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Muntuísmo, neologismo formado pelo

autor a partir da palavra Muntu («pessoa», na


língua bantu), propõe-se como denomina-
ção de um modelo teórico de «personalismo
africano». A corrente do personalismo, no-
toriamente lançada na França, na primeira
Os velhos da terra de Sewe (Inhamba-
metade do século passado, por Emmanuel
ne, Moçambique) contam que, a 10 de
Mounier, encontra o seu habitat mais natu-
Janeiro de 1498, o famoso navegador ral na cultura africana que é, essencialmente,
português Vasco da Gama, a caminho personalista, enquanto assenta nos três pila-
das Índias, chegou com as suas embar- res da corrente: pessoa, comunidade, Deus.
Ezio Lorenzo Bono é professor de cações à baía de Inhambane. Era um dia No Ocidente, estes pilares desmoronaram:
Filosofia Contemporânea e Africana muito chuvoso. Avizinhando-se dos in- Deus já morreu (executado pelas instâncias
e de Filosofia da Educação, na Uni- dígenas, perguntou-lhes qual era o nome niilistas e positivistas da contemporaneida-
versidade Pedagógica-Maxixe (Uni- da localidade. Vendo a forte chuva, estes de); a comunidade é concebida prevalente-
mente como espaço de reivindicação dos
SaF), de que é director. É ainda pro- dirigiram-lhe a palavra com um sorriso
direitos individuais (no sentido na filosofia
fessor nos cursos de Mestrado e Dou- nos lábios: «Bela nymbani» («entre em marxista ou filosofia da práxis); e a pessoa
toramento da Universidade Pedagó- casa») e ofereceram-lhes hospitalidade e está reduzida ao indivíduo sem nenhuma
gica – Moçambique. produtos locais. Impressionado por tan- dimensão transcendental, sufocado na sua
Fez os seus estudos filosóficos, teoló- ta hospitalidade, Vasco da Gama escre- finitude (do preconceituoso fechamento da
gicos e pedagógicos em Itália, Brasil veu no seu diário que, naquele dia, havia cultura à ideia de Deus ficou, consequente-
e Moçambique, concluindo o douto- entrado na bela terra de «Inhambane», mente, também fechado o acesso à verdade
ramento na Università degli Studi di terra de boa gente. De facto, havia inter- da pessoa).
O Muntuísmo – diferente do ubuntuísmo e do
Bergamo (Itália). pretado as palavras dos indígenas como
bantuísmo, que acentuam mais a dimensão
resposta à sua pergunta. Ainda hoje, a
comunitária – coloca no centro o Muntu, o
Da sua obra literária, destaca-se: terra de Sewe é chamada «Inhambane», qual não desaparece perante a comunidade
• La possibilità di parlare di Dio in «Dio, «Terra da boa gente». Esta história real, (o comunitarismo africano é muitas vezes
mistero del mundo» di Eberhard Jüngel, embora revestida de lenda, resume per- um lugar comum contradito pela realidade) e
Bérgamo, 1987; feitamente a natureza da pessoa africa- nem perante Deus (lembrar que os africanos
• Ética ou retórica sobre o outro? As apo- na: hospitaleira, aberta aos outros e ge- chegaram ao monoteísmo antes dos Gregos
rias da ética como filosofia primeira nerosa. Esta figura é um emblema não e Romanos!), mas encontra propriamente a
de Emmanuel Lévinas. Nas obras «To- só da gente desta terra (de Inhambane e sua verdade plurimilenar na dimensão ho-
rizontal e vertical da sua existência. Uma
talité et Infini» e «Autrement qu’être», de Moçambique), mas da África inteira.
maior ênfase da centralidade da pessoa, em
Maputo, 2004; Se quiséssemos perguntar, idealmente,
relação à comunidade, poderá marcar uma
• L’idea di persona nella filosofia africa- aos africanos, qual é a sua ideia de «pes- nova dinâmica no desenvolvimento da hu-
na contemporanea, Bérgamo, 2011. soa», com um sorriso nos lábios, eles res- manitas africana.
ponderiam, ainda hoje, com estas duas «I am (Muntu) because I believe (Deus) and I
palavras, que valem muito mais do que love (Comunidade)»: é o aforismo que me-
inteiros tratados filosóficos sobre a pes- lhor sintetiza os três pilares do Muntuísmo,
soa: «Bela nyumbani»! ou seja, do personalismo africano.
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EZIO LORENZO BONO

Muntuísmo
A ideia de «pessoa»
na filosofia africana contemporânea

2.ª edição
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Título original: L’idea di persona nella Filosofia africana contemporanea


(Tese defendida no curso de doutoramento em Ciências Pedagógicas,
na Universitá degli Studi di Bergamo – Itália)
Tradução: Jofredino L. Faife
Capa: Departamento Gráfico Paulinas
Pré-impressão: Paulinas Editora – Prior Velho (Portugal)
Impressão e acabamentos: Artipol – Artes Tipográficas, Lda. – Águeda (Portugal)
Depósito legal n.º 401 617/15

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As Irmãs Paulinas são mulheres consagradas a Deus numa congregação religiosa, e dedicam as
suas vidas ao serviço do Evangelho e do povo, como apóstolas no mundo da comunicação social,
certas de que este é o caminho para anunciar Jesus Cristo, hoje.
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Introdução

O título da nossa pesquisa, A ideia de «pessoa» na filosofia africana


contemporânea, esconde, à partida, uma intenção ambiciosa que pre-
tendemos subitamente delimitar. Mais do que filosófico, o ponto de
partida da nossa reflexão é pedagógico. Partimos da pesquisa
teórico-pedagógica que, ao longo de anos, nos conduziu ao estudo
da filosofia da educação no contexto africano. Com efeito, nos últi-
mos anos exercemos a profissão de docente neste contexto (afri-
cano) completamente diferente do de onde somos originários, e
encontramo-nos na contingência de conhecer mais a fundo os ele-
mentos essenciais que constituem a filosofia da educação africana,
entre os quais a antropologia, a axiologia e a pedagogia africana.
Colocamo-nos, então, a seguintes questões: que ideia temos da
pessoa que pretendemos educar? Que valores transmitir? Que
método educativo privilegiar?
O ponto crucial é o estudo da ideia de pessoa, do qual descen-
dem os demais elementos. A motivação de fundo, na origem da
nossa reflexão, esteve intimamente ligada a exigências pedagógicas
essenciais. Todavia, o percurso seguido foi necessariamente filosó-
fico. Interrogar-se acerca da ideia de pessoa implica, inevitavel-
mente, uma questão veritativa e, consequentemente, filosófica.
O nosso objectivo não foi apenas argumentar sobre a existência
de uma ideia africana de pessoa, mas também demonstrar a sua
veracidade. A ideia africana de pessoa reivindica uma universali-
dade: importa verificar as condições racionais de universalidade
desta reivindicação. Essa pretensão é baseada no facto «histórico»
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da tradição e cultura africana que, durante milénios, sustentou e


guiou gerações inteiras até aos nossos dias. A legitimidade do mo-
delo africano, que se impõe na sua auto-evidência, deve ser explici-
tada por meio de uma reflexão racional que demonstre a sua veraci-
dade. Quando evocamos a racionalidade, referimo-nos à reflexão
acerca das condições universais de veracidade (toda pretensão de
veracidade é uma pretensão de universalidade). Trata-se de de-
monstrar a lógica de tal modelo.
Um modelo de pessoa como o africano não teria sido capaz de
sobreviver nem de guiar os seus povos até aos nossos dias se não
estivesse repleto de uma verdade profunda, universal e, consequen-
temente, racional. Do estudo emerge uma ideia clara de pessoa,
articulada segundo um discurso metafísico.
Neste ponto impõe-se um esclarecimento, pois o atributo meta-
físico do discurso pode suscitar alguma perplexidade. É certo que
mesmo quando tratamos da religião africana como fonte de um sen-
tido universalmente aceite e reconhecido, reflectimos acerca de
ideias e tradições de carácter metafísico e não propriamente «teo-
lógico». Uma crítica feita à filosofia africana, e que é aplicável igual-
mente a esta dissertação, é a confusão entre o discurso filosófico e o
teológico. É, como teremos ocasião de analisar, a mesma crítica que
Derrida move contra Lévinas. Todavia, de acordo com Lévinas,
respondemos que a pesquisa de sentido não se identifica com um
discurso teológico toutcourt enquanto discurso humano por exce-
lência. Ademais, o desafio filosófico é distinguir os dois níveis de
discurso. Quando se fala da verdade do Homem e do sentido da
vida faz-se um discurso metafísico e, discutindo tais questões, o dis-
curso filosófico abraça necessariamente o teológico. É importante
explicitar o percurso metodológico necessário, para que não se con-
fundam os dois níveis.
Justificar o modelo africano de pessoa requer a demonstração crí-
tica de como tal modelo declara a verdade do Homem como tal:
uma verdade universal fundada sobre uma verdade histórica e tra-
dicional, ou seja, sobre a vida concreta do homem africano tal como
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INTRODUÇÃO | 7

se desenvolveu ao longo de séculos. O acesso à verdade universal


do homem africano dá-se por via do carácter histórico, do homem
africano concreto que encontrou o seu sentido na sua tradição
milenária, que deve ser verificada criticamente através do método
fenomenológico-hermenêutico.
O objectivo primordial era estudar expressamente o personalis-
mo africano. Contudo, não encontrando obras significativas a
respeito, vimo-nos forçados a optar por um trabalho de «reconstru-
ção» de dito personalismo, descobrindo-o em estudos sobre a ideia
de pessoa, levados a cabo por filósofos africanos amplamente re-
conhecidos como autores significativos internacionalmente.
O fio condutor desta análise foi a verificação crítica do modelo
africano de pessoa. A sua coerência com a estrutura antropológica
atesta, à partida, a sua racionalidade e, por consequência, a sua ver-
dade, sendo que este constitui precisamente o pressuposto teórico.
Um modelo emerge das constantes reveladas no desenvolvimento
de determinado tema, que permitem o reconhecimento de um para-
digma específico e das linhas de força de tal orientação. Da análise
das obras filosóficas dos vários autores africanos, e da Palabre com
os vários sábios entrevistados, relevamos algumas constantes, algu-
mas linhas de força que nos permitiram definir um modelo africano
de pessoa, o qual denominamos com o neologismo «muntuísmo».
Os intelectuais africanos reivindicam muitos «primados»: o pri-
mado da cultura egípcia, enquanto pertencente à África Negra,
sobre as culturas ocidentais; o primado das culturas africanas que
detêm o mérito de terem chegado à ideia do monoteísmo mesmo
antes dos Gregos e Romanos; o primado da filosofia e teologia da li-
bertação africana sobre a latino-americana; e, por fim, como vere-
mos neste estudo, podem reivindicar o primado do personalismo
africano sobre o ocidental. Da análise crítica dos filósofos africanos,
teremos ainda ocasião de notar que o modelo africano de pessoa re-
vela uma força e uma verdade inesperadas.
A dissertação divide-se em três partes.
Na primeira parte reconstruímos a história das ideias, percor-
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rendo os estudos dos autores africanos que, segundo nos parece, re-
flectiram de modo significativo a respeito do nosso tema.
A nossa pesquisa limita-se à produção filosófica africana dos últi-
mos decénios, da metade do século passado aos nossos dias e, par-
ticularmente, a alguns filósofos eleitos entre os milhares que com-
põem o panorama intelectual africano. Os autores tratados não são
apresentados em pormenor, não se apresenta integralmente o seu
pensamento filosófico, mas foram seleccionadas as obras que, de
modo directo ou não, trataram do nosso tema. A escolha destes
autores é determinada por uma opção pessoal – são os autores que
pessoalmente considerei mais significativos, sem nenhuma preten-
são de ser exaustivo – e pela orientação de professores e colegas es-
pecialistas em filosofia africana. Torna-se supérfluo sublinhar que
não se trata da reconstrução da história da filosofia africana tout-
court, cuja bibliografia seria infindável, mas de uma pesquisa sobre
a ideia de pessoa na filosofia africana contemporânea, circunscrita,
conforme dito, aos autores que considerei mais significativos.
O título desta secção, «Da etnofilosofia às Teologias», delineia o
percurso da reflexão filosófica africana que, passando da fase inicial
da etnofilosofia, desemboca nas filosofias e teologias: a maior parte
dos filósofos africanos analisados são igualmente teólogos e tal
facto nos permitiu uma abordagem integral da ideia de pessoa. A
perspicácia e erudição de muitos dos autores em questão não
deixarão, por certo, de surpreender os leitores pouco familiarizados
com a filosofia africana. Pessoalmente, admiro o efeito «fulgurante»
das análises e da subtil ironia do filósofo camaronês Fabien Eboussi
Boulaga.
A segunda parte resulta de um estudo de campo segundo a linha
hermenêutica da Sage Philosophy. Antes de mais estudei e conversei,
por via do método da Palabre, o qual discutirei mais adiante, com
três «sábios» influentes, um por cada etnia presente no território.
Depois, com a ajuda dos estudantes do meu curso de Filosofia da
Educação, entrevistamos cerca de duzentos «sábios» das três etnias,
a respeito das ideias de Pessoa, Deus, Comunidade e Educação. As
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INTRODUÇÃO | 9

reflexões destes «sábios» confirmaram as principais ideias da


primeira parte da nossa dissertação.
Por fim, na terceira parte, expus sinteticamente uma reflexão sis-
temática em torno dos resultados obtidos, de modo a concluir a
pesquisa propondo um modelo teórico deduzido do trabalho até
então desenvolvido. A questão metodológica é fundamental para o
processo de elaboração de tal modelo que, conforme ficou dito
acima, denominamos por via de um neologismo: «Muntuísmo».
Como conciliar a pretensão de universalidade da teoria acerca da
pessoa na filosofia africana e o carácter prático desta ideia, anco-
rada, na sua concretização histórica, à tradição? É este, pois, o nó
teórico que tentarei desfazer, com recurso à reflexão sobre a estru-
tura originária da verdade, à qual o modelo africano busca confor-
mar-se.
Estou plenamente consciente do carácter pioneiro da pesquisa,
pois, conforme disse, a bibliografia não propõe estudos acerca do
personalismo africano e, por conseguinte, sou igualmente ciente de
todos os limites da minha pesquisa, que se propõe apenas como
contribuição para suscitar o interesse em torno deste tema e estimu-
lar ulteriores estudos.
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CAPÍTULO I

História das ideias

Pessoa («Muntu») : da etnofilosofia às teologias

PLACIDE TEMPELS: Pessoa como Força Vital

Um ponto de partida importante para a filosofia africana con-


temporânea é, singularmente, um texto escrito por um autor não
africano 1. Trata-se de uma obra cuja importância é, provavelmente,
mais histórica do que filosófica, sob o título Filosofia Bantu 2, publi-
cada em 1945 por um missionário franciscano de origem belga,
Placide Tempels, que por muitos anos trabalhou numa missão do
Congo belga, em Dilolo, Katanga. Propomo-nos ir além do debate
que se seguiu à sua publicação 3, porque, não obstante os limites

1 A expressão «filosofia africana contemporânea» indica a filosofia produzida em África

nos últimos decénios, descartando, por ora, qualquer referimento às filosofias da diás-
pora negra e, em particular, à filosofia afro-americana. Cf. os estudos de L. PROCESI,
«Africa: filosofia africana e diaspora nera e Africa: etnofilosofia», in Enciclopedia Filo-
sofica, 1, A-AUT, Milão, Bompiani, 2006, pp. 120-141 e pp. 141-163; ainda sob a respon-
sabilidade de L. Procesi, a edição italiana do clássico da filosofia africana Fabien Eboussi
Boulaga, Autenticità africana e filosofia: la crisi del Muntu. Intelligenza, responsabilità, libe-
razione, Milão, Christian Marinotti Editore, 2007, com introdução e apêndice explica-
tivos; ou ainda a introdução ao n. 6 da Revista de Filosofia Babelonline/print, anno 2009,
dedicado à filosofia africana, sob sua responsabilidade.
2 Publicada em francês em 1945: Philosophie bantoue, Elizabethville, Lovania. Quanto

a nós, fazemos referência à edição italiana: Filosofia bantu, Milão, Medusa, 2005.
3 A sua posição foi criticada por muitos filósofos africanos que o acusaram de pre-

tender ensinar aos Bantu a serem Bantu. Todavia, não pretendemos descer a fundo
nessa disputa, pelo menos por ora, posto que o nosso objectivo è reconstruir a ideia de
pessoa na filosofia africana. Cf. F. EBOUSSI BOULAGA, «La bantoue problématique», in
Présence Africaine, 66, 1968, pp. 5-40; republicada in Philosophie africaine. Textes Choisis et
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12 | MUNTUÍSMO

intrínsecos, é uma obra relevante, mesmo pelo mero facto de marcar


o início da reflexão filosófica africana contemporânea. De facto,
Tempels foi o primeiro a afirmar que a religiosidade dos Bantu – de-
nominação que se atribui aos negros da África subsaariana – ex-
prime um pensamento metafísico e não mágico, afirmando que a
sua cultura representa um sistema filosófico autêntico 4.
O estudo desta obra é de capital importância para a nossa pes-
quisa, pois da análise do texto deduz-se uma ideia clara de Pessoa,
designada pelo termo Muntu 5. A peculiaridade da natureza do
muntu emerge, sobretudo, quando este atravessa momentos de par-
ticular dificuldade: mesmo se «civilizado» e cristão, retorna sempre
às suas origens tradicionais. Isto deve-se ao facto de os antepassa-
dos terem deixado soluções práticas aos grandes problemas huma-
nos como a vida, a morte, a salvação e a destruição: «Presso i Bantu,
e verosimilmente presso tutti i popoli primitivi, la sofferenza e la morte
sono i grandi apostoli della fedeltà alla concezione “magica” e del ricorso
alle pratiche “magiche” tradizionali» 6.

bibliographie sélective, ed. de A. J. Smet, I-II, Kinshasa 1975, vol. II, pp. 348-380; P. HOUN-
TONDJI, «L’Effet Tempels», in Encyclopédie Universelle Philosophique, Publié sous la direction
d’André Jacob, t. 1, L’Univers philosophique, Paris, Presses Universitaires de France, 1989,
pp. 1472-1480.
4 Cf. LEGHISSA, G. e TATIANA, S., L’etnofilosofia del padre Tempels e la filosofia africana con-

temporanea, Introdução ao texto de Placide Tempels, Filosofia bantu, o.c., p. 10. Estes
autores se mostram muito «complacentes» na sua avaliação a respeito da obra de
Tempels e do seu desejo de «dar voz ao outro». Retomaremos este aspecto da filosofia
tempelsiana na parte argumentativa do texto confrontando-o com a filosofia (ou re-
tórica?) do outro de Emanuel Lévinas. Leghissa e Tatiana sublinham, curiosamente, a
ideia emergente do texto acerca da natureza comum (naturaliter cristiana) entre o cris-
tianismo e o pensamento africano. John Mbiti, como analisaremos mais adiante,
retomará o tema da natureza ontologicamente espiritual do homem africano.
5 «Parece impróprio traduzir esta acepção da palavra muntu pelo termo “Homem”.

O muntu vive num corpo certamente visível, mas tal corpo “não é” o muntu em si. Um
indígena explicava a um coirmão: o muntu é aproximativamente aquilo a que vós de-
signais em francês com a palavra “pessoa” e não aquilo que designais com a palavra
“Homem”» (Filosofia bantu, o.c., p. 62). Nas línguas bantu, muntu é o singular de bantu,
termo que significa genericamente «Homens». A questão é tratada profundamente pelo
filósofo, metafísico e linguista ruandês Alexis Kagame (v. Infra).
6 «Entre os Bantu, e verosimilmente em todos os povos primitivos, o sofrimento e a

morte são os grandes apóstolos da fidelidade à concepção mágica e da recorrência às


práticas mágicas tradicionais» [T. do A.], Ibidem, p. 35.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 13

Cada comportamento humano, ainda segundo Tempels, é alicer-


çado em princípios e conceitos. Tal acontece também na cultura
Bantu, que tem um sistema ontológico coerente. Uma ontologia que
existe apesar dos Bantu não terem plena consciência ou não conse-
guirem expô-la. Por esta razão Tempels assumiu o papel (na ver-
dade, uma incumbência que caberia aos impérios coloniais) de
ajudar os Bantu a sistematizar a sua ontologia.
O objectivo é, então, conhecer os Bantu e orientá-los sem apagar
as suas raízes, porque «è soltanto parlando dei veri, buoni e solidi cos-
tumi indigeni che noi possiamo condurre i Bantu verso l’unica e vera civi-
lizzazione bantu» 7. Tempels questiona-se acerca dos motivos pelos
quais os negros «pagãos» parecem muito mais equilibrados do que
os negros «civilizados» ou «cristianizados» e responde sublinhando
que os primeiros vivem a sua ontologia e teodiceia segundo os fun-
damentos tradicionais que resolvem todos os problemas da vida.
Abandonar a sua «filosofia» seria um suicídio. Com efeito, ninguém
conseguiu convencê-los a fazê-lo. À pergunta «quanti civilizzati, o
neri veramente evoluti, potremmo contare tra i Bantu?» 8, Tempels res-
ponde que, salvo as legiões dos desenraizados e degenerados, a
maioria permanece muntu, não obstante as tentativas de se dissi-
mularem imitando os brancos. A culpa de tudo isto é «nossa», «nós
os brancos» missionários, administradores, etc., que nunca entra-
mos profundamente na alma dos negros. Quando ridicularizamos
os seus costumes, nós (brancos) matamos o «Homem» que está nos
Bantu. Aquilo que nós consideramos incompreensível, para os
Bantu não o é, porque se trata de algo deduzido directamente da sua
ontologia. Neste ponto, Tempels recorre a um exemplo infeliz, afir-
mando ser inútil convencê-los de que a morte de determinada pessoa
seja causada por determinada doença, porque eles têm, à partida, a

7 «É somente falando dos verdadeiros, bons e sólidos costumes indígenas que nós

podemos conduzir os Bantu rumo à única e verdadeira civilização dos bantu» [T. do A.],
Ibidem, p. 40.
8 «Quantos civilizados, ou negros verdadeiramente evoluídos poderemos contar

entre os Bantu?» [T. do A.], Ibidem, p. 41.


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14 | MUNTUÍSMO

sua própria explicação. É um exemplo infeliz porque nega aos Bantu


a possibilidade de acesso a explicações diversas e racionais a respeito
de quanto acontece em suas vidas. Não acontecia o mesmo com os
nossos progenitores europeus que, perante determinadas desgraças,
recorriam a explicações populares nem sempre racionais? 9
Tempels continua interrogando-se se estes princípios basilares
dos Bantu pertencem ao domínio da filosofia, segundo a acepção
europeia. O conceito primeiro, intelectual, do ser, da existência e
daquilo que existe verdadeiramente, não é ontologia ou ciências do
ser? Podemos falar de uma filosofia bantu? A estas perguntas
Tempels responde afirmando que os bantu não são primitivos puros
porque, praticam, por exemplo, um culto evoluído a um Ser supre-
mo, e conclui laconicamente que não são os negros, mas os brancos,
os que devem aprender a pensar um pouco mais filosoficamente, e
que «senza penetrazione filosofica, l’etnologia non è che folklore» 10. Passa
deste modo a expor a filosofia dos Bantu que, segundo lhe parece, é
comum a todos os povos primitivos e clânicos. No estudo da filoso-
fia bantu, Tempels alerta que, para desenvolver o seu discurso, deve
necessariamente recorrer à terminologia filosófica ocidental. Será
este o «drama» vivido por vários filósofos africanos que, para fala-
rem de si e da sua cultura, devem recorrer a uma «língua» estran-
geira 11. Tempels reconhece igualmente o limite do seu estudo que
«non pretende d’altra parte di essere più di un’ipotesi, un primo tentativo
di sviluppo sistematico di una filosofia bantu» 12. A respeito do método,

9 Jean-Marc Ela, grande teólogo e sociólogo camaronês, denuncia este tipo de


sobrevalorização da medicina tradicional, como um artifício ideológico para poupar nos
investimentos massivos que o sistema sanitário africano requer. Cf. J.-M. ELA, Repenser la
théologie africaine. Le Dieu qui libère, Paris, 2003, p. 139.
10 «Sem penetração filosófica, a etnologia é só folclore» [T. do A.], Ibidem, p. 47.

11 Acerca desta questão crucial, cf. os escritos do filósofo ganês Kwasi Wiredu, um dos

expoentes máximos da filosofia africana contemporânea, e em particular: K. WIREDU, «La


necessità di una decolonizzazione concettuale nella filosofia africana», in B@belonline/
/print. Voci e percorsi della differenza, tr. it. de L. Procesi, 6, 2009, pp. 97-105.
12 «Não tem nenhuma pretensão senão ser somente uma hipótese, uma primeira ten-

tativa de desenvolvimento sistemático de uma filosofia bantu» [T. do A.], Ibidem, p. 51.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 15

questiona-se como fundar a objectividade da exposição da filosofia


bantu. O método de eleição é o confronto entre linguagens, com-
portamentos, instituições e usos bantu, para analisá-los, isolar as
ideais fundamentais e construir um sistema de pensamento bantu.
À partida, Tempels apresenta a sua hipótese completa, que de
seguida tenta provar por via dos factos relevantes. Ciente dos seus
limites, convida outros estudiosos a prosseguir os estudos e requer
apresentar as próprias teses sem ser interrompido, convidando os
vários estudiosos a comportar-se como os negros, que numa
disputa nunca interrompem quem faz o uso da palavra.
Tempels define a tese central, que será o fio vermelho de todo o
seu estudo, segundo o qual a concepção da vida dos Bantu é alicer-
çada num único valor: a vida, o vigor da vida. É este o valor supre-
mo. Todos os cultos e as magias dos Bantu prestam-se à afirmação
da vida. As curas medicinais prestam-se a recuperar a força. Deus é
o vigoroso. Todos os seres possuem uma força vital que lhes é dada
por Deus. A felicidade suprema consiste em ser vigoroso, e a pior
desgraça consiste na perda do vigor. Segundo Tempels, os negros
não se convertem e não se abandonam às práticas mágicas, porque
tal significaria o distanciamento da força natural que dá vigor à
vida.
Uma noção fundamental do conceito de ser é o conceito de
«força vital». O conceito de ser da metafísica ocidental é estático e
não inclui a noção de força, que é vista como um acidente do ser. O
pensamento primitivo, por seu turno, acentua um aspecto dinâmico
do ser. O que é o ser para os Bantu? É aquilo que possui força, ou
melhor, o ser é força. A força não é um atributo que advém de fora,
um acidente. Para os ocidentais o ser é «aquilo que é», para os
Bantu, é «a força que é». No ponto em que os primeiros evocam o
conceito de «ser», os segundos servem-se do de «força» 13.
Para os Bantu existem muitas forças, diferentes umas das outras,

13 Cf. Ibidem, p. 60. Para uma crítica mais aprofundada acerca desta identificação

entre ser e força, cf. F. EBOUSSI BOULAGA, Le bantu problématique, cit., p. 355.
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16 | MUNTUÍSMO

visíveis (materiais) e invisíveis (natureza intrínseca do ser). O


Muntu é excelência do ser. Deus é o grande Muntu. As coisas são
forças inferiores. A força (o ser) pode crescer ou diminuir 14. As
forças podem interagir entre elas. Esta interacção entre forças é de-
nominada magia. Deus concede tais forças ao Homem através da
natureza. Existe uma hierarquia de forças: Deus que cria; o Homem
(antepassados dos diversos clãs, defuntos); terra (homens, animais,
plantas). Dentro de cada classe de forças existe uma hierarquia ulte-
rior. Todas as forças estão relacionadas com os vivos que são o
centro de toda a humanidade, incluindo os defuntos. Existem igual-
mente leis que regulam tais forças: um ser inferior não pode in-
fluenciar um ser superior 15.
Na prossecução do nosso intento de reconstruir a ideia de pessoa
na filosofia bantu encontramos elementos importantes naquela que
Tempels define como «a sageza e a doutrina do conhecimento» dos
Bantu. A sageza é «la visione più profonda nella natura degli esseri e delle
forze. La vera saggezza é la conoscenza ontologica» 16. Deus é o sapiente
por excelência porque conhece todas as coisas, possui a força e é o
criador de todas as forças. Depois se seguem os antepassados;
os primogénitos; os anciões. Os jovens são insipientes e, sem os
anciões, estariam perdidos. Não obstante eles poderem aprender
muitas coisas, esta não é sageza, não é compreensão da natureza
do ser.

14 Neste ponto, Tempels descortina um nexo com o que a teologia católica afirma a

respeito da «graça».
15 Tempels nota que os Bantu protestavam quando os administradores coloniais no-

meavam chefes não aceites por eles, visto serem (esses chefes) considerados inferiores
na escala hierárquica, não tendo, por conseguinte, autoridade sobre eles. Outra obser-
vação interessante é que os Bantu encaravam os brancos partindo da própria ontologia,
e os concebiam como seres dotados de uma grande força vital da qual eles também que-
riam tomar parte.
Uma crítica áspera a Tempels acerca desta ideia de hierarquia dos seres, que colo-
cava os brancos no topo da pirâmide, é formulada por Aimé Césaire, no seu famoso dis-
curso acerca do colonialismo: A. CÉSAIRE, Discours sur le colonialisme, Paris, 1955, tr. it. de
N. NGANA YOGO, Discorso sul colonialismo, Roma, 1999, p. 48.
16 «A visão mais profunda na natureza dos seres e das forças. A verdadeira sageza é

o conhecimento ontológico» [T. do A.], in P. TEMPELS, Filosofia bantu, p. 73.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página17

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 17

A doutrina dos seres é universalmente conhecida entre os Bantu:


cada um deles conhece a sua filosofia das forças. Esta filosofia é uni-
versalmente aceite por todos e nunca posta em discussão. É uma
filosofia que se funda na evidência externa e interna 17. Os antepas-
sados sempre possuíram esta força e estiveram à altura de conser-
var a comunidade bantu até aos dias de hoje. Ademais, esta filosofia
responde a todas as questões da vida e, para os Bantu, «questa é una
prova in più del fondamento realistico della loro filosofia» 18. Quando não
se encontra a solução, a força vital se empobreceu ou se dissolveu.
Tempels sustenta que a diferença existente na filosofia ocidental
entre as ideias fundamentais/transcendentais e o conhecimento
concreto dos seres naturais existe também na filosofia bantu. Em-
bora os princípios da filosofia bantu sejam comuns para todos os
Bantu, a sua aplicação difere de tribo para tribo. A filosofia bantu
tem princípios ontológicos imutáveis. Mesmo quando se predis-
põem a agir concretamente, os Bantu seguem a sua filosofia das
forças. Tudo quanto realizam e obtêm sucede graças às forças vitais:
«la conoscenza dei Bantu non é bifida. Non c’é presso di loro un campo ri-
servato alla filosofia delle forze a lato di un campo in cui giocano le
conoscenze critiche» 19. O que se denomina magia é o conhecimento
das forças. Um sistema filosófico pode ser «crítico» mesmo se pro-
vado falso. Se assim não fosse, existiria uma só filosofia, e as demais
não poderiam ser denominadas do mesmo modo.
Tempels passa em revista as ideias filosóficas dos Bantu a respei-
to do Homem, apresentando a psicologia e ressaltando que se trata
da «che esiste nello spirito bantu e non quella che risulterebbe dall’osser-

17 Parece que a fundação desta teoria dá-se com recurso ao método fenomenológico

hermenêutico, no qual os factos apresentados sustentam as hipóteses, e a negação


destas conclusões conduziria a uma reacção de contrariedade. Dito em outros termos: é
evidente que seja assim, e não diversamente.
18 «Esta é uma prova a mais do fundamento realista da sua filosofia» [T. do A.],

Ibidem, p. 76.
19 «O conhecimento dos Bantu não é bífido. Não há neles um campo reservado

à filosofia das forças, ao lado de um campo onde actuam os conhecimentos críticos»


[T. do A.], Ibidem, p. 86.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página18

18 | MUNTUÍSMO

vazione dei Bantu per opera degli europei» 20. A psicologia bantu é
derivada da filosofia bantu. Não se deve, por isso, procurar vocábu-
los correspondentes aos nossos, pois hipotizar-se-ia que os Bantu
dividem o homem tal como nós, em corpo e alma. Deve-se partir da
condição de tábua rasa para que se esteja à altura de colher a sua
diversa concepção de homem. Em atenção a este facto, Tempels
destaca a importância do termo muntu, como possível conceito
equivalente àquele de pessoa na filosofia europeia. Usando de uma
notável imparcialidade, argumenta que tal como os ocidentais não
podem dizer muito a respeito da alma, do espírito, etc., não se pode
exigir aos Bantu uma explicação detalhada acerca do Muntu. Tal
como a filosofia ocidental é aproximativa a respeito de muitas ques-
tões complexas, por exemplo sobre o que é o ser, a filosofia bantu
também o é.
Muntu é força viva, força pessoal, superior à de todos os seres
animados. O Homem enquanto Muntu é a mais vigorosa entre as
forças criadas e regula as demais forças viventes. Esta variação não
diz respeito à sua natureza, mas, principalmente, à sua relação com
os outros bantu e com os outros seres vivos. A força vital do Muntu
pode aumentar ou diminuir ao ponto de desaparecer. Um exemplo
nos é dado por aqueles antepassados mortos há tanto tempo, a
ponto de não terem força alguma, à altura de os fazer entrar em re-
lação com os vivos. Após analisar o ser humano em geral, Tempels
procede à análise de como os Bantu concebem o homem concreto, o
indivíduo determinado. Todo o indivíduo é sempre uma incógnita
para o outro, até mesmo para o amigo mais íntimo. Só os adivinhos
podem explorar o seu segredo íntimo.
Um indivíduo pode ser conhecido pelo nome, o qual exprime a
natureza do seu ser 21. No indivíduo que nasce, «renasce» um dos
antepassados.

20 «Que existe no espírito bantu e não aquela que resultaria da observação dos Bantu

feita pelos europeus» [T. do A.], Ibidem, p. 91.


21 O nome indígena designa propriamente «aquele que ele é», e não «como é cha-

mado». Podem coexistir muitos nomes: o nome vital (o qual é imutável); o nome atri-
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 19

A análise da ética bantu joga um papel importante na identifica-


ção da ideia de pessoa emergente da filosofia bantu: para que exista
a pessoa, deve ocorrer a intencionalidade da acção. Como todos os
«primitivos (ou semiprimitivos)», para a elaboração dos princípios
e normas do bem e do mal, os Bantu recorrem à sua ontologia,
filosofia e teodiceia. Há quem afirme que os Bantu não dispõem de
tais noções, pois para eles o furto não é um mal, bastando que não
sejam descobertos; as mentiras e enganos são sinais de fineza do
espírito; o adultério não é imoral, pelo que, se alguém é encon-
trando em flagrante, basta que pague uma «indemnização».
Tempels não concorda com esta análise porque todos os males
elencados acima são condenados pelos Bantu. Eles condenam a
poligamia, o matrimónio entre adolescentes, os abusos sexuais:
«tutto sommato conoscono e riconoscono la Legge naturale, formulata nel
Decalogo» 22. Tempels conclui que indubitavelmente os Bantu têm
noção do bem e do mal; por exemplo, os facto de os anciões se la-
mentarem da perda dos bons e velhos princípios revela que têm
noção do bem.
A moral objectiva para os negros é uma moral ontológica, ima-
nente e intrínseca: «la morale bantu dipende dalla natura degli esseri, é
fondata sull’ontologia» 23. Reconhecem uma ordem natural: os actos
que respeitam tal ordem são bons, aqueles que a negam são maus.
Tudo quanto «offuschi o diminuisca la forza vitale o la gerarchia vitale del
Muntu è cattivo» 24. O direito e a política são bons ou maus na medi-
da em que são a favor ou contra a ordem e a moral ontológica. Ana-
lisadas as normas objectivas, Tempels analisa o comportamento
moral do Muntu como indivíduo. Para os Bantu existem homens

buído ou adoptado (por exemplo, devido aos encargos assumidos); o nome que cada
um se atribui (que pode ser mudado).
22 «Em suma, conhecem e reconhecem a Lei natural formulada no Decálogo» [T. do

A.], Ibidem, p. 107.


23 «A moral bantu depende da natureza dos seres, é fundada sobre a ontologia»

[T. do A.], Ibidem, p. 109.


24 «Obscurece ou diminui a força vital ou a hierarquia vital do Muntu é mau» [T. do

A.], Ibidem.
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20 | MUNTUÍSMO

perversos, com uma malícia total, absoluta, sem atenuantes. Neste


caso, afirma-se que o mal se tenha apossado destes indivíduos. Os
homens perversos podem influenciar outros em modo nefasto.
Existem também homens que fazem o mal porque instigados ou
provocados: trata-se de homens que cometem erros, e não de ho-
mens perversos. Neste caso não se afirma que o mal se tenha apos-
sado deles. A cólera que se experimenta deve ser passageira, pois,
se persiste, significa que o mal se apossou de tal pessoa, a qual já
não merece perdão.
Tempels sustenta que existem erros inconscientes: há quem seja
condenado por ter provocado a morte ou doença de outrem, mesmo
que não tenha consciência, e, todavia, aceite resignadamente a pena
que lhe cabe. Tempels sublinha prontamente que tal resignação é
inexplicável para os europeus.
Em conclusão, os Bantu têm uma clara consciência moral, conhe-
cem os seus deveres para com o clã e para com os estrangeiros. Tais
deveres mudam segundo o papel que cada indivíduo exerce na
comunidade.
Defronte ao mal, os Bantu dirigem-se a Deus para que inter-
venha com um acto de reparação final. Os anciões mantêm a ordem
usando a arma do anátema ou o retiro da influência vital prove-
niente da paternidade. Não obstante o mal, a força vital tem meios
para restaurar a vida e o direito.
Em que consiste o mal? Consiste num atentado contra a força
vital. O mal ocorre quando um membro menor da família toma uma
decisão autónoma ou quando recorre à justiça dos estrangeiros.
Todo o atentado à vida humana é um mal infinito que não pode ser
reparado por via da simples lei do direito aos bens.
Quando um bantu recebe alguma ajuda, afirma ter sido salvo e
liberto. Ser salvo implica, então, restituir dez vezes mais 25. Se paga

25 Tempels escreve que, interrogando um ancião a este respeito e deplorando este

costume como exploração e usura, ouviu o interlocutor replicar-lhe: «Não o terá por
acaso salvo?» Cita um exemplo de alguém que tinha sob sua custódia uma cabra de
um vizinho e, pelo facto de a cabra se ter tresmalhado, viu-se obrigado a restituir ao
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 21

o mal infligido, e não tanto o dano económico. Quem determina o


valor da indemnização não é o juiz, mas o lesado. O juiz pode
apenas confirmar quanto, determinado pelo lesado.
Os erros contra as forças superiores (Deus, antepassados, proge-
nitores) são desordens ontológicas, um atentado à hierarquia da
vida.
Os antepassados nunca prejudicam a sua descendência, mas
os progenitores e chefes dos clãs podem colocar em perigo a força
do clã.
Entre Deus e os humanos não existe nenhum contrato (aliança),
porque, diante de Deus, o Homem apresenta-se como uma criança,
sem título para estabelecer um contrato com o pai. A reparação dá-
-se por via do reconhecimento (ofertas, sacrifícios, cultos, etc.) da
superioridade dos antepassados.
Um ser «superior» (por exemplo o pai) pode prejudicar um «in-
ferior» (por exemplo o filho) diminuindo-lhe a força vital, e expon-
do-o, deste modo, a influências nefastas. Para restaurar esta ordem
faz-se necessária a revogação da maldição (depois da confissão do
erro por parte do ser «inferior») por via da bênção.
Não se pode desprezar os antepassados. Os defuntos «ordiná-
rios» são esquecidos. Existem defuntos «maus», aqueles que aten-
taram contra a vida do clã. Um defunto mau é objecto de particular
esconjuro, para que a sua força seja neutralizada para sempre e não
possa criar danos. Deste modo, a ordem e a vida são restauradas.
Existem ainda outros defuntos que celebram «contratos» com os
vivos: a observância de tal contrato é rompida quando um dos con-
traentes não o respeita.
As perturbações ontológicas ou vitais que provocam dano à vida
podem ser reparadas com a eliminação da malícia intrínseca por via
de qualquer meio (morte, cremação do corpo, etc.).
Existem influências negativas inconscientes, enquanto os Bantu

proprietário três cabras e cem francos, em reparação da dor provocada a este. Cf. Ibidem,
pp. 128-129.
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22 | MUNTUÍSMO

podem perturbar a ordem ontológica sem tomar conhecimento de


tal facto. O erro deve ser reparado através de uma série de ritos e
abluções, caso contrário geraria uma desgraça.
Na conclusão do seu estudo, Tempels sustenta que, se esta filoso-
fia se confirmasse, seria necessário que os brancos revissem todas as
suas posições em relação aos negros, sempre considerados selva-
gens e animalescos. Os negros são homens que se erguem sobre os
«ingénuos» europeus, porque os primeiros possuíam já uma con-
cepção mais pura e elevada de um Deus único, antes dos segundos.
Os educadores brancos consideravam ingénuos os costumes dos
negros, julgando-os infantis, sem no entanto perceberem que se
encontravam diante de uma humanidade adulta.
Os negros devem construir a sua civilização com base na sua sa-
geza, que contém necessariamente um núcleo de verdade. Por isso
não se deve minar os seus fundamentos, deve-se antes amá-los
como são e valorizar tudo quanto seja digno de valor. Vincando,
com fervor, que civilização não significa bem-estar económico, mas
a posse de uma concepção inteligente do mundo e da vida, de um
sentido 26, Tempels ressalta que o civilizador branco não pode privar
as raças primitivas das suas verdades, pois tal representaria um
ataque à sua humanidade. Pelo contrário, é necessário aprofundar a
sua filosofia para que não se eduquem «evoluídos» desenraizados.
Perguntando-se ainda se se pode implantar a civilização dos
Bantu sobre a sua sageza, Tempels responde prudentemente que
nem todos os ritos e costumes são autênticos; por exemplo, alguns
remédios, com o passar do tempo, não são mais puros remédios na-
turais (ervas médicas), transformando-se em poções mágicas artifi-
ciais. Os próprios Bantu, observa Tempels, reconhecem que muitas
vezes se comentem abusos.
Existem algumas questões a respeito do insucesso da evange-
lização dos Bantu em muitos territórios: depende de qualquer coisa

26 «De que valeria uma civilização sem sageza, concepções profundas e entusiasmo
pela vida? Como se pode pretender imaginar uma civilização sem filosofia, ideais e as-
pirações superiores?» [T. do A.], Ibidem, p. 147.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 23

inerente ao Cristianismo? Terá alguma relação com o método de


evangelização? Ou será que os Bantu não são «civilizáveis»? 27
Para Tempels não existe nenhuma incompatibilidade entre o
Cristianismo e as aspirações dos Bantu. Antes pelo contrário, coin-
cidem perfeitamente. A doutrina cristã da graça, por exemplo, é um
reforço da vida, e esta é uma surpreendente analogia com a ontolo-
gia dos Bantu. Tempels conclui que «il cristianesimo, specialmente
nella sua forma più alta, più spiritualizzata, costituisce la sola realizza-
zione possibile dell’ideale bantu. Ma é indispensabile esporre la perenne
dottrina nei termini della dottrina bantu e far sembrare la vita cristiana che
noi proponiamo a loro come rinforzo vitale ed elevazione vitale. La civiliz-
zazione bantu sarà cristiana o non sarà. L’europeizzazione superficiale
delle masse non può che uccidere il bantuismo. Ma come il cristianesimo
che ha potuto informare di sé la civiltà occidentale, contiene, nella verità
della sua dottrina e nel dinamismo umano che sa suscitare, le risorse per
sublimare e nobilitare la civiltà bantu» 28.
E, por fim, a força vital dos Bantu é algo meramente terreno? Se-

27 Segundo Tempels, esta última hipótese é inaceitável: quem pensa deste modo

convém que retorne à Europa.


