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Resumo Carmen Fontes de Souza Teixeira nasceu na Abstract Carmen Fontes de Souza Teixeira was
Bahia e, atualmente, exerce o cargo de professora born in Bahia, and is now associate professor at the
associada do Instituto de Saúde Coletiva, da Univer- Collective Health Institute of the Federal University
sidade Federal da Bahia (UFBA). Participante ativa do of Bahia (UFBA). An active participant in the sanita-
movimento da reforma sanitária, em meados dos tion reform movement of the mid-‘70s, she has
anos 1970, tem vasta experiência na área de Saúde vast experience in the area of Collective Health,
Coletiva, com ênfase em Saúde Pública, atuando with an emphasis on Public Health, and acts in
em diversas frentes, com destaque para gestão de various fronts such as systems management, public
sistemas, políticas públicas, organização de serviços, policies, organization of services, and administrative
planejamento e desenvolvimento gerencial. A Escola planning and development. Through the Health
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Surveillance Professional Education Laboratory
Oswaldo Cruz, através do Laboratório de Educação (Lavsa), the Joaquim Venâncio Polytechnical Health
Profissional em Vigilância em Saúde (Lavsa), convi- School, of the Oswaldo Cruz Foundation, invited
dou-a para proferir a palestra "Os sujeitos da Vigilân- her to give the lecture “the subjects of Health
cia em Saúde: construindo uma proposta curricular Surveillance constructing a curricular proposal for
para a formação técnica", no auditório Joaquim technical training and education”, at the Joaquim
Alberto Cardoso de Melo, em 9 de julho de 2007. Alberto Cardoso de Melo auditorium, on July 9,
Neste mesmo dia, Carmen Teixeira concedeu a entre- 2007. On that same day, Carmen Teixeira granted
vista1 que se segue. Nela, revive a discussão da the interview that follows. In it, she relives the
mudança do modelo de atenção em saúde e exa- discussion about the change in the health care model
mina temas como a vigilância em saúde enquanto and examines themes such as health surveillance as
proposta contra-hegemônica a partir da revisão de a counter-hegemonic proposal based on the revision
currículos, subjetividade na formação de profissio- of curriculums, subjectivity in the training of
nais de saúde, intersetorialidade, empoderamento health professionals, intersectoriality, empowerment
dos agentes de vigilância e muito mais, sempre na of surveillance agents, and much more, always
perspectiva da Reforma Sanitária e do aperfeiçoamen- from the perspective of Sanitation Reform and the
to dos profissionais que atuam no setor. improvement of professionals of that sector.
vamos a nos encantar com a perspectiva situa- novos sujeitos, pensar novos objetos, mudar as
cional, até porque essa concepção se aplica relações de processo de trabalho. Sem Ricardo
perfeitamente à saúde porque trata de intro- Bruno, não conseguiríamos pensar a Vigilância;
duzir a noção de complexidade na abordagem sem o avanço do planejamento da Epidemiolo-
dos problemas de saúde, rompendo com a gia Social e da Geografia Crítica, não consegui-
perspectiva anterior, centrada no estudo das ríamos pensar a Vigilância. Ou seja, tínhamos
doenças, o que se traduzia, em termos de práti- como pensar e tínhamos a demanda concreta do
cas, na Vigilância Epidemiológica de riscos e pensar, que era exatamente o movimento de im-
danos. Ao adotarmos a noção de análise de situ- plantação dos distritos sanitários. Estes não po-
ação de saúde, o objeto da Vigilância passava diam ser apenas um espaço de reforma da as-
a ser a situação de saúde em sua complexi- sistência médica, como alguns até pensavam na
dade, resultado da interação entre problemas época. Quando juntamos os antigos serviços
de saúde e seus determinantes. Tínhamos que do Inamps com os serviços das secretarias de
pensar a situação de saúde como uma coisa saúde, a demanda explodiu, porque todo mun-
complexa, mas que podia ser analisada, iden- do era cidadão, todo mundo podia ter acesso, as
tificada, monitorada e que podia ser o objeto filas aumentaram, e algumas forças políticas e
de intervenção a partir da mudança das práti- mesmo a população poderiam pensar que, de
cas. Então, do ponto de vista da fundamen- repente, o Distrito Sanitário se transformava em
tação conceitual, conflui aí a discussão de ter- um imenso pronto atendimento (PA). Foi exata-
ritório da Geografia Crítica, entendido como mente aí que dissemos: Não! A Reforma Sani-
um espaço em transformação e a contribuição tária não pode ser simplesmente a garantia do
da epidemiologia social, que avançava para acesso à assistência médica ou tão-somente uma
a análise dos determinantes da saúde. Nesse organização da oferta para dar conta dessa de-
aspecto, não se pode esquecer o papel do manda espontânea. É um espaço de mudança do
Pedro Luis Castellanos, que nessa época come- modelo. E para onde, em que direção? Foi o
çou a trabalhar também com análise de situa- começo da discussão sobre a integralidade, a
ção de saúde, tendo publicado um artigo, equidade e a universalidade. A universalidade
se não me engano na Revista do CESS, de de quê? A integralidade de que, de que práti-
Rosário, Argentina, em 1987, sobre situação cas? Aparece aí toda a discussão da promoção,
de saúde, assumindo a enfoque situacional. da prevenção, da assistência e da reabilitação.
