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ENTREVISTA INTERVIEW 185

Entrevista: Carmen Teixeira

Interview: Carmen Teixeira

Resumo Carmen Fontes de Souza Teixeira nasceu na Abstract Carmen Fontes de Souza Teixeira was
Bahia e, atualmente, exerce o cargo de professora born in Bahia, and is now associate professor at the
associada do Instituto de Saúde Coletiva, da Univer- Collective Health Institute of the Federal University
sidade Federal da Bahia (UFBA). Participante ativa do of Bahia (UFBA). An active participant in the sanita-
movimento da reforma sanitária, em meados dos tion reform movement of the mid-‘70s, she has
anos 1970, tem vasta experiência na área de Saúde vast experience in the area of Collective Health,
Coletiva, com ênfase em Saúde Pública, atuando with an emphasis on Public Health, and acts in
em diversas frentes, com destaque para gestão de various fronts such as systems management, public
sistemas, políticas públicas, organização de serviços, policies, organization of services, and administrative
planejamento e desenvolvimento gerencial. A Escola planning and development. Through the Health
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Surveillance Professional Education Laboratory
Oswaldo Cruz, através do Laboratório de Educação (Lavsa), the Joaquim Venâncio Polytechnical Health
Profissional em Vigilância em Saúde (Lavsa), convi- School, of the Oswaldo Cruz Foundation, invited
dou-a para proferir a palestra "Os sujeitos da Vigilân- her to give the lecture “the subjects of Health
cia em Saúde: construindo uma proposta curricular Surveillance constructing a curricular proposal for
para a formação técnica", no auditório Joaquim technical training and education”, at the Joaquim
Alberto Cardoso de Melo, em 9 de julho de 2007. Alberto Cardoso de Melo auditorium, on July 9,
Neste mesmo dia, Carmen Teixeira concedeu a entre- 2007. On that same day, Carmen Teixeira granted
vista1 que se segue. Nela, revive a discussão da the interview that follows. In it, she relives the
mudança do modelo de atenção em saúde e exa- discussion about the change in the health care model
mina temas como a vigilância em saúde enquanto and examines themes such as health surveillance as
proposta contra-hegemônica a partir da revisão de a counter-hegemonic proposal based on the revision
currículos, subjetividade na formação de profissio- of curriculums, subjectivity in the training of
nais de saúde, intersetorialidade, empoderamento health professionals, intersectoriality, empowerment
dos agentes de vigilância e muito mais, sempre na of surveillance agents, and much more, always
perspectiva da Reforma Sanitária e do aperfeiçoamen- from the perspective of Sanitation Reform and the
to dos profissionais que atuam no setor. improvement of professionals of that sector.

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Revista Carmen Teixeira


A proposta de Vigilância em Saúde pode ter fa- Nasceu exatamente da confluência de três
vorecido, ou pode vir a favorecer, a efetivação elementos, fato que ocorreu por uma dessas
dos ideais da Reforma Sanitária? coincidências históricas absolutamente inex-
plicáveis. Primeiro, a experiência de cons-
Carmen Teixeira trução dos Distritos Sanitários, que tinha li-
Essa pergunta é muito interessante porque me gação com o movimento pelos Sistemas Locais
permite uma viagem no tempo. Todos nós de Saúde (Silos), difundido pela Organização
que participamos do movimento da Reforma Pan-Americana da Saúde (Opas) em todo o
Sanitária temos de lembrar que o início de toda contexto latino-americano. Não era uma coisa
a discussão, em meados da década de 1970, nossa, na verdade foi um movimento inter-
tinha como enfoque exatamente a mudança do nacional. A Opas estava buscando estratégias
modelo de atenção, logo que começou a crítica para garantir a saúde para todos no ano 2000.
à medicina preventiva, feita por Sergio Arouca, Alma-Ata tinha acontecido em 1978 e, dez
e a discussão sobre as práticas de saúde, por anos depois, esses organismos internacionais de
Cecília Donnangelo. O ponto de partida de todo saúde (OMS/Opas) avaliavam que os países não
o movimento da reforma era exatamente uma seriam capazes de alcançar a Saúde para Todos
análise crítica da prática médica, do que hoje no ano 2000 se não buscassem estratégias de re-
entendemos como modelo médico hegemônico, organização dos sistemas de saúde. A estratégia
modelo médico assistencial, hospitalocêntrico. que a OMS/Opas aprovou em resoluções foi
Embutida nessa preocupação estava a busca de exatamente a de apoiar a constituição de sis-
alternativas, as quais, na época, se apresen- temas locais, que, do ponto de vista do planeja-
tavam como a própria medicina preventiva, mento, retomava o próprio método Cendes.
como uma forma de introduzir a questão da Na publicação Administração estratégica em
prevenção na própria prática médica, e a medi- Silos (Organización Panamericana de la Salud,
cina comunitária, que já trazia a questão das Washington, D.C., 1992, 159 p.) há uma intro-
comunidades excluídas, marginalizadas, que dução em que se faz alusão ao Método Cendes e
era o grande debate das ciências sociais no ao Silos, então é como se fossem trinta anos de
contexto latino-americano da época. Depois o desenvolvimento conceitual e metodológico na
movimento da reforma assumiu um caráter área de planejamento, que partia da progra-
muito mais político, de luta no plano jurídico, mação local (Cendes-OPS) e retornava ao local
pela incorporação dos princípios doutrinários como base territorial da organização dos sis-
do Sistema Único de Saúde (SUS) na Consti- temas. É como se fosse um grande percurso,
tuição Brasileira de 1988. Só no final da déca- uma curva no tempo, em que se partia do local
da de 1980, com a implantação dos Distritos como um espaço de reorganização de serviços
Sanitários, quando Hésio Cordeiro estava na na década de 1960 e se voltava 30 anos depois,
presidência do Inamps, é que se resgatou, a meu ao mesmo lugar, para pensar no local de forma
ver, um pouco esse foco da mudança do mode- renovada. O movimento pelo Silos teve esse mo-
lo de atenção e se usou a experiência de implan- mento, essa importância muito grande.
tação dos Distritos Sanitários como um espaço Quanto ao segundo, existia uma discussão so-
de construção de novas práticas. Isso foi impor- bre planejamento em saúde, e principalmente
tante porque foi o berço da proposta de Vigilân- em planejamento situacional, porque nesse
cia da Saúde, se considerarmos a proposta da período já se consolidava a difusão das idéias do
Vigilância da Saúde como mudança do modelo Carlos Matus entre nós. O Matus escreveu o
assistencial, que vai muito além da Vigilância livro Estratégia e plano no final da década de
Epidemiológica, Vigilância Sanitária, Ambien- 1970, livro que começou a ser mais difundido
tal ou Saúde do Trabalhador... exatamente nesse período (final dos anos 80),
quando ele foi inclusive convidado pela Opas
Revista para trabalhar como consultor, na época em que
Como nasceu a idéia de usar o termo Vigilância escreveu o livro Política, planejamento e gover-
da Saúde para denominar uma proposta de mu- no. Todos nós que trabalhávamos com planeja-
dança do modelo assistencial? mento, com o Arouca como professor, começá-