28 «O Cristianismo, especialmente na sua forma mais alta, mais espiritualizada,

constitui a única possível realização do ideal bantu. Mas é indispensável expor a perene
doutrina nos termos da doutrina bantu e apresentar a vida cristã que lhes propomos
como reforço vital e elevação vital. A civilização bantu será cristã ou não será uma civi-
lização. A europeização superficial das massas só pode matar o bantuísmo. Mas, como
o Cristianismo, que soube enformar a civilização ocidental, contém, na verdade da sua
doutrina e no dinamismo humano que sabe suscitar, os recursos para sublimar e nobi-
litar a civilização bantu» [T. do A.], Ibidem, p. 156. Esta posição, como emerge da nota do
tradutor (para a edição italiana), ressalta não tanto uma posição apologética, mas de
uma oposição à ideia segundo a qual, para cristianizar, seria necessário antes europei-
zar. Somos de opinião que a conclusão de Tempels trilha os passos da doutrina dos pri-
meiros Padres da Igreja (S. Justino, S. Clemente de Alexandria, entre outros) que de-
fendiam a ideia do λóγος σπερματικóς (sementes do verbo), fundamentada no prólogo de
São João 1,1-3: εν αρχη ην ο λογοσ και ο λογοσ ην προσ τον θεον και θεοσ ην ο λογοσ, ουτοσ
ην εν αρχη προσ τον θεον, παντα δι αυτου εγενετο και χωρισ αυτου εγενετο ουδε εν γεγονεν. (No
princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com
Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez).
O ataque à identificação do Cristianismo como religião imposta pelos colonos euro-
peus, para a materialização do próprio domínio, é central em toda a filosofia e, sobre-
tudo, teologia africana, cf. em particular: J.-M. ELA, Le cri de l’homme africain. Questions
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página24

24 | MUNTUÍSMO

gundo Tempels, os Bantu aspiram a um «reforço vital infinito»: até


os Bantu conhecem uma «nostalgia infinita», uma melancolia, uma
insatisfação do coração 29.
Tempels termina o seu texto apresentando uma defesa à filosofia
bantu. Diante da questão se «a “filosofia bantu”» reflecte fielmente
o pensamento dos Bantu, responde assertivamente apresentando
quatro provas. À partida esta hipótese é fiel porque é baseada em
factos. Partiu de uma hipótese (na verdade uma conclusão que
emerge da observação dos factos) para em seguida apresentar os
factos como prova da teoria. Em segundo lugar, a teoria das forças
vitais é aplicável aos factos 30, ou melhor, ainda, as características
desta teoria são encontradas não só em todas as tribos dos Bantu,
mas de todos os primitivos 31. Em terceiro lugar, muitos outros etnó-
logos europeus, partindo de tribos e lugares diferentes, chegaram às
mesmas conclusões, mesmo sem terem estabelecido nenhuma
comunicação entre eles. Por fim, os mesmos Bantu reconhecem-se
na ontologia das forças vitais.
Nas exortações finais, Tempels sugere como reformular a evan-
gelização partindo da sua teoria 32, respondendo às várias objecções
movidas contra a obra. Entre tantas, considera particularmente
digna de atenção apenas a questão de se os Bantu, para além da
ideia de força vital (que para os europeus é considerada acidente)
não possuem uma ideia de ser, objecção à qual replicou afirmando

aux chrétiens et aux églises d’Afrique, Paris, 1980, tr. it. de S. NUZZO, Il grido dell’uomo afri-
cano. Domande ai cristiani e alle chiese dell’Africa, Turim, 2001.
29 Parecem-nos muito expressivas as palavras dos Baluba reportadas por Temples:

«Se pode ter riqueza, prosperidade, uma prole numerosa e, todavia, em certos dias, é-se
dominado pela melancolia (kulanga)», e encontra-se kubobo pa lubanga, a cabeça apoiada
sobre a mão, sem mesmo saber porquê, se não pelo facto de que o coração não se encon-
tra mais satisfeito». Ibidem, p. 157.
30 A hipótese vem sintetizada deste modo: a) a natureza do ser é considerada força;

b) o ser pode crescer ou diminuir; c) um ser pode influenciar outro ser, fortificá-lo ou di-
minui-lo; d) os seres são ordenados hierarquicamente. Ibidem, p. 164.
31 Tempels recorda, por exemplo, que os índios da América comiam o coração dos

brancos para que se apoderassem da sua força vital. Ibidem, p. 165.


32 Por exemplo, apresentar os dez mandamentos como protecção e fonte de vida; os

sacramentos como garante de vida, etc. Ibidem, p. 174.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página25

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 25

que: «conoscere la forza di un essere o conoscere l’essere é la stessa cosa. I


Bantu non hanno una nozione dell’essere come tale senza la sua forza e,
accanto a ciò, una nozione della forza come qualcosa che sarebbe distinta
dall’essere stesso. Conoscere la forza é conoscere l’essenza dell’essere, la
nozione di forza é, sempre secondo i bantu, la nozione dell’essere» 33.
Neste ponto parece que Tempels identifica a noção de força com a
de ser, anulando, deste modo, a diferença entre as ontologias europeia
e bantu. Se a ontologia é a ciência da verdade sobre o ser, será possível
que existam vários seres e inúmeras verdades diversas ou modos
diversos de conceber as várias facetas da mesma verdade? Sem pre-
tender antecipar conclusões apressadas a respeito da minha pesquisa,
parece-me antever dois modos diversos de conceber o mesmo ser por
parte da filosofia ocidental e bantu, pelo menos na acepção tempel-
siana. A primeira privilegia a ideia imanente do ser enquanto a
segunda privilegia a económica. Parafraseando o Grundaxiom de Karl
Rahner, publicado na monumental obra Mysterium salutis, para o qual
«a Trindade económica é a Trindade imanente e vice-versa» parece
poder dizer que o «ser imanente é o ser económico e vice-versa» 34.
À interpretação da filosofia bantu sob os auspícios de um filósofo
não africano segue-se uma série de reacções, a primeira das quais
do filosofo ruandês Alexis Kagame, «presentata in un’opera di alto li-
vello speculativo, erudita e polemica, La philosophie bantu-rwandese
de l’Être. È un dialogo filosofico in cui il dotto abate ruandese rivendica
con acume e profondità speculativa onori e oneri, diritto e responsabilità di
spiegare le proprie culture nei propri linguaggi alla nuova generazione di
intellettuali africani, nata e formata nell’asservimento europeo» 35.

33 «Conhecer a força de um ser ou conhecer o ser é a mesma coisa. Os Bantu não têm

uma noção do ser como tal sem a sua força e, além disso, uma noção de forças como
algo de diferente do mesmo ser. Conhecer a força é conhecer a essência do ser, a noção
de força é, sempre segundo os Bantu, a noção de ser» [T. do A.], Ibidem, pp. 179-180.
34 O tema do ser (e de Deus) como algo não estático e imutável foi objecto de análise

de muitos filósofos e teólogos. Referimo-nos especialmente à obra de Eberhard Jüngel


(particularmente L’essere di Dio é nel divenire), e ao pensamento fraco de Gianni Vattimo.
35 «Apresentada numa obra de alto nível especulativo, erudita e polémica, La philoso-

phie bantu-rwandese de l’Être (A filosofia bantu-ruandêsa do Ser) é um diálogo filosófico


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página26

26 | MUNTUÍSMO

ALEXIS KAGAME: Ser de Inteligência

O objectivo de Kagame 36 é verificar e corrigir as teorias de


Tempels, denunciando «une méthode gravement deficiente» 37, pois
Tempels «ne connaissait que la tribu des Baluba qu’il évangelisait» 38 e,
deste modo, «ne peut prétendre à la découverte de la philosophie “bantu”
à travers le comportement d’une seule tribu» 39. Em segundo lugar Ka-
game acusa Tempels de ter abordado a cultura luba numa perspec-
tiva mais etnológica do que filosófica, pois «il n’y figure aucune forme
de documentation “bantu”, sur laquelle l’auteur se serait appuyé pour
étayer ses affirmations» 40. De todas as formas, «Tempels conservera à
jamais l’honneur d’avoir le premier donné le signal de départ en ce genre de
recherches, d’avoir été un pionnier dans l’histoire, que nos espérons longue,
de la philosophie bantu» 41.
A bibliografia de Kagame conta com mais de cem publicações,
das quais apenas seis de filosofia (dois livros e quatro artigos),

em que o douto abade ruandês reivindica, com acume e profundidade especulativa


digna de grande respeito, direito e responsabilidade de explicar as próprias culturas nas
próprias línguas à nova geração de intelectuais africanos, nascida e formada na sub-
missão aos europeus» [T. do A.]; Lidia Procesi, Introdução à obra de F. EBOUSSI BOULAGA,
Autenticità africana e filosofia, Milão, Marinotti Edizioni, 2007, p. 6. Cf. ainda LIDIA
PROCESI, «Alexis Kagame: Invito al dialogo filosofico», in G. LEGHISSA (ed.), Filosofie in
Africa, Pádua, Mimesis, 2007, pp. 83-118.
36 «Alexis Kagame is without doubt a giant of contemporary African thought»,

assim o define Liboire KAGABO, «Alexis Kagame (1912-1981): Life and Thought», in K.
WIREDU (ed.), A Companion to African Philosophy, Oxford, Blackwell Publishing Ltd.,
2004, pp. 231-242. Outros estudos importantes acerca de Kagame: V. Y. MUDIMBE,
L’invenzione dell’Africa, Roma, Meltemi, 2007 («Kagame e la scuola etnofilosofica»,
pp. 205-216).
37 «Um método gravemente deficiente» [T. do A.], A. KAGAME, «L’Ethno-philosophie

des “Bantu”», in A. SMET J., Philosophie Africaine. Textes choisis I, Kinshasa, Presses Uni-
versitaires du Zaire, 1975, p. 95.
38 «Não conheceu senão a tribo dos Baluba que ele evangelizou» [T. do A.], (Ibidem).

39 «Não pode reivindicar a descoberta da filosofia “bantu” através do comporta-

mento de uma única tribo» [T. do A.], Ibidem.


40 «Não aparece nenhuma forma de documentação “bantu”, no qual o autor se

apoiou para sustentar as suas pretensões» [T. do A.], Ibidem.


41 «Tempels manterá sempre a honra de ter sido o primeiro a dar o sinal de partida

neste tipo de pesquisa, tendo sido um pioneiro da história, que nós esperamos ser longa,
da filosofia bantu» [T. do A.], Ibidem.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página27

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 27

sendo as demais de história e literatura. Todavia, os seus dois livros


filosóficos são de uma importância capital para a filosofia africana:
La philosophie bantu-rwandaise de l’Être, de 1956, e aquele que o pró-
prio autor considera a continuação do primeiro, La Philosophie bantu
comparée, de 1976. Relevante, tanto quanto nos parece, é também o
artigo «L’Ethno-philosophie des Bantu» 42 que passamos a analisar
conjuntamente com o texto de 1956.
La philosophie bantu-rwandaise de l’Être é a tese de doutoramento
de Alexis Kagame pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Uma
obra monumental, composta como uma Palabre africana entre dois
eruditos, Kama e Gama, os quais conversavam a respeito de varia-
dos temas. Da sua conversação pode-se deduzir a ontologia bantu-
-ruandesa. O intento era demonstrar a possibilidade de fazer filo-
sofia, mesmo perante a carestia de textos, como de resto foi feito em
muitos casos na filosofia europeia. Kagame recorre à análise lin-
guística 43, em particular da língua kinyarwanda. Quanto ao tema que
mais nos interessa, a ideia de pessoa, o autor analisa o termo Muntu,
composto pela raiz -ntu (ser em sentido genérico) e pelo prefixo mu
(inteligência), com o plural ba, definindo assim o Homem (ou pessoa)
como Ser de Inteligência. Aos que acusam as línguas bantu de falta
de capacidade abstractiva, Kagame demonstra que a língua kinya-
rwanda é capaz de abstracção: basta substituir o prefixo mu (que ex-
prime o concreto) pelo prefixo bu (que exprime o abstracto), de
modo que u-mu-ntu significa Homem e u-bu-ntu humanidade 44.
Desta feita, Kagame denuncia que «certains représentants de la culture
européo-américaine ont laissé longtemps courir l’opinion que les Bantu
étaient incapables d’exprimer l’abstrait. Nous sommes à même d’affirmer,
au contraire, que toutes les langues bantu comportent une classe réservée

42 Cit. pp. 93-115.


43 Cf. A. KAGAME, La philosophie bantu-rwandaise de l’Être, Bruxelles, 1959, pp. 22-23.
44 Por agora, queremos deixar de lado a exatidão ou não deste termo, para sublinhar

como, pese embora a imprecisão, este termo teve sucesso na África do Sul pós-apartheid
(movimento do ubuntuísmo).
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28 | MUNTUÍSMO

à rendre les abstraits, à savoir celle du classificatif bu (avec ses variantes


régionales, bo, vu, ou, u, etc.)» 45.
Por fim, que coisa é o Homem? O Homem é o Homem. Os dois
eruditos ironizam a estupidez dos europeus que consideram esta
definição infantil 46.
Kagame retoma e sintetiza a metafísica do primeiro texto de 1956
no artigo sobre a etnofilosofia, no qual apresenta as categorias do
ser na filosofia «bantu». Indica quatro categorias «unificadoras»:
«1. MUntu = l’être d’intelligence (homme). 2. KIntu = l’être sans intelli-
gence (chose). 3. HAntu = l’être-localisateur (lieu-temps). 4. KUntu =
l’être modal (manière d’être de l’Être)» 47.
Come se pode deparar, nestas categorias «nous n’y avons pas re-
levé la présence ni une place pour y classer Dieu» porque «la philosophie
bantu l’a ainsi laissé dehors des catégories de l’être», porquanto «Dieu
n’est pas une essence, un ntu» mas «un Préexistant placé en dehors des
ntu» 48. É então impróprio definir Deus como o Ser supremo porque,
para a filosofia bantu, este não faz parte da categoria dos seres. Os
seus nomes mais apropriados são «Préexistant, Existant Eternel,
Créateur, Tout-puissant, Trés-Grand (ou Grand-Esprit)» 49.
Os únicos seres vivos, na filosofia «bantu», são o animal e o Ho-
mem, os únicos dotados de sentido e movimento espontâneo, que
nascem e morrem. O princípio vital do animal é a «sombra» que, no
momento da morte, desaparece. O Homem, diferentemente, tem

45 «Alguns representantes da cultura europeia-americana deixaram por muito tem-

po correr a opinião de que os Bantu eram incapazes de expressar o abstracto. Nós, ao


contrário, somos capazes de afirmar que todas as línguas bantu têm uma classe dedica-
da a render o abstracto, ou seja, a classe bu (com as suas variantes regionais, bo, vu, ou, u,
etc.» [T. do A.], A. KAGAME, L’Ethno- philosophie…, o.c., p. 97.
46 Cf. ID., La Philosophie bantu…, o.c., p. 118.

47 «1. MUntu = ser de inteligência (homem). 2. KIntu = ser sem inteligência (coisa).

3. HAntu = ser-localizador (lugar-tempo). 4. KUntu = ser modal (modo de ser do Ser)»


[T. do A.], ID., L’Ethno-philosophie…, o.c., pp. 101-102.
48 «Nós não detectamos a presença nem um lugar para categorizar Deus» porque «a

filosofia bantu o deixou fora das categorias de ser», porquanto «Deus não é uma essência,
um ntu», mas é «um Pré-existente colocado fora dos ntu» [T. do A.], Ibidem, pp. 105-106.
49 «Pré-existente, Eternamente Existente, Criador, Todo-Poderoso, Grandíssimo (ou

Grande Espírito)» [T. do A.], Ibidem, p. 106.


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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 29

um duplo princípio vital: a «sombra», como os animais, e o princí-


pio de inteligência que não tem nome, durante o período de vida do
Homem, mas, após a morte, recebe o nome («ser de inteligência pri-
vado de vida») e não será mais um «ser vivo», mas um «existente» 50.
Quando é que o Homem se torna um ser de inteligência? Algu-
mas regiões «bantu» afirmam sê-lo desde a concepção; outras,
desde a imposição do nome; outras ainda (zona meridional), desde
o alcance da idade da razão.
Entre as faculdades internas do Homem, Kagame nomeia a «in-
telligence», «cœur» e «mémoire», (inteligência, coração e memória) e
nota que «le cœur, qu’il ne faut pas confondre avec l’organe matériel de ce
nom, représente ce que la culture européo-américaine appelle la volonté.
C’est à lui que reviennent les fonctions du vouloir (chercher) et du
choix» 51, e onde reside a «liberté» (liberdade) e a «concupiscence»
(luxúria).
Discutindo a ética «bantu», Kagame afirma que «la règle fonda-
mentale de l’agir, et de l’utilisation d’un être est basée sur sa finalité
interne» 52. Esta finalidade «encarnada» modela igualmente a pró-
pria forma do ser 53. Qual é, então, a «finalidade encarnada» do Ho-
mem? Esta não deve ser procurada naquilo que o Homem tem em
comum com os animais, mas no princípio vital de inteligência pró-
prio da natureza humana: «Or le dit principe vital a été réalisé avec une
double “pointe” (pour rester dans l’exemple de la fléche), à savoir l’intelli-
gence et la volonté (celle ci étant le cœur chez les “Bantu”)» 54. Para a fi-

50 Cf. Ibidem, p. 108.


51 «O coração, a não ser confundido com o órgão material com este nome, representa
o que a cultura europeia-americana chamada de vontade. A ele se referem as funções da
querer (procurar) e da escolha» [T. do A.], Ibidem, p. 109.
52 «A regra fundamental do agir, e da utilização de um ser baseia-se na sua finalidade

interna» [T. do A.], Ibidem.


53 Como, por exemplo, a forma da flecha é de ser afiada, porque a sua finalidade é

perfurar. Cf. Ibidem.


54 «No entanto, o dito princípio vital foi realizado com uma dupla “ponta” (para

ficar no exemplo da seta), ou seja, a inteligência e a vontade (sendo este último o coração
para os “Bantu”)» [T. do A.], Ibidem.
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30 | MUNTUÍSMO

losofia clássica, estas duas finalidades, conhecer e amar, regulam con-


sequentemente, o agir do Homem, que a teologia clássica identifica
no conhecer e amar Deus e que permite o alcance do fim último do
Homem: a posse eterna de Deus. Para a filosofia bantu a finalidade
do Homem é determinada pela sua «forma» de macho e fêmea, e,
por consequência, é a procriação que permite a continuação da li-
nhagem. Resulta, então, que morrer sem descendência é a maior
desgraça. Não existe punição ou recompensa no Além porque tudo
se realiza aqui, na existência terrena, assim como o princípio vital,
considerado imortal, transmite-se indefinidamente de uma geração
à outra.
Sendo esta a finalidade, ela regula o agir. A lei principal será a lei
do sangue, que dura mesmo depois da morte, por meio dos antepas-
sados: «Et sur cette loi, enfin, de la communauté du sang, seront fondées
les règles de l’occupation du sol et les instituitions politiques dans une so-
ciété clanique, ainsi que les costumes ou rites entourant la célébration des
mariages» 55. Kagame indica duas categorias de lei: as de conteúdo
jurídico, que não obrigam a consciência, ao ponto de, se o culpado
estiver à altura de burlá-las, a sua astúcia será digna de admiração;
e as leis-tabú, puramente religiosas, de carácter «negativo», ou seja,
que não obrigam a cumprir, mas a evitar determinados actos: nestes
casos, a sanção não dependerá dos juízes, mas, tarde ou cedo, se
manifestará espontaneamente. Um homem pode ser culpado
mesmo que não o saiba 56. Para remover a sanção deve fazer exacta-
mente quanto lhe impõem os ritos tradicionais. Deus é o garante
destas leis-tabú, e pode castigar as transgressões até ao ponto de ex-
tinguir a descendência do transgressor. Emerge, então, a questão de
saber se as leis-tabú obrigam efectivamente à consciência, isto é,
requerem plena consciência e consenso, inteligência e vontade. Esta
condição, todavia, não se apresenta como necessária para que se

55 «E, enfim, nesta lei da comunidade de sangue serão baseadas as regras para o uso

da terra e instituições políticas numa sociedade baseada em clãs, bem como os costumes
e rituais em torno da celebração do matrimónio» [T. do A.], Ibidem, p. 111.
56 Cf. O tema das «culpas inconscientes» já analisado acima por Tempels.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 31

possa reconhecer a sua transgressão formal. Somente por analogia,


isto é, graças à força da influência do Cristianismo, se pode falar de
obrigação de consciência no âmbito das violações de tais princípios
religiosos 57.
Com vista a suprir o deficitário método de Tempels, na sua se-
gunda obra filosófica, La philosophie bantu comparée (Paris, 1976),
Kagame sustenta que falar de uma «filosofia bantu» requer o se-
guinte procedimento: «a) Prendre une zone culturelle determinée et en
identifier les éléments philosophiques incarnés dans la langue et dans les
institutions, dans les contes, récits et dans le proverbes, en évitant leur
aspect qui relève de l’ethnologie; b) Étendre ensuite ces recherches sur tout
l’aire bantu, dans le but de vérifier si les mêmes éléments s’y retrouvent
ou non. La conclusion serait qu’on pourra alors ou reconnaître l’absence
d’une philosofphie bantu, ou afirmer son existence réelle» 58.
No primeiro capítulo, Kagame elenca «Les coauteurs du pré-
sente ouvrage» (co-autores da presente obra): 405 textos e infor-
mantes entrevistados, 180 línguas analisadas, querendo conferir,
desta feita, dignidade de «filósofos» aos sábios que passam a sa-
piência da «civilização bantu» de geração para geração 59. As línguas
são um elemento fundamental da civilização bantu porque mantêm
viva a tradição que se actualiza continuamente na transmissão dos
valores seculares. Pode-se dizer que se trata de uma filosofia viva
que se renova continuamente na oralidade 60. Na análise dos vários

57 Cf. Ibidem, pp. 111-112.


58 «a) Considerar uma área cultural específica e identificar os elementos filosóficos
consagrados na linguagem e instituições, nos contos, histórias e provérbios, evitando o
que é da etnologia; b) Estender a pesquisa, em seguida, a toda a área bantu, a fim de ve-
rificar se os mesmos elementos se encontram lá ou não. Em conclusão, podemos então
reconhecer a ausência de uma filosofia bantu ou afirmar sua existência real» [T. do A.],
em A. KAGAME, La philosophie bantu comparée, Paris, Presence africaine, 1976, p. 7.
59 O segundo capítulo será justamente dedicado ao tema da «civilização» e dos seus

elementos constitutivos.
60 É interessante notar que a falta de fontes escritas não é um limite para a filosofia

africana, antes pelo contrário, esta não é uma filosofia fixa, mas algo de vivo. Kagame
explica igualmente a origem do termo «Bantu», derivado da classificação das línguas
africanas que têm em comum o prefixo Ba (Ba-Sprachen) e ntu. Cf. Ibidem, pp. 52-53.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página32

32 | MUNTUÍSMO

termos, Kagame cita continuamente as fontes orais das quais pro-


vém a informação. Analisa detalhadamente os temas da ontologia
bantu, do «Préexistant» e do «L’Existant-sans-intelligence», vistos de
modo sintético no artigo supracitado («Ethnophilosophie bantu…»).
A análise detalhada do capítulo «Muntu, Existant d’intelligence» é
fundamental para a nossa pesquisa em torno da ideia de pessoa na
filosofia africana contemporânea.
Aos olhos da cultura bantu, o Homem é também uma espécie
animal, com um princípio vital análogo àquele dos seres «purement
sensitifs». Existem, porém, «regiões bantu» que destacam «une diffé-
rence essentiel entre l’ombre des purement sensitifs et celle de l’homme» 61.
E Kagame ocupar-se-á desta diferença. A vida vegetativa («vie végé-
tative») não é senão uma analogia («puisque le végétal n’a pas de
principe vital, mais celui de viridité») 62. Algumas tribos falam da alma
(muya) como de algo pertencente ao Homem e ao animal, outras
como de algo próprio do Homem (principe vitale immortel). O termo
muya (o moyo), em outras tribos, é substituído por mutima, que quer
dizer «coração», não apenas como centro afectivo, mas também
como centro da vontade-liberdade e outras qualidades humanas 63.
Com a morte, a alma separa-se do corpo e começa uma grande
viagem. Vida e espírito (l’âme) não são a mesma coisa, porque o
espírito é o princípio vital e a sua união com o corpo constitui a
vida. Em muitas tribos, o espírito è chamado moya, «principe vital
d’intelligence» 64.

61 «Uma diferença fundamental entre a sombra dos puramente sensoriais e a do

homem» [T. do A.], Ibidem, p. 227.


62 «Uma vez que a planta não tem princípio vital, mas de vegetal verde» [T. do A.],

Ibidem, p. 228.
63 É interessante notar que, para a tribo Gitonga (da região na qual vivo há 12 anos),

o termo que indica coração é monyo, idêntico ao termo alma de outras tribos. Cf. B. A.
AMARAL, Dicionário de Português-Gitonga e Compêndio gramatical, Oeiras, Ed. C.M.O.,
2007, p. 41. Mais adiante, Kagame cita o etnólogo H. Junod que, a propósito da tribo
Ronga, do Sul de Moçambique, afirma que os indígenas acreditam certamente num
princípio psíquico independente, uma alma, que é o principio vital do Homem. A isto se
chama moya. Ibidem, p. 234.
64 «Principio vital de inteligência» [T. do A.], Ibidem, p. 235.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 33

Em quase todas as tribos bantu, os sentidos externos restringem-


-se a dois, vista e audição, que correspondem analogamente a uma
capacidade, a de compreender. É o mesmo termo que condensa a per-
cepção auditiva, do tacto, do paladar e a olfactiva: «des 5 sens exter-
nes dont les perceptions sont designées chacune par um terme spéciale, elle
en a fait deux; puis les deux fondamentaux ont été finalement réduits à
l’unité, au stade ultime de l’intellection» 65.
Entre os Bantu, não existem «sentidos internos»: existe a memória
e a imaginação que podem ser consideradas faculdades integráveis
nas actividades da inteligência e do coração, «lequel correspond à la
volonté-liberté de la philosophie européenne» 66.
O princípio vital de inteligência não tem nome, enquanto per-
manecer no Homem vivo: «La raison en est que l’homme est justement
le corps uni audit principe vital» 67, pelo que «c’est là une conception to-
talisante de l’homme: l’ombre dénommée dans l’homme, parce qu’elle ne
forme pas sa nature spécifique. Le principe d’intelligence, au contraire, uni
dans l’actualité avec le corps, c’est lui l’homme. Dès que le corps en est
séparé, le principe vital d’intelligence continue son exister indépendam-
ment de la matière» 68. E, enquanto nos animais o existir cessa com a
morte, no Homem, contrariamente, o existir segue a sua trajectória
rumo à éviternité («durée de ce qui a commencé-à-exister, mais qui n’aura
pas de fin; l’éternité = durée total du Préexistant)» 69.

65 «Dos cinco sentidos externos, cujas percepções são denotadas cada uma por um

termo especial, ela (a cultura bantu) concentrou em dois; depois, os dois fundamentais
foram finalmente reduzidos à unidade, o estádio final da intelecção» [T. do A.], Ibidem,
p. 238.
66 «Que corresponde à vontade-liberdade da filosofia europeia» [T. do A.], Ibidem,

p. 239.
67 «A razão é que o homem é justamente o corpo unido ao princípio vital» [T. do A.],

Ibidem, p. 240.
68 «Esta é uma concepção totalizante do homem: a sombra conhecida no homem, não

forma a sua natureza específica. O princípio da inteligência, ao contrário, unido na


actualidade com o corpo, é ele o homem. Uma vez que o corpo é separado, o princípio
vital de inteligência continua a existir independentemente da matéria» [T. do A.], Ibidem,
pp. 240-241.
69 Eviternidade («período que começou a existir, mas não terá fim; a eternidade = a

duração total do Pré-existente») [T. do A.], Ibidem, p. 241.


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34 | MUNTUÍSMO

Como vimos, as faculdades do princípio vital de inteligência são


duas: inteligência (com a vontade) e o coração. As propriedades da in-
teligência são as mesmas da «filosofia universal»: conhecer, me-
mória, propensão para o bem, escolher, desejar, querer, reflectir,
comparar e inventar. As propriedades interiores do Homem são
totalizadas no coração, concebido como centro da vida afectiva e
emocional, fonte da vontade, sede da vida intelectual e consciência
do Homem, no qual se encontra «la personnalité même de l’homme» 70.
Em conclusão, «la vérité, la pensée, les idées, etc., ne sont pas dans la tête,
mais dans le cœur qui siège en notre sein» 71.
A propósito da vida eterna, Kagame reconhece que os termos
usados são buscados da cultura semita e europeia, mesmo quando a
cultura bantu a exprime segundo o próprio génio: importa distin-
guir entre vida e existir; a vida pressupõe um corpo ainda unido ao
seu princípio vital, e «ceux qui sont morts ne sont plus vivants» 72 de
modo que à expressão «vida eterna» se deve substituir «existir
eterno» (se poderia falar de «vida» eterna apenas por analogia). Se
«retorna» à «vida» eterna apenas após a ressurreição dos corpos.
Como terão os Bantu chegado à ideia de que o princípio de inte-
ligência subsiste mesmo depois da separação do corpo? Primeiro,
partindo da constatação de que o sonho, por exemplo, é uma activi-
dade que não segue o corpo que dorme e leva o Homem a «viajar»
e encontrar tantas pessoas vivas e mortas que, deste modo, conti-
nuam a existir mesmo depois da sua morte. Segundo, constatando o
desejo inato de viver infinitamente. Desse desejo activa-se a auto-
consciência do princípio de inteligência, que conduz à aquisição da
certeza da própria incorporéité (incorporeidade), a qual exclui a
eventualidade da morte, que pressupõe um princípio unido à ma-

70 «A personalidade própria do homem» [T. do A.], Ibidem, p. 242. Também Junod,

citado por Kagame, refere-se ao coração como «siège du génie et des dons intellectuels» (sede
do génio e das dotes intelectuais), e lugar do qual provêm as decisões da vontade. Cf.
Ibidem, p. 246.
71 «A verdade, pensamento, ideias, etc. não estão na cabeça, mas no coração que se

assenta em nós» [T. do A.], Ibidem, p. 247.


72 «Aqueles que estão mortos não estão mais vivos» [T. do A.], Ibidem, p. 255.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 35

téria. A imaterialidade, incorporeidade, conduz à certeza da imor-


talidade e corresponde à espiritualidade da alma, o princípio vital
do qual a inteligência é uma das faculdades.
Por fim, Kagame procede a uma classificação dos antepassados,
dos «tipos» e lugares da sua presença e conclui que a ideia da reen-
carnação não faz parte da cultura bantu: os espíritos não se reencar-
nam, mas podem estabelecer uma ligação estreita com os seus
descendentes no momento do nascimento.
Nos últimos dois capítulos «La religion des Bantu» e «La Philo-
sophie et la religion bantu face à la colonisation et au christianis-
me», Kagame apresenta a essência metafísica da religião bantu no
confronto do Cristianismo. A religião bantu, contrariamente às re-
ligiões reveladas, é uma religião metafísica (porque natural), «est
l’une des branches de la métaphysique» 73. Os dogmas e a moral desta
religião «relévent formellement de la métaphysique» 74. As verdades
desta religião, inicialmente formuladas por pensadores anónimos,
foram transmitidas de uma geração à outra, a ponto de tornarem-se
croyance traditionnelle (crença tradicional), de 99% dos Bantu. Estas
verdades transformaram-se em religião. De que modo? O medo da
morte, das doenças e das desgraças obriga a recorrer aos seres con-
siderados capazes de vencê-los: Deus e os antepassados. Para ter
acesso a este «remédio», se deve recorrer aos adivinhos, capazes de
inventar formas de culto que mitigam as «exigências» dos espíritos e
antepassados.
Um elemento fundamental da religião é a moral. A moral indica
os actos para alcançar os fins. O fim típico do Homem, diferente do
dos animais, diz respeito àquilo que ele é de verdade: a inteligência
e a vontade (coração, para os Bantu), com vista a escolher o bem e
evitar o mal. Não se trata de regras inventadas, mas de atitudes de
base fundadas na natureza, liberdade e direitos do homem, que, se

73 «É um dos ramos da metafísica» [T. do A.], Ibidem, p. 270. Kagame recorda que a

matéria que estuda Deus e a religião, do ponto de vista racional, é a teodicéia, a qual é
aplicada também à religião bantu.
74 «Provêm formalmente da metafísica» [T. do A.], Ibidem, 269.
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36 | MUNTUÍSMO

não observados, subvertem e desagregam a sociedade. São as leis


gerais da moral natural: «l’ensemble des principes qui guident les
ACTES HUMAINS pour les rendre conformes à l’honnêteté perçue par la
lumière de la Raison» 75.
Por acto humano se entende todo aquele cumprido com plena
consciência (rôle de l’intelligence; papel da inteligência) e pleno de
consenso (rôle du cœur ou volonté; papel do coração e da vontade). O
que significa que a inteligência ilumina a verdade do objecto, quali-
ficando-o como bem ou mal, e o coração, a vontade, determina se o
deve escolher ou não. A inteligência não tem responsabilidade, pois
é o coração, a vontade, a causa eficiente do acto humano. Existem
duas «causas» do acto humano externo ao Homem: o fim e a lei. Esta
última, como descrito no artigo sobre a etnofilosofia, divide-se em
leis jurídicas e leis sem conteúdo jurídico, mas que, contrariamente
às primeiras, obrigam a consciência. As primeiras requerem um
acto humano, conhecimento e vontade, enquanto as segundas não.
O fim último do Homem é determinado por Deus. O Homem
pode dispor apenas dos fins medianos (fins moyens). Criando o Ho-
mem, Deus não usa outro modelo senão Ele próprio. Cria o Homem
e o orienta para si mesmo, de modo que a sua realização consiste em
reconhecer quem o criou: «ainsi dans la Philosophie théologicisée, la fin
ultime de l’homme a été déterminée à partir de ses deux facultés spécifi-
ques. C’est évidemment la conception indiscutable de nos convictions» 76.
Não existe recompensa ou castigo no Além, existem somente nesta
terra. O fim não é a posse eterna de Deus, mas a recompensa nesta
terra, que consiste na posse de «biens de la fortune; les biens de la per-
sonne (santé, richesses, honneurs, longévité); les biens de la progéniture
(mourir en lassant sa descendance assurée)» 77. O mal maior é morrer

75 «Conjunto dos princípios que orientam as ACÇÕES HUMANAS para conformá-

-las com a honestidade percebida pela luz da Razão» [T. do A.], Ibidem, p. 275.
76 «Também na filosofia teologizada, o fim último do homem foi determinado a

partir das suas duas faculdades específicas. Esta é, obviamente, a concepção indiscutível
das nossas convicções» [T. do A.], Ibidem, p. 283.
77 «Bens da fortuna; bens da pessoa (saúde, riqueza, honra, longevidade); os bens dos

descendentes (morrer deixando os descendentes em segurança)» [T. do A.], Ibidem, p. 284.


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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 37

sem descendência. Isto não apenas porque a procriação é o pro-


longamento de si próprio na história, mas, sobretudo, porque é a
realização do fim do Homem criado em dois géneros. Quem não
procria não realiza o fim último para o qual foi criado por Deus. Fim
último e fundamento da religião bantu é a perpetuação do género
humano, razão pela qual os homens devem salvaguardar a conti-
nuação da vida; os antepassados devem proteger os seus descen-
dentes; Deus deve vigiar os actos do Homem de modo a manter a
sua linhagem. Desta feita, a religião bantu é antropocêntrica. Ka-
game afirma que na religião bantu Deus não é o centro, como tam-
bém o não é o indivíduo: «c’est plutôt la perpétuation du genre hu-
main» 78. A religião bantu «confunde-se» com todos os eventos da
vida, com a medicina, a ciência, a superstição, a magia.
Kagame conclui a sua obra problematizando a expressão «civi-
lização cristã», definindo-a como uma expressão profundamente
anticristã, pois identificaria o Cristianismo com uma só civilização,
a europeia, e serviria para justificar a supremacia e o destino histó-
rico de substituir todas as demais civilizações. A pretensão de supe-
rioridade antropológica da Europa, baseada, de facto, na diferença
tecnológica, foi subtilmente justificada com a pregação do Cristia-
nismo. O Cristianismo foi europeizado e reduzido à religião do
colonialismo. Ao contrário, a mensagem evangélica não pode ser
privada da sua transcendência, sem se trair a si mesma. Por isso, ne-
nhuma civilização pode ter primado sobre o Cristianismo, definin-
do-se «cristã» como tal, mas todas, incluindo a europeia, podem
apenas ser cristianizadas no contínuo ensino da Revelação de Cristo.
Não obstante, Kagame conclui que «il n’y a pas de raison prévisible
qui empêcherait le culte des ancêtres de continuer à gêner la christianisa-
tion authentique de notre Civilisation» 79.
Com Alexis Kagame, cuja filosofia «has been trapped under a kind of

78«É sobretudo a perpetuação do género humano», Ibidem, p. 304.


79«Não há nenhuma razão previsível que impeça que o culto dos antepassados con-
tinue a dificultar a cristianização genuína da nossa civilização» [T. do A.], Ibidem, p. 319.
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38 | MUNTUÍSMO

ideology, the ideology of ethnophilosophy, which has impeded the appre-


ciation of other aspects of his work» 80, assistimos à passagem da filosofia
bantu à etnofilosofia, para chegar à filosofia da linguagem, capítulo
emergente na filosofia africana.

VINCENT MULAGO: Ser como união vital

A união vital bantu é o tema que nos interessa da obra de Vincent


Mulago, que encontramos na sua tese de doutoramento em Teo-
logia 81. Trata-se de uma pesquisa que envolve três grupos africanos
bantu: Bushi, Rwanda e Barundi. Do estudo da fenomenologia da
união vital bantu, Mulago «ousa» apresentar as aspirações da alma
bantu como pedras fundamentais para a unidade eclesial. Em sín-
tese, trata-se de uma reflexão a partir da união vital bantu e aborda-
gens teológicas do mistério da unidade da Igreja.
No capítulo primeiro, Mulago apresenta a exortação de Pio XII
na sua Encíclica Evangelii praecones a respeito da adaptação às dife-
rentes culturas, a fim de alcançar a plena unidade, isto é, a unidade
na diversidade ou a diversidade na unidade. Mulago interroga toda
a acção missionária católica em África de modo a evitar os perigos
do paganismo primitivo e do novo paganismo moderno. Desenvol-
veu o «princípio da adaptação» como encontro entre as aspirações
do povo e a mensagem cristã. O objectivo a alcançar «c’est que le
peuple converti pense et vive le Christ et le christianisme avec son âme pro-
pre et, pour cela, il faut que le missionnaire crée dans son champ d’apos-
tolat un milieu vital ecclésial qui permette aux fidèles de saisir directement
le Christ dans un contact immédiate et personnel. L’adaptation n’est rien
d’autre que cette présentation du message chrétien par son aspect le plus
en harmonie avec les aspirations du peuple à gagner au Christ» 82.

80 «Foi cativa de uma espécie de ideologia, a ideologia da etnofilosofia, que tem impe-

dido a apreciação de outros aspectos do seu trabalho» [T. do A.], L. KAGABO, o.c., p. 231.
81 V. MULAGO, Un visage africain du christianisme – L’union vitale bantu face à l’unité

vitale ecclesiale, Paris, Présence Africaine, 1965, 263 pp.


82 «É que as pessoas convertidas pensam e vivem Cristo e o Cristianismo com a sua

própria alma e, para isso, o missionário deve criar no seu campo de apostolado um am-
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 39

Mulago passa a tratar da fenomenologia da união vital, tocando


apenas «quelques phénomènes éloquentes» (alguns fenómenos eloquentes)
da vida dos povos bantu, dos Bushi, Rwanda e Barundi, acompa-
nhando o Muntu na sua vida familiar, da nascença à morte, da vida
político-social à religiosa.
A respeito do nascimento, Mulago confirma quanto vimos noutros
contextos, ou seja, que para estes povos não existe felicidade maior
do que se tornar progenitor. A mãe que concebe entre oito e doze
filhos é feliz e tem Deus do seu lado. A poligamia tem como fim
principal dar ao pai e à tribo a sensação de poder e força, prolon-
gando e perpetuando o clã. Se todos os filhos nascem «normais» há
motivo de grande alegria, mas se morrem logo após o parto ou
nascem deficientes, ocorre uma grande preocupação, e por isso se
realizam ritos de purificação e expiação. Os gémeos são considera-
dos seres extraordinários, cujo nascimento se deve a uma interven-
ção sobrenatural, pelo que suscita a necessidade de cerimónias mis-
teriosas em seu entorno 83.
O matrimónio é um acto de vida. É necessário consultar os ante-
passados das famílias, para que seja abençoado. Isto implica sacrifí-
cios, sobretudo ao «grande espírito» Lyangombe. As cerimónias do
matrimónio são cheias de símbolos emprenhados da ideia de união
vital, de participação e de comunhão com todas as coisas – visíveis
e invisíveis – e com todos os familiares directos, parentes, vizinhos,
e cerimónias complementares. O matrimónio não diz respeito
apenas aos dois nubentes, mas a uma «profunda aliança» entre duas
famílias e duas parentelas. Existem «impedimentos ao matri-
mónio» 84 que têm como objectivo salvaguardar intacto o clã, a soli-
dariedade familiar, a sucessão e a conservação dos bens familiares:

biente vital eclesial que permita aos fiéis alcançar directamente a Cristo num contacto
imediato e pessoal. Adaptação não é senão a apresentação da mensagem cristã no seu
aspecto o mais possível em harmonia com as aspirações do povo a conquistar para
Cristo» [T. do A.], Ibidem, p. 30.
83 Cf. Ibidem, p. 41.

84 Mulago recomenda os estudos de P. COLLE, Essai de Monographie des Bushi, pp. 82-

-86, citado in Ibidem, pp. 55, 43 e 44.


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40 | MUNTUÍSMO

«le principe premier de la vie du Muntu, c’est son prolongement, sa propre


extension, ainsi que la continuité, l’épanouissement et la pérennité de sa
famille, de son clan, de sa tribu et de ses ancêtres» 85.
É incontestável que a família constitui, para os Bantu, a base da
unidade social que tem como princípio orientador a sua integri-
dade. Existe um antepassado comum como fundador do clã, a
partir do qual o clã se desenvolve. O conjunto dos clãs, sucessiva-
mente, origina a tribo, ligada ao mesmo solo e pela mesma autori-
dade ou soberano. O grupo político não se funda sobre uma paren-
tela de sangue, mas sobre a pertença a um solo. Nos dias que
correm, esta organização política é substituída pela monarquia.
A vida dos Bantu, afirma Mulago, é uma comunhão com o
outro 86. Não existem pessoas isoladas, nem famílias isoladas, nem
vidas isoladas. Há uma aliança entre os clãs cujos chefes, com todas
as suas famílias, num dia previamente combinado, fazem um
«pacto de sangue», que consiste em beber simultaneamente o «san-
gue» (uma bebida a base de folhas com sabor a sangue e um pouco
de leite) um do outro. Este gesto simboliza a amizade, a fraternida-
de, o amor mútuo, o dom de si, a fusão um ao outro, a entrada e
acolhida na família do amigo, incluindo a comunhão dos bens e dos
interesses 87. O sangue é o princípio vital de toda a parentela e frater-
nidade. O pacto de sangue surge também como um reforço ao indi-
víduo, à família a ao clã 88.
Quanto à religião, esta é «un lien d’union entre les hommes, ou entre
les hommes et les dieux» ou «l’ensemble cultuel des idées, sentiments et
rites» baseados na crença nos dois mundos (visíveis e invisíveis), o
seu carácter comunitário e hierárquico, e as interacções entre estes 89.