Então, havia esse segundo elemento, que seria Foram se juntando os elementos que permiti-
o dos conceitos, da construção desse novo ram a Jairnilson Paim e a Eugênio Vilaça elabo-
paradigma que nos facilitava pensar as práticas rarem os primeiros conceitos de Vigilância.
de saúde como uma prática de Vigilância pro- É interessante notar que são conceitos diferen-
priamente dita. tes, mas se complementam. Jairnilson mostra-se
O terceiro elemento era a discussão de processo muito mais voltado para a idéia de Vigilância
de trabalho, que é uma coisa nossa. Ricardo como uma mudança na organização do proces-
Bruno Mendes Gonçalves tinha publicado a so de trabalho, porque estava usando o conceito
tese dele de mestrado em 1979 sobre processo de modo de organização tecnológica do proces-
de trabalho em saúde, ou seja, tinha feito uma so de trabalho do Ricardo, e o Eugênio aparece
análise aprofundada do processo de trabalho muito mais influenciado pela Opas, até por ser
médico, de suas raízes estruturais. Ricardo nos de lá naquele momento, pensando a Vigilância
deu mais um dos elementos que deveriam ser como um modelo de reorganização dos serviços,
remontados. Tínhamos o cenário, que eram os que implicavam a construção de um sistema lo-
sistemas locais; tínhamos mais ou menos a idéia cal que implementasse práticas de promoção e
do que queríamos fazer: vigiar situações de também descentralizasse as práticas de pre-
saúde, intervir sobre situações de saúde com- venção, incluindo Vigilância Epidemiológica,
plexas, não apenas sobre doenças específicas, Sanitária, Ambiental e Saúde do Trabalhador
ao mesmo tempo, enfim, tínhamos os elemen- em função dos territórios, domicílios, áreas de
tos, as peças do quebra-cabeça que deveriam abrangência etc., além de garantir a atenção in-
ser remontadas – as concepções sobre o proces- dividual e a própria referência e contra-referên-
so e trabalho em saúde. Era preciso formar cia de pacientes. Na época, não se falava tanto
de organização de redes de atenção, nem de curativa, até porque ela não dá conta da pro-
definição de linhas de cuidado, como hoje em blemática de saúde. Está embutida aí uma críti-
dia, mas já se discutia a conformação de redes ca à ineficácia do sistema médico hospitalocên-
ou sistemas de referência e contra-referência de trico, pois quando se pensa em integralidade
pacientes e de informação, que permitissem a com prevenção e promoção da saúde é porque
integralidade do cuidado. se sabe que a situação de saúde, os perfis epi-
demiológicos, fruto do aumento da expectativa
Revista de vida ao nascer, da prevalência das doenças
Como uma proposta contra-hegemônica pode crônicas degenerativas, da violência, nada dis-
quebrar os recortes de poder cristalizados por so pode ser resolvido a contento apenas com a
algumas ações de serviços na busca da inte- reprodução do modelo médico hospitalocêntri-
gralidade e da equidade e como é possível co. Precisamos investir em promoção da saúde,
construir essa mudança paradigmática a partir porque para atuar sobre os determinantes da
do currículo? situação de saúde não temos outra coisa a fazer
a não ser buscar uma perspectiva intersetorial
Carmen Teixeira na formulação e implementação de políticas
Primeiro, é preciso pensar o que significa dizer públicas voltadas à melhoria das condições de
que a proposta de Vigilância é contra-hegemô- vida dos diversos grupos da população, ao tem-
nica. Temos novamente que lembrar que esta- po em que se avança com a consolidação das
mos em países capitalistas e a grande diferença práticas de proteção de grupos vulneráveis, e
é que todas as propostas alternativas recusam a assistência a pessoas que apresentem problemas
idéia de que saúde seja uma mercadoria ou al- considerados prioritários.