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vamos a nos encantar com a perspectiva situa- novos sujeitos, pensar novos objetos, mudar as
cional, até porque essa concepção se aplica relações de processo de trabalho. Sem Ricardo
perfeitamente à saúde porque trata de intro- Bruno, não conseguiríamos pensar a Vigilância;
duzir a noção de complexidade na abordagem sem o avanço do planejamento da Epidemiolo-
dos problemas de saúde, rompendo com a gia Social e da Geografia Crítica, não consegui-
perspectiva anterior, centrada no estudo das ríamos pensar a Vigilância. Ou seja, tínhamos
doenças, o que se traduzia, em termos de práti- como pensar e tínhamos a demanda concreta do
cas, na Vigilância Epidemiológica de riscos e pensar, que era exatamente o movimento de im-
danos. Ao adotarmos a noção de análise de situ- plantação dos distritos sanitários. Estes não po-
ação de saúde, o objeto da Vigilância passava diam ser apenas um espaço de reforma da as-
a ser a situação de saúde em sua complexi- sistência médica, como alguns até pensavam na
dade, resultado da interação entre problemas época. Quando juntamos os antigos serviços
de saúde e seus determinantes. Tínhamos que do Inamps com os serviços das secretarias de
pensar a situação de saúde como uma coisa saúde, a demanda explodiu, porque todo mun-
complexa, mas que podia ser analisada, iden- do era cidadão, todo mundo podia ter acesso, as
tificada, monitorada e que podia ser o objeto filas aumentaram, e algumas forças políticas e
de intervenção a partir da mudança das práti- mesmo a população poderiam pensar que, de
cas. Então, do ponto de vista da fundamen- repente, o Distrito Sanitário se transformava em
tação conceitual, conflui aí a discussão de ter- um imenso pronto atendimento (PA). Foi exata-
ritório da Geografia Crítica, entendido como mente aí que dissemos: Não! A Reforma Sani-
um espaço em transformação e a contribuição tária não pode ser simplesmente a garantia do
da epidemiologia social, que avançava para acesso à assistência médica ou tão-somente uma
a análise dos determinantes da saúde. Nesse organização da oferta para dar conta dessa de-
aspecto, não se pode esquecer o papel do manda espontânea. É um espaço de mudança do
Pedro Luis Castellanos, que nessa época come- modelo. E para onde, em que direção? Foi o
çou a trabalhar também com análise de situa- começo da discussão sobre a integralidade, a
ção de saúde, tendo publicado um artigo, equidade e a universalidade. A universalidade
se não me engano na Revista do CESS, de de quê? A integralidade de que, de que práti-
Rosário, Argentina, em 1987, sobre situação cas? Aparece aí toda a discussão da promoção,
de saúde, assumindo a enfoque situacional. da prevenção, da assistência e da reabilitação.
Então, havia esse segundo elemento, que seria Foram se juntando os elementos que permiti-
o dos conceitos, da construção desse novo ram a Jairnilson Paim e a Eugênio Vilaça elabo-
paradigma que nos facilitava pensar as práticas rarem os primeiros conceitos de Vigilância.
de saúde como uma prática de Vigilância pro- É interessante notar que são conceitos diferen-
priamente dita. tes, mas se complementam. Jairnilson mostra-se
O terceiro elemento era a discussão de processo muito mais voltado para a idéia de Vigilância
de trabalho, que é uma coisa nossa. Ricardo como uma mudança na organização do proces-
Bruno Mendes Gonçalves tinha publicado a so de trabalho, porque estava usando o conceito
tese dele de mestrado em 1979 sobre processo de modo de organização tecnológica do proces-
de trabalho em saúde, ou seja, tinha feito uma so de trabalho do Ricardo, e o Eugênio aparece
análise aprofundada do processo de trabalho muito mais influenciado pela Opas, até por ser
médico, de suas raízes estruturais. Ricardo nos de lá naquele momento, pensando a Vigilância
deu mais um dos elementos que deveriam ser como um modelo de reorganização dos serviços,
remontados. Tínhamos o cenário, que eram os que implicavam a construção de um sistema lo-
sistemas locais; tínhamos mais ou menos a idéia cal que implementasse práticas de promoção e
do que queríamos fazer: vigiar situações de também descentralizasse as práticas de pre-
saúde, intervir sobre situações de saúde com- venção, incluindo Vigilância Epidemiológica,
plexas, não apenas sobre doenças específicas, Sanitária, Ambiental e Saúde do Trabalhador
ao mesmo tempo, enfim, tínhamos os elemen- em função dos territórios, domicílios, áreas de
tos, as peças do quebra-cabeça que deveriam abrangência etc., além de garantir a atenção in-
ser remontadas – as concepções sobre o proces- dividual e a própria referência e contra-referên-
so e trabalho em saúde. Era preciso formar cia de pacientes. Na época, não se falava tanto