85 «O primeiro princípio da vida do Muntu é o seu prolongamento, a sua própria ex-

tensão, e a continuidade, desenvolvimento e sustentabilidade da sua família, do seu clã,


da sua tribo e dos seus antepassados» [T. do A.], Ibidem, p. 67.
86 Cf. Ibidem, p. 76.

87 Cf. Ibidem, p. 79.

88 Cf. Também as interessantes notas 33 e 34 em Ibidem.

89 «Um vínculo de união entre homens, ou entre homens e deuses» ou «o conjunto

cultual de ideias, sentimentos e ritos» [T. do A.], cf. Ibidem, pp. 82-83.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 41

Estes povos não são nem fetichistas, nem idólatras, nem natura-
listas, nem animistas, mas «ancestralistas», porque ligados aos espí-
ritos dos seus «ancestrais», antepassados defuntos e antigos heróis,
tais como Lyangombe. E sobre estes espíritos criados, reconhecem
um Criador: Imana entre os Banyarwanda e Barundi, e Nyamuzinda
entre os Bashi. Mulago conclui que «c’est le dernier mot de la philoso-
phie et de la religion de nos Bantu» 90.
A magia e o vaticínio, mesmo se simbolizados e visualizados em
objectos e pessoas concretas, não têm a pretensão de reproduzir os
espíritos, mas são gestos de «simpatia», no caso da magia, e repre-
sentantes enviados por Deus para vaticinar, no caso dos adivinhos 91.
Por culto dos antepassados se entende tudo quanto serve para
meter-se em relação com os seres invisíveis, que são considerados
seres dotados de uma força superior à força da natureza e capazes
de reproduzir o bem e o mal 92. O culto é endereçado aos espíritos
dos antepassados (entendendo por antepassados todos os membros
defuntos da família e do clã), ao espírito dos antepassados heróis e
de Deus.
Os três povos crêem na sobrevivência depois da morte e na troca
de revelações entre os vivos e os mortos. Estes permanecem pre-
sentes entre os seus parentes, não só na memória, mas como uma
presença real 93. O culto quotidiano, os sacrifícios e as ofertas têm
como fim prevenir ou resolver todas as necessidades. Em conclusão,
«entre vivants e trépassés, il n’y a pas separation, mais continuité» e isto
«constitue une force sociale et spirituelle de la communauté» 94.
Em torno da figura de Lyangombe, Mulago afirma que este era
um indivíduo da nossa raça, mas dotado de qualidades pouco
comuns que lhe concederam um lugar especial na memória dos

90 «Esta é a última palavra da filosofia e da religião dos nossos Bantu» [T. do A.], Ibidem,
p. 87.
91 Cf. p. 89.
92 Cf. p. 93.
93 Cf. Ibidem, p. 95.

94 «Entre vivos e mortos, não há separação, mas continuidade» e isto «constitui uma

força social e espiritual da comunidade» [T. do A.], Ibidem, p. 101.


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42 | MUNTUÍSMO

povos. Entre estes povos, Lyangombe «est considéré comme une créature
dépendant du Créateur, un intermédiaire entre le Créateur et les hommes,
mais un esprit dépassant tous les autres, un muzimu d’une espèce à part,
plus puissant, plus élevé, plus universel que les autres» 95. Ele é um «bon
génie» (bom génio), um «génie tutélaire» (génio tutelar), «il n’est pas
Dieu, mais il a eu Dieu pour lui: Il a été spécialement favorisé par Dieu» 96.
Da relação de Lyangombe com Deus decorrem cerimónias e ritos
próprios: evocações, ofertas, etc., a fim de que ele seja mediador
junto de Deus. Este culto aparentemente pobre e insignificante mani-
festa algo de «interior, espiritual e individual». Deus é considerado
Mwami, um Senhor rico e magnífico: rico acima de todas as necessi-
dades e magnífico porque doa da sua plenitude, sem esvaziar- se e
empobrecer-se, e não reclama a restituição de nada 97: «on porrait
donc dire que nos peuples conçoivent Dieu comme la source intarissable de
la vie, des forces et des moyens vitaux» 98.
Após ter analisado na primeira parte os costumes dos três povos,
na segunda parte, o autor passa a interpretar os comportamentos
estudados como fenomenologia da União Vital: descobrir o conceito
central, ou melhor ainda, a intuição experiencial que serve de subs-
trato a estas manifestações, como expressão da comunidade de
vida, unidade e identidade de vida 99.
Com a expressão «União Vital», ou «Unidade de vida», o autor
indica uma relação de ser e de vida de cada um com os seus descen-
dentes e com Deus, fonte primária de toda a vida (Nyamuzinda o
Imana), uma relação ôntica, análoga para todos, com o seu patrimó-

95 «[Lyangombe] É considerado uma criatura dependente do Criador, como um inter-

mediário entre o Criador e os homens, mas um espírito superior a todos os outros, um


muzimu de uma espécie à parte, mais potente, mais elevada, mais universal do que as
outras» [T. do A.], Ibidem, p. 103.
96 «Ele não é Deus, mas tinha Deus por si: ele foi especialmente favorecido por

Deus» [T. do A.], Ibidem.


97 Cf. Ibidem, p. 112.

98 «Então, pode-se dizer que o nosso povo concebe Deus como a fonte inesgotável

da vida, das forças e meios vitais» [T. do A.], Ibidem, p. 112.


99 Cf. Ibidem, p. 115.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 43

nio e todos os seus bens. A união vital é o laço vital que une entre si,
vertical e horizontalmente, os seres, vivos e mortos. É o resultado de
uma comunhão, de uma participação a uma realidade comum, num
princípio de vida comum que une entre si muitos seres. Todos os
seres participam de uma mesma e única fonte. É a vida na sua sim-
plicidade, na sua essência, que não conhece interrupção nem mes-
mo com a morte. Não se trata de uma vida exclusivamente física ou
espiritual, mas de uma vida «totalmente humana». Trata-se de toda
a vida, do ser inteiro, da integridade do ser 100.
Os vivos e os mortos são inseparáveis, interdependentes. Com a
morte, o indivíduo apenas muda de condição. Viver é existir dentro
de uma comunidade, é participar da vida sagrada dos antepassa-
dos, é criar elos profundos com a comunidade: família, clã, tribo e
nação, mundo visível e invisível 101.
Quanto ao simbolismo da união, Mulago sustenta que o símbolo
é o instrumento principal à disposição das pessoas para entrar em
contacto com os outros e tecer a união. Trata-se do esforço do espí-
rito humano em busca de um contacto com a força superior, com o
mundo invisível.
No simbolismo bantu existem três elementos: a) algo de sensível:
seres vivos (pessoas); o totem como símbolo da união clânica;
palavras (nomes dos antepassados, dos animais e das coisas, acções
e gestos); b) o papel da hierofania, a manifestação de um poder ou
de uma força; c) o papel unificador e efectivo de cada símbolo
expresso numa linguagem típica da comunidade.
Por fim, Mulago conclui que o simbolismo permite a passagem, a
circulação de um mundo ao outro, integrando todos estes níveis e
planos, mas sem fundi-los 102.
Mulago defende a existência de uma filosofia da União Vital
entre os Bantu. Definindo-se a filosofia como o conhecimento natu-

100 Cf. Ibidem, p. 118.


101 Mulago tenta uma inter-relação com a doutrina da Igreja Católica nas pp. 131-136.
102 Cf. p. 146.
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44 | MUNTUÍSMO

ral das coisas nas suas causas profundas, na sua unidade original, a
filosofia bantu é implícita, um sistema coerente e sintético de conhe-
cimentos, crenças, instituições e práticas sobre as quais se baseia
toda a vida. Frequentemente, este conhecimento se dá como «intui-
tion du réel que, par l’entendement abstrait et la pensée discursive, c’est le
nome de sagesse qui lui convient le mieux» 103.
Na última parte, o autor propõe-se estabelecer uma ligação ou
descobrir «les approches» (abordagens) teológicas entre o princípio
vital que une os membros da comunidade bantu e o que une os
membros da Igreja, Corpo místico de Cristo. Este último princípio
vital tem o nome de «unité ecclésiale» («unidade eclesial»), como re-
sultado da participação dos membros da Igreja no mistério da única
e mesma vida divina em Cristo, através das Escrituras, hierarquia,
sacramentos, especialmente a Eucaristia, o grande sacramento da
Koinonia 104. Entre os símbolos da União Vital emerge o da comu-
nhão alimentar ou de sangue. Esta comunhão vai para além do
quadro racial e abre vastos horizontes para a expansão e o alarga-
mento da família. Ela revela as aspirações do Muntu de entrar em
comunhão com o mundo para além do sensível. A oferenda aos
mortos, a comunhão com os espíritos e o pacto de sangue com
Lyangombe são, segundo Mulago, o ápice da Koinonia dos Bushi,
Banyarwanda e Barundi 105. E conclui: «parmi les mystères de l’Église,
il est un, le Symbole des symboles, le Sacrement des sacrements, qui ras-
sasie pleinement et supra modum cette tendance du Muntu à la fusion
avec son prochain et le monde suprasensible» 106.

103 «Intuição da realidade que pela compreensão abstracta e pensamento discursivo,

o nome que melhor lhe convém é sabedoria» [T. do A.], Ibidem, p. 148. Interessante con-
frontar a conclusão de Mulago com a de Remi Brague, La saggezza del mondo, Catanzaro,
Rubbettino, 2005.
104 Cf. Ibidem, pp. 159-209.

105 Cf. Ibidem, pp. 211-212.

106 «Entre os mistérios da Igreja, há um, o Símbolo de símbolos, o Sacramento dos sa-

cramentos, que satisfaz plenamente supra modum esta tendência do Muntu à fusão com
o seu próximo e com o mundo supra-sensível» [T. do A.], Ibidem, p. 212.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 45

Esta união, continua Mulago, é propriamente «κοινωνία τοũ


αìματος τοũ Χριστοũ» e «κοινωνία τοũ σώματος τοũ Χριστοũ» 107.
O Muntu crê que, participando do mesmo banquete, brotam in-
fluências vitais que chegam a todos os participantes, unindo-os
entre si, tanto no bem como no mal. Embora esta crença não seja
demonstrável racionalmente, é, pelo menos, uma preparação provi-
dencial para a compreensão misteriosa da unidade que se estabe-
lece entre aqueles que comungam do mesmo pão e do mesmo
sangue descido do Céu 108.
Em conclusão, diz o autor, radicados na fé no Verbo Encarnado,
que se fez carne para salvar os homens, expressão do amor do
Criador pela sua criatura, chegamos à fonte da alma bantu. Aqui
descobrimos fragmentos de verdade e crenças que podem servir de
base para a apresentação do Mistério da Igreja 109. A comunidade de
vida está no centro de toda a organização bantu: é porque partici-
pam da mesma vida e dos mesmos instrumentos vitais que são
solidários uns com os outros e tão unidos entre si 110.

JEAN-MARC ELA: Ser oprimido

Se, por um lado, a Filosofia bantu de Tempels é considerada, para


todos os efeitos, a obra que estimulou o início da filosofia africana
contemporânea, por outro, é consensual considerar o texto Des
prêtes noirs s’interrogeant (Alguns padres negros se interrogam) como a
obra que marca o início da teologia africana contemporânea. Trata-
-se de um texto elaborado por estudantes africanos que cursavam
Teologia em Roma, publicado em 1956. Os autores interrogavam-

107 «Comunhão no sangue de Cristo» e «comunhão no corpo de Cristo» [T. do A.]

Ibidem, p. 213.
108 Cf. p. 215.

109 Cf. p. 221.

110 Cf. Ibidem. Na sua conclusão, Mulago oferece indicações interessantíssimas a res-

peito de como «adaptar» a Igreja à cultura bantu, mas sobrevoamos pois vão para além
do intento da nossa pesquisa. Todavia, a elas retornaremos, sem dúvidas, num futuro
estudo acerca da teologia africana.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página46

46 | MUNTUÍSMO

-se a respeito da própria identidade enquanto africanos no seio da


Igreja Católica Romana, e sobre a relação entre a evangelização e a
colonização. Porque se estava em vésperas das independências afri-
canas, tratou-se de um discurso teológico emancipatório.
Na nossa reconstrução da história das ideias em torno da noção
de pessoa na filosofia africana contemporânea, torna-se obrigatória
a referência às teologias africanas, quer pelo facto de um grande nú-
mero de filósofos africanos ser composto por teólogos, quer porque
uma das ideias nucleares, e mais debatidas, é a afirmação segundo a
qual o Homem africano é essencialmente – ontologicamente, como
diria Mbiti – religioso, pelo que o discurso teológico não pode ser
posto de parte 111.
Procederemos à análise de dois teólogos, entre os mais significa-
tivos das duas correntes principais da teologia africana contempo-
rânea: Jean-Marc Ela, cujo texto Le cri de l’homme africain (O grito do
homem africano) é tido como obra-prima da teologia da libertação
africana e, John Mbiti, autor do famoso estudo comparado das reli-
giões, Africans religions and philosophy (Religiões africanas e filosofia).
Antes destes teólogos, assistimos em África à passagem, numa
superação contínua, da teologia da salus animarum àquela da planta-
tio ecclesiae, depois à teologia da adaptação, para culminar com a teolo-
gia da encarnação.
Entre os pioneiros da teologia africana, o zairense Oscar Bim-
wenyi-Kweshi questiona, na sua obra de 1981, «Discours théologique
négro-africain», se é possível «dizer» o Cristianismo com um dis-
curso africano, partindo de um «lugar novo» e não africanizando
teologias pré-constituídas 112. Tal discurso é possível, pois o discurso
africano é teândrico, e a parte «ândrica» influencia a inteligência da

111 Tratar-se-á de distinguir entre a teologia (Religião revelada) e teodiceia (Religião

natural), como analisaremos mais adiante.


112 O. B IMWENYI -K WESHI , Discours théologique négro-africain. Problème des fonde-

ments, Paris, Presence Africaine, 1981. É a mesma questão levantada pela teologia latino-
-americana, que pretende fazer uma teologia partindo da experiencia do povo latino-
-americano.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página47

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 47

fé cristã. O uso da filosofia greco-romana indica o aspecto «ândrico»


que o teólogo africano deve abandonar para recuperar a própria
africanidade, a própria visão da vida, a própria cultura, a própria
sapiência e originalidade. Desta deslocação geográfica resulta uma
deslocação epistemológica. Em conclusão, nem a teologia da encar-
nação nem a teologia da inculturação, uma vez que estas pressu-
põem a existência de algo pré-constituído que deve ser encarnado
ou inculturado, mas simplesmente uma teologia africana. O dis-
curso de Bimwenyi-Kweshi, embora esteja apenas no começo,
propõe-se demonstrar a possibilidade e legitimidade de um dis-
curso teológico africano 113.
Para a pesquisa da ideia do Homem na teologia africana, fazemos
referência à já citada obra de Jean-Marc Ela, Le cri de l’homme africain 114.
A figura de homem que emerge da obra de Ela é a de um ser
oprimido que deve ser liberto. Para Ela, a Igreja não pode continuar
indiferente defronte ao contraste entre o Evangelho e a realidade
africana: «Tale scontro costringe a ridefinire il progetto fondamentale del
cristianesimo nella società africana» 115. Esta nova reflexão é definida
por Ela como «teologia sob a árvore», elaborada longe das bibliote-
cas, em contacto com os pobres camponeses analfabetos, que pro-
curam o sentido da Palavra de Deus. Estas premissas são as mesmas
da teologia da libertação latino-americana 116 que reivindica uma
teologia a partir da praxe de opressão do povo latino-americano 117.
Nesta obra, Ela é muito crítico em relação à teologia ocidental e à

113 Esta posição de Bimwenyi-Kweshi contrasta com o que afirmou Bento XVI no seu

famoso discurso de Ratisbona, a 12 de Setembro de 2006, no qual defendeu que a filo-


sofia grega não é uma «opção» para a teologia cristã. A de Bimwenyi-Kweshi poderia
ser definida como uma tentativa de des-helenização do Cristianismo.
114 Fazemos referência à tradução italiana: J. M. ELA, Il grido dell’uomo africano, Turim,

L’Harmattan Italia, 2001.


115 «Este contraste obriga a redefinir o projecto fundamental do Cristianismo na so-

ciedade africana» [T. do A.], Ibidem, p. 9.


116 Embora Ela reivindique uma precedência da teologia da libertação africana sobre

a latino-americana. Cf. Y. ASSOGBA, JEAN-MARC ELA, Sociologo e Teologo africano con il


boubou, Turim, L’Harmattan Italia, 2001, p. 47.
117 Pense-se, por exemplo, em G. Gutierrez e C. Boff.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página48

48 | MUNTUÍSMO

Igreja, ao ponto de colocar em questão o valor da Eucaristia, per-


guntando-se se ela é sinal de salvação ou de dependência das Igre-
jas africanas. Critica o clericalismo ligado ao sacramento, que limita a
sua celebração apenas à acção do sacerdote, que é geralmente um
missionário estrangeiro e, por conseguinte, perpetua a dependência
das Igrejas africanas ao estrangeiro. Este modelo clerical não foi re-
pensado a partir da África. Operou-se uma separação entre o minis-
tro que preside a Eucaristia e o ministro que preside a celebração da
Palavra, e se condenou a maioria das comunidades a não ser plena-
mente Igreja devido à falta da Eucaristia. Ela critica igualmente a
assunção do rito único romano imposto a todas as comunidades.
Este rito é marcado por uma cultura estrangeira e, por via disso, a
Eucaristia torna-se lugar de alienação dentro da Igreja. Por fim, cri-
tica o uso de produtos europeus na celebração eucarística, menospre-
zando os produtos locais, e ajunta que, deste modo, «ci troviamo
davanti a un esempio concreto di colonialismo che si installa di soppiatto
attraverso la vita cristiana» 118. Após ter definido o objectivo do seu
livro como um «tentare un approccio critico ai problemi della fede, a par-
tire dalle situazioni africane in cui interferiscono la cultura, l’economia e la
politica» 119, Ela trata do problema da ambiguidade da missão, espe-
cificamente no caso africano. Defende que a primeira evangelização
foi um fracasso porque não foi inculturada. A Igreja etíope (de tipo
oriental) sobreviveu até aos nossos dias, mas esteve fechada em si
mesma; a Igreja da África setentrional era mais ligada à romanidade
que aos «bárbaros». A queda do Império Romano significou a
queda da Igreja norte-africana. Observando a África Negra, susten-
ta Ela, depois de quinze séculos repete-se tudo novamente: a evan-
gelização continua ligada ao colonialismo.
No século XVI, Portugal recebeu a missão de evangelizar a África.
Entretanto, tendo já sob sua gestão o imenso Brasil e outras colónias

118 «Nos encontramos diante de um exemplo concreto de colonialismo, que se instala

paulatinamente através da vida cristã» [T. do A.], J. M. ELA, o.c., p. 16.


119 «Tentativa de aproximação crítica aos problemas da fé, a partir das situações afri-

canas onde interferem a cultura, a economia e a política» [T. do A.], Ibidem, pp. 18-19.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página49

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 49

na Ásia, descurou a África, encarando-a como um ponto de ancora-


gem dos navios que rumavam para as Índias e como campo de recolha
de escravos para as Américas. Só muito mais tarde surgiram as várias
associações missionárias protestantes e as grandes congregações católi-
cas para a evangelização da África. No século XIX, a França tomou o
lugar da Espanha e de Portugal. Até então, conhecia-se apenas o li-
toral, por via dos contos exóticos, fantásticos, carregados de notícias
tremendas, como a antropofagia. Entretanto, neste período, os eu-
ropeus exploraram a África para dividi-la entre si. Organizaram-se
as famosas viagens «triangulares» entre a Europa, África e América.
Difundiu-se a «imprensa missionária», que exaltou os missionários
como «seres excepcionais», com o fim de recolher fundos para as
actividades das missões, criando deste modo o mito africano do
«pobre negro», doente, escravo e ignorante.
Evangelizar é também fazer promoção humana, libertar os es-
cravos da ignorância. O Cristianismo difundiu-se muito com as
escolas e com a conversão dos jovens (os adultos são sempre mais
resistentes à conversão), mostrando a irracionalidade de muitas tra-
dições. Os missionários seguiam uma estratégia de criação de elites
em ruptura com o «paganismo africano». Para além da igreja e da
escola, cada missão tinha um ambulatório (alma, mente e corpo!).
Todavia, o ponto limite foi que estas actividades foram sempre sus-
tentadas graças às ajudas externas atribuídas aos missionários es-
trangeiros que, quando se iam embora, chegavam a seu termo. A
educação introduziu um grande paradoxo: de um lado, combatiam-
-se as culturas locais; por outro, incentivava-se mais as línguas
locais (com traduções da Bíblia, catecismos, etc.). Com estas obras
educativas missionárias e com tais contradições lacerantes, adveio
o grande impacto do Ocidente sobre a África Negra 120. As missões,

120 «In un contesto in cui i bianchi sono l’immagine perfetta della specie umana, ossessionati

dalla mania di assimilazione, si cerca in ogni modo di plasmare i neri a immagine dei bianchi»
(«Num contexto em que os brancos são a imagem perfeita da espécie humana, obceca-
dos pela mania de assimilação, procura-se, de todas as maneiras, plasmar a imagem dos
brancos nos negros»; [T. do A.]). Ibidem, p. 33.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página50

50 | MUNTUÍSMO

segundo Ela, prestaram um grande serviço às administrações civis


porque a cristianização foi muitas vezes sinónimo de ocidentaliza-
ção. A Igreja permaneceu, por muito tempo, uma figura estrangeira.
Ela insiste dizendo que as Igrejas africanas devem libertar-se do
imperialismo clerical que mantém sempre as comunidades cristãs
submissas, infantis e irresponsáveis. Como deve, então, repensar-
-se a Igreja em África? Eis a receita de Ela: romper com a teologia
norte-atlântica; comunhão entre as Igrejas africanas; superar a
missão concebida como compaixão pelo «pobre negro» 121; novo pro-
jecto de evangelização da África contemporânea. A teologia deve de-
cifrar o sentido da revelação no contesto histórico. O ponto de refe-
rimento imprescindível é o livro do Êxodo, o grande ausente no
cristianismo colonial: «Il Dio della predicazione missionaria sembrava
così estraneo alla storia dei popoli colonizzati, sfruttati e oppressi, da essere
difficilmente identificabile con il Dio dell’Esodo, cosciente della situazione
di oppressione e servitù in cui si trova il suo popolo» 122. Um Deus imu-
tável e insensível, longe da realidade histórica. Salvação não é
apenas ir para o paraíso, mas é algo histórico: «essere salvato significa
essere liberato dalle forme di alienazione che imprigionano l’uomo già nel
presente» 123. A Igreja, pensando apenas na alma das pessoas, consoli-
dava o seu estado de miséria. O Êxodo faz sentido para a África por-
que ressalta a relação entre a Revelação e a história. Moisés não pre-
gou a libertação, mas guiou Israel para fora da casa da escravidão.
O homem africano é um ser religioso? Ela afirma que «sono pochi
gli uomini che non fanno riferimento a una qualsiasi forma di sacro, che è
la categoria fondamentale della vita» 124, e logo depois continua afir-

121 Esta mentalidade subsiste ainda nos nossos dias.


122 «O Deus da pregação missionária parecia tão alheio à história dos povos coloni-
zados, explorados e oprimido, sendo dificilmente identificável com o Deus do Êxodo,
consciente da situação de opressão e escravidão em que se encontrava o seu povo» [T. do
A.], Ibidem, p. 42.
123 «Ser salvo significa ser liberto das formas de alienação que escravizam o homem já

no presente» [T. do A.], Ibidem, p. 43.


124 «São poucos os homens que não fazem referência a uma qualquer que seja forma

de sacro, que é a categoria fundamental da vida» [T. do A.], Ibidem, p. 53.


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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 51

mando que tal religiosidade é vista por fora negativamente, porque


não permitiria mudanças de mentalidade e estruturas, deixando o
Africano numa dependência alienante dos fenómenos. A religião,
sendo um fenómeno predominante nos países subdesenvolvidos,
justificaria a opressão como vontade divina, inculcando o respeito
pela ordem preestabelecida e autorizando a exploração. Depois de
citar a frase de Feuerbach, segundo o qual é necessário que o Ho-
mem seja escravo na terra para que o Céu não seja inútil, Ela afirma
que é desprovido de sentido perguntar-se se a religião é fonte de
alienação, porque isto depende da prática na sociedade. Em África, o
Cristianismo foi instrumento da expansão do colonialismo? É exac-
tamente a isto que se refere a expressão «evangelização ambígua». O
objectivo, porém, era a luta contra a bruxaria e a poligamia, fenó-
menos considerados típicos das sociedades inferiores ou pagãs.
É necessário analisar, argumenta Ela, se a religião constitui um
obstáculo ao progresso do Homem na África Negra. Mesmo neste
caso, é evidente um encontro de paradoxos: primeiramente, o sub-
desenvolvimento era atribuído à mentalidade pré-lógica dos africa-
nos; depois, foram revalorizadas as tradições; e, por fim, hoje se
imputa à lógica tradicional das religiões ancestrais a causa do per-
manente subdesenvolvimento das populações. No princípio as
religiões africanas eram consideradas um grave obstáculo à conver-
são do negro à fé cristã, propedêutica a qualquer educação, inclu-
sive a científica; hoje são consideradas, a par do Cristianismo, in-
compatíveis com uma visão científica do mundo. Além disso,
continua o preconceito acerca da preguiça dos negros. Mas estas são
mistificações que ocultam as verdadeiras causas da actual situação
dos povos africanos. Dizer que a causa é a religião tradicional é
negar a responsabilidade do Ocidente. Diante da acusação de que a
África está submissa aos mitos, Ela nota que a Europa é igualmente
submissa aos mitos (automóvel, sexo, etc.), assim como o marxismo
foi um mito, as ideologias, os mártires, os dogmas, as inquisições,
as peregrinações, etc., e conclui: «credere che in Africa lo sviluppo
dell’uomo consista nel passaggio dalla mentalità magico-religiosa a quella
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52 | MUNTUÍSMO

tecnico-scientifica è una illusione» 125. As causas do subdesenvolvimen-


to não são algo de natural, mas um efeito das estruturas de domina-
ção e dependência, que nada têm a ver com as religiões africanas 126.
Pelo contrário, a religião africana foi ocasião de coesão dos negros
para a luta, não foi ópio dos povos, mas o campo de batalha para a
libertação dos oprimidos, espaço de elaboração de uma consciência
crítica. Os messianismos africanos, acredita Ela, não são algo de
irracional, mas produtos da religião: os profetas «negros» não aspi-
ram ao retorno aos deuses dos antepassados, mas perguntam-se
como fazer chegar a mensagem do Evangelho em África. Não se
permanece à espera de uma solução futura, no Céu, mas do pro-
longamento da vida, da felicidade nesta terra. As Igrejas têm um
papel importante na reconstrução após a independência 127. A Igreja
deve libertar o Evangelho de um cristianismo burguês, para torná-
-lo força indispensável ao progresso da história. A independência
não mudou muita coisa, afirma Ela, para quem a realidade dos
países piorou, porque hoje o colono é o próprio irmão 128. A inde-
pendência não ajudou a superar o complexo de inferioridade ra-
cional nem a criar uma sociedade melhor. J. M. Ela é de opinião que
se deve deixar de falar de pobreza, porque a África tem enormes
riquezas. A imprensa é controlada, o jornalista é um opositor que
deve ser controlado e submetido. Nem mesmo na família há liber-
dade de expressão, uma vez que o vizinho pode escutar e expor
tudo. A cultura e a arte são controladas. É o triunfo da unanimi-
dade. Repúblicas do silêncio que se transformam em cemitérios de
inteligência. Falta um debate político real. Unidade, frequentemen-
te, significa eliminação da oposição (os relatórios da Amnesty Inter-

125 «Acreditar que em África o desenvolvimento do homem consista na passagem da

mentalidade mágico-religiosa à técnico-científica é uma ilusão» [T. do A.], Ibidem, p. 59.


126 Cf. Ibidem.

127 É a posição também defendida por Severino Ngoenha na sua Filosofia africana. Das

independências às liberdades, Porto, Ed. Paulistas-Africa, 1992.


128 Para muitos a independência resumiu-se apenas à obrigação do bilhete de identi-

dade ou do partido único. Os governos se apoiaram nas repressões, ou na difusão dos


bares e das discotecas. Cf. Ibidem, pp. 76-77.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 53

national sempre condenam a África a este respeito). Existem cam-


pos de tortura tidos por «centros de reeducação cívica» 129. Qualquer
crítica é tida por subversão. Simpatizar com um partido da oposição
é motivo de tortura. E tudo isto contribui para a fuga dos cérebros.
A opinião internacional é indiferente diante das torturas em África,
mas não em relação às torturas na Rússia, América Latina, etc.
Neste contexto de opressão, a Igreja deve ser voz dos sem-voz,
uma das raras vozes que defendem os homens. Os bispos têm um
papel fundamental. Devem colocar-se na pele dos «danados da
terra», pois ficar calados seria uma grande traição.
Outro problema do homem africano é a desocupação que grassa
também os intelectuais: ter título de estudo não é garantia de em-
prego 130. J. M. Ela condena as organizações em prol do desenvolvi-
mento, que são dirigidas por uma pequena elite, e, na maioria (80%),
de origem estrangeira; e critica ainda a política das monoculturas
que apenas criam dependência, porque os ganhos decorrentes não
são investidos in loco e provocam novamente fome, a ponto de os
camponeses constituírem a classe mais pobre e expropriada. As
elites locais são coniventes com as grandes sociedades estrangeiras.
Como os seus «colegas» da teologia da libertação latino-ameri-
cana, J. M. Ela coloca uma série de perguntas do tipo: o que é o de-
senvolvimento? Será um sistema económico que cria apenas de-
pendência? O que pode esperar o povo, quando o poder decisivo
não está do seu lado, mas no dos poderosos? O que pode planificar
o povo, se não tem poder financeiro? Os ganhos do desenvolvimen-
to não têm nenhum impacto positivo sobre os mais indigentes. A
partir destas problemáticas emerge a questão do sentido da fé na
situação actual da África Negra. É necessário «organizzare la fede, la
liturgia e la prassi evangelica a partire dal problema attuale dei popoli
africani» 131. Torna-se necessária uma mudança não apenas de estru-

129 Cf. Ibidem, p. 85.


130 «Os diplomas passados pelo sistema de ensino são moeda falsa.» Ibidem, p. 100.
131 «Organizar a fé, a liturgia e a praxe evangélica a partir do problema actual dos

povos africanos» [T. do A.]. Ibidem, p. 106.


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54 | MUNTUÍSMO

turas, mas de mentalidade, uma «revolução cultural». É necessário


afirmar a dignidade humana num contexto de prostituição, porno-
grafia e nivelamento cultural que gera o mito do herói individualis-
ta. As personalidades mais fortes se atrofiam na monotonia dos
bares e discotecas; o desenvolvimento é apenas para poucos, en-
quanto o povo continua maioritariamente pobre. Todavia, Deus está
do lado dos mais fracos. A missão da Igreja consiste em ser cons-
ciência da nação, denunciar abusos criminais, a injustiça e a cor-
rupção da classe do poder 132. Ela conclui sustentando que é neces-
sário «vivere la fede nei luoghi di tensione, nei quali si prepara l’Africa di
domani, ricordandoci che il futuro appartiene a coloro che avranno saputo
dare alle generazioni di oggi le motivazioni per vivere e sperare» 133.
As Igrejas devem continuar em comunhão entre si. Mas que rela-
ção existe entre as Igrejas do primeiro e do terceiro mundo? Estas
últimas são Igrejas «terceiras»? As Igrejas são frágeis porque não re-
flectiram sobre os problemas da fé. Mas a Igreja torna-se «Igreja
local» em África, se adopta os valores autênticos da civilização
negra. Como os teólogos latino-americanos, J. M. Ela critica o con-
trolo de Roma sobre as Igrejas locais e auspicia certa autonomia na
teologia, disciplina, pastoral e liturgia (que não deve ser apenas a
introdução de ritos folclóricos).
Para a pesquisa de uma autenticidade africana é necessária uma
releitura do Evangelho.
J. M. Ela critica, por fim, a ideia de negritude, porque exalta a

132 Aqui J. M. Ela cita as palavras do estadista Julius Nyerere: «Nei paesi poveri, la

Chiesa deve mettersi costantemente e attivamente a fianco dei poveri e dei miserabili. Deve con-
durre gli uomini alla santitá, unendosi a loro nella lotta contro l’ingiustizia […]. I suoi membri
devono diventare servitori del mondo, con la volontá di condividere le proprie conoscenze e le pro-
prie doti con coloro che riconoscono come fratelli e sorelle in Cristo» (Nos países pobres, a
Igreja deve colocar-se constantemente e activamente ao lado dos pobres e miseráveis.
Deve conduzir os homens à santidade, unindo-se a eles na luta contra a injustiça […].
Os seus membros devem tornar-se servidores do mundo, com a vontade de partilhar os
próprios conhecimentos e os próprios dotes com aqueles que reconhecem como irmãos
e irmãs em Cristo.» [T. do A.], Ibidem, p. 119.
133 «Viver a fé nos lugares de tensões, onde se prepara a África do amanhã, lem-

brando-nos que o futuro pertence àqueles que saberão dar às gerações de hoje as moti-
vações para viver e esperar», [T. d. A.] Ibidem, p. 124.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 55

relação Homem-natureza, grupo-emoção, ritmo, símbolo, dança e


outras ideologias importadas da Europa, tais como o mito do bom
selvagem. Estas ideias distraem dos problemas hodiernos porque
levam o Homem a voltar-se para o passado, de modo que tudo con-
tinuará imutável. Confunde-se a identidade africana com a busca de
um passado mítico, mas assim se alimenta a estupidez. Definir o
Africano como «emoção» é negar-lhe as capacidades críticas ne-
cessárias para libertar-se do neocolonialismo. É necessária uma lin-
guagem nova, reinventar tudo e não apenas o folclore; promover
uma reinterpretação. E toda esta autonomia cultural talvez seja pos-
sível quando houver uma autonomia económica.

JOHN MBITI: Ser ontologicamente religioso

Entre os críticos de Tempels que mais importam à nossa pesquisa


da ideia de pessoa na filosofia africana, encontramos o pastor angli-
cano de origem queniana, John Mbiti, autor do já citado texto
African Religions and Philosophy 134, no qual contesta Tempels pela
presunção de falar de filosofia bantu, quando na verdade tem como
base a experiência de uma tribo particular.
Mbiti fala de religiões, porque em África existem mais de três mil
povos, cada um dos quais com o próprio sistema religioso. Ignorar
as religiões africanas implica não poder compreender os comporta-
mentos e problemas dos africanos, uma vez ser a religião a maior in-
fluência da vida e do pensamento destes povos. Mbiti concebe a fi-
losofia africana como «la comprensione, l’atteggiamento mentale, la
logica e la percezione insiti nel modo in cui i popoli africani pensano, agis-
cono o parlano nelle varie circostanze della vita» 135. A religião acom-
panha sempre o Africano, pelo que não existe diferença entre o

134 J. MBITI, Africans Religions and Philosophy, Nairobi, East African educational Pu-

blishers, 1969. Fazemos referência à tradução italiana: J. MBITI, Oltre la magia, Turim, SEI,
1992.
135 «A compreensão, a atitude mental, a lógica e a percepção ínsitos no modo em

que os africanos pensam, agem ou falam nas várias circunstâncias da vida» [T. do A.],
Ibidem, p. 2.
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56 | MUNTUÍSMO

sacro e o profano. Mbiti ousa afirmar que em África não existem


africanos irreligiosos 136. Na «Religião tradicional africana» (RTA)
não existem dogmas, apenas tradições activamente transmitidas;
não existem credos por professar, nem escrituras sagradas, nem
missionários, nem fundadores. Existe a crença na vida após a morte,
embora não constitua uma esperança no futuro, numa vida melhor.
Não existe paraíso ou inferno. O culto é pragmático. As RTA apenas
foram tomadas em séria consideração nos últimos tempos. Os pri-
meiros estudiosos, muito críticos, pesquisavam as suas fontes exter-
nas. E. B. Tylor definiu as RTA como «animismo», um conjunto de
crenças segundo as quais todas as coisas têm uma alma, colocando
a RTA no ponto mais baixo da linha evolutiva que, partindo do ani-
mismo, se desenvolveria no politeísmo e atingiria o ápice da espiri-
tualidade no monoteísmo. Mbiti sublinha que as RTA são historica-
mente mais antigas do que o Cristianismo e o Islamismo, e não
podem ser reduzidas ao «culto dos antepassados» ou à superstição
e magia como ilusória manipulação da realidade, senão pelo persis-
tir de uma grave forma de ignorância, de negação racista em com-
preender a profundeza espiritual: «la religione è più grande della magia
e solo un estraneo ignorante potrebbe immaginare che le religioni africane
non siano niente più che magia» 137. Concordando com Tempels, Mbiti
conclui com dureza que «malauguratamente, gli autori stranieri, per
loro grande ignoranza, non sono mai arrivati a comprendere questa visione

136 O que nos parecia um paradoxo é anualmente confirmado pelas centenas de estu-

dantes da nossa universidade que, desafiados pela questão, não apenas se professam
«fiéis» da religião tradicional africana, como também afirmam não conhecer nenhum
africano que não professe a mesma fé.
137 «A religião é mais do que magia e somente um estrangeiro ignorante poderia

imaginar que as religiões africanas não sejam senão magia» [T. do A.], Ibidem, p. 11. De
seguida Mbiti repercorre as tentativas dos vários estudiosos a partir de Tempels, pas-
sando por Alexis Kagame e as suas quatro categorias, depois retomadas por Jahn:
Muntu (Deus, espíritos, seres humanos e algumas plantas); Kintu (as forças comandadas
pelo Muntu); Hantu (categoria do espaço e tempo); Kuntu (algums modalidades como a
beleza, o riso, etc.). Todos estes termos têm em comum o sufixo ntu que é a força uni-
versal, o Ser. Em 1963, seguiu-se o estudo de J. V. Taylor que exalta sobremaneira tudo
quanto seja africano. O estudo da filosofia e religião africanas iniciou-se nos anos ‘40 e
‘50, na África ocidental, e, nos anos ‘60-’70, na região oriental.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 57

profondamente religiosa dei nostri popoli e l’hanno ridicolizzata o presen-


tata scioccamente come “culto della natura” o “animismo”» 138. Mbiti in-
siste afirmando que, não obstante o mundo espiritual exercer um
papel determinante na vida africana, não foi ainda objecto de um
estudo sério.
O grande interesse que este estudo comparativo das religiões, em
mais de trezentas tribos africanas, suscita em nós é a abordagem da
religião africana como um fenómeno ontológico do qual emerge,
inevitavelmente, uma determinada concepção de homem e de
pessoa.
Como chave para a compreensão da religião e filosofia africanas
Mbiti utiliza a categoria de tempo. A palavra religião é de difícil ex-
plicação, especialmente na tradição africana, porque se trata de um
fenómeno ontológico que diz respeito à questão da existência ou do
ser. Segundo Mbiti, os missionários, antropólogos e administrado-
res não interpretaram correctamente as religiões e os povos afri-
canos. Estamos diante de uma ontologia religiosa antropocêntrica.
Mbiti individua cinco categorias: a) Deus, b) Espíritos, c) homens,
d) animais e plantas, e) fenómenos e objectos sem vida biológica.
Para além destas cinco categorias, existe uma força (energia) que se
difunde no universo inteiro; Deus é o controlador desta força, e os
espíritos podem ter acesso a ela só em parte.
Como já adiantado, o tempo é a categoria fundamental para com-
preender a filosofia africana. O tempo para os africanos é uma com-
posição de eventos que tiveram lugar ou estão por acontecer.
Existem apenas o passado e o presente. Não existe virtualmente um
futuro. A atenção é concentrada mais sobre o que já aconteceu e não
no futuro. Apenas o tempo vivido faz sentido: o futuro não foi ainda
vivido, a menos que se trate de fenómenos naturais.
Por passado se entende o que aconteceu no máximo há duas dé-

138 «Infelizmente, os autores estrangeiros, devido à sua grande ignorância, nunca

chegaram a compreender esta visão profundamente religiosa dos nossos povos e a ridi-
cularizaram ou a apresentaram estupidamente como “culto da natureza” ou “ani-
mismo” [T. do A.], Ibidem, p. 62.
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58 | MUNTUÍSMO

cadas. Não existem calendários numéricos, apenas calendários de


fenómenos. Existem povos que regulam o dia em função da vida
dos animais (por exemplo, a hora de dar de comer às vacas, de
extrair o leite, dormir, etc.), de tal forma que um ano pode contar
350 ou 390 dias, conforme a sucessão dos eventos.
Por futuro se entende algo que pode acontecer em breve, no má-
ximo dentro de dois anos. Não existe um futuro messiânico nem
uma ideia de progresso, nem mitos acerca do fim do mundo porque
o mundo não tem fim. Todavia, Mbiti reconhece que esta teoria
acerca do futuro, ou esta falta de futuro que ele defende, é contes-
tada por muitos 139. De facto, parece que tempo e espaço sejam a
mesma coisa. Com efeito, para defini-los, usa-se a mesma palavra.
O espaço é o concreto, vivido, a própria terra. A descoberta da di-
mensão temporal do futuro depende da educação dos missionários,
do Ocidente, da tecnologia…
Mbiti recorre a dois termos da língua swahili para definir o tem-
po: sasa, o agora, o microtempo vivido; zamani, o macrotempo, o
período do mito que engloba também o sasa.
Depois da morte, o indivíduo continua a viver no sasa, não desa-
parece completamente, porque é recordado pelos seus parentes e
por todos quantos o conheceram. Este antepassado será completa-
mente morto quando passará do sasa ao zamani. Enquanto um indi-
víduo morto for chamado pelo nome, não está completamente
morto, é um «morto-vivo» e vive uma imortalidade pessoal 140. Morrer
sem parentes é a pior desgraça, porque ninguém «fará viver» o de-
funto após a morte. Por este motivo, é importante a família e a pro-
criação, a fim de garantir a imortalidade pessoal. Quando morre a
última testemunha, o morto-vivo passa a fazer parte da imortalidade

139 De facto, mesmo no contexto em que vivemos, em Moçambique, não se encon-

tram correspondências desta teoria. As pessoas que conhecemos programam e investem


num futuro não apenas imediato. Mas não só o tema do futuro é um dos paradigmas
principais da filosofia de Severino Ngoenha, o mais importante filósofo moçambicano,
como teremos ocasião de analisar mais à frente.
140 Ibidem, p. 28.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 59

colectiva. Percebe-se aqui uma ideia de ser que não desaparece com a
morte, mas continua a sua «vida» depois da morte. Para alguns
povos estes espíritos são intermediários entre Deus e os homens, e os
homens procuram ajuda nestes espíritos. A pior coisa que pode su-
ceder é que um morto seja imediatamente esquecido e «excomunga-
do da imortalidade» e destinado a um estado de não existência. Esta
entidade espiritual que sobrevive à morte corresponde mais à ideia
de pessoa do que àquela de Homem, como já clarificado por Tempels.
Para a compreensão da ideia «africana» de pessoa, é de extrema
importância o conhecimento da noção de Deus. Mbiti não só afirma
que todos os povos africanos têm uma noção de Deus, como diz
ainda que a África é suficientemente fértil, no seu imaginário reli-
gioso e na sua sageza tradicional, para poder produzir uma per-
cepção religiosa original.
Do ponto de vista ontológico, na religião africana Deus é aquele
que dá origem a todas as coisas e mantém a vida. Deus é simulta-
neamente transcendente e imanente: permanece longe dos homens,
a ponto de não ser acessível, mas está também próximo, a ponto de
se poder afirmar que teoricamente é transcendente, mas pratica-
mente imanente, embora muitos autores sublinhem mais a sepa-
ração do mundo do que a proximidade.
Os atributos de Deus são: omnisciente, omnipresente, omnipo-
tente. É considerado um Espírito. Cada povo africano reconhece
Deus como Uno.
Os atributos morais de Deus são: misericordioso, clemente, com-
passivo. A maior parte dos povos considera Deus como bom, justo.
Não se define Deus como amor, talvez porque os africanos rara-
mente falam de amor 141.
A principal actividade divina é a criação: Deus criou do nada.
Outra actividade divina é a satisfação da necessidade das suas cria-
turas: vida, fertilidade, chuvas, etc. A luz do sol é um sinal da provi-
dência divina. O sinal mais claro é o da chuva, que é sempre uma

141 Ibidem, p. 42.


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60 | MUNTUÍSMO

bênção. Deus preserva, protege, defende, transporta os homens


sobre os seus ombros. Muitos povos acreditam que Deus possa
mandar desgraças, doenças (como a demência), epidemias, guerras,
desastres naturais (entendidos como punições de Deus pela mal-
dade do povo). A maior desgraça de todas é a morte (punição ou
maldição). Deus é considerado por muitos como governante,
patrão, juiz. Algumas sociedades consideram os próprios chefes
como «representantes» de Deus.
Deus intervém na história humana através dos chefes. Intervém
especialmente com a chuva: tivemos ocasião de notar que o Afri-
cano vive num universo religioso, de tal forma que os fenómenos
naturais são intimamente associados a Deus. Estando o homem
africano no centro do universo, interpreta tudo antropocentrica-
mente. A Deus vem atribuída também uma natureza humana. Deus
é tido por pai ou mãe, e os seres humanos «filhos de Deus» ou
«povo de Deus». Poucos são os povos que atribuem um corpo a
Deus. Os animais são usados para os sacrifícios. Deus vem associa-
do a objectos ou fenómenos naturais; o céu é considerado a habita-
ção de Deus. O sol nunca é considerado um Deus. A chuva é con-
siderada bênção, mas nunca Deus. Os trovões são considerados por
muitos povos como a voz de Deus. Outros elementos da natureza
podem ser manifestações de Deus, mas nunca Deus. Alguns con-
sideram o terramoto como «Deus que caminha». Algumas cores,
como o preto e o branco, e alguns números podem ser sagrados. O
culto divino apresenta profundas diversidades, de povo para povo.
Alguns povos passam muito tempo em actos de culto, e outros o
fazem raramente. As ocasiões e lugares de culto são inúmeros.
Existem sacrifícios de animais e ofertas de comida e demais coisas a
Deus, aos espíritos e aos «mortos-vivos». Estes últimos são apenas
intermediários porque «Dio è il destinatario ultimo, indipendentemente
dal fatto che i devoti se ne rendono conto o meno» 142. Existem numerosos
intermediários, como os adivinhos, magos, chefes tradicionais,

142 Ibidem, p. 64. Espíritos e antepassados, tanto quanto nos parece, são equiparáveis

aos santos e mortos na religião católica pois todos são apenas intermediários. Há quem
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 61

anciãos, mas o grupo mais vasto de intermediários é o dos «mortos-


-vivos», ao qual cada homem deverá pertencer 143. Animais e objec-
tos não são possíveis intermediários: não existem ídolos na religião
africana. Todos os povos têm um sistema de reza próprio. A maior
parte das preces são dirigidas a Deus, especialmente através do
canto. Nas rezas se pede algo de prático e não de ordem espiritual
ou prémios finais 144. Os sacrifícios e as ofertas são feitos para resta-
belecer uma ordem ontológica perturbada 145.
Mbiti distingue dois tipos de seres espirituais: os que foram cria-
dos como tal por Deus e os que outrora foram humanos. Pertencem
a um modo ontológico de existência situado entre Deus e os
homens. Os primeiros são como «divindades» associadas a Deus.
Algumas tribos têm centenas de divindades associadas a elementos
naturais ou de carácter mitológico, fruto de tradições imaginárias
ligadas a factores locais. As próprias fontes a respeito, etnológicas
ou antropológicas, são muito confusas. Os espíritos são inúmeros e
de difícil definição: «possiamo affermare che gli spiriti sono quegli esseri
spirituali “comuni” al di sotto dello status di divinità e al di sopra dello
status di uomini» 146. Para muitos povos são o que resta dos seres hu-
manos após a morte física, pelo que todos os seres humanos tornar-
-se-ão espíritos 147. Mbiti propõe a substituição dos nomes «espíritos
ancestrais» e «antepassados» por «espíritos» e «mortos-vivos».