guma coisa que possa ser comprada, traduzida Quanto ao currículo, ele é parte de um projeto
na compra de algum medicamento ou alguma político pedagógico de formação de sujeitos.
terapêutica, por mais alternativa que ela possa Todas as universidades, todos os cursos, em
parecer. Enquanto vivermos em sociedades em qualquer nível, têm o seu. Muitas vezes, o cur-
que a saúde seja vista dessa maneira, vamos ter rículo reflete as tensões entre projetos dife-
que manter essa luta, embora se saiba que mes- rentes. O currículo de uma faculdade de medi-
mo nas sociedades capitalistas é possível fazer cina, por exemplo, projeta a permanência de
com que saúde seja mais do que uma mercado- uma perspectiva médico-assistencialista, clíni-
ria, ou não só uma mercadoria, que seja assu- ca, que é necessária, mas cada vez menos sufi-
mida como um direito. Em seu novo filme, ciente para se ter um impacto positivo sobre as
Michael Moore faz o papel de um americano situações de saúde da população. Então, pre-
perplexo, quando se dá conta de como o país cisamos mudar o currículo. Mas essa mudança
dele é extremamente cruel com seus próprios enfrenta uma série de limitações. Primeiro,
cidadãos. Isso é interessantíssimo, a postura os professores, em geral, resistem à mudança –
dele no filme todo é de uma pessoa que está este é o problema das faculdades de medicina.
abismada pelo fato de que em outros países se Às vezes, faz-se uma reforma de currículo, mas
consegue ter um sistema universal, como na os professores são os mesmos, reproduzem em
França, na Inglaterra e em Cuba. Enfim, o im- suas práticas todos os valores que o novo cur-
portante é admitir que é possível, mesmo num rículo tenta negar. Segundo, a própria formação
país capitalista, existir um sistema de saúde que em si; por melhor que seja, o perfil do egresso
proteja as pessoas, que procure cuidar das pes- se materializa de fato é na prática, conforme
soas. Quer dizer, é possível pensar que o Brasil, analisa Marília Fontoura em sua recente tese de
apesar de ser um país de terceiro mundo, da doutorado. Marília estudou os egressos dos cur-
periferia, pobre, pode, sim, ter um sistema de sos de especialização em Saúde da Família.
saúde generoso para seus cidadãos, pode ser in- A pergunta era até que ponto esses egressos
clusivo, universal. Claro que vamos discutir o usavam ou não os conteúdos, as técnicas, os
que deve ser universal, incluída a discussão da métodos que aprenderam no curso, no qual o
Vigilância, como não é possível universalizar a currículo foi todo desenhado segundo o en-
assistência médica, não é desejável univer- foque por competências, os conteúdos foram
salizar a assistência médica hospitalocêntrica e trabalhados no formato modular, e as práticas
Além disso, além de aprender a técnica, ou Ela trabalha muito essa categoria do empodera-
seja, a usar instrumentos e a conversar, pre- mento e a discute não apenas em sua acepção
cisamos ter valores que são nossos, que deve- política, coletiva, social, mas também no plano
mos incorporar, para ressignificar o nosso lugar psicológico, individual. Na dimensão do coleti-
no mundo, o sentido das escolhas que fazemos, vo, empoderamento indica a capacidade de mo-
profissionais, políticas, existenciais, de um mo- bilização, de organização, de ação, de luta pelos
do geral. No fundo, é algo que me faz lembrar direitos, por mudanças nas condições de vida e
de uma canção de Eduardo Dussek: ‘Pare o trabalho. Na dimensão individual, empodera-
mundo que eu quero descer’. De fato, refiro-me mento tem a ver com a formação dos sujeitos,
a um sentimento, uma constatação de que se o em um processo de autovalorização, de aumen-
mundo continuar nessa direção, eu não quero to de sua auto-estima. Por exemplo, quando o
ir. Por isso, temos que fazer alguma coisa para pessoal do Proformar trabalha com aqueles