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de organização de redes de atenção, nem de curativa, até porque ela não dá conta da pro-
definição de linhas de cuidado, como hoje em blemática de saúde. Está embutida aí uma críti-
dia, mas já se discutia a conformação de redes ca à ineficácia do sistema médico hospitalocên-
ou sistemas de referência e contra-referência de trico, pois quando se pensa em integralidade
pacientes e de informação, que permitissem a com prevenção e promoção da saúde é porque
integralidade do cuidado. se sabe que a situação de saúde, os perfis epi-
demiológicos, fruto do aumento da expectativa
Revista de vida ao nascer, da prevalência das doenças
Como uma proposta contra-hegemônica pode crônicas degenerativas, da violência, nada dis-
quebrar os recortes de poder cristalizados por so pode ser resolvido a contento apenas com a
algumas ações de serviços na busca da inte- reprodução do modelo médico hospitalocêntri-
gralidade e da equidade e como é possível co. Precisamos investir em promoção da saúde,
construir essa mudança paradigmática a partir porque para atuar sobre os determinantes da
do currículo? situação de saúde não temos outra coisa a fazer
a não ser buscar uma perspectiva intersetorial
Carmen Teixeira na formulação e implementação de políticas
Primeiro, é preciso pensar o que significa dizer públicas voltadas à melhoria das condições de
que a proposta de Vigilância é contra-hegemô- vida dos diversos grupos da população, ao tem-
nica. Temos novamente que lembrar que esta- po em que se avança com a consolidação das
mos em países capitalistas e a grande diferença práticas de proteção de grupos vulneráveis, e
é que todas as propostas alternativas recusam a assistência a pessoas que apresentem problemas
idéia de que saúde seja uma mercadoria ou al- considerados prioritários.
guma coisa que possa ser comprada, traduzida Quanto ao currículo, ele é parte de um projeto
na compra de algum medicamento ou alguma político pedagógico de formação de sujeitos.
terapêutica, por mais alternativa que ela possa Todas as universidades, todos os cursos, em
parecer. Enquanto vivermos em sociedades em qualquer nível, têm o seu. Muitas vezes, o cur-
que a saúde seja vista dessa maneira, vamos ter rículo reflete as tensões entre projetos dife-
que manter essa luta, embora se saiba que mes- rentes. O currículo de uma faculdade de medi-
mo nas sociedades capitalistas é possível fazer cina, por exemplo, projeta a permanência de
com que saúde seja mais do que uma mercado- uma perspectiva médico-assistencialista, clíni-
ria, ou não só uma mercadoria, que seja assu- ca, que é necessária, mas cada vez menos sufi-
mida como um direito. Em seu novo filme, ciente para se ter um impacto positivo sobre as
Michael Moore faz o papel de um americano situações de saúde da população. Então, pre-
perplexo, quando se dá conta de como o país cisamos mudar o currículo. Mas essa mudança
dele é extremamente cruel com seus próprios enfrenta uma série de limitações. Primeiro,
cidadãos. Isso é interessantíssimo, a postura os professores, em geral, resistem à mudança –
dele no filme todo é de uma pessoa que está este é o problema das faculdades de medicina.
abismada pelo fato de que em outros países se Às vezes, faz-se uma reforma de currículo, mas
consegue ter um sistema universal, como na os professores são os mesmos, reproduzem em
França, na Inglaterra e em Cuba. Enfim, o im- suas práticas todos os valores que o novo cur-
portante é admitir que é possível, mesmo num rículo tenta negar. Segundo, a própria formação
país capitalista, existir um sistema de saúde que em si; por melhor que seja, o perfil do egresso
proteja as pessoas, que procure cuidar das pes- se materializa de fato é na prática, conforme
soas. Quer dizer, é possível pensar que o Brasil, analisa Marília Fontoura em sua recente tese de
apesar de ser um país de terceiro mundo, da doutorado. Marília estudou os egressos dos cur-
periferia, pobre, pode, sim, ter um sistema de sos de especialização em Saúde da Família.
saúde generoso para seus cidadãos, pode ser in- A pergunta era até que ponto esses egressos
clusivo, universal. Claro que vamos discutir o usavam ou não os conteúdos, as técnicas, os
que deve ser universal, incluída a discussão da métodos que aprenderam no curso, no qual o
Vigilância, como não é possível universalizar a currículo foi todo desenhado segundo o en-
assistência médica, não é desejável univer- foque por competências, os conteúdos foram
salizar a assistência médica hospitalocêntrica e trabalhados no formato modular, e as práticas