(por exemplo, Ezequiel Kwambe) compare a importância dos antepassados à de Jesus


Cristo na religião católica. São duas coisas totalmente diferentes. Assim como considerar
Jesus como o primeiro (o grande) antepassado é, segundo nós, um procedimento des-
viante de algumas cristologias africanas.
143 Todos serão «mortos-vivos», mas nem todos serão considerados «antepassados».

Os antepassados deverão ter características particulares, das quais nos ocuparemos


mais adiante.
144 Contrariamente a quanto afirmava Tempels, Mbiti defende que a ideia agostinia-

na da alma insatisfeita, enquanto não se encontra em Deus, é desconhecida na vida reli-


giosa africana. Cf. Ibidem, p. 73.
145 Parece que antigamente existiam também sacrifícios humanos. Mbiti sustenta, in-

quietantemente, que esta prática pode não ter desaparecido totalmente ainda.
146 «Podemos afirmar que os espíritos são aqueles seres espirituais “comuns” debai-

xo do status de divindade e acima do status de homens» [T. do A.], Ibidem, p. 84.


147 Mbiti também confirma a existência de um ser que continua a viver depois da

morte. Uma ideia de homem e pessoa que sobrevive ao decompor-se do corpo.


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62 | MUNTUÍSMO

Os espíritos não são, em si, nem bons nem maus, mas convém
que se mantenha distância deles. Uma pessoa possuída pelo espírito
se torna medium. Mesmo dos «mortos-vivos» convém que se man-
tenha distância, após receber deles aquilo de que precisamos.
Por vezes os homens podem ver os espíritos e há várias descri-
ções de visões de espíritos da parte de várias testemunhas, que de-
vemos avaliar com os seus exageros, bizarrices ou má-fé. Um caso
típico é o das mulheres que afirmam encontrarem-se grávidas por
obra do espírito do marido. Embora Mbiti convide à máxima cau-
tela crítica na análise destas fontes, na descrição destas experiências,
o autor conclui, em tom rendido, que: «esistono altre storie analoghe a
queste e non c’è ragione di dubitare della veridicità della maggior parte di
esse, soprattutto da quelle narrate da chi ha vissuto direttamente ciò che
descrive» 148.
A ontologia africana é, para Mbiti, essencialmente antropocên-
trica: «l’uomo è situato al centro dell’esistenza e i popoli africani interpre-
tano tutto in relazione a questa posizione centrale dell’uomo. Dio è la spie-
gazione dell’origine e del sostentamento dell’uomo: è come se Dio esistesse
solo nell’interesse dell’umanità» 149. Doravante, toda a obra de Mbiti
será dedicada ao estudo da percepção africana do homem, do ho-
mem criado, do homem na sociedade e do homem que muda.
Quanto à origem do homem, muitas histórias da criação susten-
tam que o paraíso era um momento de felicidade. Em algumas his-

148 «Existem outras histórias análogas a estas e não há razão para duvidar da veraci-

dade da maior parte destas, especialmente daquelas contadas por quem viveu directa-
mente o que descreve» [T. do A.], Ibidem, p. 92. Nestes anos, nós também escutamos
várias descrições similares e é surpreendente ver como todos crêem firmemente nestas
descrições, até mesmo docentes universitários (professores de Filosofia!). Vale a pena
mencionar, em contrapartida, as posições notoriamente laicas e ateias, como as de
Kwasi Wiredu ou Kwame Antony Appiah, enquanto Valentin Yves Mudimbe se declara
um agnóstico cristão e Alexis Kagame reivindica para as religiões tradicionais uma
qualidade eminentemente metafísica: V. Y. MUDIMBE, Les corps glorieux des mots et des
êtres. Esquisse d’un jardin africain à la bénédictine, Montreal, Paris, 1994, p. I; A. KAGAME, La
philosophie bantu comparée, Paris, 1976, pp. 269-270.
149 «O homem está situado no centro da existência e os povos africanos interpretam

tudo em relação a esta posição central do homem: é como se Deus existisse somente no
interesse da humanidade» [T. do A.], Ibidem, p. 97.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página63

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 63

tórias narra-se a proibição de comer certo tipo de fruta, mas uma


hiena rompeu a ordem que separa a família de Deus (progenitores)
e os homens (filhos). Outros povos afirmam que a separação deveu-
-se ao barulho ou aos fogos que os homens provocavam. Desta se-
paração o homem saiu prejudicado, mas não se apresentam solu-
ções para esta perda, não existe nenhuma «gloriosa esperança».
Para Mbiti esta é a fraqueza da religião africana, e as religiões uni-
versais poderão conquistar as religiões africanas não pela força, mas
levando os homens africanos a esta nova experiência.
Depois da criação surgiram tantas raças em África (boscimanoi-
des, caucasóides, mongolóides, negróides, pigmóides, etc.) e tantas
tribos 150 (cerca de três mil) diferentes e cada uma com a própria
língua: cerca de duzentas línguas agrupáveis em grupos linguísti-
cos como bantu, camitico-semitico, khoisan, malese-polinesiano, ne-
grítico, sudânico, etc., para além do inglês, francês, português, espa-
nhol, afrikaans e árabe. Há tentativas de promoção das línguas
locais 151, pese embora os jovens prefiram as línguas europeias. Cada
povo circunscreve-se geralmente num contexto geográfico parti-
cular, não obstante a Conferência de Berlim de 1885, traçando novas
fronteiras, ter transtornado e separado muitos povos. Cada povo
tem a sua cultura e os seus mitos sobre a origem, com os próprios
heróis «fundadores». Cada povo tem a sua organização social e
política distinta, o próprio sistema religioso, embora Mbiti se tenha
esforçado por demonstrar que neste estudo comparado existem
mais semelhanças do que diferenças, e os conceitos fundamentais
constantes são, como dito, crença em Deus, existência dos espíritos,
continuação da vida após a morte, magia e bruxaria, etc., e os ter-
mos para indicar estas realidades são similares em muitos povos 152.

150 Mbiti prefere o termo «povos» porque «tribo» assume cada vez mais uma conota-

ção seminegativa. Cf. Ibidem, p. 106.


151 No caso moçambicano, nos últimos anos, o Governo publicou um dispositivo que

prevê a introdução das línguas locais no ensino público. Por outro lado, porém, as lín-
guas não são usadas em ambientes oficiais, salvo nas celebrações religiosas.
152 Cf. Ibidem, pp. 108-109.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página64

64 | MUNTUÍSMO

Uma das principais forças na vida tradicional africana é o pro-


fundo sentido de parentela, determinado através de elos de sangue
ou alianças. A rede de parentela na tribo é de tal modo complexa
que cada membro é parente de todos, ao ponto de ter centenas de
«pais», «mães», «tios», «irmãos», «filhos», etc. Cada tribo subdivide-
-se em «clãs», por seu turno subdivididos em sub-clãs, «gate», ou
seja, grupos cujos membros têm um antepassado comum até seis ou
sete gerações precedentes. Existem, por fim, as famílias alargadas,
que compreendem os parentes próximos, incluindo os «mortos-
-vivos» e os que estão por nascer; e as famílias nucleares ou «noctur-
nas» (progenitores e filhos). As casas (geralmente cabanas circula-
res) e os vilarejos são muitos similares em toda a África.
Mas numa sociedade como esta, que lugar ocupa o indivíduo?
Em África, o indivíduo não pode existir sozinho, apenas no seio da
comunidade, sendo parte de um todo. Não basta nascer, é necessá-
rio ser integrado na sociedade através de ritos de iniciação. Tudo
quanto diz respeito ao indivíduo diz respeito ao grupo inteiro. Para
clarificar a natureza deste sentimento fundamental de pertença,
Mbiti introduz um princípio, depois convertido num dos axiomas
mais famosos e citados da filosofia africana: «eu sou porque nós
somos e, porque somos, então sou», sustentando que «questo è un
punto cardinale per comprendere il concetto africano di uomo» 153.
Para o argumento desta tese, este é um ponto crucial, dada a
enorme importância deste princípio que todos os autores reconhe-
cem ter sido aprofundado particularmente por Mbiti. Importa então
descer mais a fundo, retomando de seguida a análise do texto de
Mbiti.
A aplicação historicamente mais importante deste princípio deu-
-se com a política da reconciliação que visava superar os erros do
apartheid na África do Sul, instituindo a Truth and Reconciliation

153 «Este é o ponto cardeal para compreender o conceito africano de homem» [T. do

A.], Ibidem, p. 114. Umuntu ngumuntu ngabantu, diz um aforisma zulu, atestado em
várias áreas bantu «Uma pessoa é uma pessoa através de uma outra» (A. SHUTTE, Phi-
losophy for Africa, Rondebosch-South Africa, 1993, p. 46).
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página65

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 65

Commission (TRC), «Comissão para a verdade e reconciliação». A


Comissão foi inspirada na doutrina do ubuntu, na fraternidade in-
trínseca à identidade africana, fundada sobre o princípio enunciado
por Mbiti. A dita Comissão teve a tarefa de processar os criminosos
do regime do apartheid, não para puni-los, mas para que com a
plena confissão dos seus delitos e com o perdão da parte dos ofen-
didos, pudessem ser reinseridos na comunidade, em nome do pri-
mado da Pessoa. O autor de referência é, sobretudo, Desmond Tutu,
um dos grandes protagonistas do fim do apartheid: «Gli africani
hanno questa cosa chiamata ubuntu... l’essenza dell’essere umano. È parte
del dono che gli africani danno al mondo. Abbraccia l’ospitalità, il pren-
dersi cura degli altri, la voglia di affrontare mille miglia per amore degli
altri. Crediamo che una persona è una persona attraverso un’altra
persona. Che la mia umanità è allacciata, afferrata inestricabilmente nella
tua. Se ti disumanizzo inesorabilmente, disumanizzo me stesso. L’indivi-
duo solitario è una contraddizione in termini e, quindi, tu cerchi di lavo-
rare per il bene comune perché la tua umanità partecipa della sua stessa
comunità, le appartiene» 154.
O «sou porque somos» de Mbiti retoma um conhecido aforisma
zulu, atestado nas mais diversas áreas bantu, que melhor exempli-
fica o primado da pessoa na filosofia tradicional africana, funda-
mentado no espírito do ubuntu, para a reconciliação: Umuntu ngu-
muntu ngabantu (Uma pessoa é tal através de uma outra pessoa) 155.
Voltaremos a este ponto fundamental.
De volta ao nosso texto, Mbiti continua apresentando a religiosi-
dade do homem africano em todas as suas fases da vida.

154 «Os africanos têm esta coisa chamada ubuntu... a essência do ser humano. É parte

do dom que os africanos dão ao mundo. Inclui a hospitalidade, o cuidado dos outros, a
vontade de enfrentar muito caminho por amor dos demais. Acreditamos que uma pessoa é
pessoa através de uma outra pessoa. Que a minha humanidade está ligada, amarrada inex-
trincavelmente à tua. Se te desumanizo, inexoravelmente, desumanizo a mim mesmo.
Um indivíduo solitário é uma pura contradição, e, por isso, tu procuras trabalhar para o
bem comum, porque a tua humanidade participa da sua mesma comunidade, pertence
a ela» [T. do A.], D. TUTU, No Future Without Forgiveness, Nova Iorque, 1999.
155 A. SHUTTE, Philosophy for Africa, Rondebosch-South Africa, 1993, p. 46.
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66 | MUNTUÍSMO

O nascimento de uma criança é um processo que se inicia muito


antes da sua chegada e envolve toda a parentela. Alguns povos
apenas consideram o matrimónio completo depois do nascimento
de um filho. A maior tragédia para uma mulher é a esterilidade 156.
Após a sua morte, será imediatamente esquecida porque não exis-
tirá ninguém do seu sangue que possa recordá-la.
A mulher grávida deve respeitar vários tabus, e, após dar à luz o
filho, ocorrem várias celebrações rituais e festivas cujas semelhanças
são grandes em quase todos os povos, mesmo se distantes milhares
de quilómetros entre si. Nas sociedades tradicionais era grande a
mortalidade infantil (cerca da metade das crianças morria nos pri-
meiros dez anos de idade), problema reduzido sensivelmente com
a chegada dos missionários cristãos.
Todos os nomes dados aos bebés têm um significado e podem
existir vários nomes para a mesma pessoa. Em todos os povos exis-
tem ritos de iniciação que simbolizam a morte (com a separação física
dos candidatos) e a ressurreição (com a reinserção na tribo, como
nova criatura). Com os ritos de iniciação, o jovem está pronto para a
vida sexual, o matrimónio, a procriação e as responsabilidades fa-
miliares. Vários povos têm ritos particulares e diferentes que variam
de práticas físicas até à incisão dos órgãos sexuais e a circuncisão.
Geralmente quem não participou destes ritos (seja homem ou mu-
lher) não pode casar-se.
Mbiti acrescenta que esta prática das iniciações dificilmente de-
saparecerá, não obstante os ataques lançados pelos missionários
cristãos contra ela 157.

156 «Uma esposa estéril traz consigo uma cicatriz que jamais poderá ser apagada, e

sofrerá, assim como os seus parentes. Será uma humilhação irreparável para a qual não
existe fonte de conforto na vida tradicional africana», Ibidem, p. 116. É clara a analogia
com a concepção hebraica da esterilidade, para a qual o indivíduo deve «continuar» a
sua existência através da descendência. Essa necessidade é fundamental para os povos
que não conhecem a ideia de ressurreição.
157 No contexto em que vivemos (Moçambique), estes ritos praticamente desapare-

ceram (e não tão lentamente) e, segundo nos parece, tal não se deveu a ataques exter-
nos, mas a uma «involução».
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 67

O fulcro da existência do homem africano é o matrimónio, no


qual convergem todos os membros da comunidade (incluindo os
mortos). O matrimónio e a procriação são um conceito único, pois
sem a procriação o matrimónio é incompleto: «una persona che non
ha discendenti in realtà spegne il fuoco della vita e diventa morta per sem-
pre, poiché la sua linea di continuazione fisica si blocca se non si sposa e
non genera figli. Questi sono concetti e obblighi che non devono essere né
disprezzati né offesi» 158. Todos os africanos devem casar-se e ter filhos:
é a maior expectativa e esperança de um indivíduo, e o que a comu-
nidade espera de nós. A preparação ao matrimónio dá-se por via de
ritos de iniciação que, segundo Mbiti, desenvolvem esta tarefa
melhor do que as universidades. Em alguns povos, a escolha do
cônjuge cabe aos progenitores, em consenso com o filho, enquanto
noutros povos são os próprios filhos que escolhem e depois infor-
mam aos progenitores, os quais iniciam as negociações do namoro e
matrimónio. Geralmente não existem ritos para o namoro 159, mas
para as núpcias existem tantas cerimónias quanto os povos da
África. O lobolo (dote) torna legal o contrato do matrimónio (além
disso é valorização da própria mulher): esta prática foi interpretada
erroneamente como pagamento. Para alguns povos, o matrimónio
completa-se com o nascimento dos filhos; para outros, quando se
paga o lobolo; para outros ainda, quando se casa o primeiro filho. Al-
gumas sociedades exigem ou respeitam altamente a virgindade
antes do matrimónio; outros permitem relações sexuais do casal
antes mesmo do matrimónio.
Particularmente difundida (mas não mais de 20% da população) é

158 «Uma pessoa que não tem descendentes, na realidade, extingue o fogo da vida e

se torna morta para sempre, pois a sua linha de continuação física se bloqueia se não
casar e não gerar filhos. Estes são conceitos e obrigações que não devem ser despreza-
dos nem ofendidos» [T. do A.], Ibidem, p. 141. Mbiti faz a mesma exortação de Tempels,
de não julgar apressadamente, mas procurar entender e deixar que o discurso termine,
antes de julgar.
159 No caso moçambicano existem negociações entre famílias, nas quais trata-se do

valor do lobolo, isto é, da quantidade de bens que o pretendente deve oferecer à família
da esposa.
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68 | MUNTUÍSMO

a poligamia, ou melhor, a poliginia. Segundo Mbiti, esta ajuda a pre-


venir ou reduzir a infidelidade e a prostituição, sobretudo da parte
do marido. Igualmente difundida é a prática do levirato.
Frequentemente o divórcio ocorre depois de casos de esterili-
dade ou infidelidade (sobretudo da parte da esposa) 160. Outras
causas da separação são a crueldade do marido, a prática ou sus-
peita de magia e bruxaria, abandono, etc.
Geralmente os filhos são confiados à mãe 161.
A respeito do sexo, Mbiti sustenta que não tem apenas finali-
dades biológicas, mas também religiosas e sociais. Em alguns casos
é usado como expressão de hospitalidade ou, como dito acima, para
gerar filhos no lugar do marido ausente ou estéril 162. O adultério é
punido severamente.
Quanto à doença e morte, quando alguém está gravemente
doente, deve-se procurar pelo culpado por tal doença e se tomam
medidas preventivas contra as causas. Cada morte deve ter uma
causa imediata: geralmente é a magia, bruxaria ou sortilégio. Outras
causas de morte podem ser atribuídas aos mortos-vivos, aos espíri-
tos ou mesmo a Deus, quando, por exemplo, se trata de raios, morte
por velhice, etc.
Apenas o corpo morre. O espírito passa a viver junto de outros
espíritos.
O cadáver é retirado da casa passando por um buraco na parede,
e não pela porta principal, para significar que o defunto não saiu de
casa, encontra-se ainda lá. Na cova são sepultados objectos perten-
centes ao defunto, para que este, afirma Mbiti, não se ache indigente
no além. Todos devem apresentar-se ao funeral, sob pena de serem
suspeitos de ter causado a morte do defunto ou de sofrerem a vin-
gança do morto que considera uma falta de respeito o facto de não
se fazer presente ao funeral.

160 Se o marido for estéril, a esposa pode ser fecundada pelo irmão do marido. Cf.

Ibidem, p. 153.
161 Em Moçambique, geralmente os filhos são confiados ao pai.

162 Mbiti nota, porém, que não sabe dizer como nem se estas mormas são postas em

prática. Cf. Ibidem, pp. 154-155.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página69

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 69

Geralmente o corpo é sepultado, em outros casos deitado num


rio ou num bosque, onde é devorado por animais selvagens.
Na realidade, o Além é geograficamente um «aquém» (um lugar
próximo), simplesmente é invisível aos olhos humanos. Apenas o
corpo desaparece, enquanto o espírito continua a viver como antes
(com as mesmas distinções sociais, de género, características «físi-
cas» e sociais, até quando entrará no zamani, a imortalidade colec-
tiva. Outros povos acreditam que a alma vá para perto de Deus ou
para o Céu. A maioria dos povos não espera nenhum juízo ou
recompensa no Além, nem participação na divindade de Deus.
Muitas sociedades acreditam na «reincarnação parcial», ou seja,
algumas características dos defuntos se representam em algum des-
cendente. Não existe ressurreição nem para o individuo nem para a
inteira humanidade: a morte é «l’inizio di una partenza ontologica per-
manente dell’individuo dall’umanità allo stato di spirito […] è la fine del-
l’uomo reale e completo» 163.
Mbiti passa em resenha a figura dos «especialistas» na cultura
tradicional africana, começando pelos «homens-medicina» 164, que
convém não tratá-los erroneamente por «médicos-bruxos». Geral-
mente é uma profissão que se transmite de pai para filho, ou reser-
vada a eleitos por uma «vocação» especial. Recebem uma formação,
que vai de meses a alguns anos, acerca do conhecimento das ervas,
raízes, animais, curas, prevenções, etc., e como combater a magia e a
bruxaria. Unem-se em associações ou corporações 165. As suas tare-
fas são: curar (descobrir as causas da doença, porque tudo tem uma
causa, e Mbiti afirma que «finché la gente interpreterà la malattia e la
sventura come esperienze “religiose”, l’uomo-medicina tradizionale con-
tinuerà a vivere e a prosperare» 166) ; prevenir; fazer prosperar ou elimi-

163 «Início de uma partida ontológica permanente do indivíduo, da humanidade ao

estado de espírito […] é o fim do homem real e completo» [T. do A.], Ibidem, p. 174.
164 Em Moçambique, são chamados «curandeiros».

165 Em Moçambique, a associação denomina-se AMETRAMO: Associação dos Mé-

dicos Tradicionais Moçambicanos.


166 «Até quando as pessoas interpretarão a doença e a desgraça como experiências

“religiosas”, o homem-medicina tradicional continuará a viver e a prosperar» [T. do A.].


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página70

70 | MUNTUÍSMO

nar o que faz mal. Existem igualmente charlatães, mas não se deve
condenar toda a categoria por causa destes, e Mbiti acrescenta que
«gli uomini-medicina sono gli amici, i pastori spirituali, gli psichiatri e i
dottori dei villaggi e delle comunità tradizionali dell’Africa» 167. Seguem-
-se os médiuns e adivinhos, cuja tarefa é ligar os seres humanos aos
mortos-vivos e aos espíritos. Os adivinhos interpretam as declara-
ções dos médiuns (geralmente mulheres) e, junto aos homens-medi-
cina, descobrem as «causas» das doenças. Existe uma formação e
adestramento dos que são chamados ou oferecidos pela família a tal
profissão. Mesmo nestes casos não faltam charlatães, mas Mbiti con-
clui: «è difficile conoscere esattamente di che cosa si tratti: capacità extra-
sensoriali degli indovini, agenti spirituali, telepatia, percezione umana
ipersensibile o una combinazione di tutti questi fattori potrebbero entrare
in gioco. Comunque sia, la divinazione è un altro elemento che viene ad
aggiungersi alla complessità dei concetti e delle esperienze dell’universo in
Africa» 168.
Entre os especialistas, Mbiti aponta também os «magos da
chuva», cuja missão não é meramente «fazer chover», mas também
«parar a chuva» quando excessiva 169. Quem não desempenha cor-
rectamente a sua missão pode colocar em perigo a própria vida.
Entre os especialistas, os reis, as rainhas e os governantes em
geral são chefes místicos e religiosos, símbolos de saúde e bem-estar
dos seus povos. Os reis conservam os mesmos privilégios também
no além. O poder colonial tendia a englobar os chefes tradicionais

Mesmo no caso evidente de uma morte por malária causada pela picada do mosquito
Anopheles, é necessário descobrir quem enviou aquele mosquito para que picasse
aquela determinada pessoa. Ibidem, pp. 178-179.
167 «Os homens-medicina são os amigos, os pastores espirituais, os psiquiatras e os

doutores das aldeias e comunidades tradicionais da África» [T. do A.], Ibidem, p. 180.
168 «É difícil conhecer exactamente de que se trata: capacidades extra-sensoriais dos

adivinhos, agentes espirituais, telepatia, percepção humana hipersensível ou uma com-


binação de todos estes factores poderia entrar em jogo. Em todo caso, a divinação é um
outro elemento que vem a acrescentar-se à complexidade dos conceitos e das experiên-
cias do universo em África» [T. do A.], Ibidem, p. 188.
169 A sua função é de intermediários, porque sabem que apenas Deus pode fazer tal

coisa. Em muitas sociedades a chuva é considerada um fenómeno sacro e, vinda do céu,


une o homem ao divino. Deus é tido por «Aquele que dá a chuva». Cf. Ibidem, p. 191.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página71

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 71

na própria estrutura política, mas isto contribuiu para a diminuição


do seu prestígio diante do seu povo. Alguns reis tornaram-se chefes
de Estado após as independências. Actualmente tende-se à supera-
ção definitiva do papel dos monarcas tradicionais africanos.
O intermediário principal entre Deus e os homens é sempre o
sacerdote, que desempenha tarefas religiosas e sociais. É necessário
um longo adestramento, e em algumas sociedades torna-se necessá-
rio um período probatório de pelo menos sete anos.
Não existe a figura do profeta, provavelmente porque – argumen-
ta Mbiti – o conceito africano de tempo não alude ao futuro. Não
existem igualmente «fundadores das religiões», apenas fundadores
das nações que estão na origem mitológica da constituição dos
povos. Não exitem, sequer, «riformatori, missionari religiosi o propaga-
tori ufficiali delle religioni e della filosofia dell’Africa» 170.
Existem muitos estudos sobre a magia e bruxaria; Mbiti afirma,
porém, que estes temas são abordados com muita ignorância, pre-
conceitos e falsificações, especialmente por parte dos missionários e
administradores coloniais europeus e americanos. Mbiti passa a
apresentar uma série de narrações ou «testemunhos» de factos mís-
ticos ou mágicos, dizendo a propósito que «ogni africano che vive in
un villaggio può raccontare una serie innumerevole e infinita di queste
storie» 171. E, não obstante reconheça a existência de truques e supers-
tições, Mbiti defende a existência de fenómenos que não têm expli-
cação científica e conclui que não existe sociedade africana que não
acredite num ou noutro tipo de poder místico.
A magia divide-se em «boa magia» e «má magia». A boa é a cura,
o distanciamento das desgraças, usa talismãs, amuletos, plumas,
encantamentos e objectos vários aos quais se atribuem poderes

170 «Reformadores, missionários religiosos ou propagadores oficiais das religiões e

da filosofia da África» [T. do A.], Ibidem, p. 202.


171 «Cada africano que vive numa aldeia pode contar uma série inumerável e infinita

destas histórias» [T. d. A.], cf. Ibidem, p. 206. Nós também podemos apresentar muitas
histórias similares ouvidas ao longo de anos. Geralmente trata-se de factos sucedidos
a outros e transmitidos de boca em boca, de modo similar à difusão das chamadas
«lendas urbanas».
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página72

72 | MUNTUÍSMO

ocultos. O poder da magia (e dos objectos mágicos) provém directa-


mente de Deus ou dos espíritos e mortos-vivos que servem de me-
diadores deste poder. Os homens-medicina usam a «boa magia», à
semelhança dos adivinhos e magos da chuva.
A «má magia» é usada pelos bruxos para causar males, desven-
turas, doenças. Antigamente quem operava estas magias era puni-
do, chicoteado, lapidado, pagava com multas ou com a própria
vida. Ainda hoje, diz Mbiti, existem pessoas atacadas e mortas por-
que acusadas de práticas mágicas malévolas 172. Muitas são as víti-
mas (incluído pessoas instruídas e prelados) dos chamados «dupli-
cadores de dinheiro» 173.
Mas de onde vem o mal? Não de Deus, porque não o criou. Para
quase todas as sociedades africanas, o mal advém de seres espiri-
tuais diferentes de Deus (aqueles que se separaram da imortalidade
pessoal) ou de magos e feiticeiros. O mal nunca pode provir de um
ser superior. Deus nunca fará mal algum. Por isso não é necessário
oferecer-lhe sacrifícios.
As maldições funcionam apenas quando a pessoa acusada é
culpada.
Em conclusão, Mbiti sustenta que «i concetti africani di moralità,
etica e giustizia, non sono ancora stati studiati appieno e molti libri nep-
pure li menzionano oppure lo fanno solo superficialmente. Non ci sono
“peccati segreti” ma uno è buono o cattivo in base a quello che fa e non a
quello che è» 174.

172 Ainda em 2010, várias pessoas são condenadas e mortas porque acusadas de
«feitiçaria».
173 Encontramos estes casos também em Moçambique, tendo por vítimas os ecle-

siásticos.
174 «Os conceitos africanos de moralidade, ética e justiça não estão ainda bem estu-

dados e muitos livros não fazem menção deles ou apenas superficialmente. Não há
“pecados secretos”, mas uma pessoa é boa ou má em base daquilo que faz e não daquilo
que ela é» [T. do A.], Mbiti defende, num modo que nos deixa muito perplexos, que um
acto é mau quando descoberto; por exemplo, o adultério não é um mal, a menos que
seja descoberto pela sociedade que o proíbe. Defende vezes sem conta que expressão de
amizade e hospitalidade é permitir que o hóspede passe a noite com a esposa ou a filha
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 73

Segue-se uma longa série de normas éticas a seguir que cons-


tituem a «ética dinâmica» africana, que define o que uma pessoa faz
e não o que ela é.
Existe depois o mal natural, doenças, calamidades, incidentes,
etc., causado por algum agente humano ou espiritual.
Mbiti trata das mudanças do homem africano no quadro das
transformações mundiais, causadas pela ciência, tecnologia, mass-
media, escolas, universidades, etc., tudo isto foi veiculado pela che-
gada do Cristianismo e dos missionários que, implantando escolas,
criaram os viveiros da mudança 175. Assim chegaram medicamentos,
práticas higiénico-sanitárias e influências culturais que transforma-
ram a África sempre mais à imagem da Europa. O controlo europeu
e americano é sobretudo económico, eclesiástico e mediático. Isto
gerou uma «destribalização», promovendo novas identidades.
As maiores mudanças dão-se na família, onde os progenitores
são geralmente analfabetos e os filhos frequentam a universidade e
são colocados fora das tradições, tornando-se deste modo «desen-
raizados». As mudanças acontecem velozmente, no campo político,
económico, urbano, religioso (fenómeno do ateísmo), cultural (su-
perficialidade) e temporal. Não obstante estas mudanças, Mbiti é de
opinião que «o subconsciente da vida tribal está apenas adormecido
e não morto» 176, embora lamente que a «ênfase se está deslocando do
“nós” da vida colectiva para o “eu” do individualismo moderno» 177.
Isto é visível nas famílias, sempre mais nucleares e não «alargadas»;
jovens que se afastam da casa por causa dos estudos; os contratos
matrimoniais tornam-se cada vez mais assuntos pessoais do que
comunitários (o lobolo é sempre mais caro, porque os estudos da
filha foram muito custosos); maridos que voltam a casa, uma ou
duas vezes por ano, porque trabalham longe. Mbiti repete a ideia

do dono da casa. Quanto a nós, nunca tivemos conhecimento de factos similares na cul-
tura na qual vivemos. Cf. Ibidem, p. 223.
175 Cf. Ibidem, p. 228.

176 Ibidem, p. 234.

177 Ibidem, pp. 236-237.


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74 | MUNTUÍSMO

segundo a qual as escolas hodiernas ensinam a história colonial e a


dissecar rãs [estudar ciência], mais do que a criar uma família feliz.
A educação é a necessidade mais premente para a África 178.
Quanto ao Cristianismo em África, Mbiti afirma que é de tal
modo antigo, a ponto de poder ser considerado uma religião indí-
gena, tradicional e africana, presente firmemente em África bem
antes da chegada do Islão. Foi a partir do século XV que a Igreja ca-
tólica estabeleceu a sua obra missionária ao longo do litoral da
África Austral e, no século XIX, inicia sistematicamente as activida-
des missionárias. Muitos missionários eram pessoas simples (não
eram teólogos) 179. Ultimamente difundiram-se muitas seitas: em
1984, estimavam-se mais de sete mil Igrejas independentes, a maio-
ria das quais tendo-se desmembrado das Igrejas anglicana, luterana
e protestante. Mbiti conclui que «lo scandalo della divisione delle Chiese
missionarie protestanti ha offerto un cattivo esempio ai fedeli africani» 180.
O principal esforço dos missionários foi arrancar os convertidos da
vida tradicional, a favor daquela que pensavam ser a opinião justa,
civilizada e cristã da nova fé. A cultura local não foi integrada na
nova fé, por este motivo, na opinião de muitos, o Cristianismo é
superficial, porque não responde eficazmente e não influencia nos
problemas reais das pessoas. Isto significa que o substrato cultural
não foi convertido. Os missionários foram os pioneiros da educação
formal em África (a maioria dos governantes e chefes estudou nas
escolas da Igreja católica). As perspectivas futuras para o Cristia-
nismo, nota Mbiti, são optimistas.
O Islão também pode ser definido indígena, tradicional e afri-

178 As publicações a respeito multiplicaram-se. Cf. em particular os estudos mais re-

centes e aprofundados de Jean-Marc Ela: J.-M. ELA, Guide pédagogique de formation à la


recherche pour le développement en Afrique, Paris, L’Harmattan, 2001; ID., Recherche scien-
tifique et crise de la rationalité, vol. I, Paris, L’Harmattan, 2007; ID., Les cultures africaines
dans le champ de la rationalité scientifique, vol. II, Paris, L’Harmattan, 2007; ID., La recherche
africaine face au défi de l'excellence scientifique, vol. III, Paris, L’Harmattan, 2007; ID.,
L'Afrique à l'ère du savoir. Science, société et pouvoir, Paris, L’Harmattan, 2007.
179 Aconteceu o mesmo com e evangelização da América Latina.

180 «O escândalo das divisões das Igrejas missionárias protestantes ofereceu um mau

exemplo aos fiéis africanos» [T. do A.], Ibidem, p. 145.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página75

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 75

cano. Cem anos após a morte de Muhammad, o Islão difundiu-se


rapidamente no Norte de África e no litoral oriental. À semelhança
do Cristianismo, o Islão não conseguiu conquistar a alma «ani-
mista» dos africanos. As comunidades islâmicas são mais difundi-
das nas grandes cidades, pouco nas zonas rurais. Entre o Islão e a
religião africana há concordância quanto à ideia da unicidade de
Deus, dos mortos-vivos (santos muçulmanos), boa magia, sortilé-
gios e «feitiçaria». O Islão introduziu a infibulação em alguns países
africanos (Somália, Sudão, Etiópia). O grande problema do Islão é o
da modernidade, devido também, acredita Mbiti, à pouca instrução
dos seus líderes: «ironicamente, sono più numerosi gli studiosi cristiani
d’islamismo nell’Africa tropicale che quelli mussulmani, anche se il nu-
mero di questi ultimi sta progressivamente crescendo» 181.
Mbiti termina a sua obra com um capítulo dedicado à pesquisa
de novos valores, identidade e segurança, após o enfraquecimento
dos valores tradicionais. Quanto ao comunismo na África Austral,
Mbiti afirma que «non vedo la possibilità di nessuna rivoluzione comu-
nista a breve termine in Africa, anche se principi socialisti, accompagnati
da una valanga di promesse verbali, vengono sperimentati in alcuni paesi
come la Tanzania, il Mozambico, l’Etiopia e l’Angola» 182.
A África deve procurar novos valores, novas identidades e uma
nova autoconsciência. Diante dos desafios da sociedade moderna, o
Cristianismo tenta responder assumindo papéis sociais, e com bons
resultados. Menores resultados, ao contrário, conseguiu a nível in-
dividual quanto à moral sexual, alcoolismo, racismo, corrupção, etc.
As religiões em África devem encontrar novos modelos, regras

181 «Ironicamente são mais numerosos os estudiosos cristãos do Islamismo na África

tropical do que os muçulmanos, embora o número destes últimos esteja progressiva-


mente a aumentar» [T. do A.], Ibidem, p. 266.
182 «Não vejo a possibilidade de alguma revolução comunista em breve tempo na

África, mesmo que princípios socialistas, acompanhados por uma avalancha de pro-
messas verbais, estão sendo experimentados em alguns países como a Tanzânia, Mo-
çambique, Etiópia e Angola» [T. do A.], Ibidem, p. 278. Em Moçambique, a ideologia
marxista-leninista, que conduziu a revolução para a Independência, e os primeiros go-
vernos, capitulou ante a ideologia liberal capitalista actualmente em vigor.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página76

76 | MUNTUÍSMO

morais e éticas adequadas à sociedade em transformação, e desem-


penham um papel importante na reconciliação, harmonia, paz,
segurança, etc.
Mbiti conclui a sua obra com estas palavras: «In questa situazione,
il cristianesimo che è anche “indigeno”, “tradizionale” e “africano”, come
tutti gli altri sistemi principali che abbiamo considerato, presenta le poten-
zialità maggiori di rispondere ai dilemmi e alle sfide dell’Africa moderna e
di raggiungere la piena integrazione e maturità degli individui e delle
comunità. Dubito molto che, anche nel loro meglio, questi altri sistemi reli-
giosi e ideologie attualmente presenti in Africa stiano affermando qualcosa
di nuovo o diverso da ciò che è già profondamente radicato nel cristianesi-
mo. […] La forza del cristianesimo è in Gesù Cristo. […] Considero le reli-
gioni tradizionali, l’Islam e gli altri sistemi religiosi come terreno prepara-
torio e anche essenziale nella ricerca del non plus ultra, ma solo il
cristianesimo ha la terribile responsabilità d’indicare la via verso l’Identità,
le Fondamenta e la Fonte dell’essere ultimi» 183.

IFEANY A. MENKITI / KWAME GYEKYE:


Ser comunitário e Ser pessoal
Importante para a nossa pesquisa, acerca da ideia de pessoa, é a
reflexão de I. A. Menkiti, que trata especificamente deste tema
no artigo «Person and Community in Africa Traditional Thought»
(«Pessoa e Comunidade no pensamento tradicional africano») 184 de

183 «Nesta situação, o Cristianismo que é também “indígena”, “tradicional” e “afri-

cano”, como todos os outros sistema principais que consideramos, apresenta as poten-
cialidades maiores para responder aos dilemas e desafios da África moderna e para al-
cançar a plena integração e maturidade dos indivíduos e das comunidades. Duvido
muito que, mesmo nas suas melhores partes, estes outros sistemas religiosos e ideolo-
gias actualmente presentes em África estejam afirmando algo de novo ou diferente da-
quilo que já está profundamente enraizado no Cristianismo. […] A força do Cristia-
nismo está em Jesus Cristo. […] Considero as religiões tradicionais, o Islão e os outros
sistemas religiosos como terreno preparatório e mesmo essencial na busca do non plus
ultra, mas somente o Cristianismo tem a terrível responsabilidade de indicar a via rumo
a Identidade, o Fundamento e a Fonte do ser últimos» [T. do A.], Ibidem, p. 290.
184 In R. A. WRIGHT, African Philosophy: an Introduction, Lanham, University Press of

America, 1984, pp. 171-181.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página77

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 77

1984, retomado, quase na íntegra, no artigo «On the Normative


Conception of a Person» 185, publicado em 2004.
O objectivo de Menkiti é articular uma concepção de pessoa no
pensamento tradicional africano, fazendo emergir o contraste com
a concepção ocidental do mesmo tema. De facto, o Ocidente define
o homem abstracto, com as suas características individuais, enquan-
to na visão africana não existe indivíduo solitário, apenas o homem
na famosa concepção de Mbiti «I am because we are…» (Eu sou
porque nós somos…): «It is in rootedness in an ongoing human com-
munity that the individual comes to see himself as man, and it is by first
knowing this community as a stubborn perduring fact of the psychophysi-
cal world that the individual also comes to know himself as a durable, more
or less permanent, fact of this world» 186.
A primeira diferença com o pensamento ocidental consiste em
que, segundo Menkiti, é a comunidade que define a pessoa como
pessoa, e não as qualidades estáticas e isoladas como racionalidade,
vontade ou memória. A segunda diferença é que as pessoas tornam-
-se tal apenas após um longo processo de incorporação. Tornar-se
pessoa é um objectivo por atingir: «Thus, it is not enough to have before
us the biological organism, with whatever rudimentary psychological cha-
racteristics are seen as attaching to it. We must also conceive of this orga-
nism as going through a long process of social and ritual transformation
until it attains the full complement of excellencies seen as truly definitive
of man. And during this long process of attainment, the community plays
a vital role as catalyst and as prescriber of norms» 187.