mudar a direção, e essa é uma responsabilidade livros bonitos, coloridos, bem-feitos, eles se
de todos que vivem essa angústia, essa perple- sentem valorizados, pois estão trabalhando com
xidade, esse desejo e essa esperança de con- um material que foi bem cuidado, bem produzi-
tribuir para a construção de um mundo melhor. do, o que repercute na significação que poderão
E não é só no sentido da militância política. Sem dar ao trabalho que vão realizar. Isso terá que
dúvida, muito do que fizemos e fazemos é por ser incorporado ao currículo, não sei exata-
uma questão de militância, por uma utopia re- mente como, mas você já está apontando: temos
volucionária. Mas não é só disso que estou fa- que valorizar, fazer com que as pessoas valo-
lando: a luta pela saúde ultrapassa a revolução. rizem de novo aquilo que estão fazendo, por
É mais no sentido em que o Arouca pregava, mais simples que seja, o que só ocorre quando
quando dizia que a Reforma Sanitária é um pro- percebemos a contribuição que o nosso traba-
jeto civilizatório, portanto não se trata simples- lho, mesmo pequenininho, dá ao processo cole-
mente de fazer revolução, mas de criar um mun- tivo. Isso é superar a alienação, se voltarmos
do melhor, uma outra racionalidade, uma outra ao conceito de alienação, como visto pelo velho
forma de viver, o reencantamento por estarmos Marx. O que é o trabalho alienado? O traba-
vivos, sermos o que somos, pensarmos, traba- lhador alienado é exatamente aquele que não
lharmos, amarmos. Pode parecer poesia o que tem idéia da contribuição que está dando ao
estou falando, mas não é à toa que estou lendo conjunto, que repete mecanicamente, que re-
mais poesia do que saúde pública ultimamen- produz tarefas parcelares sem apreender o con-
te. Talvez porque eu esteja ficando velha, ou junto do processo de produção. Então, uma for-
porque meu tempo esteja ficando curto, ou ain- ma de superar a alienação é fazer com que cada
da porque eu tenha a pretensão de deixar algu- um perceba o lugar que ocupa num determina-
ma coisa escrita para que meu filho, ou meus do contexto. Portanto, é preciso incorporar nos
netos amanhã, quando lerem, sintam orgulho currículos o aprendizado de análises de contex-
de mim, ou meus alunos, que dirão assim: ela to, o que só pode ocorrer quando os sujeitos
foi uma sonhadora. Mas é importante que al- começam a valorizar a história. A história de ca-
guém sonhe de vez em quando, já trabalhamos da um tem que ser recuperada para as pessoas
muito e temos que continuar a sonhar, enfim. entenderem como chegaram ali, bem como a
história do coletivo. Como chegamos aqui? O
Revista que é a Reforma Sanitária? O que é o Brasil? Co-
Com o foco em formação de currículo, como mo é que pensamos o Brasil, o sistema de saúde
agregar a proposta da promoção da saúde sobre brasileiro? Jairnilson Paim está trabalhando,
empoderamento da população e dos sujeitos atualmente, em sua a tese sobre a Reforma Sani-
que cuidam – em vez de culpar o indivíduo, ele tária. Ele recuperou todo o processo histórico
é chamado a fazer parte de um corpo coletivo dos fatos que configuraram a conjuntura pré e
como agente de mudança – no âmbito do SUS? pós-constituinte, partindo do pressuposto de
que a Reforma Sanitária fez promessas que
Carmen Teixeira não cumpriu. No percurso de construção da
A pergunta me faz lembrar da tese de Maria tese, Paim começou a reler vários sociólogos e
Caputo, exatamente sobre promoção da saúde. cientistas políticos que pensaram o Brasil, como
Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernan- que também é parte da nossa cultura não
des, Caio Prado Junior, Fernando Henrique gostarmos muito de trabalhar. Portanto, é um
Cardoso e outros sociólogos e cientistas políti- problema cultural, de cultura organizacional.
