostrou ) e a linha “social-desenvolvimentista” expressa pelo Ministério do
Planejamento (com limitações significativas, como vimos) e por outros setores anuncia
grandes tensões no governo e na sua base de apoio. Estas, aliás, já estão evidentes, e
certamente crescerão muito com o tempo. É possível que, à medida que a incoerência da
combinação desejada pelo núcleo do governo vá ficando mais clara, haja uma maior pressão
por uma reorientação geral, isto é, uma redefinição da linha do governo, com o abandono da
ortodoxia macroeconômica conservadora. Isto permitiria uma implementação coerente pelo
menos do programa Um Brasil para Todos. As possibilidades de que isto venha a ocorrer,
naturalmente, serão maiores se houver uma forte pressão social nesta direção.
A pressão social, contudo, enfrenta muitas dificuldades. Com exceções importantes
(como na questão da reforma agrária), o governo não tem procurado contar com a
mobilização social para reforçar as propostas progressistas de mudança. O que Lula vem
16
pedindo ao povo é paciência, e não mobilização23. É muito significativo, e preocupante, que
o apoio ao governo, embora alto no geral (pelo menos até o mês de maio), seja maior entre os
empresários e sobretudo entre os executivos do setor financeiro24.
De fato, a orientação geral do governo se choca com a mobilização social. A partir da
orientação conservadora da proposta para a reforma da Previdência, a tendência é a de criação
de uma fratura entre governo e servidores públicos: é claro que os servidores não se sentem
parceiros do governo, e isto se agravará se a reforma for aprovada sem modificações de
fundo. Além disso, esta reforma tende a enfraquecer substancialmente a máquina pública, o
que vai na contramão de uma das principais orientações do programa Um Brasil para Todos e
mesmo do Plano Plurianual, a de promover uma intervenção mais ativa do Estado.
Tão grave quanto a falta de aposta no apoio social mobilizado e a tendência ao
enfraquecimento da capacidade de intervenção do Estado parece ser a falta de consciência do
núcleo do governo (e principalmente do presidente da República) sobre o significado da
política macroeconômica que está sendo implementada25. No mesmo dia (29 de maio) em
que o IBGE divulgou o recuo do PIB nos três primeiros meses do ano, com queda inclusive
das exportações (que vinham antes carregando o PIB; agora o setor que ainda salva o PIB de
um desastre maior é a agricultura)26, Lula anunciou em discurso que “logo, logo o espetáculo
do crescimento” começaria como conseqüência da política adotada, e não por uma
reorientação dela [Folha de S. Paulo, 30/05/2003]27. Este anúncio fica ainda mais absurdo
quando levamos em conta que as próprias projeções feitas pelos ministérios da Fazenda e do
Planejamento indicam crescimento medíocre em todo o governo Lula (as projeções oficiais,
feitas por exemplo na LDO, só indicam crescimento do PIB acima de 4,0 %, considerado em
geral o mínimo para redução do desemprego, no último ano do governo, em 200628).

23 A propaganda realizada pelo governo em favor das “reformas” também vai contra a mobilização social. Para
sermos benevolentes, podemos dizer que comparações absurdas como as que foram feitas, entre por exemplo a
libertação dos escravos e as reformas propostas, não contribuem para elevar o nível de consciência das massas.
24 No dia 2 de junho, o jornal O Estado de S. Paulo divulgou uma pesquisa realizada em maio que indicava
uma popularidade recorde de Lula entre o empresariado. De 319 donos de empresas ou executivos consultados,
86% aprovavam o desempenho de Lula. Segundo a mesma pesquisa, o apoio a Lula é ainda mais forte entre
executivos do mercado financeiro. O jornal Valor Econômico já tinha divulgado uma pesquisa com dados
parecidos no dia 30 de abril.
25 O que explica a crença de que ela pode ser combinada com a orientação geral (atenuada) do programa Um
Brasil para Todos.
26 Além disso, diversas pesquisas vinham constatando elevação no desemprego (a taxa de desocupação de abril,
segundo o IBGE, foi de 12,4%, quarta alta seguida desde o início do ano; na região metropolitana de São Paulo,
a taxa de desemprego total medida pela pesquisa SEADE-DIEESE registrou em abril o recorde histórico de
20,6%) e queda nos rendimentos dos trabalhadores (o consumo médio das famílias caiu 2,3% no primeiro
trimestre, segundo o IBGE — 7ª queda seguida!; alguns dias depois, a CNI reforçaria estes dados, indicando que
o total de salários líquidos reais pagos pela indústria caiu 6,18% no primeiro bimestre – Folha Online,
02/06/2003).
27 Lula retomou a imagem do “espetáculo do crescimento” no dia 27 de junho.
17
O núcleo do governo, Lula à frente, tampouco parece ter consciência de quais são as
implicações sociais da política que está implementando. Na sua coluna de 04/06/2003 na
Folha de S. Paulo, o jornalista Elio Gaspari lembra a comemoração feita por Lula, no mês de
abril, da doação de R$ 13 milhões feita ao Fome Zero por “meus amigos da FEBRABAN”,
acompanhada do comentário de que ninguém imaginava “há dois meses” que isto pudesse
acontecer. Gaspari assinalou que este dinheiro representa uma pequeniníssima parcela do
lucro adicional que os bancos vêm tendo no início do governo29. Não poderia haver surpresa
diante do fato de que os executivos do mercado financeiro sejam os apoiadores mais
entusiasmados do governo, e que queiram colaborar com seus programas.
Mesmo quando, por vezes, Lula faz pronunciamentos em outra direção, isto apenas
reforça a sensação de que ele não tem noção do significado das políticas de seu governo.
Assim, no dia 5 de junho, falando em comemoração ao dia mundial do meio-ambiente, fez um
duro ataque ao predomínio do mercado na vida das pessoas. Disse que os brasileiros “foram
submetidos a verdadeira lavagem mental”, quando os “interesses do mercado ganharam
legitimidade oficial para se sobrepor às demais instâncias da vida, seja a instância social ou a
ambiental” [O Estado de S. Paulo, 06/06/2003]. Declarações excelentes. O problema, é claro,
é que a linha macroeconômica de seu governo vem correspondendo exatamente a este
diagnóstico sombrio; podemos mesmo dizer que, ao que parece involuntariamente, Lula deu,
neste discurso, a melhor explicação para a orientação majoritária de sua equipe econômica.