185 In K. WIREDU (ed.), A Companion of African Philosophy, Blackwell Publishing, 2004,


n. 24, pp. 324-332.
186 «É no enraizamento numa comunidade humana permanente que o indivíduo

passa a se ver a si mesmo como homem, e é em primeiro lugar no conhecer esta comu-
nidade como uma obstinada realidade perene do mundo psicofísico que o indivíduo
também passa a se conhecer a si mesmo como uma realidade durável, mais ou menos
permanente, deste mundo» [T. do A.], in I. A. MENKITI, «Person and Community...», o.c.,
pp. 171-172.
187 «Assim, não basta ter diante de nós o organismo biológico, com quaisquer rudi-

mentares características psicológicas vistas como inerentes a ele. Temos também de con-
ceber este organismo como meio de um longo processo de transformação social e ritual,
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página78

78 | MUNTUÍSMO

Menkiti introduz a ideia de «progressão ontológica» reconhecen-


do, porém, que carece de uma elaboração melhor. Segundo esta
ideia, a criança é desprovida de uma personalidade própria, pois
esta adquire-se progressivamente com a maturidade e a velhice, e
perdura mesmo depois da morte, na fase dos «mortos-viventes» 188.
Apenas quando não são mais recordados pela comunidade, os
mortos-vivos perdem a sua identidade pessoal e passam da «imor-
talidade pessoal» à «imortalidade colectiva». Menkiti contesta a
ideia de Mbiti sobre a «imortalidade colectiva», preferindo definir
esta fase como a dos «mortos sem nome»: «At the stage of total dis-
incorporation marked by the term, the mere it’s that the dead have now
become cannot form a collectivity of any kind; and, since by definition no
one now remembers them, there is not much sense in saying of them that
they are immortal either. They no longer have an adequate sense of self; and
having lost their names, lose also the means by which they could be immor-
talized. Hence, it is better to refer to them by the term the nameless dead,
rather than. Designate their stage of existence by such a term as “collective
immortality”, thereby opening up the possibility of describing them as
“collective immortals”, which certainly they are not» 189.
O que faz do indivíduo pessoa é a observância da moral, daí que
a criança (mas também o jovem) não é ainda pessoa, porque não
tem uma personalidade moral: «It is the carrying out of these obliga-
tions that transforms one from the it-status of early childhood, marked by

até que atinge o conjunto completo de excelências vistas como realmente definitivas do
homem. E durante este longo processo de realização, a comunidade desempenha um
papel vital como catalisadora e como prescritora das normas» [T. do A.], Ibidem, p. 172.
188 É uma referência a Mbiti, visto acima.

189 «Na fase de total desincorporação marcada pelo termo, é evidente que os que já se

tornaram mortos não podem formar uma colectividade de qualquer tipo; e uma vez
que, por definição, já ninguém se lembra deles, não tem muito sentido dizer que eles são
imortais também. Eles já não têm um senso adequado de si; e tendo perdido seus
nomes, perdem também o meio pelo qual eles poderiam ser imortalizados. Por isso, é
melhor referir-se a eles pelo termo “os mortos sem nome”, do que doutra maneira. De-
signar seu estádio de existência por um termo como «imortalidade colectiva», abrindo
assim a possibilidade de descrevê-los como “imortais colectivos”, isso certamente eles
não são» [T. do A.], Ibidem, p. 175.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página79

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 79

an absence of moral function, into the person-status of later years, marked


by a widened maturity of ethical sense-an ethical maturity without which
personhood is conceived as eluding one» 190. Menkiti cita a teoria da
justiça de Rawls, para a qual «the sufficient condition for equal justice
[is] the capacity for moral personality» 191. Em síntese, um indivíduo
torna-se pessoa apenas através da posse de uma moralidade. Men-
kiti mostra a sua perplexidade a respeito da reivindicação dos direi-
tos dos animais, porque os direitos estão ligados à capacidade no
sentido moral, que se concretiza no cumprimento dos deveres de
justiça para com os outros. Neste sentido, coloca-se igualmente a
crítica do autor ao existencialismo de Sartre, muito em voga na
época: se, por um lado, o existencialismo, como o pensamento afri-
cano, reconhece que a personalidade é algo por adquirir, o pressu-
posto metafísico de base é diferente. Na filosofia africana, a comu-
nidade joga um papel fundamental na aquisição da personalidade
completa, enquanto para o existencialismo o indivíduo torna-se
pessoa mesmo se isolado: «Above all, whereas in the African under-
standing human community plays a crucial role in the individual's acqui-
sition of full personhood, in the Sartrean existentialist view, the individual
alone defines the self, or person, he is to become. Such collectivist insis-
tences as we find in the African world-view are utterly lacking in the Exis-
tentialist tradition» 192.
Menkiti passa a clarificar a noção de Comunidade na visão afri-
cana, que é diferente da ocidental, para a qual a comunidade é um
mero agrupamento humano com o fim de defender, não os serviços

190 «É a realização dessas obrigações que transforma alguém do status de primeira


infância, marcada por uma ausência de função moral, no status de pessoa adulta, mar-
cado por uma ampla maturidade de sentido ético – uma maturidade ética, sem que a
personalidade seja concebida como uma ilusão» [T. do A.], Ibidem, p. 176.
191 «A condição suficiente para a justiça igual [é] a capacidade de personalidade

moral» [T. do A.], Ibidem.


192 «Acima de tudo, enquanto, no entendimento africano, a comunidade humana

desempenha um papel crucial na aquisição da personalidade integral do indivíduo, na


visão existencialista de Sartre o indivíduo sozinho se define a si mesmo, ou a pessoa que
ele se tornará. Tais insistências colectivistas, como encontramos na visão africana do
mundo, estão totalmente ausentes na tradição existencialista» [T. do A.], Ibidem, p. 179.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página80

80 | MUNTUÍSMO

comunitários, mas os direitos dos indivíduos: «Whereas the African


view asserts an ontological independence to human society, and moves
from society to individuals, the Western view moves instead from indivi-
duals to society. In looking at the distinction just noted, it becomes quite
clear why African societies tend to be organized around the requirements
of duty while Western societies tend to be organized around the postulation
of individual rights. In the African understanding, priority is given to the
duties which individuals owe to the collectivity, and their rights, whatever
these may be, are seen as secondary to their exercise of their duties. In the
West, on the other hand, we find a construal of things in which certain spe-
cified rights of individuals are seen as antecedent to the organization of so-
ciety; with the function of government viewed, consequently, as being the
protection and defense of these individual rights» 193.
No artigo publicado no colectivo de K. Wiredu (2004), Menkiti
retoma as mesmas ideias, mas ditas de outro modo. Introduz a pa-
lavra-chave «group solidarity» («grupo de solidariedade») como
melhor definição da sociedade africana, e insiste na ideia de per-
sonalidade adquirida através de um processo, junto da comunidade
e com um exercício de moralidade, usando um exemplo eficaz:
podemos ter um «génio matemático» aos 18 anos, sem experiência,
mas nunca teremos um «génio moral» nessa mesma idade» 194.

193 «Considerando que o ponto de vista africano defende uma independência onto-

lógica para a sociedade humana, e move-se da sociedade para os indivíduos, a visão oci-
dental move-se, por sua vez, dos indivíduos para a sociedade. Ao olhar para a distinção
apenas observada, torna-se bastante claro por que as sociedades africanas tendem a ser
organizadas em torno das exigências do dever, enquanto as sociedades ocidentais
tendem a ser organizadas em torno da postulação de direitos individuais. No entendi-
mento africano, a prioridade é dada aos deveres que os indivíduos devem à colectivi-
dade, e os seus direitos, quaisquer que eles sejam, são vistos como secundários para o
exercício das suas funções. No Ocidente, por outro lado, encontramos uma interpre-
tação das coisas em que certos direitos específicos dos indivíduos são vistos como ante-
cedentes à organização da sociedade; a função do governo é vista, por conseguinte,
como sendo a protecção e defesa desses direitos individuais» [T. do A.], Ibidem, p. 180.
194 «Considere-se agora, por um momento, que, embora nós não tivéssemos grande

dificuldade em falar sobre um génio da matemática de 18 anos, tê-lo-íamos em contra-


partida para falar de um génio moral de 18 anos. A razão para isto é que a moralidade e
o amadurecimento da pessoa humana estão tão intimamente ligados a um exemplar de
pessoa ainda em evolução, na falta de um registo completo na área da experiência
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página81

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 81

Outro estudioso importante, e original, da ideia de pessoa é


Kwame Gyekye, que revoluciona a ideia pessoa de comum em Áfri-
ca. Para além dos seus famosos estudos 195, há um importante artigo
– «Person and Community in African Thought» («Pessoa e Comuni-
dade no Pensamento Africano») – em que critica o pensamento
comum africano que enfatiza o papel da comunidade em desvanta-
gem da individualidade 196. Critica de modo especial, passo por
passo, as posições de Menkiti, antes apresentadas.
Começa com uma sentença lapidária: «There has been a great deal
of misconception about both the metaphysical and social status of the
person in African thought» 197.
Gyekye critica expressamente as ideias de Menkiti a respeito da
suposta superioridade da comunidade sobre o indivíduo, a ideia
segundo a qual é a comunidade que define a pessoa enquanto

vivida, poderia ser duramente pressionado para apresentar o tipo de história pessoal
necessária para uma elevação do status de uma moral exemplar. Matemática é outra
coisa: enquanto o jovem homem ou mulher pode manobrar as equações melhor e mais
rápido do que seu professor de idade, o caminho para a 'santidade' matemática é clara
para ele ou ela. Na verdade, muitas vezes é dito que os matemáticos tendem a fazer o
seu melhor trabalho durante os seus primeiros anos. É um campo em que a experiência
vivida não é necessária para alcançar a grandeza. No caminho indicado do indivíduo
para a personalidade, seja notado, por conseguinte, que a comunidade desempenha um
papel vital tanto como catalisador que como prescritor das normas. A ideia é que, a fim
de transformar o que foi inicialmente biologicamente dado em plena personalidade, a
comunidade, por necessidade, tenha de intervir, pois o indivíduo, a si mesmo, não pode
realizar a transformação sem ajuda. Mas, então, quais são as implicações dessa ideia de
um organismo biologicamente dado que primeiro há-de passar por um processo de
transformação social e ritual, de modo a atingir o conjunto completo de excelências,
visto como definitivo da pessoa? Uma conclusão parece inevitável, e é no sentido de que
a personalidade é o tipo de coisa que tem de ser alcançado, o tipo de coisa em que os in-
divíduos poderiam falhar» [T. do A.], in I. A. MENKITI, «On the Normative Conception of
a Person», o.c., pp. 325-326.
195 K. W IREDU , e K. G YEKYE (eds.), Person and Community: Ghanaian Philosophical

Studies, Washington, 1992; K. GYEKYE, An Essay on African Philosophical Thought: The Akan
Conceptual Scheme, Temple University Press, Philadelphia, 1995.
196 K. GYEKYE, «Person and Community in African Thought», in H. KIMMERLE (ed.),

I, we, and body: First Joint Symposium of Philosophers from Africa and from the Netherlands, at
Rotterdam on March 10, 1989, Amsterdão, B. R. Gruner, 1989, pp. 47-64. Este artigo é reto-
mado, quase na íntegra, na sua obra conjunta com K. WIREDU, citada na nota precedente.
197 «Houve um grande equívoco sobre o status metafísico e social da pessoa no pen-

samento africano» [T. do A.], Ibidem, p. 47.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página82

82 | MUNTUÍSMO

pessoa, e a noção de pessoa como um status por adquirir. Observa


que estas ideias são consequência das filosofias socialistas africanas,
que pretendiam justificar a introdução do comunismo em África
como uma realidade já presente na cultura tradicional.
Gyekye tenta reconstruir o estatuto ontológico da pessoa aludin-
do aos ditados e provérbios africanos, cujo conteúdo e relevância
são comparáveis aos primeiros fragmentos gregos, sobre os quais se
construiu a primeira filosofia grega. O seu foco de interesse especial
é a cultura akan, à qual pertence. Recorde-se que os Akan são um
dos povos mais importantes da África ocidental, em particular do
Ghana. O principal ditado desta cultura, fundamental para a ideia
de pessoa, é «All persons are children of God; no one is a child of the
earth» 198. Esta concepção teomórfica de pessoa mostra o valor in-
trínseco da pessoa enquanto «filha de Deus». Ela possui uma alma
(okra) que tem uma existência pré-mundana em Deus: «In Akan con-
ceptions each person is unique, because each soul is unique. Ontologically,
then, the individual person must be self-complete in terms of his/her essen-
ce, for it requires nothing but itself in order to exist (except for the fact the
he/she was held as created by God). If this is so, it cannot be the case that
the reality of the person is derivative and posterior to that of the commu-
nity. It would not therefore be correct to maintain that the notion of per-
sonhood is conferred by the community; neither would it be correct to
assert that the definition of personhood is a function of the community» 199.
Gyekye critica o recurso de Menkiti ao pronome de língua inglesa
para sustentar a sua teoria, que se coloca em desacordo com a con-

198 «Todas as pessoas são filhos de Deus, ninguém é filho da terra» [T. do A.], «Nnipa

nyinaa ye Onyame mma; obiara nnya asase ba», Ibidem, p. 49.


199 «Nas concepções akan, cada pessoa é única porque cada alma é única. Ontologica-

mente, então, a pessoa individual deve ser autocompleta em termos de seu/sua essência,
pois não requer nada além de si mesmo para existir (excepto pelo facto de que ele/ela foi
mantido como criado por Deus). Se é assim, não pode ser o caso que a realidade da
pessoa seja derivada e posterior à da comunidade. Não poderia ser portanto correcto afir-
mar que a noção de pessoa é conferida pela comunidade, nem seria correcto afirmar que
a definição de personalidade é uma função da comunidade» [T. do A.], Ibidem, p. 50.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página83

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 83

cepção autêntica africana de pessoa. Se tivesse recorrido às línguas


africanas teria sido desmentido.
Refuta igualmente a ideia de que a criança não tenha atingido o
status de pessoa e a ideia da não ritualização da dor pela morte das
crianças, diferentemente da morte dos anciãos. De facto, um ancião
é «chorado» pelo que fez de bom na sua vida, assim como outros
anciões mais modestos são sepultados de modo simples. E insiste:
«A human person is a person whatever his/her age or social status» 200.
Quanto à natureza da comunidade Gyekye afirma que é um erro
grave considerar que a personalidade seja um factor processual,
algo por adquirir e realizar, conferido pela comunidade, tal como é
errado negar a autonomia da pessoa: «My reading of the indigenous
sources suggests the conviction that in his/her nature a person is a com-
plete individual and that this ontological completeness does not suffer di-
minution in consequence of his/her entry into, or membership of, the com-
munity. It is this fact that does not seem to have been duly recognized by
some scholars who are given to harping on the communal or collective na-
ture of African societies, ignoring the status of the individual» 201.

200 «A pessoa humana é uma pessoa, qualquer que seja a sua idade ou condição

social» [T. do A.], Ibidem, p. 51.


Considerar que as crianças e jovens não são ainda «pessoas completas» é arriscado,
uma vez que pode colocar em perigo os seus direitos: «A person, inasmuch as he/she is a
child of God, must also be thought of as of intrinsic worth and ought to be accorded dignity,
respect and importance. From this it can be inferred that a person has moral rights which are
anterior to the community, rights that are therefore not conferred by society, but are concomitant
to the notion of personhood. Children have rights because, like adults, they are persons» («Uma
pessoa, na medida em que ele/ela é um filho de Deus, também deve ser pensada como
algo de valor intrínseco e lhe deve ser reconhecida dignidade, respeito e importância. A
partir disso, pode-se inferir que uma pessoa tem direitos morais que são anteriores à
comunidade, direitos que são, portanto, não reconhecidos pela sociedade, mas são con-
comitante à noção de personalidade. As crianças têm direitos, porque, como os adultos,
eles são pessoas» [T. do A.]), Ibidem, p. 52.
201 «A minha leitura das fontes indígenas sugere a convicção de que, na sua natureza,

uma pessoa é um indivíduo completo e que esta completude ontológica não sofre
diminuição em consequência da sua entrada, ou filiação, à comunidade. É este facto que
parece não ter sido devidamente reconhecido por alguns estudiosos que insistem sobre
a natureza comum ou colectiva das sociedades africanas, ignorando o status do indiví-
duo» [T. do A.], Ibidem, pp. 52-53.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página84

84 | MUNTUÍSMO

A pessoa é um ser «criado» que «desce» do céu numa comuni-


dade humana à qual vem destinado como ser relacional. Com efei-
to, o indivíduo não é autosuficiente: «Despite his/her ontological com-
pleteness, the individual person's capacities, talents and dispositions are
not sufficient to meet his/her basic needs and requirements. The reason is
formulated in the fragment, “A person is not a palm tree that he/she should
be self-sufficient” (onipa nnye abe na ne ho ahyia ne ho). Because the
human individual is not self-sufficient, he would necessarily require the
assistance, goodwill and the relationships of others in order to satisfy his
basic needs» 202. Existe uma organic relation (relação organica) entre o
indivíduo e o grupo: «This organic relation has given rise to several
questions, false impressions, invalid inferences, and outright condemna-
tion of the communal system of social arrangement» 203.
Este carácter relacional não é compatível com a noção de autono-
mia pessoal. Conceitualmente «communality cannot be opposed to indi-
viduality» 204 porque o sucesso do indivíduo vai em benefício da
comunidade.
Em conclusão, para os Akan, o indivíduo é único, com interesses
particulares, vontade e desejos, capacidade de pensar e agir de
modo autónomo e «In its being, therefore, the community is secondary to
the being of the persons. The being or reality of the individual person takes
precedence over that of the community» 205.
A cultura akan busca integrar os desejos individuais e os ideais

202 «Apesar da sua integridade ontológica, as capacidades da pessoa individual, tal-

entos e disposições não são suficientes para atender suas necessidades e os requisitos
básicos. A razão é formulado no fragmento, “Uma pessoa não é uma palmeira que
poderia ser auto-suficiente” (onipa nnye abe na ne ho ho ahyia ne ho). Porque o indivíduo
humano não é auto-suficiente, ele requer necessariamente assistência, boa vontade, e as
relações com os outros, a fim de satisfazer suas necessidades básicas» [T. do A.], Ibidem,
p. 54.
203 «Essa relação orgânica tem dado origem a várias perguntas, impressões falsas, in-

ferências inválidas, e condenação pura e simples do sistema comunal de arranjo social»


[T. do A.], Ibidem.
204 «Comunalidade não pode ser oposta à individualidade» [T. do A.], Ibidem, p. 56.

205 «Em seu ser, portanto, a comunidade é secundária para o ser das pessoas. O ser

ou a realidade da pessoa individual prevalece sobre o da comunidade» [T. do A.], Ibidem,


p. 59.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página85

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 85

sociais, manter o equilíbrio entre a particularidade criativa indivi-


dual e a participação social.
Poucos anos depois, Gyekye publica um estudo acerca da con-
cepção da pessoa na cultura akan, do qual interessa-nos, em modo
particular, o capítulo 6: «The concept of a person» 206, no qual, par-
tindo do já analisado dito «All persons are children of God, no one is a
child of the earth», sustenta a existência do que nos outros sistemas
metafísicos é denominado alma (em língua akan: okra). Parece que
para Wiredu a tradução alma não é correcta, porque postula que a
okra não seja algo de imaterial como a alma, e seria melhor traduzir
como «that whose presence in the body means life and whose absence
means death» 207. Okra é, para Wiredu, algo de «quase físico». Gyekye
continua introduzindo um outro termo, idêntico a okra, que é res-
piro (honhom): «the departure of the soul from the body means the death of
the person, and so does the cessation of the breath» 208. Noutras línguas, o
termo respiro é substituível pelo termo sunsum, isto é, espírito, usado
para traduzir em akan o termo grego pneuma (respiro, espírito).
Sunsum é precisamente o segundo elemento constitutivo da
pessoa. Gyekye esclarece que «spirit (sunsum) is not identical with soul
(okra), as they do not refer to the same thing» 209. Este sunsum «derive di-
rectly from the Supreme Being, and not from the father» 210.
Para além dos dois elementos imateriais, okra e sunsum, existe um
terceiro elemento constitutivo que é o honam, corpo. Enquanto os
primeiros têm origem divina, o corpo tem uma origem humana 211.
Se, não obstante as semelhanças, não se pode fazer corresponder

206 («O conceito de uma pessoa») K. GYEKYE, An Essay on African Philosophical


Thought: The Akan Conceptual Scheme, Temple University Press, Philadelphia, 1995.
207 «Aquilo cuja presença no corpo significa vida e cuja ausência significa morte»

[T. do A.], Ibidem, p. 86.


208 «A partida da alma do corpo significa a morte da pessoa, e assim faz a cessação

da respiração» [T. do A.], Ibidem, p. 88.


209 «Espírito (sunsum) não é idêntico com a alma (okra), pois eles não se referem à

mesma coisa» [T. do A.], Ibidem. O autor clarifica que traduzir sunsum por espírito não é
propriamente exacto, embora não seja uma tradução inapropriada.
210 «Derivam directamente do Ser Supremo, e não do pai» [T. do A.], Ibidem, p. 91.

211 Cf. Ibidem, p. 94.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página86

86 | MUNTUÍSMO

okra a honhom, nem honhom a sunsum, qual é, então, a relação entre


okra e honhom? É esta: «a difficult knot to untie» («um nó difícil de de-
satar»), para Gyekye. Há coisas que podem ser atribuídas apenas à
okra, mas não ao sunsum, e vice-versa. E conclui: «on this showing,
insofar as things asserted of the okra are not assertable of the sunsum, the
two cannot be identified. However, although they are logically distinct,
they are not ontologically distinct. That is to say, they are not independent
existents held together in an accidental way by an external bond. They are
a unity in duality, a duality in unity. The distinction is not a relation
between two separate entities. The sunsum may, more accurately, be cha-
racterized as a part – the active part – of the okra (soul)» 212.
Entre okra e honam existe uma unidade espiritual. Gyekye torna a
citar o dito akan «when a man dies he is not (really) dead» 213. Disto re-
sulta que há no ser humano algo de eterno, indestrutível, que con-
tinua a existir no mundo dos espíritos. Isto significa que a alma do
homem é imortal. Entre alma e corpo existe uma interacção psi-
cofísica e algumas doenças não podem ser curadas com uma terapia
física: «unless the soul is healed, the body will not respond to phy-sical
treatment» 214.
Após um aceno sobre a relação entre a psicologia akan e Freud,
Gyekye conclui o seu capítulo sobre a noção de pessoa.

FABIEN EBOUSSI BOULAGA: Ser em crise

Fabien Eboussi Boulaga é, com certeza, um dos mais cultos e in-


teressantes filósofos africanos contemporâneos. A sua obra mais im-

212 «Nesta apresentação, na medida em que as coisas reivindicadas do okra não são

afirmáveis do sunsum, os dois não podem ser identificados. No entanto, embora eles
sejam logicamente distintos, eles não são ontologicamente distintos. Isto quer dizer, eles
não são existentes independentes, mantidos juntos em forma acidental por uma ligação
externa. Eles são uma unidade na dualidade, uma dualidade na unidade. A distinção
não é uma relação entre duas entidades separadas. O sunsum pode, mais precisamente,
ser caracterizado como uma parte – a parte activa – do okra (alma)» [T. do A.], Ibidem, p. 98.
213 «Quando um homem morre, ele não é (realmente) morto» [T. do A.], Ibidem, p. 100.

214 «A menos que a alma esteja curada, o corpo não responde ao tratamento físico»

[T. do A.], Ibidem, p. 101. Para estes problemas existem os famosos curandeiros.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 87

portante, fundamental para a nossa pesquisa da ideia de pessoa na


filosofia africana contemporânea, foi publicada em 1977, sob o título
La crise du Muntu. Authenticité africaine et philosophie (A crise do
Muntu. Autenticidade africana e filosofia) 215. Quando o texto foi publi-
cado, Eboussi Boulaga já era um protagonista, tendo-se estreado
jovem com importantes contributos ao debate das novas teologias
africanas, na época nascente. «Che cosa rivela e insieme nasconde la pre-
tesa africana di possedere delle filosofie?» 216. A esta pergunta inicial,
Eboussi Boulaga responde discorrendo sobre o fio condutor de todo
o seu texto: «Il desiderio di affermare un’umanità negata o in pericolo e di
esistere grazie a se stessi e per se stessi, nella connessione dell’avere e del
fare, secondo un ordine che escluda la violenza e l’arbitrio» 217. Com o
termo «Muntu» Eboussi Boulaga designa o homem africano, ou
mais precisamente, «è l’uomo nella condizione africana, che deve affer-
marsi sconfiggendo quanto contesta la sua umanità e la mette in pericolo.
Dipende da lui valutare la sua situazione, su cosa possa o no contare per
aprirsi uno spazio, il suo posto nel mondo, nel dialogo dei luoghi in cui
consiste concretamente» 218. Uma filosofia misturada com ingenuidade
transmuta este desejo e impede a sua realização. Ao delinear esta
problemática, o autor apresenta três posições: 1) a abstração do
tempo, do lugar, das relações, em filosofia «misconosce ciò che il desi-

215 Referimo-nos à tradução italiana de Lidia Procesi: F. EBOUSSI BOULAGA, Autenticità

africana e filosofia. La crisi del Muntu: intelligenza, responsabilità, liberazione, Milão, Mari-
notti Edizioni, 2007. O título original, La crise du Muntu. Authencité africaine et philosophie
foi adaptado pela responsável italiana, de acordo com o editor e com o autor, de modo
a tornar o conteúdo imediatamente intuitivo, mesmo para uma plateia de leitores não
especialistas.
216 «O que revela, e ao mesmo tempo esconde, a pretensão africana de possuir filo-

sofias?» [T. do A.], F. EBOUSSI BOULAGA, o.c., p. 49.


217 «O desejo de afirmar uma humanidade negada ou em perigo de existir graças a si

mesmo, na conexão do ter e do fazer, segundo uma ordem que exclua a violência e o ar-
bítrio» [T. do A.], Ibidem.
218 «É o Homem, na condição africana, que deve afirmar-se derrubando quanto con-

testa a sua humanidade e a coloca em perigo. Depende dele avaliar a sua situação, sobre
o que possa contar ou não para abrir-se um espaço, o seu lugar no mundo, no diálogo
dos lugares em que consiste concretamente» [T. do A.], Ibidem, n. 22, p. 12.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página88

88 | MUNTUÍSMO

derio di filosofia nasconde e insieme rivela» 219; 2) consequentemente,


este desconhecimento torna insignificantes tais discursos, em vista
do alcance do projeto do Muntu; 3) por fim, a abstração torna a
filosofia uma ideologia submissa ao poder, ao serviço da força.
Porque reivindicar o direito à filosofia? Frequentemente se res-
ponde deste modo: porque filosofar pertence ao homem, isso não se
pode ignorar, de modo que filosofar é exercitar a própria humani-
dade e pretender que esta seja reconhecida; a filosofia é universal
como a razão e a vontade de fazer filosofia é vontade de atingir o
universal; a filosofia é indispensável, por isso, segundo o ensina-
mento canônico, é necessário entrar no corpus dos autores, limitar-
-se a citar os grandes mestres, evitando a originalidade, que não se
faz necessária e pode conduzir, em contrapartida, a conceitos irra-
cionais. Eboussi Boulaga continua criticamente: a filosofia é algo de
típico do homem ou é um fenómeno histórico? Se a filosofia é pró-
pria do homem, porque não se encontra onde quer que estejam os
homens e em qualquer época? Se é algo próprio da natureza huma-
na, porque inicia precisamente negando o mito, abolindo os provér-
bios e todas as fontes de sageza que não sejam conformes ao seu
estilo, embora estes façam parte da natureza humana?
Urge uma análise crítica, sem perder de vista o projeto do
Muntu: «Existir graças a si e por si próprio, na comunhão do saber e
do fazer, segundo uma ordem que exclua a violência e o arbítrio.»
A filosofia europeia criou uma dicotomia entre o dominador e o
dominado. O primeiro é aquele que é porque tem: tem arte, indús-
tria e ciência, religião e filosofias; o segundo não é porque não tem:
possui apenas magia, superstição, mitologias e cosmogonias gros-
seiras. Para o Muntu, consequentemente, assumir a filosofia é trans-
formar o dominador no «centro da humanidade» e o seu desejo de
filosofia é apenas a ânsia de aceder à humanidade do patrão. Daqui
parte a obra de «civilização» dos vencidos, que ambicionam esta

219 «Desconhece o que o desejo de filosofia esconde e revela no mesmo tempo» [T. do

A.], Ibidem, p. 53.


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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 89

assimilação. O «evoluído» torna-se um «burguês» quando tem a per-


missão de ocupar o lugar do patrão, demonstrando poder agir a
bom direito em sua vez, porque sabe imitá-lo em tudo. De facto, con-
tinuará sempre inferior: «il più meschino dei Bianchi, ignorante, perverso
e incapace gli è superiore» 220. Identificando-se com o patrão, o Muntu
nega-se no seu ser originário e aprende a mentir para si próprio, por-
que será o primeiro a negar a sua identidade e a dignidade do seu
mundo, aceitando as definições do seu dominador racista.
O autor passa a expor na primeira parte o sistema das etnofiloso-
fias, como resposta ao desejo de «fazer filosofia»; trata-se de retórica,
de filosofias apologéticas, exortativas, persuasivas, que apregoam
os «valores sacros de África», aceites, é subentendido, pelo colonia-
lismo europeu, como aqueles apregoados pela negritude.
Como se constrói uma etnofilosofia? Aonde busca a sua matéria?
Os primeiros meios são a experiência e o testemunho. A presença no
campo não se demonstra, mas se limita a afirmá-la ou testemunhá-
-la. Partindo da etnografia e das suas monografias, este «entrevista-
dor» – o autor questiona-se se podemos chamá-lo «filósofo» – passa
à pesquisa pessoal de alguma etnia perdida, individua algumas
constantes e deduz uma civilização unitária africana, uma «filosofia
negro-africana», um sistema de valores. A etnofilosofia «hipostasia»
então um homo africanus de sua pura invenção, para exaltá-lo com
um exercício de retórica, a fim de «demonstrar a humanidade» e a
educabilidade 221.
Quem aceita fazer etnofilosofia aceita sem rebelião a dúvida
sobre a própria dignidade de homem e a descrença total na própria
tradição, para mendigar do vencedor a definição do próprio ser. O
Muntu é assim educado, civilizado e identificado em esquemas pre-
definidos como, por exemplo, a ideia de pluralismo, que o insere
numa «concórdia universal», definida pela filosofia dos patrões,

220 «O mais mesquinho dos brancos, ignorante, pervertido e incapaz lhe é superior»
[T. do A.], Ibidem, p. 60.
221 Cf. Ibidem, p. 71.
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90 | MUNTUÍSMO

fora da qual existe apenas «o grau zero do ser». O Muntu aceita esta
sua negação, não apenas sem contestar, mas, encaixando as filoso-
fias africanas na arquitetura daquela filosofia. Neste ponto é autori-
zado a divertir-se, especulando sobre o ser, enquanto esta discussão
não belisca minimamente o poder do vencedor. Graças à ideia do
ser, pode-se remontar a uma natureza originária, que nivela com as
palavras todos os homens. Todavia, tal nova identidade e dignidade
filosófica do Muntu morre por si só, porque pressupõe algo de
irreal, ou seja, uma igualdade entre todos os homens, numa reali-
dade que impõe apenas relações baseadas na força e violência. É
inútil esperar das etnofilosofias uma verdade que o seu discurso
retórico, baseado sobre um consenso falso porque forçado, jamais
poderá dar.
O autor passa a tratar o tema, examindando «la concatenazione dei
concetti e delle figure fondamentali a partire da cui il Muntu costruisce il
mondo della vita» 222. Passa em revista criticamente as várias etnofilo-
sofias através de um «inventário pensado» de conceitos e figuras
das etnias africanas, das quais produzir discursos etnofilosóficos
verossímeis. Eboussi Boulaga deixa que o «sistema» se exponha por
si, remandando ao ser originário da cada coisa.
Após passar em resenha os conceitos e imagens, pergunta-se em
que medida este discurso é autêntico e não mítico ou religioso,
senão uma interpretação arbitrária.
Critica especialmente a categoria de etnia que aprisiona o Muntu
dentro de um esquema, que nivela todas as diferenças entre os
vários povos africanos, reduzindo-os à sua geografia, como se
fossem espécies animais, mortificando as histórias e culturas e, con-
sequentemente, as individualidades.
As reivindicações de «filosofias próprias», segundo o projeto do
Muntu, encontram-se/confrontam-se com o distinto de si mesmo, o
«Ocidente», que coloca em questão a relação entre «tradicional» e

222 «Conexão dos conceitos e das figuras fundamentais a partir das quais o Muntu

constrói o mundo da vida» [T. do A.], Ibidem, p. 80.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página91

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 91

«racional». A filosofia ocidental coloca estas filosofias «éticas» nos


seus esquemas, como a inculturação ou o encontro entre as culturas,
descuidando da sua história e ridicularizando-as considerando-as
arcaicas. Este confronto produzirá hierarquias de superioridade e
inferioridade, conforme à afirmação de si e à negação total do outro,
imposta pelos dominantes e, reciprocamente, à negação total de si
para afirmar a supremacia do outro, passivamente aceite pelos ven-
cidos. O Muntu passa a processar a sua cultura, descobre a sua fra-
gilidade, a sua «colonizabilidade». Segue uma série de perguntas:
porque é que o Ocidente é mais forte? Responde-se: porque tem
armas. O Muntu pergunta-se, então, se também bastar-lhe-ia ter
armas para vencer, e como fazê-lo. É necessário dinheiro. O dinhei-
ro é a verdadeira potência do agressor, o seu mistério mais «sacro».
Qualquer outra explicação da sua superioridade torna-se mitológi-
ca. Certo, o Ocidente excele em ciência e tecnologia, mas estas tam-
bém são subordinadas ao dinheiro. Como consegui-lo? Por via do
comércio de matérias-primas preciosas, do petróleo aos minerais
mais prestigiosos, de que a África é riquíssima. Se o dinheiro é
condição do sagrado, nota Eboussi Boulaga, o Muntu está definiti-
vamente perdido.
Tenta-se, então, um resgate moral, sustentando um novo tipo de
supremacia sobre o Ocidente: a África, com os seus valores ances-
trais, é a alma e a Europa, com o seu materialismo financeiro e con-
sumista, o corpo. Trata-se, todavia, de uma conciliação fictícia ou
ideológica, porque esta alma não está, de facto, dirigindo o seu
corpo. Tenta-se, então, um ataque directo. A Europa não pode ser
superior, porque cometeu muitos crimes, como demonstra a abis-
mal distância entre os seus valores, dentre os quais a racionalidade
de que se vangloria, e a brutalidade das suas conquistas imperiais.
Deste modo, abre-se, porém, uma controvérsia interminável, na
qual o Muntu apenas perde tempo precioso para colmatar a dife-
rença tecnológica que o penaliza.
Sendo impraticável a via da superioridade moral, tenta-se a da an-
terioridade histórica. O primeiro homo sapiens desenvolveu-se em
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página92

92 | MUNTUÍSMO

África, o demonstra a paleontologia, pelo que é certo que os antepas-


sados já haviam descoberto aquilo que o Ocidente conquistou mais
tarde. Mas a África não deixou vestígios de tais descobertas. A Euro-
pa deriva da África? Como demonstrá-lo? A África é a semente e a
Europa o broto. O broto é mais importante do que a semente, ou
aquilo que segue é apenas a imitação e o degrado daquilo que pre-
cede? Argumentos fúteis, conclui Eboussi Boulaga: «rovesciando sem-
plicemente il punto di vista dell’avversario, non lo si supera, si resta sullo
stesso piano, quello della svalutazione reciproca, del giudizio “morale” fon-
dato sulla valutazione degli averi ereditati, ossia arbitrari, sull’arbitrio e sulla
“fortuna” o sulla predestinazione» 223.
O «culturalismo» tenta outra explicação: as diferenças entre as ci-
vilizações são devidas às escolhas feitas num tempo remoto por
uma cultura, que determinaram de seguida a sua força ou fraqueza.
A vitória ou o colapso seriam factos acidentais. Mesmo neste esque-
ma, ao Muntu não resta senão a resignação: as culturas que triun-
fam não são necessariamente as melhores, mas a sua cultura
perdeu.
O que fazer agora? Não seria melhor reconhecer a superioridade
do outro e adaptar-se aos seus valores? Reconhecer o próprio
«atraso histórico» e procurar colmá-lo progressivamente, mesmo
que isso mortifique o amor próprio? Entregar-se assim à inevitável
ocidentalização do mundo e reconhecer que os factores tradicionais
são obstáculo ao progresso?
Na segunda parte do livro, o autor «si interroga su che cosa diventa
la “filosofia” nella nuova configurazione, che sancisce il dato di fatto che la
ragione del più forte è la migliore, perché è ragione efficace in atto» 224.
Analisa a institucionalização da filosofia e a sua legitimação: a filo-

223 «Virando simplesmente o ponto de vista do adversário, não o se supera, mas se

fica no mesmo nível da desvalorização recíproca, do juízo “moral” fundado sobre a


avaliação dos bens herdados, ou seja arbitrários, sobre o arbítrio, e sobre a fortuna, ou
sobre a predestinação» [T. do A.], Ibidem, p. 110.
224 «Se interroga sobre o que se torna a “filosofia” na nova configuração, que decreta

o dado factual de que a razão do mais forte é a melhor, porque é razão eficaz em acto»
[T. do A.], Ibidem, p. 115.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página93

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 93

sofia está sempre ligada ao poder, o legitima, e é sempre autoritária,


segundo a autoridade do mais forte, a partir da sua matriz grega,
que exclui os «bárbaros». Os herdeiros dos Gregos são depositários
de um saber e de uma razão da qual não existem traços em outro
lugar ou existem apenas esboços. O tradicional apresenta-se como o
«não filosófico» ou irracional, de modo que a ideia de homem da
civilização dominante é a única possível.
O Muntu aceita, imita e comenta esta filosofia indiscutível, dog-
mática, que lhe impõe com força a sua racionalidade. Deverá
apenas repetir, imitar, renunciar totalmente a si próprio e às linhas
de pensamento tradicionais, porque aquela filosofia é o segredo do
desenvolvimento: não se pode resistir à filosofia, porque não se
pode resistir ao Ocidente. Convém abandonar o sonho da própria
auto-afirmação, sob pena de cair nas trevas, na irracionalidade.
Passa-se da pré-história ao mundo da técnica com uma ajuda con-
tínua, a custo de piorar a própria escravidão. Todavia, os tempos
premem e – se subentende: com a Segunda Guerra Mundial – o
Muntu assiste à luta entre os seus vencedores que tentam arrancar-
-se reciprocamente o poder. Descobre, então, que para os colonos
vale a regra segundo a qual, na luta pelo domínio, cada um dos con-
tendores lança-se contra o outro invocando valores simbólicos como
a religião ou a raça, e defende tenazmente o próprio mundo tradi-
cional, muito para além dos interesses materiais, ao invés de contar
apenas com a supremacia da razão. Mesmo no racional Ocidente,
quem vence desacreditará o perdedor, tratando-o por animal, e
impor-lhe-á os próprios valores particulares, afirmando a sua uni-
versalidade com a violência. Que coisa é, então, a filosofia? Não se
sabe ao certo ainda; sabe-se, porém, depois destes discursos, que
coisa não deveria ser. A crítica deve criar um método, não obstante
o estado das coisas obrigue a considerar prematura tal realização e
convide à prudência, na tentativa de concretizar um dispositivo
conceptual rigoroso, capaz de conseguir resultados válidos. Este é o
problema da terceira parte.
Discorrendo sobre a «Lógica da pertença», Eboussi Boulaga
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página94

94 | MUNTUÍSMO

coloca a questão: pode-se ensinar e transmitir filosofia? Segundo o


pensamento vencedor, filosofar é helenizar. De facto, para Sócrates,
a filosofia pode ser ensinada mesmo ao escravo bárbaro, exerci-
tando a maiêutica. Sócrates e a Grécia – o Ocidente – são necessários
ao Muntu que queira aceder à filosofia. Eboussi Boulaga rebate: este
raciocínio é válido apenas sob duas condições, «falar grego» e viver
em «Atenas». Sócrates sabe bem que longe do génio do lugar, a sua
actividade filosófica não teria mais sentido. Por isso, é um falso
mestre para o Muntu, como quem quer que exerça uma mediação
«alienante». O primeiro embaraço, ou melhor, o grave problema de
todos os filósofos africanos é dever apresentar as próprias teorias
através de línguas e categorias tomadas por empréstimo. Em con-
clusão, ensinável ou não, a filosofia é símbolo do Ocidente, é a sua
«teoria» e a sua história fundadora, é a expressão e a inteligência
das relações que ele impõe aos indivíduos, é a justificação que os
regula. Esta visão vem inculcada e transmitida através da educação,
e quem procurar relativizá-la é anormal. Aderir a ela é obrigatório,
se se quer sobreviver e se espera tomar parte nos bens do vencedor.
A realidade é tragicamente diferente: «L’integrazione e l’assimilazione
sono false e contraddittorie. Sono un processo di marginalizzazione e di
snaturamento, diciamo di riduzione all’accattonaggio culturale» 225.
Por fim, a filosofia apresenta-se como um modelo único, atem-
poral, total. Desencoraja e destrói outros modelos acusados de irra-
cionalidade. Responder a estas afirmações com outras igualmente
controversas significa continuar no terreno do adversário. Há quem
defenda a racionalidade do Muntu, porque ele possui uma ideia de
um Deus único, de um mundo como cosmo e não como caos, en-
quanto as suas crenças e os seus costumes obedecem a uma lógica
simbólica perfeitamente coerente. Há quem julgue o pensamento
ocidental mutilado e mutilante, como uma ideologia do homem

225 «A integração e a assimilação são falsas e contraditórias. São um processo de mar-


ginalização e de desnaturalização, ou seja, reduzir-se à mendigação cultural» [T. do A.],
Ibidem, p. 146.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página95

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 95

mecanizado e reificado, que devasta as relações humanas, provo-


cando horrores como a comercialização do sexo, os genocídios. Há,
por fim, quem busque uma conciliação entre a originalidade e o
arcaísmo das civilizações africanas e o génio científico-tecnológico
do Ocidente, sonhado uma complementaridade entre os valores da
vida e os da organização. Pode-se recorrer igualmente a outros gé-
neros retóricos de confirmação, introduzindo novos códigos na filo-
sofia «clássica». Se a filosofia é conjuntamente pergunta e resposta a
interrogativos que retornam no tempo, irresolvíveis, é necessário
descobrir e «inventar» sempre novos critérios. Eboussi Boulaga su-
gere, ironicamente, o exercício de um pensar metafórico, para am-
pliar o domínio da expressividade, dando maior espaço à esfera dos
sentimentos. Deste modo, se restituirá um novo esplendor às habi-
tuais questões de raça e do poder. Se pode igualmente aguçar a arte
da metonímia, exaltando no Muntu mais a parte do que o todo, para
remarcar a insuficiência da filosofia, convidando-a com hábeis jogos
de palavra a abrir-se à totalidade do real.
Mais complexa ainda é a questão linguística. A língua é o centro do
domínio colonial: permite distinguir o civilizado do não civilizado,
ao qual não se reconhece uma língua, só dialectos, pobres e inca-
pazes de «abstração». A língua do vencedor contradistingue o início
da civilização e da história: o resto é pré-história e etnografia. Con-
siderar as culturas africanas como «civilização e literatura orais» é
um acto de caridade tardia e suspeita. Enquanto se afirma que as
«línguas» africanas têm a sua criatividade, que as aproxima à ri-
queza das línguas ocidentais, colocam-se num estágio iliterato, que
define uma divaricação insuperável com as línguas «cultas» do Oci-
dente. Ignora-se, por fim, o património escrito, nega-se que possam
produzir mais do que modestas imitações e banais repetições das li-
teraturas ocidentais, quando se cimentam com a escritura. Três teses
alimentam estes juízos depreciativos: cada língua é típica de uma
comunidade; há um paralelismo entre gramática e pensamento;
entre as várias lógicas ou filosofias há uma heterogeneidade e não
comunicação, porque cada pensamento reflete a organização das ca-
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página96