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pedagógicas enfatizaram a problematização. jeitos, na prática. Embora a questão do outro


A pergunta central do estudo era se os egressos nunca tenha deixado de ser parte da nossa pre-
usavam os conhecimentos e habilidades adqui- ocupação, do cuidado, da atenção no sentido
ridas na prática cotidiana, nas equipes de saúde pleno da palavra, quando falamos de modelo de
da família nos municípios, e a maioria não usa. atenção, concordo que o grupo de Campinas,
Chegam nos municípios e encontram um gestor mais especificamente o Emerson, tem razão: nós
que, muitas vezes, entende o Saúde da Família nunca tematizamos nem escrevemos sobre isso.
como apenas um programa expansionista de Estimulada pela crítica, decidi estudar a pro-
atenção simplificada e primitiva para a popu- dução do grupo de Campinas para entender os
lação pobre da periferia do município, não en- caminhos que eles haviam percorrido e os au-
tende o Saúde da Família com aquela perspecti- tores que tinham lido para pensar exatamente
va da Vigilância que tentamos trabalhar, com essa questão, a questão do sujeito. Cheguei a
planejamento e programação local, identifi- montar até um curso, intitulado Planejamento e
cação de problemas na base territorial, um tra- subjetividade, oferecido como disciplina opta-
balho multiprofissional que começa na casa, tiva em nosso programa de pós-graduação. Foi
no domicílio, com o agente comunitário. Enfim, muito bom porque pude perceber como, por
hoje, o próprio Saúde da Família como espaço exemplo, alguns integrantes do grupo estavam
de reorganização da atenção básica é, também, trabalhando com autores provindos do campo
um espaço de tensão entre os modelos: o mode- da psicanálise, como a Rosana Onocko trabalha
lo assistencial, do PA, do atendimento à deman- e o próprio Gastão Wagner. Mas decidimos não
da espontânea; e o modelo de atenção integral, caminhar por aí. É interessante conhecer o ca-
fundado na concepção da Vigilância. Marília minho percorrido por outros autores, mas, no
mostra em sua tese que a formação ajuda, mas nosso caso, acho que devemos trilhar mais os
não é suficiente para a mudança das práticas. caminhos da ética do que os da psicanálise.
Se o egresso não encontra condições de gestão Nossa opção é mais próxima do que a Lilia
do processo de trabalho favoráveis à utilização Blima Schraiber apontou em um texto onde
dos conteúdos, métodos e técnicas que estudou problematiza a área de Planejamento, Gestão e
durante o curso, sua prática cotidiana tende a Avaliação em Saúde (Ciência e Saúde Coletiva,
reproduzir o modelo que se quer transformar. v. 4, n. 2, p. 221-241, 1999). Lilia chamou aten-
ção para a importância da dimensão ética embu-
Revista tida nas relações sociais no campo da saúde,
Qual seria então o lugar da subjetividade na como de resto em qualquer relação social,
formação de profissionais da saúde? Como ex- ampliando e redefinindo a preocupação que
pressá-la no currículo? temos, desde os primórdios da Saúde Coletiva,
com a dimensão técnica e a dimensão política
Carmen Teixeira do trabalho em saúde. Falamos da dimensão éti-
Comecei a me interessar pelo tema ‘subjetivi- ca sempre como uma questão do humanismo,
dade em saúde’ a partir de uma crítica que o que no fundo recupera a atenção ao outro, algo
Emerson Merhy nos fez, na área de planeja- presente no humanismo médico tradicional, da
mento. É conhecida. Ele disse que nós, que humanização da relação médico-paciente, mas
trabalhamos com a noção de Vigilância, somos não se trata somente disto, estou querendo pen-
higienistas, estamos preocupados é com a ques- sar a questão da ética mais a partir da Hannah
tão de contar os óbitos. Isso me deixou ‘mordi- Arendt, como amor ao mundo, analisado, por
da’ na época porque percebi que, ao relatarmos exemplo, no livro Ética e política em Hannah
nossas experiências de trabalho nos distritos Arendt. Acho que vamos ter de trabalhar isso
sanitários, ao sistematizarmos os esforços que nos currículos, lembrar para os nossos alunos
desenvolvemos para produzir uma articulação que o trabalho em saúde não é só instrumental
de conceitos e metodologias de trabalho que – onde já avançamos –, não é só o aprendi-
nos ajudassem a operacionalizar os princípios zado de conhecimento, de métodos, de técnicas
que defendíamos com relação à reforma do para intervir sobre um determinado objeto.
modelo de atenção, não escrevemos sobre a É também uma ação comunicativa. Precisamos
dimensão das relações, da constituição de su- aprender a dialogar, a trabalhar em equipe.