b) A esperança ainda pode vencer o medo?


A análise realizada neste artigo restringiu-se a questões econômicas. Uma avaliação de
conjunto do governo Lula poderia ser mais nuançada, menos negativa, incorporando
mudanças importantes que estão acontecendo na política do Itamaraty30, na reforma agrária,
no setor energético, entre outras. A política econômica (que inclui as propostas das mal
chamadas “reformas estruturais”), no entanto, não é apenas uma área entre outras: condiciona
o conjunto. E para piorar as coisas, a ação do governo na chamada “área política” tem-se
voltado para consolidar o que se faz na área econômica (construindo uma aliança que inclui
quase toda a direita — como atesta a incorporação do PP de Paulo Maluf à “base aliada”).
Assim, o balanço do governo até agora deve ser muito negativo. Nestes seis primeiros
meses, os obstáculos para que a esperança vença o medo na vida real cresceram.

28 No início de junho, o IBGE divulgou uma redução da produção industrial em abril com relação ao mês
anterior de 0,1%; na comparação com abril de 2002, a redução foi ainda maior: drásticos 4,2% [Folha de S.
Paulo, 10/06/2003].
29 Levantamento do BC mostra que os lucros dos bancos no primeiro trimestre de 2003 cresceram 18,7% [Folha
de S. Paulo, 04/05/2003].
30 No entanto, é preciso registrar que a viagem de Lula aos EUA em junho teve um significado muito negativo,
que poderá até comprometer os aspectos mais positivos da política desenvolvida pelo Itamaraty. Ver, a este
respeito, a coluna de Paulo Nogueira Batista Jr. na Folha de S. Paulo, no dia 25/06/2003.
18
Desde o fim de maio, no entanto, a oposição à orientação predominante do governo
tem ficado mais forte. A divulgação de manifestos e documentos políticos vem mostrando que
os setores mais expressivos da intelectualidade de esquerda31, dos economistas não
ortodoxos32, dos estudantes33 e, o que é ainda mais significativo, do sindicalismo, estão
reprovando a orientação econômica do governo Lula. Este último fato merece destaque: o
congresso da CUT, formado na sua grande maioria por delegados filiados ao PT, com mais de
50% identificados com o “campo majoritário do PT”, posicionou-se contra a orientação do
governo na reforma da Previdência e na política macroeconômica. A CUT participou, ao lado
de entidades do funcionalismo público, da primeira grande manifestação de crítica ao governo
Lula, no dia 11 de junho34. Além disso, o MST, principal organização social no campo,
continua a pressionar em favor da aceleração e do aprofundamento da reforma agrária.
Também entre partidos de esquerda da base do governo têm aparecido manifestações
críticas ao governo federal. O PDT de Brizola está quase na oposição35; o PSB tem uma
maioria governista e uma minoria muito crítica, em torno do ex-candidato Garotinho; o PC do
B também está dividido, com a ala sindical identificada com as posições da CUT; o PPS
divulgou um documento criticando a política econômica. Quanto ao PT, embora a maioria de
sua direção pareça ter-se resignado ao papel de correia de transmissão das decisões do
governo e de fiscal da disciplina, muitos de seus setores vêm-se mobilizando para corrigir os
rumos do governo Lula (além dos sindicalistas, dos estudantes, dos intelectuais, dos
economistas, já mencionados, parlamentares do PT têm expressado sua posição crítica, como
no manifesto “Tomar o Rumo do Crescimento Econômico Já”, divulgado no final de maio).
Last but not least, a Igreja Católica tem também manifestado uma posição crítica,
como por exemplo no seu documento de análise de conjuntura preparatório à Assembléia
Geral da CNBB, divulgado em maio36.