96 | MUNTUÍSMO

tegorias de cada língua. Uma vez assimilada a hierarquia do domí-


nio, compreende-se como a conclusão de cada uma destas teses não
possa ser senão a confirmação da inferioridade do Muntu. Eboussi
Boulaga conclui: nas línguas africanas não se inclui nenhuma «filo-
sofia africana», nem as línguas africanas, por si só, garantiriam o
sentido da existência, como defendido por muitos etnofilósofos –
subentende-se a alusão a Alexis Kagame. Nenhuma língua impede,
todavia, o Muntu de «dizer-se» na sua verdade, enquanto em rela-
ção à verdade as línguas são apenas instrumentos neutrais. Uma
teoria eficaz pressupõe, porém, uma «ruptura instauradora»; ruptu-
ra de continuidade que instaure a irredutibilidade com a relação
precedente. Enfim, uma política linguística é necessária, mas apenas
como momento duma política mais ampla de libertação da África
da doença, fome, ignorância, submissão e reificação 226.
A autenticidade africana reside nas tradições, sempre subvalori-
zadas, reduzidas a patético folclore. No período colonial, a única
unidade real da tradição foi a provocada pelo sofrimento, pela der-
rota, pela paixão. Por isso, o Muntu retorna atrás no tempo, à busca
de uma Tradição original que, com a sua «africanidade», lhe resti-
tua dignidade e valor. Como estar certo de uma originalidade tão
longe no tempo? A mitificação do original corre o risco de desacre-
ditar as tradições autênticas ainda existentes. Tradição não é abstra-
ção, mas empenho na assunção de responsabilidades, demonstrado
com seriedade na acções do presente, para transmitir o valor no
futuro.
A tradição deve ser uma utopia crítica: memória vigilante sobre o
presente, para que não se possa repetir a história de humilhação e
destruição – se aconteceu uma vez, pode acontecer ainda; identifi-
cação crítica do passado, como eliminação das barreiras impostas
pelos outros, retorno a nós mesmos e fonte de criação cultural, reli-

226 Segundo nos parece, Eboussi Boulaga avizinha-se sempre mais aos temas da filo-

sofia/teologia da libertação africana. Por este motivo, como veremos na sistematização,


o colocamos em modo transversal entre as duas correntes da filosofia africana, entre a
corrente cultural/filosófica e a histórico/social.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página97

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 97

giosa e técnica. «Neste sentido, a tradição simboliza o momento da


autenticidade africana», evitando a ilusão essencialista, que busca
encontrá-la nas origens perdidas 227. Por fim, tradição como modelo
utópico, como projecto de construção do futuro, que harmonize os
dois modelos precedentes, ou seja, a crítica e a reafirmação. Projec-
tada na ideia de um horizonte existencial à medida do Muntu, a tra-
dição será utopia crítica, empenho para uma nova racionalidade,
que respeite o modelo tradicional, operando a transformação numa
sociedade de «estilo» africano. Isto implica o fim da etnologia, não
só porque não existem mais aquelas «tribos» objecto de estudo, mas
porque é um saber e uma práxis ligada à hegemonia colonialista.
Para o Muntu não existem dualismos – civilizado/primitivo, racio-
nal/irracional, investigador/informante –, apenas a comunidade
dos homens, um espaço total onde se busca em conjunto a verdade,
na plena consciência de quanto tal pesquisa seja sempre ligada a um
contexto.
Quanto ao passado, a tradição demonstra o seu carácter e relação
ética com quem nos precedeu, com os antepassados; para o presente,
de empenho ético no confronto do destino dos filhos que virão
depois de nós; para o futuro, de fonte de esperança no seu sucesso,
que em parte dependerá dos nossos actos no presente, que consti-
tuirão uma antecipação. Fidelidade à tradição é repetição livre de
perceber, nos ditos, a palavra original anterior à ruptura e con-
cretizá-la. A tradição, enfim, porque oral, permanece somente se
vem continuamente respeitada no agir quotidiano e histórico, numa
contínua prática de fidelidade, caso contrário, decai. Porque fun-
dada sobre a palavra, a sua força é a da palavra dada, do empenho
sacro que ninguém pode violar sem trair a comunidade e, por con-
sequência, a si próprio. Por isso, comporta sempre uma constante
assunção de responsabilidade pelo bem comum, pelo presente e
pelo futuro. O homem iniciado à tradição aprendeu a renunciar ao
seu próprio egoísmo e aos seus medos, para dedicar-se ao bem da

227 Ibidem, p. 176.


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98 | MUNTUÍSMO

comunidade, no qual apenas encontra o seu sucesso, o seu signifi-


cado e a sua satisfação.
Pensar na tradição segundo o estereótipo do folclore é entregar-
-se ao mesmo destino de humilhação que os etnólogos das ex-
pedições coloniais tinham delineado para o Muntu, reduzido a
bailarino, actor de teatro sobre um palco que não construiu, ridi-
cularizado quando tenta comunicar os seus conceitos e entregue a
um imaginário alienante. Agora o Muntu, cansado de sufocar a sua
origem, não se submete mais a tal mascarada. Esta libertação ocorre
através do «jogo»: para fazer da filosofia uma praxis liberatória é
necessário «brincar» com ela, criar com ironia o distanciamento, do-
miná-la sem acreditar nela, perceber a insegurança das suas pro-
blemáticas e a sua irrealidade, quando julga o que é substancial na
nossa vida e na nossa relação com o mundo. A filosofia não será
mais abstracta, mas emancipadora, quando substituirá uma pre-
sumível ausência, um presumível «espírito individual» por um
«espírito concreto», histórico, reduzindo-se à realidade do fazer.
Deste modo, a filosofia poderá ser recuperada – «reuso da filo-
sofia» – para projectar uma autenticidade a conquistar com a eman-
cipação. Para reler a filosofia sem fugir da própria condição aliena-
da, para livrar-se, é necessário projectá-la no horizonte ético. Pensar
o homem diferentemente de como o interpreta a razão dos domina-
dores, que o vê como um ser abstraído da comunidade e da história,
um ser egoísta, produto de uma ontologia assassina, niilista, totali-
tária, a mesma que impôs ao Muntu as suas definições, abatendo
todas as resistências. Fortalecido pela crítica, o Muntu reutilizará a
filosofia para desmistificar esta ontologia do domínio e tornar a ser
livre. É necessário recuperar a ontologia meditando sobre a crise do
ser, do vazio do ser que ela mesma provocou, como uma usura pla-
netária. Este novo exercício ontológico ensinará ao Muntu a não
refugiar-se mais na fantasia de uma essência mendigada, mas a
tornar a agredir a realidade quotidiana: trabalho, sentimentos, ne-
cessidades, desejos... que são os âmbitos nos quais se compreende o
ser. É neste horizonte que se pode responder às antigas exigências
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página99

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 99

transcendentais da ontologia. O agir deve confrontar-se com a


teoria que o lê num contexto mais amplo, social, para restituí-lo a si,
para além dos limites da acção individual, que o condena a repetir
inconscientemente uma essência falsa.
O discurso que o Muntu deverá elaborar, deve ser coerente com
o seu desejo de autenticidade. Antes de mais, retomar o discurso do
em si, que postula a identidade de todos os negros no fundo das cul-
turas, e revela um pensamento original, peculiar. Este em si, esta
essência, deve dirigir-se ao para si e ao para os outros. A sua lingua-
gem, sendo abstracta e imaginária, sentimental, sujeita à ilusão dos
estereótipos (o negro é isto ou aquilo), deve recorrer a um discurso
para si, racional. A forma deste discurso é o conto, como «forma de
colocar ordem no caos». Este discurso narrador pode ser inicial-
mente «inconsciente», mas de seguida suscita a tomada de cons-
ciência que torna possível rebelar-se contra uma alienação que não é
mais sofrida como uma fatalidade, mas é reconhecida como auto-
-alienação. O conto é reconstrução da própria perda e também do
resgate de si: «la ragione storica e la libertà ragionevole si conquistano per
aver vissuto l’anti-ragione e l’arbitrio» 228. Este discurso «para si
mesmo» tem, todavia, uma valência universal. O projecto de eman-
cipação do Muntu não pode prescindir das suas experiências trági-
cas, não pode reduzir-se à substituição dos antigos chefes por novos,
nem se iludir de poder resolver tudo se concentrando no objectivo
do crescimento económico. O Muntu não pode ignorar a alienação
sofrida, sem reencontrar-se escravo do poder que a seu tempo o
subjugou, exercitando «a arte de vencer sem ter razão», suprimindo
a realidade viva e relegando-o a uma função de executor das suas
ordens. A lucidez da narração restituirá ao Muntu, com a consciên-
cia do seu destino, a força da sua «razão», necessária à afirmação da
racionalidade global, ecuménica, numa plenitude de humanidade.
O discurso para si deve ser também um discurso para o outro,

228 «A razão histórica e a liberdade racional se conquistam por ter vivido a “anti-

-razão” e o arbítrio» [T. do A.], Ibidem, p. 235.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:38 Página100

100 | MUNTUÍSMO

deve mostrar-se inteligível e acessível a todos, porque o Muntu não


vive numa ilha, mas é parte de um todo 229. Trata-se de uma univer-
salidade concreta, que não é uma ideia, mas é o mundo, é plural, é
um processo, praxis universalizante e não qualidade atribuível às
noções e aos seres. A ciência, a economia, que, todavia, partem do
particular, seriam irracionais se não tivessem uma abrangência
mundial, se não correspondessem a objectivos que interessam a
todos e a cada um. Esta universalidade não é uma realidade dada
na qual o Muntu deve entrar, mas é um processo oferecido a todos
na sua particularidade. É necessário superar o «patético» dilema
entre tradição e presente: o Muntu não deve sonhar para além da
sua época: «gli basta abitare la sua diversità e quella del mondo, con e nel
progetto di essere per se stesso e in virtù di se stesso, con la mediazione
dell’avere e del fare. […] Sono questi i lineamenti di una dialettica dell’au-
tenticità, connessa a una storia particolare della libertà ragionevole e aperta
ad un universale concreto da fare, un’autenticità che non è altro per il
Muntu che costruire il tempo e lo spazio del suo impegno, il campo dell’es-
perienza che gli è possibile in un mondo che lo circonda e che è insieme al
suo interno» 230.
No último capítulo, intitulado «A suspensão», Eboussi Boulaga
traça a sua precariedade, a da sua obra e do Muntu: se, por um lado,
não se deve negar ao Muntu a possibilidade de exprimir-se, de defi-
nir a ordem da autenticidade, de realizar-se; por outro, a realização
não sacia, o fazer não produz nada que não seja efémero, as obras
não o salvam do mundo e não salvam o mundo: a sua «transcen-
dência» de Muntu, dono de si próprio, não abole a sua temporali-

229 O tema da comunicabilidade, que será retomado nos anos ‘90 por Filomeno

Lopes.
230 «Basta-lhe habitar na sua diversidade e na do mundo, com e no projecto de ser

para si mesmo e em virtude de si mesmo, com a mediação do haver e do fazer. […] São
estas as linhas de uma dialética da autenticidade, conectada a uma história particular
da liberdade racional e aberta a um universal concreto a fazer, uma autenticidade que
não é outra coisa para o Muntu do que construir o tempo e o espaço do seu empenho, o
campo da experiência que lhe é possível num mundo que o circunda e que está, ao
mesmo tempo, no seu interior» [T. do A.], Ibidem, p. 241.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 101

dade e a sua evanescência, porque mesmo o Muntu é apenas um


segmento empírico do mundo. A palavra é sempre e apenas mun-
dana, não brota da eternidade, mesmo se pronunciada em nome de
Deus, do Antepassado, da Natureza, da Pátria, etc. É este o pensa-
mento da crise, crise radical do pensamento. O discurso tornar-se-á
tácito, os sistemas mudarão e cairão, os desafios e as paixões desa-
parecerão. Tudo é vão! Nada pode libertar o Homem da sua fini-
tude, mortalidade, mas a verdade palpita mesmo neste contexto
fugaz dos sentimentos, das cores afectivas da quotidianidade.
O pensamento da crise «intende proporzionare il sapere all’esperienza,
il discorso alla pratica. La crisi è la sproporzione tra la teoria e la prassi, tra
ciò che è codificato e ciò che è vissuto, tra quanto è concepito e quanto è sen-
tito» 231. O acesso à verdade passa pela verdadeira crise diante da
própria finitude. Por isso, paradoxalmente, exactamente na crise o
Muntu, reconhece a força das suas tradições, que se manifestam em
toda a sua universalidade. O pensamento da finitude repercorre um
itinerário similar ao dos iniciados, de onde o Muntu saiu e sai dei-
xando atrás de si a sua infância. Eboussi Boulaga perfeiçoa ao má-
ximo o tom da sua ironia filosófica. Que coisa ensina, de facto, a ini-
ciação tradicional? Nada! «Comunica al novizio che il sapere supremo è
che non c’è niente da conoscere» 232. As vozes misteriosas não são mais
do que rumores externos, a garganta do monstro é uma caverna e os
antepassados não retornam do reino dos mortos, mas são apenas
habitantes do vilarejo mascarados. Tudo era apenas símbolo, jogo
de sinais. A sacralidade da iniciação não emana, de facto, daqueles
fenómenos sensíveis, mas do pacto tácito entre os homens, que
funda a sociedade, na comum aceitação da lei suprema da finitude,
a lei da morte, e no respeito do silêncio escrupuloso que a deve
acompanhar. Fortalecido por esta consciência essencial ao homem, o

231 «Entende proporcionar o saber à experiência, o discurso à prática. A crise é a des-

proporção entre a teoria e a praxe, entre aquilo que é codificado e aquilo que é vivido,
entre aquilo que é concebido e aquilo que é sentido» [T. do A.], Ibidem, p. 245.
232 «Comunica ao noviço que o saber supremo é que não há nada a conhecer» [T. do

A.], Ibidem, p. 246.


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102 | MUNTUÍSMO

iniciado é aquele que sabe transformar as coisas em símbolos e sabe


retornar dos símbolos às coisas: «meglio queste maschere provvisorie
che la morte e il caos» 233. O iniciado, o Muntu autêntico, não confunde
as máscaras com os rostos, como as crianças, não mistura sacro e
profano, vida e morte, como os irresponsáveis, por isso sabe recriar,
interpretar e concretizar as tradições, de que é depositário, com
serenidade e seriedade. Pensamento da crise é a aceitação sincera
dos limites e da mortalidade, começando e terminando por si pró-
prio, na coragem de uma razão sóbria e determinada. Revela-se
deste modo o último segredo da filosofia, para restituí-la ao Muntu.
Para além da maravilha e do pathos platónico, a filosofia nasce, so-
bretudo, do domínio máximo de si, que a razão é desafiada a exerci-
tar na experiência da traição. Nenhuma finitude trai o homem e o
Muntu quanto o fim da alma, a sua morte, determinada por quem
sabe usar a «arte de vencer sem ter razão». Se o Sócrates pedagogo
não é um verdadeiro mestre para o Muntu, o Sócrates moribundo,
traído pelas leis humanas e divinas, é, contrariamente, o seu verda-
deiro irmão filosófico, em demonstração de que quando o homem é
traído pelo homem, e se traí a si próprio, a sua razão universal se
reacende à filosofia para restituir--lhe a sua dignidade, com fé na
lealdade do espírito.
Reconhecendo no Sócrates de Fédon um modelo extremo de hu-
mildade filosófica, o nosso autor despede-se, num acto de reconci-
liação final com a melhor herança filosófica e cultural do Ocidente,
deixando os seus leitores na Suspensão e convidando-os à sua inicia-
ção, enquanto lança o convite e o desafio da lucidez 234.

233 «Melhor estas máscaras provisórias do que a morte e o caos» [T. do A.], Ibidem,

pp. 246-247.
234 Para esta interpretação do texto eboussiano, cf. L. PROCESI, «Introduzione», in

F. EBOUSSI BOULAGA, Autenticità africana e filosofia, cit., em particular o parágrafo: «Il co-
raggio dell’umiltà filosofica», pp. 42-48.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 103

FILOMENO LOPES: Ser de comunicação

Na nossa pesquisa sobre a ideia de pessoa na filosofia africana


contemporânea, quisemos dedicar atenção particular à área linguís-
tica lusófona, geralmente pouco presente no debate continental, no
qual os colossos são os filósofos da área anglófona e francófona. O
meu interesse por estes autores deve-se não apenas ao facto de há
anos viver e trabalhar num país lusófono, o que me permite conhe-
cer bem tal problemática, mas move-me, sobretudo, o desejo de
fazer justiça aos seus pensamentos interessantíssimos e originais,
muitas vezes pouco explorados. Se a filosofia africana em si sofre
uma grande discriminação a nível internacional, os filósofos da área
lusófona a sofrem duplamente, não apenas por serem africanos,
mas também por pertencerem a um grupo linguístico minoritário.
Filomeno Lopes é um filósofo da Guiné Bissau, que publicou
vários livros na Itália. Entre os seus textos mais originais focaliza-
mos a atenção em Terzomondialità. Riflessioni sulla comunicazione in-
terperiferica (Terceiro-mundialismo. Reflexões sobre a comunicação
interperiférica) 235. O estudo deste texto torna-se importante para o
nosso tema, pois, como diz Robert A. White na introdução, «The
question of how we can arrive at some public consensus is inevitably pusher
back to the criteria of truth based on some epistemology and eventually back
to a conception of the person and the conception of existence» 236.
Lopes abre o seu livro com a proposta de superar a etnofilosofia,
focalizando a reflexão africana no fenómeno da comunicação.
O Muntu – literalmente traduzido pelo autor como «pessoa hu-
mana», ou «il soggetto dell’africanità profonda, alla ricerca della sua sto-
ricità e della sua liberazione» 237 – encontra-se diante de dois proble-

235 F. LOPES, Terzomondialità. Riflessioni sulla comunicazione interperiferica, Turim, Ed.

Harmattan Italia, 1997.


236 «A questão de como podemos chegar a algum consenso público é, inevitavelmen-

te, voltar aos critérios de verdade baseados em alguma epistemologia e, eventualmente,


voltar a uma concepção da pessoa e a concepção da existência» [T. do A.], Ibidem, p. 11.
237 «O sujeito da africanidade profunda, na busca da sua historicidade e da sua liber-

tação» [T. do A.], Ibidem, n. 1, p. 25.


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104 | MUNTUÍSMO

mas: por um lado, fazer sobreviver a tradição e, por outro, o conflito


contra a modernidade ocidental que invade a África e a vida do
Muntu 238. A modernidade alterou os sistemas éticos em vários cam-
pos (familiar, sexual, político, comunicativo, etc.), a tal ponto que o
Muntu, «sradicato dai ritmi della vita tradizionale […] ha necessariamen-
te bisogno di reinventare i propri costumi, per riguadagnare la gioia di
vivere e di sperare, nel pieno rispetto dei valori inalienabili della vita e
quindi anche della possibilità di morire poveri dignitosamente. Ciò richiede
una nuova prospettiva filosofica, orientata sulla comunicazione a livello
continentale» 239. O projeto de Lopes se materializa numa filosofia
africana centrada na comunicação, em busca das condições de pos-
sibilidade para uma era da terceira-mundialidade, de redescoberta
do Outro e da indentidade e libertação da periferia do jugo do
centro. Portanto, o problema fundamental é o da comunicação inter-
periférica. Uma tarefa da qual a África, «berço da humanidade»,
não pode eximir-se, pois tem na comunicação um elemento funda-
mental. A África deve apresentar-se diante da «totalidade» como
um partner de igual dignidade, superando a lógica da prevaricação
com a lógica comunicativa 240. Trata-se precisamente da questão
ética 241. O respeito da alteridade insere a África num pós-modernis-
mo mais aberto ao rosto do outro. Lopes lamenta o facto de as peri-
ferias do mundo se abrirem unidirecionalmente ao Ocidente, sem
relação entre si 242. Torna-se necessária uma pedagogia da libertação a

238 Ibidem, p. 19.


239 «Desenraizados dos ritmos da vida tradicional [...] precisa necessariamente rein-
ventar os próprios costumes, para ganhar de novo a alegria de viver e de esperar, no
pleno respeito dos valores inalienáveis da vida, e inclusive a possibilidade de morrer
pobre dignamente. Isso implica uma nova perspectiva filosófica, orientada sobre a
comunicação a nível continental» [T. do A.], Ibidem, pp. 24-25.
240 Ibidem, p. 27.

241 Lopes retoma as ideia de «alteridade» e «identidade» de Dussel.

242 Segundo Lopes, a União Africana é algo impontente; a união dos teólogos do Ter-

ceiro Mundo (EATTW) é algo de vago e intelectual. Subsiste ainda a desconfiança dos
países africanos uns em relação aos outros, quando, por exemplo, nos aeroportos
africanos o controlo é mais severo no confronto dos africanos e não dos estrangeiros de
outros continentes.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página105

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 105

nível da base, que possa favorecer uma comunicação interperiférica


mais autêntica. Nem o socialismo (colectivismo), nem o capitalismo
(individualismo) favorece a comunicação, apenas uma «democracia
social, espiritual e cósmica» e uma humanidade que inclua a beleza
e o feminino. Não uma civilisation universelle, mas uma Civilisation
de l’Universel (Senghor). Precisamente «spetta al filosofo della Periferia
del mondo ricercare le basi per una comunicazione interperiferica, con-
dizione per costruire la terzomondialitá. Egli deve però essere un intellet-
tuale organico, un militante impegnato in prima linea, sensibile ai pro-
blemi della quotidianità e capace di proporre un’alternativa concreta
attraverso il suo modo di pensare, di scrivere, di parlare» 243. O filósofo,
escreve Lopes, deverá levar a cabo esta tarefa interdisciplinarmente,
também em colaboração com as religiões e com a teologia. Cabe à
filosofia africana repropor um discurso filosófico sobre a comuni-
cação interperiférica, sobre a identidade histórica da libertação, sobre a
necessidade de uma cultura da terceira-mundialidade como um es-
paço de encontro entre as periferias e o Centro. Lopes questiona-se
sobre a possibilidade de uma comunicação autêntica entre as peri-
ferias paralizadas por problemas económicos e sociopolíticos.
Avista uma possível solução referindo-se à ética da comunicação
cristã, para a qual comunicar não é apenas a transmissão de infor-
mações, mas libertar o outro, sem discriminação, favorecendo uma
comunhão que «educa alla capacità di sguardi incrociati, dalla quale
nasce finalmente l’amore foriero di una verità che ci rende liberi e di una
libertà capace di verità, quindi credibile» 244. Deve tratar-se de uma liber-
dade passível de materialização, concreta. Para Lopes, o Cristianis-
mo possui este concretismo porque crê em Deus que se fez carne: o

243 «Cabe ao filósofo da Periferia do mundo procurar as bases por uma comunicação

interperiférica, condição para construir a terceiro-mundialidade. Ele porém deve ser um


intelectual orgânico, um militante empenhado de primeira linha, sensível aos proble-
mas da quotidianidade e capaz de propor uma alternativa concreta com o seu modo de
pensar, de escrever, de falar» [T. do A.], Ibidem, pp. 32-33.
244 «Educa à capacidade de encruzilhar os olhares, da qual nasce finalmente o amor

portador de uma verdade que nos torna livres e de uma liberdade capaz de verdade,
por isso credível» [T. do A.], Ibidem, p. 36.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página106

106 | MUNTUÍSMO

bem não deve ser inventado ou programado, apenas concretizado,


porque já se encontra escrito no Evangelho. Dos olhares cruzados
deve-se passar à vivência encruzilhada: o rosto do outro me inter-
pela, a sua vida ou morte me interpela. Para o comunicador cristão,
o outro não é objecto da informação, mas alguém que espera uma
palavra de vida.
Lopes considera fundamental o estudo das religiões em África.
Propõe uma releitura da história da Igreja, na qual a Igreja da África
não pode mais ser encarada como um simples apêndice colonial.
Esta Igreja pobre encontra-se num lugar privilegiado (Bem-aventu-
rados os pobres...) e junto a outras religiões (que no passado con-
tribuíram para a divisão do mundo e da periferia) deve procurar
uma nova «espiritualidade comunicativa» (nova relação com Deus)
que coloque todos os homens em comunicação entre si. É necessário,
antes de mais, um esvaziamento, para tornarem-se vasos capazes de
receber sem discriminação. Lopes retoma a ideia africana de Muntu,
introduzida na filosofia africana por Tempels. O Muntu é «l’essere della
personalità africana nel suo rapporto con Dio e il mondo e soprattutto nel-
l’interazione delle forze vitali» 245. Com Eboussi–Boulaga, o termo Muntu
deixa o contexto linguístico-etnológico e torna-se um protagonista
histórico em busca da sua dimensão e libertação, «diventa un soggetto
storico alla ricerca di uno sviluppo equilibrato ed armonioso, attraverso il
dialogo tra l’eredità tradizionale e la modernità coloniale e post-coloniale» 246.
O Muntu deve ser contextualizado na sociedade onde partecipa
na construção de um nós-juntos (a sociedade tradicional) que se es-
pelha no agir comunicativo do Muntu no seio da modernidade.
Partindo do Muntu, se busca a definição do Outro, na encruzilhada
do «cara a cara» do «nós-juntos» histórico 247. Sem comunicação não

245 «O ser da personalidade africana na sua relação com Deus e com o mundo e espe-

cialmente na interação entre as forças vitais» [T. do A.], Ibidem, p. 43.


246 «Se torna um sujeito histórico na busca de um desenvolvimento equilibrado e

harmonioso, através do diálogo entre a herança tradicional e a modernidade colonial e


pós-colonial» [T. do A.], Ibidem, p. 44.
247 Cf. Ibidem.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página107

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 107

existe vida vivida: é o único modo, defende Lopes, que temos para
realizarmo-nos como seres humanos. Percebendo provavelmente o
carácter retórico do seu discurso, Lopes conclui que «bisogna passare
alla ricerca delle condizioni per la fondazione di un discorso sulla comu-
nicatività e sulla relazionalità, che possa attingere all’oceano chiaro e
immenso del concetto di muntu» 248.
O Muntu é sempre relação: um Muntu solitário é um louco ou
bruxo, e em todo o caso é um perigo. A solidão é uma a-grazia, uma
des-graça (falta de graça). Em África, a hospitalidade é algo de sa-
grado, é abertura ao outro, algo que cria harmonia e paz 249.
O Muntu é autónomo, mas sempre em relação com o outro, com
Deus, etc., em comunicação, porque sem comunicação não há vida
humana. No centro da palavra Muntu reside exactamente a relação
e a comunicação. Por isso, em tal palavra se deve procurar o funda-
mento de um discurso sobre a comunicação e a relação 250. O valor
da relação, o nós-juntos, mantém a reciprocidade, sem dissolução de
um no outro, mantendo a própria autonomia. É reconhecer o outro
igual a mim, é respeito pelo outro. Uma pequena falta de respeito
pode comprometer toda uma série de relações. Receber o outro
como pessoa humana igual a mim (acolhida), doar ao outro (hospi-
talidade). A hospitalidade é uma obrigação, e, se não se cumpre,
podem existir perigos de vingança da parte da família, da região ou
etnia.
O primeiro espaço de comunicação do Muntu é a família, no seio
da qual aprende a amar e comunicar, a reconhecer a vida dos outros
e a ser reconhecido. «Il tu che scopre l’amore e il rispetto è il luogo dove
l’in-sé, la trascendenza e il valore dell’essere sono originariamente
percepiti. L’io sono si scopre nella sua densità a partire dal tu sei, non
tanto a partire da te che io amo e rispetto, quanto da te che mi ami e

248 Ibidem, p. 45.


249 Como é que isto se concilia com as guerras tribais que ensanguentam a África?
As guerras devem-se, no parecer de Lopes, à perda dos valores tradicionais.
250 Lopes critica Tempels por ter reduzido a relação do Muntu com «força vital»

apenas ao aspecto activo.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página108

108 | MUNTUÍSMO

rispetti» 251. Eu, tu, formamos o nós-juntos que é o lugar da manifes-


tação e da verdade libertadora. Por isso apenas na comunicação
temos o único modo de realização humana autêntica.
O tema do feminino é central: a integração da periferia na era do
terceiro-mundismo passa necessariamente pela integração do femi-
nino na história, até então construída sobre o machismo. Quem pre-
tende ganhar, emergir (seja homem ou mulher), deve fazê-lo desen-
volvendo sempre características masculinas, ser forte, calculista,
«monstro». Se a mulher pretende impor-se, deve abandonar a sua
feminilidade. A força vital foi erroneamente identificada com a mas-
culinidade. Na verdade, reconhecer os próprios limites, a capaci-
dade de ternura, etc., não são sinais de fraqueza, mas de grande
força vital. Lopes propõe o modelo dos «monges-guerreiros», uma
fusão entre masculinidade e feminilidade 252.
Segundo Lopes, a tradição africana pode dizer algo acerca do fe-
minino. A África foi criticada e agitada por feministas ocidentais que
pretendem exportar o seu modelo de virilidade no mundo, em nome
da emancipação e da liberdade. Lopes continua afirmando que «la
liberazione della donna è la liberazione dell’uomo stesso come persona» 253.
O homem sem a mulher reduz-se a nada e vice-versa.
A África – berço da humanidade – deve oferecer à terceiro-mun-
dialidade a sua vocação para a feminilidade, abolindo os costumes
tradicionais contrários a esta vocação. Quanto à poligamia, Lopes
afirma que nunca foi institucionalizada 254, trata-se de um acordo
entre o marido e a sua primeira esposa. De facto, a única cerimónia
de matrimónio é com a primeira esposa, com as demais apenas con-

251 «O tu que descobre o amor e o respeito é o lugar onde o em si, a transcendência e

o valor do ser são originariamente percebidos. O eu sou se descobre na sua densidade a


partir do tu és, não só a partir de ti que eu amo e respeito, mas de ti que me amas e res-
peitas» [T. do A.], Ibidem, p. 50.
252 Lopes propõe como modelo a figura de Jesus Cristo e critica a Igreja, porque

muitas vezes, na educação, obrigou a eliminar o feminino que existe em cada pessoa.
Cf. Ibidem, p.57
253 Ibidem, p. 59.

254 Salvo o caso dos reis muçulmanos.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página109

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 109

suma-se um pequeno rito do qual toma parte um pequeno grupo de


pessoas. A poligamia surge na África num período de decadência, e
não faz sentido algum, insiste Lopes, pretender institucionalizá-la
agora, pois «fa parte di quei costumi che l’Africa deve avere il co-raggio di
seppellire» 255.
O lobolo (dote) deve ser algo a redescobrir e a manter, como «uni-
dade sacramental». O comércio actual das mulheres «loboladas»
não tem qualquer fundamento histórico e sociológico na tradição
africana. Perante a hodierna «depersonnalisation» da mulher africana
(E. Mveng) urge uma «repersonnalisation» do Muntu. Uma reedu-
cação do Muntu para redescobrir a sua dimensão de feminilidade
será de grande ajuda na aceleração do processo de libertação da
mulher. Insistir na paridade é ainda uma consequência do machis-
mo: é necessário educar o homem como sujeito de masculinidade e
feminilidade. A filosofia africana deve ajudar a mulher a viver a sua
feminilidade.
Lopes passa a tratar o tema da «filosofia da recepção» que parte
da maravilha perante o mundo e não de pressupostos racionalistas
como o cogito ergo sum da «filosofia da adquisição». No diálogo com
a filosofia europeia, Lopes privilegia a filosofia de Kierkegaard, que
se inspira na maravilha socrática, na qual a «liberdade-libertação»
apenas pode ser provada, mas não conhecida. A África deve liber-
tar-se do «monstro» ocidental, diante do qual se vende a si mesma
para parecer um país «OK» 256. A África deve simplesmente ser ela
mesma, sem depender de ninguém e sem procurar continuamente a
aprovação da parte do Centro. Quando a África é ela mesma, im-
põe-se mundialmente, tal como aconteceu com a música, arte, etc.
Na segunda parte do seu livro, Lopes trada do Sínodo Africano,
partindo da reflexão filosófica africana. Lamenta que o Sínodo não
tenha tratado de teologia africana e, pior ainda, de filosofia africana.

255 «Faz parte dos costumes que a África deve ter a coragem de sepultar» [T. do A.],
Ibidem, p. 63.
256 Cf. p. 72.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página110

110 | MUNTUÍSMO

O tema da comunicação foi reduzido à questão dos meios de comu-


nicação social. Ainda assim, o Sínodo resultou numa experiência de
comunicabilidade eclesial. Lopes exorta a Igreja a operar a pas-
sagem de Babel ao Pentecostes, através do ecumenismo e do diá-
logo inter-religioso. O Sínodo foi um exemplo de comunicação para
a terceiro-mundialidade. Todavia, a Igreja deve favorecer os encontros
com as outras periferias do mundo. Lopes propõe um Sínodo dos
Bispos de todas as periferias. No epílogo fala igualmente de uma fi-
losofia da libertação que saia da América Latina e envolva toda a
Periferia. O primeiro tema a tratar será o da comunicação interperi-
férica. Os interlocutores deste diálogo devem ser filósofos africanos
e não norte-americanos ou europeus. Os filósofos ainda trabalham
isoladamente, enquanto os teólogos já formaram a Associação
Ecuménica dos Teólogos do Terceiro Mundo. Do mesmo modo,
torna-se necessária uma Associação dos Filósofos da Periferia que
trabalhe pela autonomia cultural dos respectivos povos e eduque à
consciência de ser verdadeiros sujeitos históricos. O filósofo deve ser
um militante, ajudar o povo no seu processo de libertação. É precisa-
mente nesta linha, conclui Lopes, que deve orientar-se o discurso da
filosofia da comunicação em África, partindo da tradição 257.
Lopes escreveu numerosos outros textos, nos quais se confronta
com o pensamento dos vários filósofos africanos. Em vista do nosso
objectivo, parece-nos mais útil uma alusão a um livro com um título
muito curioso: E se l’Africa scomparisse dal mappamondo? Una rifles-
sione filosofica [E se a África desaparecesse do mapa-múndi? Uma
reflexão filosófica] 258.
É o último esforço literário de Lopes, sempre empenhado em
colocar o pensamento filosófico africano de pleno direito no actual
panorama cultural mundial. A tese que se propõe ilustrar neste
texto é o processo de renovamento e renascimento da África como

257 Cf. Ibidem, p. 104. É a mesma conclusão de J. P. Castiano e de Eboussi Boulaga

(intersubjectividade e repartir da tradição).


258 FILOMENO LOPES, E se l’Africa scomparisse dal mappamondo? Una riflessione filosofica,

Roma, Armando Editore, 2009.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página111

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 111

condição indispensável para o desenvolvimento do pensamento


africano autónomo e de todo o pensamento filosófico contem-
porâneo. A análise sociológico-cultural delineada já na primeira
parte do século XX por Cheikh Anta Diop, no seu estudo sobre a
história africana, justifica a novidade e a constância hodierna, seja
de Lopes ou de todos quanto buscam, não sem dificuldade, reivin-
dicar a plena participação do pensamento filosófico africano no de-
senvolvimento da filosofia. A obra de Lopes é uma análise cerrada
do actual contexto cultural africano das três áreas linguísticas prin-
cipais, com o objectivo de formular um juízo explícito e claro acerca
da natureza da consideração da Àfrica por parte do pensamento
norte-ocidental dominante. Lopes formula um juízo de valor histó-
rico, político, moral e económico, que ele próprio descreveu na con-
clusão do estudo efectuado: «l’Africa e l’umanitá odierna attraversano
una crisi di comunicazione profonda che deve essere sanata pena l’annul-
lamento di noi stessi come africani, come comunitá mondiale e come
uomini» 259.
Utilizando as reflexões dos mais conhecidos intérpretes da cul-
tura africana de Cheikh Anta Diop, passando pela análise das ques-
tões metodológicas de Jean-Marc Ela, à nova e inovadora reflexão
do filósofo moçambicano Severino Ngoenha acerca do «ser» afri-
cano, Lopes apresenta muitas vezes uma forte e indiscutível denún-
cia acerca do direito jamais vivido e ainda hoje não adquirido de ser,
ontologicamente falando, do Homem negro, isto é, de ser livre de
decidir e de autodeterminar a própria vida. Lopes hipotiza uma
eventual separação da África, melhor, dos africanos, como solução
radical para a consciência dos países desenvolvidos, que têm fecha-
do o Continente Negro num abismo sem saída, em nome do desen-
volvimento económico em sentido único. Lopes denuncia a decisão
unilateral destes países de declarar a África incapaz de exprimir-se

259«A África e a humanidade hodierna atravessam uma crise de comunicação pro-


funda que deve ser superada, para não ficarem anulados como africanos, como comu-
nidade mundial e como homens» [T. do A.], Ibidem, p. 421.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página112

112 | MUNTUÍSMO

aos níveis por eles considerados indispensáveis para o desenvolvi-


mento até mesmo da própria cultura. Todo o mundo norte-ociden-
tal, segundo Lopes, é responsável por uma leitura de sentido único
do que é humano, desenvolvido e, por isso, culturalmente aceitável
por todos e em todos os países. Lopes denuncia a arrogância polí-
tico-económica e cultural daqueles, os brancos, que munidos de pa-
lavras, pensaram poder unilateralmente decidir quem e que coisa
fosse o Ser enquanto pessoa. Os vencedores decidiram a posteriori
quem fosse, enquanto pessoa, sujeito de direitos e de deveres e
quais fossem as sociedades que podiam gozar do direito de dizer-se
desenvolvidos. De tal análise, a África e os africanos foram excluí-
dos do diálogo cultural mundial, assim como do direito de autode-
terminação segundo a economia e a cultuara da sua gente 260.
Acompanhado pela nova reflexão etico-antropológica e pelo
debate filosófico actual em África, Lopes retoma o tema – já anteci-
pado no seu livro sobre a terceiro-mundialidade – da necessidade de
uma nova capacidade relacional e comunicativa entre o Norte e o
Sul, entre a África e o resto do Mundo Ocidental, que seja capaz de
fazer justiça ao valor do Ser humano como tal, antes mesmo da sua
localização. Isto significa que a Pessoa (Muntu) é um sujeito de di-
reitos e deveres que todos devem respeitar e defender, independen-
temente do lugar no qual a pessoa nasce e se desenvolve. O perigo
que se encontra quando se perde tal consciência é o enfraqueci-
mento da dignidade da pessoa humana em todos os países da Terra,
e em todos os povos e culturas 261.
Lopes nota que as diferenças culturais e económicas não podem
ser usadas para dividir e julgar alguns seres humanos inferiores aos
outros, mas tais diferenças deviam ajudar todos a compreender que
o Homem, como ser vivo, é constituído em relação com outros seres
vivos iguais entre si, sujeitos da própria vida. Apenas o diálogo e a
partilha podem resolver os conflitos que nascem entre homens dife-

260 Cf. Ibidem, pp. 118-119.


261 Cf. Ibidem, p. 107.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página113

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 113

rentes entre si, em termos de espaços e culturas, mas não de ser.


Recorda ainda que todos os conflitos entre os seres humanos sem-
pre foram alimentados por interesses de uns contra a maioria dos
outros homens 262.
É urgente relançar a comunicação, o diálogo e a compreensão
intra-humana, para adquirir um sentido de pertença ao género hu-
mano que habita a mesma terra, compreender a razão das dificul-
dades de certos homens enfrentam, tecer novos caminhos consen-
suais para a humanidade do futuro 263.
O pensamento de Lopes ganha corpo da consciência do que é a
filosofia em todos os tempos e para todos os homens, de como ela
seja a melhor condição para afirmar o triunfo da vida sobre a morte,
o principal objectivo do trabalho filosófico: scientia rei per ultimas
rationes 264.

SEVERINO ELIAS NGOENHA: Ser sujeito da história

Entre os filósofos mais significativos da área lusófona, emerge


sem dúvida o filósofo moçambicano Severino Elias Ngoenha 265. As

262 Cf. Ibidem, 227.


263 Cf. pp. 151-152.
264 «O conhecimento das razões últimas» [T. do A.], cf. Ibidem, p. 240.

265 Severino Elias Ngoenha estudou Filosofia e Teologia na Pontificia Università

Urbaniana e doutorou-se em Filosofia na Pontificia Università Gregoriana; ensinou


durante anos na Universidade de Lausanne e, como professor visitante, em várias uni-
versidades. Actualmente é professor na Universidade Pedagógica de Moçambique e
Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. As suas obras principais são: Duas Inter-
pretações Filosóficas da História do Século XVII. Vico e Voltaire, Porto, Edições Salesianas,
1992; Por Uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica, Porto, Edições Salesianas,
1992; Das Independências às Liberdades, Maputo, Edições Paulistas, 1993; O Retorno do Bom
Selvagem, Porto, Edições Salesianas, 1994; Mukhatchanadas, Lisboa, Ed. Escritor, 1995;
Identidade Moçambicana: já e ainda não, em Identidade Moçambicanidade Moçambicanização,
Maputo, Livraria Universitária Eduardo Mondlane, 1998; Estatuto Axiológico da Educa-
ção, Maputo, Livraria Universitária Eduardo Mondlane, 2000; Os Tempos da Filosofia.
Filosofia e Democracia Moçambicana, Maputo, Imprensa Universitária, 2004; S. NGOENHA e
L. BUSSOTTI, La Guinea-Bissau Contemporanea, Turim, L’Harmattan Italia, 2008; S. NGOE-
NHA, J. P. CASTIANO; G. BERTHOUD, A Longa Marcha de Uma «Educação para Todos» em Mo-
çambique, Maputo, Imprensa Universitária, 2005; Machel. Ícone da 1.ª República?, Maputo,
Ndjira, 2009; com J. P. CASTIANO, Pensamento Engajado. Ensaio sobre Filosofia Africana, Edu-
cação e Cultura Política, Maputo, Editora Educar/Cemec UP, 2010.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página114

114 | MUNTUÍSMO

suas obras que mais interessam ao nosso fim são: Filosofia Africana.
Das independências às liberdades, de 1993, e Estatuto e axiologia da edu-
cação, de 2000.
A preocupação de Ngoenha é em relação ao futuro do País e ao
papel que o filósofo deve desenvolver na sua construção. Anterior-
mente, este papel era desempenhado por outros, pelos colonizado-
res. Mesmo com a revolução, o povo não foi envolvido na progra-
mação do próprio futuro: participou apenas passivamente. O fio
condutor da filosofia de Ngoenha será exactamente este, a constru-
ção do futuro, embora a reflexão africana pareça estar mais orien-
tada ao passado, na defesa ou combate à etnofilosofia. Toda a refle-
xão que se pretenda universal deve partir do particular. A his-
tória (tempo) e a etnografia (espaço) permaneceram unidas até ao
século XIX: com Darwin, o mundo «civilizado» foi separado do
mundo «selvagem», e a história diferencia-se da etnologia, a qual se
torna sinónimo de história dos «bárbaros» ou dos «sem história» 266.
A etnologia tornou-se uma disciplina da antropologia cultural que
estuda as sociedades «exóticas», mostrando assim as reticências do
Ocidente em aceitar a plena e total humanidade do Outro. Ironica-
mente, Ngoenha afirma que para os africanos o estudo da antropo-
logia é um meio para compreender a cultura ocidental, e não a afri-
cana: «As imagens que o Ocidente fabrica da alteridade, por um
efeito de retorno, reenviam-nos às imagens que o Ocidente faz dele
mesmo em relação às outras culturas» 267. Esta diferenciação encon-
tra-se igualmente no Cristianismo, o qual tem em si uma vocação
universal de acolhida dos povos, mas de facto, ao longo da sua his-
tória, excluiu os não-cristãos. De igual modo, na descoberta do novo
mundo, não houve um reconhecimento do Outro, mas um genocí-
dio e etnocídio. O mesmo destino foi reservado ao negro que não foi
reconhecido como outro, mas como «maldito», e por isso «escravi-
zável». Em seguida, com o imperialismo europeu, os antropólogos

266 Cf. NGOENHA, S. E., Das Independências às Liberdades, Maputo, Edições Paulistas,
1993, p. 17.
267 Ibidem, p. 20.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página115

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 115

foram ao campo para melhor estudar a realidade. Ngoenha per-


gunta-se: a fim de colonizar e escravizar melhor?
Após dois séculos de separação entre história e etnologia, como
conciliar o «eu» e o «outro»? Bastará simplesmente eliminar a etno-
logia e incluir todos os povos na história? Mas em que história? De-
certo não na europeia, onde o Africano continuará sempre subal-
terno: «Para nos fazermos reconhecer como sujeitos da história,
devemos aceitar e valorizar a nossa diferença de posição em relação
à história» 268.
Do funcionalismo de Malinowsky emerge uma revolução do
passado africano, pois se favorece um relativismo cultural e a irre-
duzibilidade das culturas a um denominador comum com o respei-
to para as diferenças, a tolerância e a aceitação da diversidade 269.
Consegue-se o nascimento do movimento de protesto denominado
«negritude» (Senghor e Césaire). Senghor define a «negritude» com
as palavras de Césaire: «simples reconhecimento do facto de ser
negro, a aceitação deste facto, do nosso destino de negros, da nossa
história e da nossa cultura» 270. O seu papel é assumir os valores do
mundo negro, atualizá-los, fecundá-los com contributos estran-
geiros a fim de trazer o próprio contributo à civilização universal:
«A negritude é, portanto, anterior à chegada dos brancos, pois ela
constitui o espírito da civilização negro-africana» 271. O movimento
teve as suas raízes na América negra, com Edward William Bur-
ghardt Du Bois. O seu projecto de integração do negro no contexto
americano contribuiu a criar o mito da África ancestral primogénita
da civilização. Outra figura carismática afro-americana foi a de
Marcus Garvey, o qual preconizava o retorno de todos os negros à
terra-mãe África, porque na América nunca teriam alcançado a

268 Ibidem, p. 50.


269 Maurice Delafosse contestava o preconceito sobre a inferioridade intelectual dos
negros, afirmando exactamente o contrário; George Hardy exaltava a profunda espiri-
tualidade religiosa da alma negra; Leo Frobenius exaltava a civilização egípcia, etc.
270 Ibidem, p. 65.