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Além disso, além de aprender a técnica, ou Ela trabalha muito essa categoria do empodera-
seja, a usar instrumentos e a conversar, pre- mento e a discute não apenas em sua acepção
cisamos ter valores que são nossos, que deve- política, coletiva, social, mas também no plano
mos incorporar, para ressignificar o nosso lugar psicológico, individual. Na dimensão do coleti-
no mundo, o sentido das escolhas que fazemos, vo, empoderamento indica a capacidade de mo-
profissionais, políticas, existenciais, de um mo- bilização, de organização, de ação, de luta pelos
do geral. No fundo, é algo que me faz lembrar direitos, por mudanças nas condições de vida e
de uma canção de Eduardo Dussek: ‘Pare o trabalho. Na dimensão individual, empodera-
mundo que eu quero descer’. De fato, refiro-me mento tem a ver com a formação dos sujeitos,
a um sentimento, uma constatação de que se o em um processo de autovalorização, de aumen-
mundo continuar nessa direção, eu não quero to de sua auto-estima. Por exemplo, quando o
ir. Por isso, temos que fazer alguma coisa para pessoal do Proformar trabalha com aqueles
mudar a direção, e essa é uma responsabilidade livros bonitos, coloridos, bem-feitos, eles se
de todos que vivem essa angústia, essa perple- sentem valorizados, pois estão trabalhando com
xidade, esse desejo e essa esperança de con- um material que foi bem cuidado, bem produzi-
tribuir para a construção de um mundo melhor. do, o que repercute na significação que poderão
E não é só no sentido da militância política. Sem dar ao trabalho que vão realizar. Isso terá que
dúvida, muito do que fizemos e fazemos é por ser incorporado ao currículo, não sei exata-
uma questão de militância, por uma utopia re- mente como, mas você já está apontando: temos
volucionária. Mas não é só disso que estou fa- que valorizar, fazer com que as pessoas valo-
lando: a luta pela saúde ultrapassa a revolução. rizem de novo aquilo que estão fazendo, por
É mais no sentido em que o Arouca pregava, mais simples que seja, o que só ocorre quando
quando dizia que a Reforma Sanitária é um pro- percebemos a contribuição que o nosso traba-
jeto civilizatório, portanto não se trata simples- lho, mesmo pequenininho, dá ao processo cole-
mente de fazer revolução, mas de criar um mun- tivo. Isso é superar a alienação, se voltarmos
do melhor, uma outra racionalidade, uma outra ao conceito de alienação, como visto pelo velho
forma de viver, o reencantamento por estarmos Marx. O que é o trabalho alienado? O traba-
vivos, sermos o que somos, pensarmos, traba- lhador alienado é exatamente aquele que não
lharmos, amarmos. Pode parecer poesia o que tem idéia da contribuição que está dando ao
estou falando, mas não é à toa que estou lendo conjunto, que repete mecanicamente, que re-
mais poesia do que saúde pública ultimamen- produz tarefas parcelares sem apreender o con-
te. Talvez porque eu esteja ficando velha, ou junto do processo de produção. Então, uma for-
porque meu tempo esteja ficando curto, ou ain- ma de superar a alienação é fazer com que cada
da porque eu tenha a pretensão de deixar algu- um perceba o lugar que ocupa num determina-
ma coisa escrita para que meu filho, ou meus do contexto. Portanto, é preciso incorporar nos
netos amanhã, quando lerem, sintam orgulho currículos o aprendizado de análises de contex-
de mim, ou meus alunos, que dirão assim: ela to, o que só pode ocorrer quando os sujeitos
foi uma sonhadora. Mas é importante que al- começam a valorizar a história. A história de ca-
guém sonhe de vez em quando, já trabalhamos da um tem que ser recuperada para as pessoas
muito e temos que continuar a sonhar, enfim. entenderem como chegaram ali, bem como a
história do coletivo. Como chegamos aqui? O
Revista que é a Reforma Sanitária? O que é o Brasil? Co-
Com o foco em formação de currículo, como mo é que pensamos o Brasil, o sistema de saúde
agregar a proposta da promoção da saúde sobre brasileiro? Jairnilson Paim está trabalhando,
empoderamento da população e dos sujeitos atualmente, em sua a tese sobre a Reforma Sani-
que cuidam – em vez de culpar o indivíduo, ele tária. Ele recuperou todo o processo histórico
é chamado a fazer parte de um corpo coletivo dos fatos que configuraram a conjuntura pré e
como agente de mudança – no âmbito do SUS? pós-constituinte, partindo do pressuposto de
que a Reforma Sanitária fez promessas que
Carmen Teixeira não cumpriu. No percurso de construção da
A pergunta me faz lembrar da tese de Maria tese, Paim começou a reler vários sociólogos e
Caputo, exatamente sobre promoção da saúde. cientistas políticos que pensaram o Brasil, como

