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POR QUE É ERRADO RIR DAS EXPRESSÕES FACIAIS DOS INTÉRPRETES DE

LIBRAS?

Por Anderson Almeida da Silva

Assim que me foi proposto escrever sobre esta temática, me veio à mente a apresentação da
cantora sul-africana Miriam Makeba em que ela entoa uma canção chamada de “A canção dos cliques”. A
cantora é falante nativa da língua xhosa, língua conhecida por possuir em seu sistema fonológico sons que
não são produzidos com o auxílio do ar dos pulmões, mas pela articulação da língua em vários pontos da
boca. Esses sons se assemelham a “estalos” e são tipologicamente raros. No vídeo abaixo, a cantora fala
que por onde ela andava as pessoas a questionavam: - mas, como você faz este barulho (os cliques)? E ela
costumava se ofender e respondia que os cliques não eram barulhos, mas eram parte de sua própria língua.
Ou seja, os cliques fazem parte da língua xhosa e não são apenas um efeito estilístico realizado à vontade
dos falantes.
Assim como os cliques, as expressões faciais nas línguas de sinais são elementos que compõem a
gramática destas línguas. Ignorado por falantes de línguas orais, tal fato comumente os leva a estranhá-las
sobretudo para quem observa uma língua de sinais pela primeira vez. Exemplos de expressões faciais e
corporais empregadas durante a sinalização são ilustrados nas imagens abaixo de intérpretes de libras[1].
As expressões faciais podem assumir duas funções importantes: uma de veicular emoções e outra
de cunho gramatical. Explicaremos cada uma a seguir.
No primeiro caso, as expressões faciais que carregam um conteúdo emocional possuem as
seguintes características: i. elas não são obrigatórias, ou seja, o sinalizante pode ou não utilizá-las em algum
contexto de proferimento e ii. elas não são convencionalizadas, ou seja, a expressão facial que um
sinalizador utiliza para expressar ‘medo’ ou ‘raiva’ nem sempre coincide com a de outro sinalizador. Há que
se mencionar o trabalho de Darwin (1872) em “A expressão das emoções nos homens e nos animais” em
que o autor sugere que as expressões faciais afetivas possuem padrões mais ou menos universais, portanto,
as expressões das emoções, apesar de nem sempre envolver os mesmos músculos e partes do rosto em
todas as pessoas, possuem, ainda assim, muitas semelhanças. As expressões faciais afetivas, como são
chamadas, seriam então comuns às ‘caras e bocas’ utilizadas pela população em geral.
No segundo caso, as expressões faciais das línguas de sinais que carregam um significado gramatical
apresentam outras características que as distinguem daquelas de cunho afetivo. As expressões
faciais gramaticais se caracterizam por: i. serem obrigatórias, ou seja, não é possível fazer uma pergunta
(formular uma sentença interrogativa) em língua de sinais sem utilizar uma expressão de pergunta, como
a que vemos abaixo à esquerda, ou ainda, não é possível em algumas línguas de sinais, como a Libras, negar
uma sentença (formular uma sentença negativa) sem que a face esteja configurada como no quadro à
direita; e ii. são convencionais, pois a mesma expressão utilizada para fazer perguntas ou criar sentenças
negativas por um surdo é produzida e compreendida por seus pares [2].

Imagens retiradas de: Metaxas et al, 2012.

Portanto, para quem pensava que as expressões faciais observadas nas línguas de sinais se resumiam
somente a um possível ‘sotaque’ do sinalizador, está enganado. Não se trata de ‘mugangos’ e ‘caretas’
como normalmente vemos alguns grupos denominarem as expressões faciais, mas de mecanismos pelos
quais as línguas de sinais podem veicular conteúdos afetivos e gramaticais. Existem publicações, como a
que vemos abaixo, dedicadas somente aos estudos das expressões faciais nas línguas de sinais, dada a sua
relevância para o sistema linguístico das comunidades surdas.
Claro que as pessoas podem ‘exagerar’ no uso das expressões faciais, assim como falantes de
português podem exagerar na forma de falar. Contudo, devemos lembrar que distinguir entre uma fala
exagerada e uma fala dita em tons normais não é uma tarefa fácil, já que diferentes comunidades de fala
possuem diferentes estilos prosódicos para se comunicar. Ou seja, o que soa como “alto”, “muito puxado”
ou “exagerado” para um, pode ser completamente “natural” para outro.
Por isso, julgar as expressões faciais realizadas pelos intérpretes na hora da sinalização como exageradas
não é apropriado.
P.S: para conhecer pesquisas feitas sobre esta temática na Libras, confira: Pego, 2013; Souza, 2014;
Xavier, 2019; Figueiredo & Lourenço, 2019.

[1] Agradeço aos profissionais intérpretes de língua de sinais Angela Russo e Tiago Coimbra pela cessão de suas imagens para
ilustrar este artigo. A foto em preto e branco é de autoria de sabrinafotografia.com.br.
[2] Agradeço a contribuição do prof. Dr. André Xavier, fonólogo de línguas de sinais, por ter me apontado para o texto de Darwin
e ainda, por me lembrar do fato que nem sempre as expressões faciais afetivas e gramaticais se opõem em termos de
convencionalidade. Como vimos, há propostas teóricas para as quais ambos os tipos podem ser convencionais (universais). Uma
diferença atestada em pesquisas é de que as expressões faciais afetivas envolvem muito mais músculos da face do que as
expressões gramaticais.
https://www.parabolablog.com.br/index.php/blogs/expressoes-faciais-dos-interpretes-de-libras

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