cos. Foi desta forma que a pergunta de Paim Primeiro, a questão da centralização; segundo,
passou a ser: ‘Como se insere esse movimento a não valorização do trabalho. Então, a lógica é
pela reforma sanitária num pensamento sobre o ‘vamos trabalhar o mínimo possível, fazer o que
Brasil?’ Esse é um exemplo de um esforço in- me pedem, o que estão pagando. Para que vou
telectual que nos ajudará a refletir sobre o lu- querer mais, se não tem ninguém valorizando?’
gar que ocupamos no processo coletivo e sobre Então temos que trabalhar essa questão no âm-
os efeitos que este processo coletivo produziu bito dos cursos, romper com essa cultura do não
na vida de cada um de nós. Concluindo, penso trabalho, ou do que chamamos no Instituto de
que as pessoas deixam de ser alienadas quando Saúde Coletiva de ‘o mínimo legal’. Não, vamos
se dão conta do lugar que ocupam na história e, tentar fazer com que as pessoas, os gestores, os
portanto, precisamos estimular, em cada um dos trabalhadores se dêem conta de que é prazeroso
nossos cursos, a realização desse movimento, inovar, inventar, criar; desenvolver a autono-
dessa reflexão crítica sobre si mesmo e sobre o mia, a criatividade, a possibilidade de fazer
processo histórico que nos coube viver. diferente.
Em Salvador, quando fomos trabalhar no plano
Revista municipal de saúde, além de todas as coisas co-
Como trabalhar e ver os próprios propósitos de muns, como a organização da atenção básica,
mudança diante de um cenário marcado por a promoção da saúde, a Vigilância, nos depa-
uma lógica normativa? Qual o alcance do tra- ramos com a grande novidade que foi a deman-
balhador de alterar as práticas, se o que se vê da da população pela formulação de uma polí-
é ainda o aprisionamento de uma pré-progra- tica de saúde da população negra. Havia um
mação das PPI, as Programações Pactuadas grupo com liderança e poder de pressão que
Integradas? acabou se institucionalizando como um grupo
de saúde da população negra. Com isso, o pla-
Carmen Teixeira nejamento teve que absorvê-lo, porque exis-
Creio que vamos ter que trabalhar com esta ten- tia um movimento anterior de construção da
são ainda por muito tempo, até por conta do autonomia do problema. Eis aí um tema que
que falávamos antes quanto à globalização temos de introduzir nos cursos, nos currículos,
e à complexificação da situação de saúde. Não porque é fácil dizer que as pessoas devem ser
tenho nada contra as normas. Aliás, concordo criativas, mas dificilmente as pessoas são es-
com Carlos Matus, que diz que o momento nor- pontaneamente criativas, para romper com essa
mativo faz parte do processo de planejamento. cultura organizacional do não trabalho, do mí-
A questão é que as normas, às vezes, são vistas nimo legal, do obedecer, do centralizado, do
como uma camisa-de-força, as pessoas lêem os não inventar, do não inovar. Temos que identi-
pactos como se fosse para fazer aquilo e pronto, ficar e formar lideranças, discutir a questão da
estou fazendo o que o Ministério mandou. No liderança, e o Javier Uribe, da Escola Nacional
fundo, não é um problema da norma, mas da de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), está
cultura organizacional, que é herdeira de um trabalhando muito com o tema no livro de sua
passado marcado pela centralização. As pessoas autoria Gestão pela escuta. Ele é uma pessoa
não acreditam que têm autonomia de pensar, de preciosa nessa questão, porque está recuperan-
inventar, de criar. Pensam que é muito mais fá- do a discussão da obra A dança das mudan-
cil obedecer do que se arriscar a fazer uma coisa ças, de Peter Senge, e trazendo o conceito do
nova que pode não dar certo. Nosso sistema líder jardineiro, que deve ser incorporado nos
ainda tem esse problema. E digo isso porque cursos. Posso ter num município pessoas com
trabalho com o município. Quando começamos condições de exercer o papel de jardineiros, de
a fazer planejamento, há sempre uma dúvida. identificar as pessoas que podem ser plantinhas
Pode isso? Além do mais, significa sempre mais que vão construir um novo jardim. A idéia é in-
trabalho você fazer alguma coisa nova. No teressante. Tem gente que naturalmente é líder.