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Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernan- que também é parte da nossa cultura não
des, Caio Prado Junior, Fernando Henrique gostarmos muito de trabalhar. Portanto, é um
Cardoso e outros sociólogos e cientistas políti- problema cultural, de cultura organizacional.
cos. Foi desta forma que a pergunta de Paim Primeiro, a questão da centralização; segundo,
passou a ser: ‘Como se insere esse movimento a não valorização do trabalho. Então, a lógica é
pela reforma sanitária num pensamento sobre o ‘vamos trabalhar o mínimo possível, fazer o que
Brasil?’ Esse é um exemplo de um esforço in- me pedem, o que estão pagando. Para que vou
telectual que nos ajudará a refletir sobre o lu- querer mais, se não tem ninguém valorizando?’
gar que ocupamos no processo coletivo e sobre Então temos que trabalhar essa questão no âm-
os efeitos que este processo coletivo produziu bito dos cursos, romper com essa cultura do não
na vida de cada um de nós. Concluindo, penso trabalho, ou do que chamamos no Instituto de
que as pessoas deixam de ser alienadas quando Saúde Coletiva de ‘o mínimo legal’. Não, vamos
se dão conta do lugar que ocupam na história e, tentar fazer com que as pessoas, os gestores, os
portanto, precisamos estimular, em cada um dos trabalhadores se dêem conta de que é prazeroso
nossos cursos, a realização desse movimento, inovar, inventar, criar; desenvolver a autono-
dessa reflexão crítica sobre si mesmo e sobre o mia, a criatividade, a possibilidade de fazer
processo histórico que nos coube viver. diferente.
Em Salvador, quando fomos trabalhar no plano
Revista municipal de saúde, além de todas as coisas co-
Como trabalhar e ver os próprios propósitos de muns, como a organização da atenção básica,
mudança diante de um cenário marcado por a promoção da saúde, a Vigilância, nos depa-
uma lógica normativa? Qual o alcance do tra- ramos com a grande novidade que foi a deman-
balhador de alterar as práticas, se o que se vê da da população pela formulação de uma polí-
é ainda o aprisionamento de uma pré-progra- tica de saúde da população negra. Havia um
mação das PPI, as Programações Pactuadas grupo com liderança e poder de pressão que
Integradas? acabou se institucionalizando como um grupo
de saúde da população negra. Com isso, o pla-
Carmen Teixeira nejamento teve que absorvê-lo, porque exis-
Creio que vamos ter que trabalhar com esta ten- tia um movimento anterior de construção da
são ainda por muito tempo, até por conta do autonomia do problema. Eis aí um tema que
que falávamos antes quanto à globalização temos de introduzir nos cursos, nos currículos,
e à complexificação da situação de saúde. Não porque é fácil dizer que as pessoas devem ser
tenho nada contra as normas. Aliás, concordo criativas, mas dificilmente as pessoas são es-
com Carlos Matus, que diz que o momento nor- pontaneamente criativas, para romper com essa
mativo faz parte do processo de planejamento. cultura organizacional do não trabalho, do mí-
A questão é que as normas, às vezes, são vistas nimo legal, do obedecer, do centralizado, do
como uma camisa-de-força, as pessoas lêem os não inventar, do não inovar. Temos que identi-
pactos como se fosse para fazer aquilo e pronto, ficar e formar lideranças, discutir a questão da
estou fazendo o que o Ministério mandou. No liderança, e o Javier Uribe, da Escola Nacional
fundo, não é um problema da norma, mas da de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), está
cultura organizacional, que é herdeira de um trabalhando muito com o tema no livro de sua
passado marcado pela centralização. As pessoas autoria Gestão pela escuta. Ele é uma pessoa
não acreditam que têm autonomia de pensar, de preciosa nessa questão, porque está recuperan-
inventar, de criar. Pensam que é muito mais fá- do a discussão da obra A dança das mudan-
cil obedecer do que se arriscar a fazer uma coisa ças, de Peter Senge, e trazendo o conceito do
nova que pode não dar certo. Nosso sistema líder jardineiro, que deve ser incorporado nos
ainda tem esse problema. E digo isso porque cursos. Posso ter num município pessoas com
trabalho com o município. Quando começamos condições de exercer o papel de jardineiros, de
a fazer planejamento, há sempre uma dúvida. identificar as pessoas que podem ser plantinhas
Pode isso? Além do mais, significa sempre mais que vão construir um novo jardim. A idéia é in-
trabalho você fazer alguma coisa nova. No teressante. Tem gente que naturalmente é líder.
princípio, sempre soa como mais trabalho, o Você vê uma meninada jogando bola, tem logo