271 Ibidem, p. 66.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página116

116 | MUNTUÍSMO

igualdade com os brancos. Tanto Du Bois quanto Garvey pensavam


numa África ideal, e não real.
Edward Wilmot Blyden, pai do pensamento político africano, na
segunda metade de 1800, encarava a personalidade africana como
antítese da civilização europeia. O seu discípulo ganês, Josef Casely-
-Hayford, foi o primeiro teórico da unidade africana, cuja civiliza-
ção levaria a uma regeneração espiritual da humanidade.
Na África seguiram-se numerosos intelectuais que valorizavam
a cultura, mas sem cair nos mitos, e mostravam que o Africano é um
ser racional, através de uma filosofia autenticamente africana. Um dos
fundamentos da filosofia africana foi a reivindicação da soberania
política continental.
Ngoenha repercorre as etapas do nascimento da produção filosó-
fica em África, partindo da Filosofia Bantu de Tempels e de Alexis
Kagame, criticando ambos por terem aplicado a filosofia à etnolo-
gia, como simples observadores, sem construir um pensamento
original. Será a mesma crítica do filósofo costa-marfinense Paulin
Hountondji, um dos fundadores da filosofia africana na segunda
metade de 1900: «o primeiro caminho que a filosofia africana deve
percorrer é um itinerário crítico, metódico e dialéctico em direcção a
conquista de nós mesmo» 272.
A crítica é dirigida não apenas à etnofilosofia, mas também ao
etnocentrismo ocidental: trata-se de uma crítica da crítica para
todos quantos, criticando justamente a etnofilosofia, recorrem aos
esquemas filosóficos europeus para formular o seu pensamento. O
problema principal, para Ngoenha, não é saber se existe ou não
uma filosofia africana, mas refletir acerca da possibilidade de
pensar filosoficamente a nossa realidade africana 273.
Os vários movimentos africanos (pan-africanismo, negritude, so-
cialismo africano, corrente hermenêutica) têm como objectivo a li-
bertação do Homem africano como condição da sua historicidade,

272 Ibidem, p. 99.


273 Cf. Ibidem, p. 110.
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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 117

de modo que o negro não seja objecto, mas sujeito da sua história. A
filosofia africana é de carácter existencial, mirando à emancipação,
sem a qual o Africano jamais será um sujeito da sua história. Não se
deverá olhar tanto aos mitos do passado, mas aos problemas da
África de hoje, formar uma consciência civil, procurar o sentido da
vida, o destino do Homem e a sua possibilidade de realizá-lo. A
atenção desloca-se decididamente para o tema do futuro, e, precisa-
mente, sobre os temas da teologia negra, partindo da black theology
of liberation (teologia negra da libertação) de James Cone, passando
pela south african black theology (teologia negra sul-africana) de Des-
mond Tutu, e pelos teólogos camaroneses Jean-Marc Ela e Engelbert
Mveng para chegar à etnologia, temas que tiveram um impacto de-
cididamente prático do que teórico no percurso da reconciliação nos
respectivos países: «A Igreja não pode limitar-se simplesmente à ta-
refa, embora árdua, de reconciliar os homens, as etnias, as tribos;
mas deve participar na educação no sentido da tolerância, da indul-
gência, da solidariedade que são prerrogativas indispensáveis para
a edificação da democracia e dum futuro diferente» 274.
O futuro em filosofia traduz-se com o termo utopia, mas não no
sentido de Platão ou Thomas More, que conservavam um abso-
lutismo latente. Os homens devem ser livres e iguais como pressu-
posto da democracia e organização social: «O problema real consiste
em dar ao povo a possibilidade real de escolher os próprios ideais,
os próprios fins, não por intermédio de um partido, de um presi-
dente, mas directamente. Do que os povos têm necessidade é, antes
de mais, de apropriar-se do próprio destino, e de assumir e guiar a
própria história» 275. Isto é possível partindo das pequenas comu-
nidades para passar aos distritos, províncias, nações, até chegar à
União Africana. Ngoenha defende que, «se o poder estivesse nas
mãos dos povos, nunca teriam lutado entre nós, nunca teriam sacri-
ficado o que têm de mais sagrado, as nossas vidas e as vidas dos

274 Ibidem, pp. 146-147.


275 Ibidem, p. 158.
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118 | MUNTUÍSMO

nossos filhos, em nome do comunismo ou do anticomunismo» 276. O


homem africano, conclui Ngoenha, não tem necessidade de novos
mitos, mas de certezas, de uma sociedade talvez menos perfeita,
mas muito mais livre. Todas as políticas de desenvolvimento do
continente faliram porque desconheciam os pressupostos sociológi-
cos do desenvolvimento. Parece que a única via do desenvolvi-
mento seja o mercado que impõe uma transformação social e cul-
tural à imagem dos «patrões» do mercado. Dai a urgência para a
filosofia africana de reflectir, diz Ngoenha, sobre o que nós somos e,
sobretudo, sobre o que devemos ser. Trata-se de uma escolha que
nós devemos fazer, e não a técnica. Ciência e técnica serão apenas
instrumentos usados para a nossa escolha. O futuro depende de nós
e esta será uma decisão histórica, os nossos projectos deverão ser
históricos e pessoais porque cada um de nós é responsável – e não
os factos – da própria vida e da própria história.
A educação é um factor fundamental para a realização do pro-
jecto do homem africano na sua história. Sobre este tema, Ngoenha
publica, em 2000, Estatuto axiológico da educação 277. A questão funda-
mental diz respeito à possibilidade do saber de tornar-se instru-
mento de libertação para o homem africano que se encontra ainda
num estado de escravidão. Seguem-se outras questões relacionadas:
a educação tem um valor soteriológico? De que tipo de educação
precisamos? Educar para que sociedade? Sobre que valores e pres-
supostos? 278
Educar é antes de mais transmitir valores. A educação tem duas
bases: uma filosófica (teórica) e outra científica (prática). Não é pos-
sível educar ou fazer uma teoria da educação sem uma ideia de
homem, sociedade, história, cultura, vida. A maior preocupação não
deve ser a respeito do aspecto formal (metodológica, didáctica, etc.),

276 Ibidem, p. 164.


277 S. E. NGOENHA, Estatuto Axiológico da Educação, Maputo, Livraria Universitária
Eduardo Mondlane, 2000.
278 Ngoenha sublinha que, em Moçambique, foram traçadas políticas pedagógicas

que não correspondiam às necessidades do País.


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HISTÓRIA DAS IDEIAS | 119

mas material, isto é, os conteúdos axiológicos que se pretendem


transmitir, os objectivos por atingir. Frequentemente, a pedagogia
confunde os métodos com os objectivos 279.
O debate actual no campo da educação (e não apenas) diz respei-
to à relação que deve existir entre a identidade étnica e a modernida-
de. Na análise do estatuto do saber e do sistema educativo moçambi-
cano, Ngoenha nota como durante anos o país negou qualquer forma
de filosofia na formação e educação, deixando de fazer da «moçam-
bicanidade» o valor basilar da educação nacional, deixando os con-
teúdos axiológicos ao arbítrio de cada instituto escolar.
Mas quais são os valores constitutivos da «moçambicanidade»?
Na época colonial, o fim da educação era o «aportuguesamento»
dos indígenas e os planos de estudo eram produzidos pela Escola
portuguesa. O encontro com o Ocidente é definido, por Ngoenha,
como uma «aventura ambígua», um hibrido ou «bastardo» cultural.
A educação missionária-colonial também teve uma história contro-
versa. Em 1759, Portugal expulsou os jesuítas (Marquês de Pombal)
e extinguiu as congregações religiosas em 1834 (Joaquim António de
Aguiar). Este foi um dano enorme à educação, não apenas dos indí-
genas, mas também dos portugueses, pois o Estado nem cobria a es-
colarização de todos os portugueses. Uma solução adveio da Con-
ferência de Berlim (art. 6.º do «Acto Geral»), quando a Itália propôs
a liberdade religiosa para a África, causando um enorme e imediata
repercussão política 280. O Governo português, que era maçónico e
anticlerical, foi obrigado a apoiar as missões católicas geridas prin-
cipalmente por missionários portugueses, para evitar o perigo de
outros missionários não portugueses poderem roubar «as suas
terras»: «o dilema português era simples: ou continuava a sua guerra
anti-eclesiástica e perdia as colónias, ou, então, para poder conti-

279 Isto nós notamos frequentemente nos encontros formativos ou de programação


com os professores universitários.
280 Cf. S. NGOENHA, Estatuto Axiológico da Educação, o.c., p. 62.
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120 | MUNTUÍSMO

nuar a sua aventura colonizadora, fazia um matrimónio de razão


com a Igreja e suscitava missões portuguesas» 281.
Portugal saiu da Conferência de Berlim bastante redimensiona-
do. Provavelmente, se Portugal não tivesse extinguido as missões
religiosas, a repartição feita em Berlim teria sido diferente. Em 1887,
surgiu a «Junta Geral das Missões» e o Governo passou a conceder
subsídios a algumas missões. Às demais congregações estrangeiras
(ou de jesuítas), que não eram «maleáveis», o Governo exigia a en-
trega dos seus estatutos para aferir se trabalhavam ou não para o
«aportuguesamento» do país. O Vaticano ordenou aos religiosos
para que não apresentassem os estatutos, e tal contribuiu, para au-
mentar o anticlericalismo. A partir de 1922, as missões religiosas, e
católicas em particular, foram equiparadas às laicas. À Igreja foi
confiada a escolarização dos indígenas. A língua portuguesa tor-
nou-se obrigatória nas escolas, enquanto as línguas locais podiam
ser usadas apenas na Igreja. Nivela-se o ensino em todo o Império
para facilitar as deslocações dos Portugueses de um país ao outro,
mas este ensino não tinha relação alguma com os problemas de
Moçambique. Foram construídas escolas técnico-profissionais e, em
1962, abriu-se a primeira universidade em Moçambique.
Em 1975, com a independência, o Estado nacionalizou todas as
escolas, embora soubesse não ser capaz de gerir toda a educação do
País. Foi uma escolha necessária para atingir os novos fins da edu-
cação do Estado nascente, que consistiam em: estender a rede esco-
lar a um número maior de estudantes; veicular o novo sentido de
pertença à nação moçambicana, combatendo desta feita o tribalis-
mo; educar para afrontar os problemas reais do novo Moçambique.
Mas se a qualidade da educação portuguesa era já fraca, última na
Europa, piorou com a nacionalização e a consequente guerra civil.
Ngoenha sublinha o papel desempenhado pela Missão Suíça em
Moçambique. Estes missionários iniciaram a sua actividade colo-
cando-se como alunos dos indígenas, para aprender a sua língua de

281 Ibidem, p. 63.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página121

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 121

modo a evangelizar e traduzir a Bíblia nas línguas locais. Aprende-


ram uma língua que era apenas oral, recriando-a como nova língua
escrita, transformando e manipulando a cultura local. Inventaram o
nome da etnia tsonga, que significa «pequenos servos», nome que
os indígenas viram-se obrigados a aceitar, voluntariamente ou não.
Henri Junod, o mais importante missionário desta Congregação, era
contrário à assimilação dos Tsonga aos brancos, porque considerava
os primeiros «inocentes e puros», e os outros, ateus e viciosos.
Junod queria «encerrar» os Tsonga no seu território, como num
gueto, falando apenas a sua língua ronga, e não enviá-los a estudar
fora do País, temendo que se perdessem 282. Mas isto era contra os
interesses de Portugal, que não conseguia «assi-milar» e «aportu-
guesar» estes nativos. A África do Sul apoiava o projecto da Missão
Suíça porque repisava a sua ideia de educação, baseada na sepa-
ração dos indígenas dos brancos (apartheid). Para os bóeres da África
do Sul, os negros eram ontologicamente inferiores; para Junod,
eram-no por motivos históricos e culturais. Mas, conclui Ngoenha
com uma ponta de ironia, a Missão Suíça não conseguiu os seus in-
tentos, porque muitos dos seus educandos abraçaram o marxismo-
-leninismo (ateísmo) e tornaram-se defensores do nacionalismo,
contra o tribalismo, adoptando a língua portuguesa.
Por fim, qual é a política educativa e quais são os pressupostos
da educação em Moçambique? Ngoenha propõe uma educação ba-
seada nas línguas maternas 283, educar para a responsabilidade,
maior empenho no desenvolvimento da nação. As universidades
deverão jogar um papel fundamental tornando-se centros de pes-
quisa especializados.
Severino Ngoenha interveio de modo prestigioso no debate
nacional sobre a identidade do homem moçambicano. Considera-
mos importante uma alusão a algumas ideias-chave deste debate.
Ngoenha defende que a questão da identidade é crucial para Mo-

282Cf. Ibidem, p. 186.


283De facto, nos últimos anos introduziu-se o ensino das línguas locais, a título expe-
rimental, em algumas escolas primárias, com vista a facilitar a aprendizagem das crianças.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página122

122 | MUNTUÍSMO

çambique, porque se fez o Moçambique sem os Moçambicanos. Afir-


ma que os Moçambicanos não foram sujeitos da própria história.
Eduardo Mondlane, um dos pais carismáticos da revolução, defendia
que Moçambique é uma invenção portuguesa 284. Ngoenha ajunta
que: «Por mais chocante que possa aparecer, Moçambique é uma
ideia de outros, e não nossa. Foram esses outros que entenderam mal
o nome árabe de Mussa-El-Bique que deu o nome de Moçambique,
que conservamos orgulhosamente; foram esses outros que delimita-
ram as fronteiras; foram esses outros que fizeram de nós uma econo-
mia de trânsito e um reservatório humano de mão-de-obra barata» 285.
Antes da Independência, as várias etnias encontravam-se todas
unidas pela «cola» portuguesa. Com a Independência, os novos go-
vernantes viram-se na urgência de encontrar uma nova «cola», que
não podia ser uma língua local, porque tal escolha suscitaria uma
reacção dos demais grupos linguísticos; não podia sequer ser a re-
ligião, quer porque existiam muitas religiões quer porque a mais di-
fusa, a católica, esteve bastante ligada ao colonialismo e, por isso
devia ser superada. A nova «cola» foi a escolha da ideologia marxis-
ta-leninista: era o preço a pagar para receber ajuda militar do bloco
comunista e desencadear a revolução. Mas cedo esta «cola» se reve-
lou não aderente, porque não foi fruto de uma escolha colectiva,
mas apenas de uma pequena elite «crioulizada», desenraizada e em
busca de identidade 286. Paradoxalmente, com a adopção forçada da
ideologia marxista, passou-se de uma exogenia à outra 287.
Os intelectuais moçambicanos se interrogam sobre a natureza da

284 E. MONDLANE, Lutar por Moçambique, Maputo, Centro de Estudos Africanos, 1995;
Citado de E. MACAMO, «A influência da religião na formação de identidades sociais no
Sul de Moçambique», in C. SERRA (dir.), Identidade, Moçambicanidade, Moçambicanização,
Maputo, Livraria Universitária UEM, 1998, p. 36.
285 E. S. NGOENHA, Por Uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica, Porto,

Edições Salesianas, 1992, p. 145.


286 Cf. E. MACAMO, A Influência..., o.c., p. 36, no qual se reporta o parecer de Michel

Cahen.
287 Moçambique se havia livrado de uma dependência estrangeira para tornar-se de-

pendente de uma ideologia também estrangeira, o marxismo. Cf. E. S. NGOENHA, «Iden-


tidade Moçambicana: Já e Ainda Não», in C. SERRA, Identidade..., o.c., p. 25.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página123

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 123

identidade: é algo de biológico-naturalista, como pensavam os colo-


nos, ou é algo de social, cultual e espiritual, como pensavam os in-
telectuais do Moçambique independente? Para uns, a identidade é
uma essência perdida que deve ser recuperada, como se se tratasse
de algo estático. O sociólogo Elísio Macamo afirma que: «O “especi-
ficamente moçambicano” não deve ser visto como uma essência,
mas sim como uma perspectiva que nos permite vislumbrar, nem
que seja por alguns momentos furtivos, uma identidade nacional
em estado permanente de transformação» 288. Este sociólogo mo-
çambicano indica três aspectos que contribuem para a constituição
de uma identidade social: antes de mais, a identidade não é uma
essência a-histórica, a priori, mas algo em constante mudança 289; se
deve partir dos processos históricos; por fim, se deve considerar que
África e Moçambique são conceitos modernos: a colonização causou,
ou melhor, acelerou os processos ligados à condição moderna 290.
Macamo sublinha ainda a influência da Missão Suíça na região
meridional de Moçambique, embora se tenha tratado de uma reli-
gião que favoreceu uma promoção mais humana do que espiritual 291
e formou mais homens políticos do que religiosos 292. Ngoenha
também reconhece o papel fundamental da Igreja na construção da
identidade e espera que as Igrejas moçambicanas saibam desem-
penhar o mesmo papel das sul-africanas no processo de reconcilia-
ção do País, e acrescenta: «A profecia evangélica não pode limitar a
sua tarefa à difícil missão de reconciliação. Mas tem ainda a pro-
posta da unidade espiritual na região, que servirá de substrato
comum para a criação de uma identidade» 293. Os intelectuais e polí-

288 E. MACAMO, in C. SERRA, Identidade…, o.c., p. 39.


289 Consideramos a ideia apresentada por António Sopa, segundo a qual uma verda-
deira cultura tradicional se renova continuamente, bastante criativa, pois uma cultura
estática se repete como folclore, sem vitalidade. Cf. A. SOPA, «Notas sobre a identidade»,
in C. SERRA, o.c., p. 73.
290 Cf. Ibidem, pp. 40-41.

291 Como se se tratasse de coisas diferentes!

292 Cf. Ibidem, pp. 55-56.

293 S. E. N GOENHA , Por Uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica, o.c.,

pp. 149-150. Ngoenha conclui esta obra sobre a historicidade apelando para que a África
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página124

124 | MUNTUÍSMO

ticos têm igualmente uma grande missão: os primeiros devem


manter viva a reflexão acerca da «moçambicanidade». Tal reflexão
já é filosofia moçambicana; os segundos devem acautelar-se conti-
nuamente para que não existam disparidades gritantes na distri-
buição dos parcos recursos de que o País dispõe.
Ngoenha conclui o seu texto sobre a dimensão moçambicana da
consciência histórica retomando o tema condutor de toda a sua
reflexão filosófica, ou seja, a necessidade de o homem africano (e
moçambicano em particular) passar da «objectivação» à «subjecti-
vação»: «Se nos contentarmos em ser simples objectos da história, a
história terá acabado mesmo antes de começar. Se tivermos bastante
coragem para assumirmos a nossa própria dimensão histórica, será
o fim da nossa história como objectos, e início como sujeitos» 294.
Fazemos um breve aceno a um artigo recente, «Concepções afri-
canas do ser humano» 295, no qual, após repercorrer as várias ideias
de ser humano de muitos filósofos africanos, denuncia o perigo de
uma «supressão do indivíduo, ou, então, a sua redução a um ser sem
identidade» 296 perante a ênfase do «comunitarismo». Cita Daniel
Etounga Manguelle que fala de totalitarisme villagois (totalitarismo
aldeão) e de totalitarisme lignagier (totalitarismo da linhagem), e Njoh
Mouelle que nota a mediocridade do homem africano incapaz de
distanciar-se do seu ambiente social, com consequente gregarismo,
falta de originalidade, rotina, conformismo, repetição e conser-

possa apoderar-se do «segredo» do Ocidente, ou seja, a dimensão profética do Evangelho,


que substitui «“a concepção cíclica e fatalista da história, com uma dimensão linear e
escatológica, sem a qual nenhum progresso técnico e científico pode-se conceber ou
realizar.” [...] O segredo do Ocidente, que Towa quer que assimilemos, está na fecun-
dação das culturas pela dimensão profética do Evangelho», Ibidem, pp. 151-152. Apre-
senta-se aqui uma interessante axiologia, como quanto Rémi Brague sustenta, a propó-
sito da «sageza europeia», que se funda na sua capacidade de «assimilar» o hebraísmo
e o helenismo. Cf. R. BRAGUE, Il futuro dell’occidente. Nel modello romano la salvezza
dell’Europa, Milão, Bompiani, 2008.
294 Ibidem, p. 152.

295 S. E. NGOENHA e J. P. CASTIANO, Pensamento Engajado. Ensaios sobre Filosofia Afri-

cana, Educação e Cultura Política, Maputo, Editora Educar, 2010, pp. 183-196.
296 Ibidem, p. 193.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página125

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 125

vadorismo que impediram o progresso da África 297. Ngoenha con-


clui que é necessário olhar mais longe e referir-se à base metafísica
sobre a qual se funda a experiência africana: «A sociedade do afri-
cano é, ao mesmo tempo, única e transcendental. Isto está ligado ao
seu vitalismo que implica o vivo e o morto, natureza e Deus, um vi-
talismo centrado sobre o clã. Toda a existência, toda a vida, toda
possível fonte de vida são vistas nas suas relações com o clã. As re-
lações internas do vitalismo africano são relações verdadeiramente
de existência» 298. Fecha o artigo colocando três questões: o pensa-
mento tradicional é construído a partir da relação com o mundo oci-
dental? A antropologia não estará idealizando o «comunitarismo»
africano, pensado em alternativa ao individualismo ocidental car-
regado de conotações negativas? Os discursos dos intelectuais afri-
canos não serão discursos ocidentais assimilados e reproduzidos, a
partir das suas origens imaginárias, por africanos radicalmente oci-
dentalizados? 299
O lugar epistemológico da africanidade é um problema propria-
mente filosófico, e Ngoenha vê a figura do homem africano na relação
com a alteridade, propriamente no campo da interculturalidade 300.

JOSÉ PAULINO CASTIANO: Ser de Intersubjectivação

Ainda no panorama intelectual da África lusófona, encontramos


outro filósofo moçambicano bastante interessante: José Paulino
Castiano 301. Com relação ao nosso tema, consideramos importante

297 Cf. Ibidem, p. 194.


298 Ibidem, pp. 194-195.
299 Cf. Ibidem, pp. 195-196.

300 Cf. Ibidem.

301 Professor de Filosofia na Universidade Pedagógica de Moçambique, onde é igual-

mente director dos cursos de doutoramento. É licenciado em Filosofia pela Universi-


dade de Greifswald (Alemanha) e doutorado em Sociologia pela Universidade de Ham-
burgo. A sua bibliografia principal: Das Bildungssystem in Mosambik: Entwicklungen,
Probleme und Konsequenzen, Hamburgo, 1998; A Longa Marcha para Uma Educação para
Todos em Moçambique, Maputo, Imprensa Universitária, 2005; Educar para Quê?, Maputo,
2006; As Ciências Sociais na Luta contra a Pobreza, Maputo, 2006; Referenciais da Filosofia
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página126

126 | MUNTUÍSMO

a referência à sua recente obra Referenciais da Filosofia Africana. Em


busca da Intersubjectivação 302. O título é programático e revela a ideia
de homem africano (e de filósofo africano em particular) que, par-
tindo da sua objectivação, passa através da subjectivação para atin-
gir o objectivo da intersubjectivação.
Desde a escravidão, o homem africano sempre foi objectivado.
Mesmo nas lutas abolicionistas, protagonizadas pelos brancos, os
negros eram «usados» como objectos que confirmavam as teses pro-
postas através dos testemunhos dos males sofridos. Os tímidos
esforços de estimular nos negros uma afirmação de subjectividade
enquadravam-se nos espaços a que lhes eram concedidos pelos abo-
licionistas brancos. Entretanto, lentamente, os negros tomam cons-
ciência de que devem ser eles, e não outros, a falar ao mundo do seu
sofrimento. Desta feita, entre os anos 1829 e 1860, nascem na Amé-
rica as primeiras narrativas escritas por ex-escravos. Passou-se
assim de uma objectivação a uma subjectivação. Será a subjectiviza-
ção o fim do percurso?
Antes de responder a esta questão, Castiano repercorre as etapas
da objectivação e da subjectivação, partindo da obra do missionário
da Missão Suíça em Moçambique, Henri Junod. Este missionário
catalogou muitas espécies de plantas e insectos e escreveu muitas
coisas em torno da cultura bantu, mas das centenas de informado-
res e colaboradores seus não aparece nome algum, como se tivesse
feito tudo sozinho: «As referências a estes homens e mulheres são
sempre breves, sem nome. Sabe-se apenas que são “informantes”
do grande mestre» 303. Assim, as centenas de fiéis e alunos foram

Africana. Em Busca da Intersubjectivação, Maputo, Ndjira, 2010; com S. E. NGOENHA, Pen-


samento Engajado. Ensaio sobre Filosofia Africana, Educação e Cultura Política, Maputo, Edi-
tora Educar/Cemec UP, 2010. Para além destes livros, publicou vários artigos em revis-
tas nacionais e internacionais.
302 J. P. CASTIANO, Referenciais da Filosofia Africana. Em busca da intersubjectivação, Ma-

puto, Ndjira, 2010. O texto é precedido por um interessante prefácio de Rogério José
Uthui, no qual, para além da apresentação do pensamento do autor, colocam-se em con-
fronto as teorias «castianas» e as teorias globais do desenvolvimento para o Continente
Africano.
303 Ibidem, p. 34.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página127

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 127

objectivados por Junod: «O saber destes informantes está, de certe-


za, por aí espalhado, ou como notas de rodapé. Esses velhos e jo-
vens foram objectivados, ou seja, tornados objectos, embora na sua
condição de sujeitos do conhecimento» 304.
Castiano enxerga uma tentativa de subjectivação na geração de
jovens africanos que o economista africano Ayittey considerou chee-
tah generation (geração leopardo). Jovens projectados para um futu-
ro, aos quais não importa tanto o passado de escravidão ou de colo-
nização, que não acreditam em conspirações contra a África e não
esperam algo do Ocidente nem da política, mas lutam dia e noite
(trabalhando e estudando) para sobreviver. Castiano defende que
«estes são os sujeitos do seu próprio destino» 305 e lamenta que os fi-
lósofos africanos não prestem atenção a estes protagonistas da sub-
jectivação, mas apenas ao passado ou ao Ocidente. Castiano pre-
tende narrar a filosofia profissional africana na perspectiva dos
esforços de subjectivação, seguindo três pontos cruciais da história
africana: escravatura, colonização e globalização. «O centro episté-
mico é ocupado sucessivamente pelo senhor dos escravos, pelo co-
lonizador e, finalmente, pelo globalizador. Este sujeito apropria-se
de todas as referências simbólicas e tecnocientíficas, incluindo as
que encontrara nas colónias, reelaborando-as e disseminando-as de
acordo com o lugar e o estatuto que reserva ao “outro” africano,
como escravo, colonizado e globalizado» 306. Como esforço de sub-
jectivação colocam-se os movimentos do afrocentrismo e do ubuntuís-

304 Ibidem, p. 35. Este tema havia já sido levantado por Bertolt Brecht na sua poesia

«Domande di un lettore operaio» (Perguntas de um trabalhador operário), escrevendo:


«Tebe delle Sette porte, chi la costruì? Ci sono i nomi dei re, dentro i libri. Sono stati i re a
strascicarli, quei blocchi di pietra? […] Il giovane Alessandro conquistò l’India. Da solo?
Cesare sconfisse i Galli. Non aveva con sé nemmeno un cuoco? Filippo di Spagna pianse,
quando la flotta gli fu affogata. Nessun altro pianse?…» («Tebas das Sete Portas, quem a
construiu? Há nomes dos reis, nos livros. Foram os reis a carregar aqueles blocos de
pedra? […] O jovem Alexandre conquistou a Índia. Sozinho? César venceu os Gauleses.
Não estava com ele nem um cozinheiro? Filipe de Espanha chorou, quando os navios se
afundaram. Mais ninguém chorou?»…) [T. do A.], in Poesie e Canzoni, Turim, Einaudi, 1971.
305 Ibidem, p. 37.

306 Ibidem, p. 40.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página128

128 | MUNTUÍSMO

mo, – aos quais fizemos referência a propósito de Mbiti –, tentativas


de reconstrução de um discurso «autenticamente» africano. Castia-
no concebe a filosofia como «diálogo argumentativo» entre sujeitos
(geralmente outros académicos ou os próprios estudantes), percor-
rendo três passos metodológicos: compreensão do pensamento dos
outros filósofos; esclarecimento do próprio pensamento; e por fim, a
tomada de responsabilidade social.
No capítulo da subjectivação, defende que, frequentemente, os
africanos foram objecto de estudo, de forma que, para Hountondji,
os considerados «estudos africanos» são estudos feitos por estran-
geiros sobre a África, e não produzidos por africanos. Os sujeitos
destes conhecimentos permanecem geralmente anónimos, como su-
cede nas etnociências e nas etnofilosofias. O movimento das etno-
ciências continua muito ligado à evolução da antropologia e a uma
posição eurocêntrica e preconceituosa, típica das correntes de natu-
reza positivista de início do último século. Castiano cita o exemplo
da etnomatemática de Gerdes e a pesquisa de Baloi. O último revela
que 99% dos estudantes de física acreditam ou são levados a crer
nas interpretações tradicionais dos fenómenos físico-naturais 307.
Porém, o próprio Baloi, denuncia Castiano, cai no erro de não sub-
jectivar os conhecimentos e as interpretações. As etnociências atri-
buem competências: os métodos usados para atingi-las tonam-se
irrelevantes. Todavia, as etnociências são marginalizadas pelos aca-
démicos africanos como produtos exóticos, folclorísticos, ciências
populares. Tal deve-se ao facto de as etnociências serem conside-
radas ciências sem cientistas, ou, como diria Hountondji, ciências que
não se preocupam com a questão da verdade. Castiano lamenta que
também em Moçambique não exista uma apropriação do saber das
etnociências.
Um ramo particular das etnociências é a etnofilosofia. Castiano
reconstrói a história da filosofia africana em três fases: a primeira,
dos anos ‘70, de crítica da etnofilosofia; a segunda, dos anos ‘80, de

307 Por exemplo, os tons e outros fenómenos parecidos… Cf. Ibidem, p. 55.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página129

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 129

resgate das culturas locais; a terceira, dos anos ‘90, da política do


conhecimento, no esforço de responder e teorizar a crise dos Es-
tados pós-coloniais.
Castiano defende a continuidade da prática da etnofilosofia, mas
na forma crítica, na «posição epistémica de um dialogador, num es-
forço, para a intersubjectivação» 308.
Em seguida passa a analisar os «etnofilósofos» Tempels, Griaule,
Kagame e Mbiti, dos quais nos ocupámos no início. Mbiti é dura-
mente criticado pela sua concepção de tempo ligada apenas ao pre-
sente e ao passado, e não orientado ao futuro, rumo às soluções dos
problemas hodiernos do continente.
Entre os críticos da etnofilosofia, encontramos Crahay M., que
acusa Tempels de ter feito confusão entre filosofia e Weltanschauung,
de tal forma que a sua obra não pode ser considerada filosofia.
Segue-se Hountondji com a sua «crítica unanimista», isto é, contra o
intento de reduzir o pensamento bantu a alguns conceitos e cons-
tantes em todos os países bantu. A sua obra African Philosophy é con-
siderada a «bíblia dos anti-etnofilósofos» 309. Hountondji indica a
sua definição de filosofia africana: ser escrita por um africano e ter o
objectivo de produzir filosofia africana. Com esta definição pre-
tendia livrar a filosofia africana dos laços da tradição oral, do tradi-
cionalismo; uma filosofia antifilosófica. Após ter sido acusado de
«elitismo», numa segunda fase, Hountondji passa a incluir os
«textos orais» na filosofia africana. Contesta-se a Hountondji a re-
dução da filosofia africana a «espaço geográfico» 310. Não é sequer
suficiente a intenção de fazer filosofia 311. E, por fim, não se pode
excluir preconceituosamente a literatura oral. Hountondji reconhece
que «I would probably not use the same words today» (provavelmente

308 Ibidem, p. 65.


309 Ibidem, p. 97.
310 Um africano que escreve sobre Kant estará a fazer filosofia africana? É necessário

defender a causa dos africanos e não apenas pertencer ao «território» africano.


311 Acusa de subjectivismo. Um texto deve ser submetido aos demais colegas filósofos.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página130

130 | MUNTUÍSMO

não usaria as mesmas palavras hoje) 312. Mas, para Castiano, as des-
culpas vêm muito tarde, depois de ter provocado sérios danos à fi-
losofia africana, que se fixou em «que coisa» devia ser a filosofia
africana, ao invés de produzir filosofia. Uma filosofia orientada
para o próprio umbigo, mais do que ocupada em reflectir e resol-
ver problemas sociais; uma filosofia que aumentou ainda mais o
abismo entre a filosofia académica e a dos filósofos sábios, com a
consequência de que muitos abandonaram a pesquisa filosófica
para que não fossem considerados etnofilósofos ou unanimistas.
Castiano conclui, citando Severino Ngoenha: «O que importa dora-
vante, não é procurar uma filosofia africana, mas antes uma reflexão
sobre a possibilidade de pensar filosoficamente a nossa realidade
africana» 313.
Passa então a introduzir, em modo mais detalhado, a «crítica
ngoenhiana à etnofilosofia», referindo-se à obra Filosofia Africana:
das Independências às Liberdades, já analisada acima. Para Ngoenha,
não apenas a etnofilosofia é decididamente orientada ao passado,
mas também os próprios críticos da etnofilosofia, Towa, Hountondji
e Eboussi Boulaga: por isso urge uma «critica radicale all’etnofilo-
sofia». A etnofilosofia se apresenta como uma «dilatação» e não
como «superação» do conceito de filosofia, não se operou uma
«ruptura epistemológica»: a filosofia africana incluiu muitos ele-
mentos (provérbios, mitos…) que não são filosóficos e devem ser
analisados em modo crítico para livrar-se do passado. Recorre à
grande tese de Eboussi Boulaga, segundo a qual a etnofilosofia re-
presenta a «crise do Muntu».
A etnofilosofia deve ser superada por uma «crítica da crítica»:
critica Hountondji, porque na sua crítica parte de uma definição
eurocêntrica de filosofia, reduzida à epistemologia, e por isso nega
a existência de uma filosofia africana. Por isso, quando todas as

312Ibidem, p. 105.
313Ibidem, p. 105. Césaire também critica Tempels por ter dirigido as atenções dos
bantu rumo a uma direcção metafísica, desligando-os dos próprios problemas.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página131

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 131

outras filosofias estudam as suas culturas, tornam-se etnofilosofias.


Ngoenha apela à corrente hermenêutica africana nestes termos:
«para os hermeneutas africanos, toda a filosofia que se pretenda
como tal não deve começar por outro canto senão pela interpretação
das tradições africanas» 314.
E isto deve ser feito filosoficamente, e não como fez a etnofiloso-
fia que, de facto, foi uma antropologia que acorrentou a «filosofia
africana» ao passado, sem nenhuma projeção sobre o futuro.
Castiano vai mais fundo ainda na crítica, acusando os críticos da
etnofilosofia de fazer uso de uma ideia de razão «colonizada», que
não contempla a possibilidade de uma razão alargada às comu-
nidades locais, e, por isso, «tornam-se presos em procurar funda-
mentar uma filosofia africana na base de cânones da racionalidade e
não das racionalidades. É uma obsessão racionalista de apresentar a
filosofia como uma reflexão sistemática e crítica» 315. Em segundo
lugar, Castiano acusa os críticos da etnofilosofia de envergonharem-
-se dos seus conteúdos e de pretenderem negar qualquer valor filo-
sófico à oralidade, e, ironicamente, diz que estes críticos dialogam
com as filosofias da cultura dominante, mas não com as dominadas:
«filosofam pela vertical e não pela horizontal» 316. E conclui: «A
emergência de uma filosofia africana baseada e inspirada nas cul-
turas ficou adiada, devido à emergência de “libertar” a filosofia da
sua colonização. Autocolonizou-se!» 317.
Dos referenciais da objectivação torna-se necessário passar aos
da subjectivação, que Castiano identifica nos movimentos da Afro-
centricidade e do Ubuntuísmo.

314 Ibidem, p. 115.


315 Ibidem, p. 117. De seguida Castiano parece «reivindicar» para a filosofia africana
um espaço «para além das fronteiras da racionalidade». Tanto quanto nos parece, não
se trata de espaços ulteriores, mas do mesmo âmbito de racionalidade no qual também
as tradições podem ser estudadas criticamente. Para além da racionalidade existe
apenas a irracionalidade. Retomaremos este tema na parte conclusiva.
316 Ibidem, p. 118. Filomeno Lopes afirma também que os filósofos africanos dialogam

mais com os europeus do que entre eles.


317 Ibidem.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página132

132 | MUNTUÍSMO

O primeiro nasce nos EUA, do esforço dos afro-americanos para


afirmar a própria identidade. A filosofia afro-americana devia lutar
particularmente contra duas discriminações: a racial e a filosófica,
pois quando se falava de filosofia americana, a referência era apenas
à filosofia dos brancos. A Black ou Afro-american Philosophy se
impõe apenas a partir dos anos ‘70 318. Mas os próprios filósofos
afro-americanos desenvolvem a sua filosofia sem envolver os filó-
sofos africanos. Será Molefi Asante a centrar a África e o seu debate
epistemológico na inteligência americana através do movimento da
Afrocentricidade, que se inspirava em Cheikh Anta Diop e Martin
Bernal, os quais indicavam o Egipto povoado pelos negros, e não a
Grécia, como mãe da civilização mundial. No seu livro Black Athena,
Bernal defende que o «modelo antigo» na interpretação da história
da antiguidade grega, modelo que sublinhava a influência africana
e asiática, foi substituído pelo modelo ariano, racista, que defende
uma originalidade e autonomia da Grécia romântica e, sobretudo,
branca 319.
Castiano mostra o esforço de Asante na desconstrução dos
«mitos eurocentristas» dos quais é necessário livrar-se, através de
uma «crítica radical» à tradição eurocêntrica da prática científica
que se esconde sob a máscara da «ideologia» universalista, da objec-
tividade e das tradições clássicas. Nesta crítica entra o positivismo,
que se recusa a ir para além dos dados empíricos e de toda a posição
teológica ou metafísica, e consequentemente não reconhece o dis-
curso do «outro». Asante critica os «ritos da iniciação científica» aos
quais se submetem os cientistas da «retórica científica eurocêntrica».
A crítica radical deve ser contra esta estrutura, e não tanto contra os

318 A American Philosophical Association reconhecerá uma disciplina denominada

African Philosophy apenas em 1987.