princípio, sempre soa como mais trabalho, o Você vê uma meninada jogando bola, tem logo
aquele que grita, o Dunga do time. Hoje, o pes- versos setores. Aprendi que quando se trabalha
soal que trabalha com liderança diz que há no plano político, na formulação de propostas
pessoas que, por uma questão de temperamen- de intervenção sobre problemas de saúde, o
to, de personalidade, tem naturalmente esta primeiro desafio é a construção do consenso em
tendência de exercer uma certa liderança, orga- relação à pertinência de uma política que tenha
nizar o processo coletivo de trabalho, exercer como objeto os determinantes da saúde, que
este papel de dirigente, mas a liderança pode não se concentre em intervir os efeitos, mas que
ser cultivada. Uma pessoa que é tímida pode, trabalhe com os determinantes. Agora, é dife-
ao longo da vida, superar a timidez. Existem rente trabalhar a intersetorialidade com pessoas
técnicas para se superar a timidez, para apren- da área de saúde, pensando no desenvolvimen-
der a ser líder, um negociador ou um organi- to de sua capacidade de aglutinar, motivar, mo-
zador do trabalho coletivo; aprender a estimu- bilizar pessoas de outros setores no âmbito do
lar as pessoas, a motivá-las. Na minha opinião, território municipal. Aí a minha experiência já
essa temática deve ser enfrentada em todos os é diferente. Tomo como exemplo um trabalho
cursos na área de saúde pública, porque esta- recente que tive a oportunidade de fazer no
mos falando de mudança, e não apenas de município de Camaçari, na Bahia. O prefeito
treinar ou capacitar pessoas para reproduzir o convidou um grupo de pessoas das diversas
que já se faz, mas como mudar. Não se trata ape- áreas para formular, conjuntamente, um plano
nas do líder heróico, o líder que vai à frente e a estratégico para o desenvolvimento do municí-
equipe técnica e os trabalhadores seguem atrás. pio, porque não estava satisfeito com os planos
Estamos habituados a seguir esse tipo de líder, que cada setor apresentou. Ele preferiu que
pessoas excepcionais que dão o exemplo e nos fizéssemos uma outra leitura da informação,
sentimos orgulhosos de acompanhá-los. Contu- que identificássemos os problemas e popu-
do, precisamos cada vez menos de líderes herói- lações-problema, e pensássemos uma ação in-
cos. Necessitamos, sim, de líderes jardinei- tersetorial, com a concentração de esforços em
ros, que estão ali no cotidiano, que aparecem um determinado grupo da população pobre da
pouco, mas são aqueles que estão todo dia re- cidade. No fundo, ele reproduzia a idéia de fo-
gando, plantando, semeando, propiciando uma calização, mas não era só com a saúde, e sim
mudança mais molecular. com outras áreas também. Esses exemplos ilus-
tram duas estratégias totalmente diferentes,
Revista tanto no momento da formulação quanto no da
Gostaríamos que comentasse sobre os aspectos organização da intervenção, mas as duas têm
da intersetorialidade que podem contribuir um mesmo objetivo: atuar sobre determinantes,
para a efetividade e a integralidade das ações na melhorar a qualidade de vida.
perspectiva da melhoria de qualidade de vida
das coletividades. Revista
Na perspectiva dos trabalhadores de saúde, em
Carmen Teixeira particular os de nível médio, diante das dificul-
Vivi duas experiências que me ajudaram a pen- dades de se trabalhar com intersetorialidade,
sar essa questão. Quando estávamos elaborando empoderamento e promoção da saúde, como
o plano de promoção da paz e combate à violên- falar de uma categoria profissional ou de dife-
cia em Salvador, os alunos do curso não eram rentes categorias articuladas em torno de um
todos da área da saúde. Havia pessoal de todas agir com base territorial fundamentada na con-
as secretarias do município. Assim, eu tinha nas cepção de vigilância em saúde?
mãos uma equipe heterogênea, com formações
completamente diferentes, das áreas de enge- Carmen Teixeira
nharia, segurança, educação, saúde, ciência e Essa é uma discussão mais ampla também,
tecnologia. Nosso primeiro desafio foi constru- porque tem a ver com a questão do perfil
ir um consenso em torno de alguns conceitos, o profissional do sanitarista. Já se pensou em re-
chamado alinhamento conceitual. Portanto, es- formular sua formação, com a criação de um
távamos construindo a possibilidade de uma curso de graduação em saúde coletiva, mas no
política intersetorial a partir de pessoas de di- próprio campo não há consenso em relação a
Nota