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aquele que grita, o Dunga do time. Hoje, o pes- versos setores. Aprendi que quando se trabalha
soal que trabalha com liderança diz que há no plano político, na formulação de propostas
pessoas que, por uma questão de temperamen- de intervenção sobre problemas de saúde, o
to, de personalidade, tem naturalmente esta primeiro desafio é a construção do consenso em
tendência de exercer uma certa liderança, orga- relação à pertinência de uma política que tenha
nizar o processo coletivo de trabalho, exercer como objeto os determinantes da saúde, que
este papel de dirigente, mas a liderança pode não se concentre em intervir os efeitos, mas que
ser cultivada. Uma pessoa que é tímida pode, trabalhe com os determinantes. Agora, é dife-
ao longo da vida, superar a timidez. Existem rente trabalhar a intersetorialidade com pessoas
técnicas para se superar a timidez, para apren- da área de saúde, pensando no desenvolvimen-
der a ser líder, um negociador ou um organi- to de sua capacidade de aglutinar, motivar, mo-
zador do trabalho coletivo; aprender a estimu- bilizar pessoas de outros setores no âmbito do
lar as pessoas, a motivá-las. Na minha opinião, território municipal. Aí a minha experiência já
essa temática deve ser enfrentada em todos os é diferente. Tomo como exemplo um trabalho
cursos na área de saúde pública, porque esta- recente que tive a oportunidade de fazer no
mos falando de mudança, e não apenas de município de Camaçari, na Bahia. O prefeito
treinar ou capacitar pessoas para reproduzir o convidou um grupo de pessoas das diversas
que já se faz, mas como mudar. Não se trata ape- áreas para formular, conjuntamente, um plano
nas do líder heróico, o líder que vai à frente e a estratégico para o desenvolvimento do municí-
equipe técnica e os trabalhadores seguem atrás. pio, porque não estava satisfeito com os planos
Estamos habituados a seguir esse tipo de líder, que cada setor apresentou. Ele preferiu que
pessoas excepcionais que dão o exemplo e nos fizéssemos uma outra leitura da informação,
sentimos orgulhosos de acompanhá-los. Contu- que identificássemos os problemas e popu-
do, precisamos cada vez menos de líderes herói- lações-problema, e pensássemos uma ação in-
cos. Necessitamos, sim, de líderes jardinei- tersetorial, com a concentração de esforços em
ros, que estão ali no cotidiano, que aparecem um determinado grupo da população pobre da
pouco, mas são aqueles que estão todo dia re- cidade. No fundo, ele reproduzia a idéia de fo-
gando, plantando, semeando, propiciando uma calização, mas não era só com a saúde, e sim
mudança mais molecular. com outras áreas também. Esses exemplos ilus-
tram duas estratégias totalmente diferentes,
Revista tanto no momento da formulação quanto no da
Gostaríamos que comentasse sobre os aspectos organização da intervenção, mas as duas têm
da intersetorialidade que podem contribuir um mesmo objetivo: atuar sobre determinantes,
para a efetividade e a integralidade das ações na melhorar a qualidade de vida.
perspectiva da melhoria de qualidade de vida
das coletividades. Revista
Na perspectiva dos trabalhadores de saúde, em
Carmen Teixeira particular os de nível médio, diante das dificul-
Vivi duas experiências que me ajudaram a pen- dades de se trabalhar com intersetorialidade,
sar essa questão. Quando estávamos elaborando empoderamento e promoção da saúde, como
o plano de promoção da paz e combate à violên- falar de uma categoria profissional ou de dife-
cia em Salvador, os alunos do curso não eram rentes categorias articuladas em torno de um
todos da área da saúde. Havia pessoal de todas agir com base territorial fundamentada na con-
as secretarias do município. Assim, eu tinha nas cepção de vigilância em saúde?
mãos uma equipe heterogênea, com formações
completamente diferentes, das áreas de enge- Carmen Teixeira
nharia, segurança, educação, saúde, ciência e Essa é uma discussão mais ampla também,
tecnologia. Nosso primeiro desafio foi constru- porque tem a ver com a questão do perfil
ir um consenso em torno de alguns conceitos, o profissional do sanitarista. Já se pensou em re-
chamado alinhamento conceitual. Portanto, es- formular sua formação, com a criação de um
távamos construindo a possibilidade de uma curso de graduação em saúde coletiva, mas no
política intersetorial a partir de pessoas de di- próprio campo não há consenso em relação a