31 Em 10 de junho um grupo muito expressivo de intelectuais (em geral identificados com o PT) divulgou um
Manifesto de Alarme contra a proposta do governo de Reforma da Previdência. Além disso, manifestações
críticas pessoais de intelectuais têm-se multiplicado., através de debates e de artigos na imprensa.
32 Foram divulgados dois manifestos de economistas com críticas à política econômica e sugestão de
alternativas. Um deles, A Agenda Interditada, foi assinado por cerca de 300 economistas, muitos dos quais
participantes da campanha presidencial de 2002; e um manifesto de todos os Conselhos Regionais de Economia,
junto com o Conselho Federal de Economia. É importante destacar que alguns economistas vinculados ao PT
vêm propondo alternativas à orientação macroeconômica do governo desde antes da posse; é o caso, por
exemplo, do professor Paul Singer, possivelmente o economista mais respeitado do PT, através principalmente
de sua coluna no jornal Valor Econômico. Também economistas vinculados a outros partidos vêm propondo
alternativas.
33 O Congresso da UNE aprovou uma orientação geral de crítica à política do governo Lula. A própria chapa do
PT, apresentada no Congresso, foi muito crítica ao governo.
34 Houve cerca de 40 mil manifestantes. Outro fato significativo é que o governo e a direção do PT tentaram
impedir a participação dos deputados do partido na manifestação, sem êxito.
35 E sofre por isto uma pressão do governo, que trabalha para dividi-lo.
36 O mês de junho assinalou até mesmo o crescimento de manifestações empresariais de críticas ao excesso de
ortodoxia econômica do governo Lula. As posições do vice-presidente, José Alencar, são um exemplo, e foram
19
O núcleo do governo Lula será sensível a todas estas tomadas de posição? Ainda é
cedo para dizer37. No entanto, está claro que é o crescimento das manifestações e das
mobilizações no campo popular, que pedem correções fundamentais nos rumos do governo,
que nos permite dizer que a esperança ainda não morreu.

Referências Bibliográficas
Batista Jr., Paulo Nogueira. “Esperança e Sofrimento”. Folha de S. Paulo, 26/06/2003.
Jornal Folha de S. Paulo. Diversas edições.
Jornal O Estado de S. Paulo. Diversas edições.
Jornal Valor Econômico. Diversas edições;
Ministério da Fazenda. Política Econômica e Reformas Estruturais. Abril de 2003. Disponível em
<http://www.fazenda.gov.br/>
Ministério da Fazenda e outros. Roteiro para a nova agenda de Desenvolvimento Econômico. Junho de 2003.
Disponível em <http://www.fazenda.gov.br/>
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Plano Plurianual 2004-2007. Orientação Estratégica de
Governo. Um Brasil para Todos: Crescimento Sustentável, Emprego e Inclusão Social. Maio de 2003.
Disponível em <http://www.planejamento.gov.br/>
Palocci, Antônio. Discurso em 27/12/2002.
_______ Discurso de posse no Ministério da Fazenda, 02/01/2003. Disponível em <http://www.fazenda.gov.br/>
Partido dos Trabalhadores. Concepção e Diretrizes do Programa de Governo do PT para o Brasil, XII Encontro
Nacional do PT, dezembro de 2001. Publicação do Diretório Nacional do PT, março de 2003.
Disponível em <http://www.lula.org.br/obrasil/documentos.asp>
_______ Programa de Governo 2002 da Coligação Lula Presidente, Um Brasil para Todos. Coligação Lula
Presidente, julho de 2002. Disponível em <http://www.lula.org.br/obrasil/documentos.asp>
Silva, Luis Inácio Lula. Carta ao Povo Brasileiro, 22/06/2002. Disponível em
<http://www.lula.org.br/obrasil/documentos.asp>

seguidas por muitas outras. A mais curiosa foi a declaração do Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social, órgão consultivo criado pelo governo, feita por iniciativa de seus membros empresários em 12 de junho,
cobrando uma rápida redução dos juros.
37 Até o fim de junho, lamentavelmente, Lula e o núcleo de governo davam mostras de inflexibilidade.
20

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