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Interview: Carmen Teixeira 193

essa idéia. Criar um curso de graduação em Revista


saúde coletiva é um passo à frente na nossa dis- Ainda com base na pergunta anterior, discute-
tinção com relação aos médicos, enfermeiros, se a idéia de o agente local de vigilância ter uma
ou seja, um elemento a mais da luta contra- identidade para atuar. Não seria um avanço a
hegemônica pela construção do novo modelo criação de uma categoria profissional de traba-
de atenção. A evolução conceitual, metodoló- lhadores da vigilância em saúde?
gica, instrumental do campo da saúde coletiva
demanda um profissional em saúde coletiva, e Carmen Teixeira
para nós ele não é o antigo sanitarista, forma- Eu tendo a achar que é vantagem construirmos
do em um curso de especialização. Para nós, o a categoria profissional do vigilante da saúde.
novo sanitarista será um profissional graduado Na verdade, estamos falando de construção
em saúde coletiva. Poderíamos pensar também de novas identidades profissionais na área de
no nível médio. Acho muito interessante a pro- saúde, melhor dizendo, identidade pós-profis-
posta de vocês porque a meu ver se articula sionais. Nós, do Instituto de Saúde Coletiva,
com a nossa discussão sobre as competências quando discutimos a universidade nova, de-
do profissional do campo da saúde coletiva, fendemos a criação de um bacharelado em
quais sejam: a de vigilância, como pensamos a saúde, diluindo em princípio as categorias
vigilância da saúde, que é o que vocês estão profissionais antigas, propondo que todos os
que-rendo exatamente especificar para o nível interessados em vir a trabalhar na área de saúde
médio; a de gestor do processo de trabalho co- tenham uma formação básica comum, que in-
letivo, uma pessoa que tenha capacitação geren- clui, além de conhecimentos científicos e tec-
cial, que seria hoje o que a enfermeira da saúde nologias específicas da área da saúde, a abertu-
da família faz, isto é, planejamento do processo ra para as humanidades, a arte e a filosofia,
de trabalho das equipes; e, por último, a de co- levando em conta a contribuição que este tipo
municador social em saúde, alguém que faz a de aprendizado pode vir a ter para o desen-
interface da promoção com os movimentos so- volvimento da sensibilidade e da consciência
ciais, que é o que pensávamos do agente comu- crítica necessária para se lidar com a complexi-
nitário, um novo educador sanitário, promotor dade que a questão da saúde assume no mundo
da consciência de cidadania, mobilizador dos hoje. Na verdade, o que está sendo colocado é
processos de controle social, formador da cons- exatamente a proposta de se constituir uma for-
ciência acerca dos direitos e, ao mesmo tempo, mação básica num determinado campo de sa-
uma ‘ponte’ com a equipe de saúde da família ber, que seria o da saúde, com toda a comple-
para o encaminhamento da solução dos pro- xidade inerente ao campo, e depois a opção pela
blemas de saúde individuais e coletivos. Essas profissionalização, que ocorreria já no quarto
idéias estão presentes em alguns debates sobre ano do bacharelado. Com isso, superamos a
o papel dos agentes comunitários, logo no início falsa polêmica entre a formação de profissio-
do processo de implantação da Saúde da nais ‘gerais’ e ‘especializados’, como por exem-
Família, depois se perdeu, porque o modelo plo, a discussão entre a formação do médico
hegemônico absorve e acaba transformando o generalista e/ou o especialista. Tem-se uma for-
agente comunitário num ‘minimédico’, como mação geral em saúde que é terminal, podendo
uma auxiliar de enfermagem vira uma ‘mini- não implicar, inclusive, numa profissionaliza-
enfermeira’, quer dizer, a força do modelo he- ção posterior. Considerando, entretanto, que
gemônico é exatamente essa: subverter todas o mercado exige identidade profissional, há
estas propostas de mudança que tentamos im- que se ter uma formação geral e, ao mesmo tem-
plementar, porque as próprias pessoas, depois po, batalhar pela profissionalização. Retoman-
que fazem o curso de capacitação do agente co- do o exemplo dos profissionais da Vigilância,
munitário, se aproximam do modelo hegemôni- penso que sua formação faz parte da estraté-
co e passam a querer ser o ‘médico’, o agente de gia contra-hegemônica, na medida em que eles
saúde que vai na casa das pessoas reproduzir a vão se constituir, amanhã ou depois, naqueles
concepção e as práticas tradicionais. que se mobilizarão pela manutenção e ampli-
ação das práticas de Vigilância da Saúde no SUS
e para muito além dele.

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194 Entrevista: Carmen Teixeira

Nota

1 Entrevista concedida a Mauricio Monken,


Gracia Maria de Miranda Gondim e Carlos
Eduardo Colpo Batistella, respectivamente coor-
denador e professores-pesquisadores do Labo-
ratório de Educação Profissional em Vigilância em
Saúde (Lavsa), da Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio/Fiocruz. Sérgio Renato Torres
Júnior, bolsista PEC, colaborou na transcrição.

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