319 Segundo Bernal, este modelo foi uma reacção dos cristãos contra a imposição de

uma religião ou sageza egípcia: «These Christian attacks challenged Greek statements about
the importance of Egypt, and boosted the independent creativity of Greece in order to diminish
that of Egypt.» «Estes ataques cristãos desafiaram declarações gregas sobre a importância
do Egito, e impulsionaram a criatividade independente da Grécia, a fim de diminuir a
do Egito» [T. do A.], Ibidem, n. 14 de p. 129.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página133

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 133

indivíduos sujeitos a esta estrutura. Asante distingue o africanista,


que discursa sobre a África partindo da visão eurocêntrica, e o afro-
centrista, que o faz partindo do seu «espaço cultural africano».
Asante descortina uma «unidade» espiritual e cultural da África
contemporânea, que deriva da fonte inicial do Antigo Egipto e se
estende a todos os negros da diáspora.
Porque quer Asante ressuscitar estes «fantasmas» do passado?
Para a confirmation (confirmação) da ideia de unidade do pensamen-
to africano, e por um motivo de deslinking (desligação ou descola-
gem) do centro, ou melhor, do que crê ser o centro, que é o Ociden-
te. Confirmation e deslinking são as condições para recuperar a
dignidade dos africanos, para operar a própria auto-inscrição na
história da humanidade. O ponto de partida obrigatório é o estudo
do Egipto Antigo. Neste ponto, Castiano discorda, dizendo que
Asante confunde língua e linguagem, pois para filosofar ou fazer
ciência a língua é indiferente. Emerge claramente a divergência de
opinião entre Castiano e os demais filósofos africanos acerca da
questão linguística.
Depois da primeira parte, Asante expõe a essência da Afrocentra-
lidade, que significa literalmente: «colocar ideais africanos no centro
de qualquer análise que envolve a cultura e o comportamento afri-
canos» 320. Um conceito particularmente fundamental é o de place,
contexto no qual se situa o discurso, contexto da identidade a priori
que deve emergir no uso consciente e sistemático da simbologia
africana ao fazer ciência. Isto marca a diferença entre o africanista e a
afrocentrista. A noção de place é aplicada também à axiologia e à
questão da verdade que deve ser «submetida» ao local e não uni-
versal, porque o que é bom, é verdadeiro, e não o contrário! Um
aforismo «não se pergunta primeiramente se é verdadeiro, per-
gunta-se sim, se é bom ou belo. Localizar significa isto mesmo: dar
primazia ao axiológico em relação ao saber em si» 321. Em conclusão,

320 Ibidem, pp. 143-144.


321 Ibidem, p. 146.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página134

134 | MUNTUÍSMO

o objectivo da afroncentricidade é fundar uma ciência baseada nos


valores africanos, recorrendo a um quadro conceptual também ge-
nuinamente africano. Outro referencial de subjectivação é o movi-
mento do Ubuntuísmo. Castiano afirma que esta «filosofia ubuntu-
-africana aparece com um horizonte teórico que dá uma certa con-
sistência na justificação ontológica, epistemológica e ética para a
subjectivação, ou melhor, para o movimento da subjectivação» 322.
Lamenta, porém, uma falta de textos fundamentais do ubuntuísmo.
O ubuntuísmo teve origem na África do Sul, precisamente na
luta contra o apartheid. Sua inspiração foi o movimento Black Cons-
ciousness de Steve Biko, famoso mártir do apartheid, e alguns contac-
tos tidos com a diáspora, em particular com a Black Thelogy e a «Pe-
dagogia do oprimido» de Paulo Freire. Segundo o seu fundador,
Steve Biko, a missão da Black Consciousness era levar os negros a to-
marem consciência da sua condição de vítimas da opressão dos
brancos e adquirirem o orgulho de serem negros, combatendo o
complexo de inferioridade disseminado também pelos missioná-
rios, no seu intento de «civilizar e educar» os negros!
Um texto particularmente interessante é African Philosophy
through Ubuntu, da autoria de Mogobe Ramose, publicado em 1999,
em Harare (Zimbawe), no qual o autor pretende demonstrar que
ubuntu é a base da filosofia africana. Ubu evoca a ideia de Ser em si,
antes da sua manifestação, mas sempre tende a manifestar-se no
ntu. Ontologicamente, não existe separação entre o ser (ubu) e a sua
manifestação (ntu). O dualismo cartesiano não encontra espaço na
ontologia ubuntu-africana. Não basta a existência para ser um ser
humano, é necessário comportar-se constantemente de modo a
demonstrar que possui o ubuntu.
Segundo uma perspicaz intérprete, Ivy Goduca, este comporta-
mento baseia-se em cinco princípios: a responsabilidade individual,
começando com uma autopurificação: meditação, repouso, absti-
nência do álcool e drogas....; atenção à mãe-terra, que não nos per-
tence, mas nós pertencemos a ela; a relação entre os homens, entre

322 Ibidem, p. 147.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página135

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 135

as criaturas vivas e «não-vivas», pois nada existe isolado; as identi-


dades individuais e familiares estão sempre estreitamente ligadas
entre si e ao contexto sociocultural e espiritual; a natureza, as cria-
turas vivas e «não-vivas» são o fundamento da realidade espiritual,
pois o espírito está no seio da existência de toda as coisas.
Em conclusão, Castiano reconhece esta proposta interessante
para uma epistemologia que tenha como base os saberes locais, em-
bora tal proposta peque pelo tradicionalismo, fixando-se na exigên-
cia de preservar a tradição, e de reducionismo, pois quer circuns-
crever o «saber espiritual» nas mãos dos anciãos. Broodryk J.
identifica os valores fundamentais do ubuntuísmo no humanismo,
afecto, altruísmo, respeito, compaixão e noutros valores associados
a estes. Desde a infância as crianças são educadas a dar o pouco que
têm, a amar o próximo, saber perdoar («quem não sabe perdoar não
é humano»). Em síntese: Umuntu ngubuntu nbantu, è uma frase em
xizulu que significa uma pessoa é tal apenas com as outras 323. É ne-
cessário «romantizar» os valores tradicionais africanos para que o
jovem seja educado nesta «filosofia moral africana», fugindo do
individualismo exacerbado das sociedades capitalistas modernas.
Castiano retoma as críticas de Crahay no debate inicial sobre a fi-
losofia africana, com as cinco condições para a existência da filosofia
africana: 1. Um corpo de filósofos e intelectuais africanos que vivem
e trabalham num ambiente cultural africano, mas aberto ao mundo;
2. Usar bem e criticamente as reflexões da filosofia académica oci-
dental; 3. Fazer um inventário dos valores africanos; 4. Operar uma
ruptura radical entre a consciência reflexiva e a consciência dos
mitos que permitiria introduzir a dicotomia necessária para a
colagem conceptual» (o que a etnofilosofia não conseguiu fazer);
5. Clara opção pelos sistemas filosóficos adequados à solução dos
problemas africanos (como foi o marxismo na luta armada).
Para que uma verdadeira filosofia africana possa impor-se no pa-

323 Cf. Ibidem, p.168. Quando os africanos se encontram entre eles, exportam esta

«irmandade» para o estrangeiro.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página136

136 | MUNTUÍSMO

norama intelectual é necessária uma «descolonização» da forma de


filosofar. Castiano está de acordo com o intento de Kwasi Wiredu:
«By decolonization, I mean divesting African philosophical thinking of all
undue influences emanating from our colonial past» 324. O problema
começa com a língua estrangeira imposta e utilizada ainda hoje
para fazer ciência, que operou uma «des-africanização» a favor de
uma «ocidentalização» a respeito da articulação dos temas filosófi-
cos. Descolonização conceptual não significa abandono de todas as
disciplinas ocidentais, mas a sua aplicação, sobretudo da lógica,
dentro dos sistemas de pensamento africano. Segundo Wiredu, é de
grande importância a questão da verdade e da sua validade. Torna-
-se necessária uma abertura para incorporar conceitos de outras cul-
turas que possam permitir referências de intersubjectivação 325. É ne-
cessário explorar as crenças comuns para descobrir a racionalidade
subjacente, partindo do particular para chegar a demonstrar a uni-
versalidade de cada cultura 326. São todos temas que Castiano apre-
cia, embora distanciando-se deles.
Castiano chega à parte mais importante do seu livro, que diz
respeito aos referenciais de intersubjectivação. Começa com o apelo
de Hountondji: «o problema real não é falar sobre África, mas falar
entre africanos» 327. Esta necessidade da comunicação é também
amplamente defendida por Ngoenha. Castiano define a intersubjec-
tivação como processo no qual os sujeitos do conhecimento entram

324 «Com descolonização, quero dizer desinvestimento do pensamento filosófico

africano de todas as influências indevidas provenientes de nosso passado colonial»


[T. do A.], Ibidem, p. 176. Cf. K. WIREDU, Cultural Universals and Particulars: an African
Perspective, Bloomington, Indiana University Press, 1996.
325 Wiredu cita, por exemplo, vários termos que, embora não pertençam à cultura

africana, passaram a fazer parte do sistema de pensamento africano, como é o caso de


internet, website, etc. Wiredu fala de uma «filosofia comunal». Cf. Ibidem, p. 181.
326 Cf. Ibidem, pp. 183-184. Castiano cita, a propósito, Sanya Osha, para quem a «des-

colonização conceptual» de Wiredu é, na verdade, uma «recontextualização concep-


tual», e acusa Wiredu de cair numa espécie de «hesitação epistemológica» em vários
pontos da sua análise, onde se limita à comparação do inglês com a sua língua local
(akan), sem chegar a «nenhuma real significação universal» como pretendia fazer.
327 Ibidem, p. 190. Cf. Também a comunicação interperiférica de Lopes, analisada

precedentemente.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página137

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 137

em diálogo, em debate. Isto pressupõe o reconhecimento do outro


como um interlocutor válido, digno e sapiente. Para Castiano a
filosofia africana encontra-se ainda muito orientada ao eu, quando
invés deve descentrar-se do sujeito para concentrar-se no Outro que
argumenta, partindo de uma posição culturalmente diferente.
Primeiramente, a filosofia africana deve libertar-se do seu pas-
sado, o que não significa deitar fora as tradições, mas viver em liber-
dade com as próprias tradições: o paradigma libertário deve então
fazer o que ainda não fez, isto é, «pensar os mecanismos de libertar
a própria filosofia do passado» 328. Não apenas libertação histórica,
mas conceptual: uma abertura conceptual, e não apenas uma desco-
lagem ou descolonização como pretendiam Crahay e Wiredu.
Depois de ter abordado os dois referenciais da objectivação
(etnofilosofias e etnociências) e os dois referenciais da subjectivação
(afroncetricidade e ubuntuísmo), Castiano conclui com dois refe-
renciais de intersubjectivação (liberdade e interculturalidade)
Liberdade é reconhecer o Outro como ser humano, livre como eu.
O Outro colectivo (raça, género, religião, etc.) não deve sufocar o
Outro individual. O Outro individual pode ter uma identidade
híbrida, sem que tal conduza a um choque (de civilizações?). Não se
deve catalogar raças ou etnias ou grupos religiosos como se todos
fossem da mesma forma: cada um pode conviver com os outros
mantendo identidades diferentes.
Na África o eu-africano encontrou-se primeiro com o Outro-
-árabe e, mais tarde, com o Outro-europeu. Com o primeiro a inte-
gração foi fácil, porque se deu um encontro comercial, mas tal en-
contro de intersubjectivação foi interrompido pela irrupção do
Outro-Europeu. No segundo caso não se tratou de mais um encon-
tro comercial, mas de um violentíssimo confronto político, não de
diálogo, mas de monólogo. O Africano foi «civilizado» e «evange-
lizado» pelo Outro-europeu e foi alienado na sua consciência, con-
vencendo-se de ser inferior.
Podemos, todavia mover algumas objeções contra Castiano. O

328 Ibidem, p. 191.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página138

138 | MUNTUÍSMO

autor defende que o encontro com o Outro-árabe foi de respeito e


integração. Não se terá esquecido de que foi este quem introduziu a
escravatura dos negros? Seria este um acto de respeito? Outrossim,
Castiano apresenta-se muito crítico no confronto da Igreja, esque-
cendo-se que a própria Igreja foi «submetida» pelo regime colonial,
e o Vaticano não tinha poder de intervenção na nomeação dos
bispos e da política eclesial. Se a presença da Igreja foi apenas nega-
tiva, porque é que não foi eliminada pela revolução, mas, parado-
xalmente, se desenvolveu muito no período pós-independência?
Todavia, o ponto central da sua análise – ao qual redirecionamos
a nossa atenção – é frisar que o negro tinha a permissão de tornar-se
«assimilado» sob as condições que se seguem: abandonar os usos e
costumes negros; falar, ler e escrever português; ser monogâmico; e
autossustentar-se. Na prática, aos negros era negado ser africano. A
libertação necessária não é apenas a independência e a autonomia,
mas liberdade epistémica, ou seja, «a liberdade do sujeito africano de
falar por si, de construir o seu próprio discurso sobre a sua condição
de existência. É a liberdade de ser livre em negociar a sua entrada na
modernidade. Trata-se da liberdade de ter o direito de ser sujeito da
sua história e do pensamento sobre si mesmo, que, quanto a nós, é o
primeiro passo para o referencial da intersubjectivação» 329.
Na análise dos pressupostos da auto-libertação da filosofia afri-
cana, Castiano vê em Hountondji e Ngoenha um ponto de partida
para justificá-la e fundá-la como empenho intelectual na luta pela
liberdade. Libertar-se do peso do passado imposto pela etnofiloso-
fia, que trancou a filosofia africana num gueto fechado ao futuro. O
«projecto libertário» de Hountondji prevê cinco dimensões: desmis-
tificar a ideia da África e dos africanos como algo de «metafísico»,
para torná-lo algo de concreto, geográfico; libertação do conceito de
filosofia como algo de dogmático, tornando-o histórico; pensar a
partir de si próprios, e não refugiar-se no pensamento dos antepas-
sados; defender o pluralismo contra o unanimismo; libertar o filó-
sofo africano da África, procurando interesses cognitivos e não

329 Ibidem, p. 200.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página139

HISTÓRIA DAS IDEIAS | 139

regionais, étnicos, religiosos ou linguísticos. Este processo de liber-


tação luta contra os defensores da etnofilosofia e da ideologia da
superioridade europeia.
Ngoenha segue o mesmo «paradigma libertário» que se baseia
na ideia marxista de filosofia transformadora da realidade. Na sua
obra Os Tempos da Filosofia, identifica a essência da filosofia africana
na «busca da liberdade» 330.
Castiano pergunta-se se, para ser africana, a filosofia deve conti-
nuar acorrentada à razão (Mbiti), aos mitos e costumes locais, à
língua (Kagame) ou aos sábios (Oruka). Para ser filosofia crítica afri-
cana deve libertar-se do unanimismo e da religião 331.
Um bom exemplo é a Sage Philosophy de Oruka. A filosofia oral é
considerada uma das fontes principais da filosofia africana, e Oruka
defende que esta não é menos filosófica, menos racional e menos
profunda do que a filosofia clássica europeia, que os filósofos afri-
canos aprenderam na Europa. Mas porque é que os próprios filóso-
fos africanos não dão valor à filosofia oral? Porque não foram for-
mados para este tipo de filosofia e por temerem ser definidos
etnofilósofos. Perante uma questão (se acreditam nos espíritos) diri-
gida aos filósofos africanos, Castiano responde com as palavras de
Oruka, que gostava de conhecer as razões para não crer nos espíri-
tos e convida os colegas africanos a não responder à questão.
Quanto ao problema linguístico, Castiano assume uma posição
muito original: se para os outros filósofos é uma questão crucial,
para Castiano é um problema secundário, pois se pode fazer filoso-
fia em qualquer língua, e não se deve perder energia nesta questão.
O que conta é a linguagem e não a língua.
Finalmente, o último referencial da interculturalidade consiste nas

330 Ibidem, p. 205. Ngoenha ressalta que não se trata de uma liberdade metafísica ou

moral, mas política. Cf. Ibidem, pp. 206-207. Parece-nos interessante desenvolver a ideia
da verdade da liberdade, que pode levar à descoberta da autenticidade africana. Um
tema que retomaremos na parte conclusiva.
331 Castiano acusa Mbiti de fazer confusão entre religião e filosofia. Na verdade,

segundo nós, Castiano confunde a religião natural, a africana, por isso metafísica (teodi-
ceia), com a religião revelada, que é dogmática (teologia). A última deve necessariamen-
te ser separada da filosofia, mas não a primeira. Retomaremos este tema mais adiante.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página140

140 | MUNTUÍSMO

predisposições necessárias para o envolvimento mútuo de dois ou


mais sujeitos que trocam as suas experiências. Esta troca deve partir
de sujeitos do mesmo hemisfério para dialogar depois com o outro
hemisfério. A filosofia africana profissional deve dar espaço aos sábios
locais, sem excluí-los da «racionaldade» ou julgá-los «falsos», se-
gundo o critério da contraposição entre macro e micronarrativas. O
problema será então: «como abrir a filosofia africana para a sua
própria riqueza conceptual a partir dos imaginários culturais e dos sa-
beres tradicionais?» 332. Perante saberes locais, a filosofia africana en-
contra três níveis de interpretação: interpretando os factos e os proces-
sos para inferir uma Weltanshauung, como a etnociência ou a
etnofilosofia; operando um encontro através de entrevistas com os
sábios para avaliar o que pode ser «filosófico», como nas correntes da
afrocentricidade e o ubuntuísmo, ou a nível crítico, onde se colocam
em confronto ideias e autores diversos, segundo os modelos da inter-
subjectividade. É necessário, portanto, abrir espaços à criação de um
relacionamento intersubjectivo e abrir-se a um diálogo intercultural
filosófico, com um mútuo enriquecimento conceptual. O filósofo deve
tomar responsabilidade e empenho sérios diante das «comunidades
epistémicas locais», das quais «deduzir» os referimentos teóricos que
subjazem aos seus saberes, sem cair no romanticismo diante dos va-
lores tradicionais. Estes saberes deverão ser legitimados e encontrar o
próprio espaço de intersubjectivação nas universidades, convidando
os que antes eram apenas considerados «informantes», e não produ-
tores de saber. E esta, acrescenta Castiano, é a novidade. Inserir nos cur-
rículos modelos e mestres africanos, metendo em primeiro plano os
seus conhecimentos, como invenções e ideias africanas, restituindo-
-lhes a subjectividade e começando um cerrado confronto com outros
«produtores de saberes». E depois de toda esta emancipação da
filosofia africana, o que restará? Conclui Castiano, como síntese de
todo o seu livro: «You are left with African Philosophers» 333.

332 Ibidem, p. 233.


333 («Restarão os filósofos africanos»), Ibidem, p. 248.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página141

CAPÍTULO II

Palabre com «sábios» africanos

A ideia de pessoa na cultura dos Vatonga, Vathswa e Vacopi

1. Palabre com três «sábios» influentes dos povos Vatonga,


Vatshwa e Vacopi: Amaral Bernardo Amaral; Francisco Lerma Mar-
tinez; Adriano Langa.

No presente capítulo tentaremos analisar a ideia de pessoa nas


três culturas principais presentes no território de Maxixe-Inham-
bane, com referência às populações Vatonga, Mathswa e Vacopi,
falantes das línguas Guitonga, Xitswa e Chope, respectivamente.
Iniciaremos apresentando uma breve nota introdutória em torno
das línguas bantu, de modo a contextualizar as três línguas de que
nos ocuparemos.
De seguida aprofundaremos as três culturas com três «sábios» e
estudiosos de cada povo, quer por meio de diálogos (Palabre) man-
tidos com eles, quer pelo estudo de algumas das suas publicações.
Por fim, faremos uma síntese das entrevistas realizadas com
cerca de duzentos «sábios», ou seja, pessoas significantes e influen-
tes no seio de várias comunidades, com vista a individuar a ideia de
pessoa presente nas três culturas em questão. Como veremos com
detalhes, na conclusão, esta última parte é concebida segundo um
método de pesquisa e um estilo interpretativo que se liga idealmen-
te à corrente da Sage Philosophy, fundada por Oruka, autor do qual
nos ocuparemos.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página142

142 | MUNTUÍSMO

a) As línguas bantu

O termo bantu significa gente ou pessoa e designa o conjunto das


populações da África Austral 334. Estes povos falam línguas com
grandes semelhanças morfológicas entre si 335. Num estudo sobre a
difusão dos povos bantu, Ngunga 336 refere que, actualmente, o
termo bantu é usado nos estudos da linguística moderna para des-
ignar um grupo de 600 línguas, faladas por cerca de 220 milhões de
pessoas, numa vasta região da África contemporânea que se esten-
de ao Sudão do Sul, a sul da linha que vai dos montes dos Cama-
rões (ao sul da Nigéria), incluindo os seguintes países: Angola,
Botswana, Burundi, Camarões, Comores, Congo, Gabão, Guiné
Equatorial, Lesoto, Madagáscar, Malawi, Moçambique, Namíbia,
Quénia, República Democrática do Congo, Ruanda, Swazilândia,
Tanzânia, Uganda e Zâmbia.
Todas as línguas bantu provêm de uma língua chamada proto-
-bantu, uma espécie de língua-mãe. O centro de difusão destas lín-
guas continua ainda objecto de pesquisa, mas a hipótese mais aceite

334 Para esta breve introdução acerca das línguas bantu, baseamo-nos essencialmente

nas pesquisas inéditas de Carlos Massango, mais precisamente: C. MASSANGO, Breves


notas sobre o uso do termo bantu para designar as línguas africanas, pro-manuscriptum,
Maxixe, 2010; ID., Relatório sobre Estágio Pedagógico na disciplina de Línguas Bantu e
Metodologia de Educação Bilingue. Trabalho apresentado para obtenção de grau de licenciatura,
pro-manuscriptum, Maputo, UEM, 2009; ID., Extensões Verbais em Copi. Comunicação apre-
sentada nas jornadas científicas da Universidade Pedagógica Sagrada Família, pro-manuscrip-
tum, Maxixe, 2010.
335 Basta comparar o mesmo termo bantu nas línguas moçambicanas: Guitonga: ba-

-thu; Chopi: va-thu; Changana: va-nhu; Swahili: wa-tu; Yao: ua-tu; Makonde: ua-nu;
Makhuwa: a-thu; Nyanja: a-nthu; Shona: va-nhu; Nyungwe: wa-nthu. Estes exemplos
mostram claramente a grande semelhança entre as línguas bantu: um prefixo nominal
geralmente variável em função da língua bantu e um tema nominal. A variação alomór-
fica de ba-, em va-, wa-, ua-, a-, tem a sua motivação no carácter mutável das línguas que
evolui incessantemente através de reajustes internos e não por mutações bruscas. Dife-
renças que podem explicar-se em termos históricos. A lista da unidade lexical pessoa/
/gente poderia ser mais longa e sempre se verificaria que as duas partes do vocábulo
são constantes em todas as línguas: um prefixo nominal «ba» (wa-, va-, a-) e um tema
nominal «nthu» (-ndu, -nthu, -thu, -tu).
336 Cf. A. NGUNGA, Introdução à Linguística Bantu, Maputo, Imprensa universitária

UEM, 2004.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página143

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 143

vê a origem dos povos falantes desta língua ancestral entre a zona


sul da Nigéria e o Monte Camarões. Deste ponto, os povos difundi-
ram-se, em parte, a sul da floresta tropical e rumo à região lacustre
da África oriental e, em parte, na bacia do Congo e rumo aos planal-
tos orientais. Outra hipótese considera a origem na região das terras
altas do Shaba, a sul da República Democrática do Congo, porque
as línguas faladas nesta região (Luba, Bemba, Kasa) apresentam
uma elevada percentual de bantu-comum, isto é, de formas mor-
fológicas mais comuns e representativas para todo o conjunto das
línguas bantu. Deste planalto emigraram duas populações, uma
para ocidente e outra para oriente.
Existem dois critérios para determinar a pertença de uma língua
ao grupo das línguas bantu. Todavia, não nos delongaremos neste
particular, pois o nosso estudo não é sobre as línguas, mas sobre as
ideias.
À semelhança da maioria dos países africanos, Moçambique é
um país multilingue, multicultural e sociolinguisticamente comple-
xo, pois conta cerca de vinte línguas do grupo bantu 337. O português
é primeira língua apenas para 6% da população. Todavia, depois da
independência, foi escolhida como língua oficial 338. Esta escolha
causou grandes insucessos na educação escolar, sobretudo nos con-
textos rurais onde a língua portuguesa não era falada 339.
Entre as vinte línguas e as tantas etnias presentes em Moçambi-
que, focalizamo-nos em três culturas da nossa província, que con-

337 Cf. B. SITOE, e A. NGUNGA, Relatório do II Seminário Sobre a Padronização da Orto-

grafia de Línguas Moçambicanas, Maputo, NELIMO, 2000.


338 Os Moçambicanos, porém, são geralmente bilingues ou trilingues. Existem tam-

bém minorias que falam línguas asiáticas. O inglês e o francês são ensinados como dis-
ciplinas escolares.
339 «Apesar de, com a introdução do SNE em 1983, se ter procurado atender à reali-

dade linguística da criança que chega à escola com sete anos sem saber falar português,
a verdade é que os índices de aproveitamento pedagógicos continuam baixos, havendo
muitas reprovações e abandonos nas primeiras classes. Sabe-se que uma das causas está
no facto de o ensino ser feito numa língua segunda, desconhecida pela criança.» Cf.
INDE 1997. Por este motivo, nos últimos anos, se passou a introduzir as línguas moçam-
bicanas no ensino primário.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página144

144 | MUNTUÍSMO

vivem no território de Maxixe-Inhambane: Vatonga, Mathswa (ou


Vathswa) e Vacopi.

b) A cultura dos Vatonga: Amaral Bernardo Amaral

Um grande sábio da nossa terra de Maxixe, bastante famoso e


respeitado por todos, é Amaral Bernardo Amaral, um frade francis-
cano nascido em Maxixe, autor de diversas publicações em língua
gitonga, entre as quais o Missal, a Bíblia Sagrada, catecismos, livros
de provérbios, gramáticas e dicionários gitonga. Escreveu igual-
mente histórias e ensaios acerca da cultura dos Vatonga em língua
portuguesa. Dos vários encontros que mantivemos recolhemos
muitas informações acerca da etnia Vatonga e da língua gitonga,
assim como da ideia de pessoa nesta cultura 340. Sublinhe-se que,
como linguísta e cultor aguçado da língua gitonga, Amaral tratou o
tema «Conceito de pessoa na cultura africana» 341 numa conferência
havida na «Universidade Pedagógica Sagrada Família», dedicada ao
personalismo. É, pois, um autor particularmente ligado ao nosso
estudo. Analisaremos, então, detalhadamente, a sua reflexão.
Amaral considera que um povo sem cultura é um povo sem his-
tória, sem passado nem memória. É como uma árvore sem raízes,
um corpo sem alma, condenado a morrer e desaparecer sem deixar
contributo algum à humanidade. Considera que a língua é a maior
reserva da cultura e hereditariedade antropológica de um povo,
onde se concentra todo o património histórico e cultural, as tradi-
ções, o modo de pensar, de julgar e de comunicar os valores mais
significativos do humanismo de um povo. O desaparecimento de

340 Informações importantes, acerca da história e cultura dos Vatonga, encontramos

em: A. B. AMARAL, Dzitekatekane nya Vatonga, Milão, Edizione Biblioteca Francescana,


2009.
341 A. B. AMARAL, Conceito de pessoa na cultura tradicional africana e a sua contribuição

específica na formação da nova cultura globalizada, pro-manuscriptum, Maxixe, UniSaF, 2009.


Os temas tratados por Amaral, na Lectio Magistralis, encontram-se igualmente no artigo:
A. B. AMARAL, «Matriz estruturante da Cultura Africana», em Itinerarium, LIV (2008),
n.º 191, Braga, pp. 359-408.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página145

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 145

uma língua comporta uma perda universal irreparável. Amaral é


membro fundador do grupo ADETONGA (Associação para o De-
senvolvimento da Língua Gitonga).
A língua gitonga é falada por cerca de duzentas e cinquenta mil
pessoas, que vivem ao longo do litoral da Baía de Inhambane, no
oceano Índico, na região meridional de Moçambique, precisamente
nas cidades e distritos de Inhambane, Maxixe, Jangamo e Morrum-
bene, com fortes ramificações em cidades vizinhas como Massinga,
Homoíne e Inharrime.
Os Vatonga constituem um grupo étnico e linguístico no seio da
grande família dos povos bantu. A partir do século VII, emigraram
do planalto central da África em direcção às terras do sul. Presentes
nesta região antes do século XV, os Vatonga eram famosos pela sua
hospitalidade, impressionando os primeiros navegadores portu-
gueses que, chegados nestas terras e descoberta esta característica,
baptizaram a região com o nome que subsiste ainda hoje, «Terra da
boa gente». Amaral afirma que os Bantu que se instalaram em Mo-
çambique, na região entre os rios Save e Limpopo, tinham uma
acentuada unidade linguística, religiosa e cultural, embora com
compreensíveis diferenças devidas à vastidão do território, à difi-
culdade de comunicação e à natural evolução da língua e das suas
culturas orais, que deu origem a diferentes variantes de dialectos
com tal raiz comum 342. O povo Tonga, como muitos outros povos
bantu, é desprovido de uma literatura escrita, bibliotecas e arqui-
vos, sendo que os primeiros textos nesta língua foram publicados
apenas nos últimos decénios. Por isso, a oralidade assume uma
enorme importância, e a palavra «constitui o único meio de conser-
var e de transmitir o património comum herdado dos antepassados,
estabelecendo, desta forma, a comunhão vital entre os vivos e os
mortos» 343. Para os Vatonga, a palavra pronunciada «não se perde no

342 Já no século XVI, o povo Vatonga era bem distinto. Cf. J. DOS SANTOS, Etiópia orien-
tal, Lisboa, 1891, pp. 199-200, citado em A. B. AMARAL, Dzitekatekane..., o.c., p. 34.
343 Ibidem, p. 44.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página146

146 | MUNTUÍSMO

ar» porque tem um poder próprio e produz sempre um efeito bené-


fico ou maléfico, segundo a intenção, a dignidade e o estado de
alma de quem a pronuncia 344. Bênçãos ou maldições têm sempre
uma eficácia total. Se alguém ameaça «Hás-de ver» é necessário
preocupar-se seriamente. Amaral defende que, mesmo se na maio-
ria os Vatonga são cristãos, dada a grande difusão da evangelização
operada em prevalência pelos Franciscanos (depois da primeira fase
operada pelos Jesuítas), todos continuam a praticar paralelamente
os ritos da Religião Tradicional Africana 345. A religião tradicional
dos Vatonga é essencialmente ligada à família, à comunidade clâ-
nica. Ninguém pode eximir-se da participação nas celebrações tra-
dicionais. A religião tradicional Tonga é monoteísta e a relação com
Deus (transcendente, criador, Senhor de todas as coisas, cujo nome
em gitonga é Nungungulo) é apenas possível através dos antepassa-
dos (Dzinguluve), que são membros efectivos da comunidade fami-
liar, guardiões e protectores, e determinam a vida de cada membro
da família. Se algo dá errado, os adivinhos sempre saberão explicar
as razões.
A linhagem é patrilinear e todos os membros do clã são irmãos
de sangue, porque descendem todos do mesmo antepassado. Toda
a organização social é regulada pelas leis familiares. O clã é formado
por vários grupos familiares que formam a «Casa Grande» (Nyumba
nya Yikhongolo) governada por um Patriarca (Babe Khongolo). Os di-
versos patriarcas das «Casas Grandes» formam o Conselho do
Povo, no seio do qual é eleito o «Rei», o Chefe (Pfhumu). As irmãs
dos patriarcas têm grande importância e são determinantes nas
decisões a tomar. Neste ponto, Amaral pretende desmentir os pre-
conceitos ocidentais a respeito da exclusão das mulheres das
decisões da vida social africana 346.

344 Aprendi pessoalmente a não fazer promessas vagas a uma pessoa vatonga,

porque a palavra vale como um documento escrito e timbrado: «Quem promete deve»,
e não há como fugir ou retirar a palavra.
345 Entre os Vatonga, diz Amaral, 80% são cristãos, 2% são muçulmanos e 18% pra-

ticantes da Religião Tradicional Africana.


346 Cf. Ibidem, pp. 51-52.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página147

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 147

Não se pode casar com pessoas do mesmo clã. O matrimónio ce-


lebra-se na casa paterna da esposa e o casal deverá viver na aldeia pa-
terna do marido e assumir as tradições do seu clã. O matrimónio é au-
tenticado pelo lowolo, um dote que a família do esposo dá à família da
esposa em agradecimento e como selo da aliança estabelecida entre as
duas famílias. Este dote será apresentado diante da árvore sagrada
das duas famílias, para garantir a sacralidade da aliança. Os filhos são
a maior bênção. «Guambala mavala, guvelega wufumu» 347. Embora se
pratique a poligamia, na origem, a tradição mais antiga era monogâ-
mica 348. Amaral apresenta uma lista dos clãs mais conhecidos entre o
povo vatonga, incluindo as sagas da origem de cada família.
Amaral dedica grande importância aos provérbios (Dzitekatekane)
dos Vatonga, que «são os resumos dos princípios da sabedoria dos
antigos em forma de provérbios, ou adágios, constando de duas
partes: a proposição e a resposta. As duas partes relacionam-se entre
si em forma de paralelismo dinâmico. A primeira parte é provoca-
tiva, e a segunda parte é a resposta a essa provocação e contém uma
mensagem, ou uma instrução» 349. Estes provérbios têm como fim
educar as pessoas no que diz respeito aos comportamentos a assu-
mir na vida social e privada, e foram transmitidos durante séculos,
de geração em geração. O intento de Amaral é salvar este patrimó-
nio oral que corre o risco de perder-se com a morte dos anciãos e dos
últimos informadores. Alguns missionários tinham já escrito aquela
que era apenas uma língua oral, traduzindo partes da Bíblia, cantos
litúrgicos, catecismos, rituais dos sacramentos, provérbios e, por fim,
dicionários e gramáticas votadas a «padronizar» a língua gitonga 350.

347 «As vestes são um ornamento, os filhos são um tesouro inestimável (literalmente,

dar à luz é nobreza/majestade)», Ibidem, p. 53.


348 Amaral confirma esta ideia na prática do sacrifício, durante o qual o chefe de famí-

lia se deve apresentar apenas com a sua esposa legítima. As demais não são reconheci-
das. Cf. Ibidem, pp. 53-54. A tese segundo a qual a cultura tradicional africana é origina-
riamente monogâmica é igualmente defendida por Filomeno Lopes, como vimos acima.
349 Ibidem, p. 75.

350 Para não deixar «anónimos» estes linguistas, elencamos os seus nomes: Frei

Alberto de Moura (1910-1990); Reverendo P. Person; Frei Frederico Samuel Nyanala


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página148

148 | MUNTUÍSMO

Na recolha dos provérbios, Amaral descreve a metodologia que


o norteou: primeiramente, escreveu aquilo de que se lembrava dos
ensinamentos aprendidos enquanto criança. Num segundo momen-
to, ordenou os provérbios recolhidos por estudantes de uma escola,
citando os nomes de todos os 153 estudantes que contribuíram na
pesquisa. Por fim, deu-se ao trabalho de entrevistar e realizar a pa-
labre com diversas pessoas e grupos. Após ter elencado 260 provér-
bios dos Vatonga, Amaral conclui que um dos seus objectivos era
desmentir a ideia defendida pelo etnocentrismo europeu, segundo a
qual os africanos não têm um passado, nem uma história ou cultura
que valha a pena recordar. Este preconceito, sustentado como ver-
dade científica, inculcou nas populações um sentimento de inferio-
ridade que perdura até hoje e que induz muitos a envergonharem-
-se da sua cultura tradicional. A exortação é que «não é possível um
crescimento autêntico a partir da ignorância e/ou, da negação de si
mesmo» 351. Por isso Amaral propõe que se busquem iluminações e
inspirações nas experiências do passado, para melhor responder aos
novos desafios do presente e do futuro. Convida as várias religiões
a valorizar e promover os valores autênticos de cada cultura, sobre
os quais se constroem quer a evangelização, quer as demais pre-
gações. Sem esta observância, seria como semear ao vento: «No má-
ximo, poderá fazer fanáticos e escravos da religião, mas nunca se-
guidores livres, adultos, conscientes e responsáveis do próprio
empenho religioso» 352. E continua a sua observação afirmando que,
se ainda hoje evangelizar significa ocidentalizar, e islamizar signifi-
ca arabizar, pregadores e evangelizadores obterão apenas «tontos»,
manipulando a razão e a fé para uma nova colonização cultural,
pior do que a primeira. Depois de ter condenado a influência nefas-
ta dos programas televisivos estrangeiros (sobretudo as telenovelas
brasileiras) sobre a educação das crianças e jovens, Amaral exorta

(1943-1984); Frei Amaral Bernardo Amaral; Dra. Sara Antonio Jona Laisse; Dr. Eugénio
Filipe Nhacota. Cf. Ibidem, pp. 79-81.
351 Ibidem, p. 150.

352 Ibidem, p. 154.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página149

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 149

todos os Vatonga não só a reapropriar-se da própria língua, mas a


desenvolver as dimensões culturais e antropológicas contidas no
rico conceito global de «Gitonga» concebido como «o modo Tonga
de ser, de estar, de viver, de pensar, de fazer e de se relacionar» 353.
Amaral denuncia os preconceitos ocidentais sobre a cultura afri-
cana e apela: «Agora que falamos de diálogo intercultural, há que
aprender a escutar com respeito a experiência do outro. O Ocidente,
o Cristianismo ocidental, se quiser dialogar com a África, deverá re-
nunciar ao seu complexo de superioridade e deixar que o Africano
lhe fale de si próprio, lhe explique a sua experiência cultural e lhe
revele os seus valores» 354. E cita uma bela frase de R. Altuna: «Não
se deve aproximar da África Negra aquele que a não deseja conhe-
cer. Como poderá amá-la, se desconhece o seu rosto? Como a aju-
dará a libertar-se, se desconhece a sua alma?» 355 Por outro lado, o
Africano, se quiser dialogar com os outros, deverá superar o seu
complexo de inferioridade e assumir serenamente a sua identidade
e os seus valores. Não são as culturas que dialogam, mas as pessoas:
o diálogo dá-se quando pessoas de diferentes culturas interagem, e
não existe nem superior nem inferior.
Amaral questiona, enfim, se existe uma cultura africana unitária
ou se deve-se falar de tradições e culturas no plural. Baseando-se na
sua vasta experiência como conselheiro-geral da Ordem Francis-
cana, responsável da região africana, após ter visitado inúmeras
vezes os países africanos, conclui que existe em toda a África Negra
uma fundamental unidade cultural, e cita Leo Frobenius, cujo livro
As origens das Civilizações Africanas e História da Civilização Africana,
defende, sem sombra de dúvidas, que «se trata de uma cultura
única e una» 356. Esta ideia unitária, que pode ser condenada como
unanimismo por parte dos autores que já citamos, é igualmente de-
fendida por muitos pensadores, de modo que Amaral conclui: «Esta

353 Ibidem, p. 156.


354 A. B. AMARAL, Matriz…, o.c., p. 360.
355 R. ALTUNA, Cultura tradicional Banto, Luanda, 1985, pp. 41-42.

356 Cf. A. B. AMARAL, Matriz…, o.c., pp. 362-364.


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150 | MUNTUÍSMO

unidade de base permite-nos falar de Cultura Tradicional Africana e


delinear alguns dos seus traços característicos mais salientes, respei-
tando a pluralidade das expressões específicas e particulares. É
sobre estes valores fundamentais que se pode lançar a ponte de um
diálogo autêntico e enriquecedor com outras culturas» 357.
Eis os traços característicos da cultura tradicional africana: a ora-
lidade e o poder da palavra; o poder dos ritos e dos símbolos; a au-
toridade dos anciãos na transmissão fiel da tradição; a centralidade
da família como ponto da transmissão da vida e da cultura. Coloca-
-se o problema: esta cultura apresenta valores próprios e originais
capazes de responder às questões fundamentais das pessoas?
Amaral individua os seguintes valores antropológicos típicos: o
princípio da relação e da participação comunitária na força vital
universal; a profunda religiosidade e abertura ao transcendente; a
crença na imortalidade; a prevalência do bem comum sobre os inte-
resses individuais; o forte sentido de família alargada; o valor da so-
lidariedade, da hospitalidade e da partilha; o amor à vida e à fecun-
didade; o respeito e a veneração pelos mais velhos e crianças; o
sentido da paciência e da esperança na vida.
Grande importância assume a educação tradicional, que marca o
indivíduo mais que todas as outras educações que ele recebe na so-
ciedade. Uma educação caracterizada pelo método iniciático: «A ini-
ciação tradicional é baseada na concepção da vida como uma longa
viagem de crescimento em que o indivíduo, guiado pela mão dos
mais velhos, vai passando, gradual e progressivamente, de uma fase
da vida à outra; de “menos ser para mais ser”, até atingir o pleno es-
tatuto de Muthu (tradução na língua gitonga da palavra Muntu),
isto é, de pessoa madura, consciente, autónoma, responsável, soli-
dária e comunicadora da vida. Na visão bantu das coisas, a pessoa
não nasce já feita, mas vai se fazendo gradualmente no processo ini-
ciático através de instruções, ritos, símbolos e cerimónias. O método
iniciático africano imprime sempre uma mudança radical na pessoa

357 Ibidem, p. 364.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página151

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 151

que é iniciada. A pessoa deve passar por uma renovação interior


profunda que lhe modifica, não somente os comportamentos, as ati-
tudes, a mentalidade, a vida, mas também o próprio ser. Raul
Altuna diz tratar-se de uma verdadeira transformação ontológica» 358.
Os principais momentos da iniciação são três: a separação, onde
ocorre um corte claro com a infância, através de uma separação físi-
ca, pelo que a criança é mandada a viver na floresta por alguns dias;
o isolamento, que é o momento mais importante da iniciação, porque
«é neste período de reclusão total que se faz a revelação dos mistérios
e segredos da tribo; que se dá o ensinamento dos ideais e princípios
fundamentais da sabedoria tradicional, através de provérbios e
contos; que se narram as páginas mais gloriosas da história da tribo,
com a apresentação dos heróis e modelos a imitar; que se ensinam os
princípios religiosos, éticos e morais e as normas que regulam a vida
e a convivência na comunidade. Na floresta, os iniciados recebem
noções práticas de vida do dia-a-dia, sobre como resolver problemas
concretos, como enfrentar com serenidade as dificuldades, como go-
vernar sabiamente o lar, etc.» 359; a reintegração, na qual o iniciado,
morto como criança e renascido como homem adulto, vem apresen-
tado à comunidade, na qual entra a tomar parte a pleno título, recebe
uma acolhida festiva, um nome novo e uma veste nova.
O elemento estruturante basilar da cultura africana é a religião
tradicional. A religiosidade cobre todas as esferas da existência e
influencia os comportamentos individuais e colectivos, começa
antes do nascimento do indivíduo e se prolonga para além da sua
morte física. Amaral sentencia: «Não poderá conhecer verdadeira-
mente o Africano, nem compreender os seus problemas e compor-
tamentos, quem ignorar as suas crenças, as atitudes e as práticas
tradicionais. A Religião é o elemento mais forte e dominante da cul-
tura tradicional africana» 360. E clarifica, antes de mais, que coisa não

358 Ibidem, pp. 373-374.


359 Ibidem, pp. 374-375.
360 Ibidem, p. 376.
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152 | MUNTUÍSMO

é a RTA: não é animismo, como erroneamente muitos estrangeiros a


definiram; nem vitalismo, porque, embora a crença nos espíritos e o
valor da vida sejam fundamentais, não se pode reduzir toda a
riqueza da RTA apenas a estes dois valores. Que coisa é, então, a
RTA? É essencialmente uma experiência comunitária do Clã e o
reconhecimento de um Deus único e transcendente 361.
Amaral defende frequentemente nos seus escritos a antiguidade
do monoteísmo da RTA 362.
Imediatamente depois de Deus, existem os espíritos que têm
acesso directo a Deus e uma grande influência na vida dos homens.
Existem igualmente os espíritos malignos, manipulados pelos
feiticeiros, mas que podem ser neutralizados com vários ritos da RTA
que interpelam os antepassados. Em compensação, os antepassados
querem ser recordados pelos vivos e receber oferendas e sacrifícios.
Amaral especifica que «o culto tradicional aos espíritos dos de-
funtos não é um culto de adoração. Não é uma idolatria. Na verda-
de, nos nomes com que se designa Deus nas línguas africanas não
se notam resquícios de idolatria, ou de politeísmo. Os nomes de
Deus não têm nenhuma ligação com nomes de seres criados ou fe-
nómenos atmosféricos, etc. [...] Os africanos não reconhecem divin-
dades inferiores. Nem mesmo os antepassados fundadores do clã
são considerados deuses. A própria magia bantu que tem poder
para manipular todos os poderes e coisas criadas, inclusive os espí-
ritos, nunca imaginou manipular a Deus» 363.

361 Amaral critica o antropólogo Henry Junod, que tinha confundido os espíritos

(Chikwembu) com deuses, e corrige: «As pessoas, quando morrem, tornam-se espírito,
mas não deuses, porque um só é o Espírito Supremo.» Mais adiante, o próprio Junod
reconhece que, para os Tsonga, os antepassados não são deuses; são-no para os Zulu, o
ndaus. Cf. Ibidem, pp. 381-382.
362 Cf. O seu texto: Religião Tradicional Bantu, Jangamo, 1988, pp. 3-4, onde cita as pa-

lavras de P. Gonçalo da Silveira, um dos primeiros missionários que entraram em con-


tacto com o povo tsonga, o qual afirmava em 1560: «…Ninguém tem nenhuma espécie
de ídolo no culto que pareça idolatria. Têm um Deus, ao que chamam Umbee.» O mis-
sionário encontrou o monoteísmo já presente, antes de qualquer contacto com o
Cristianismo.
363 Ibidem, p. 384.
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PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 153

Na RTA existe a crença na imortalidade da alma e na vida depois


da morte: «A pessoa não morre, ela parte para a grande viagem, ou vai
juntar-se aos seus antepassados» 364.
Por fim, Amaral indica sete categorias existenciais da cultura tra-
dicional africana. Repisa que não obstante as influências externas
havidas ao longo dos séculos, a herança comum primitiva não foi
destruída, mas, como um rio subterrâneo, continua a alimentar,
inspirar e influenciar as novas aquisições culturais: «Nisto reside a
razão fundamental que explica a incrível semelhança de concepção
do universo, de sistema religioso, educativo, social e económico, a
alta percentagem de vocábulos comuns nas diferentes línguas,
mesmo as mais distantes geograficamente» 365.
As sete categorias existenciais são: 1) a escuta, fundamental para
uma cultura baseada sobre a oralidade: «Sendo a oralidade um
traço estruturante importante da RTA, essencialmente fundada
sobre a palavra, é óbvio que a capacidade de escuta seja a virtude
mais apreciada na sociedade tradicional africana. Uma característica
fundamental desta cultura é a exigência de fidelidade ao conteúdo
da mensagem (tradição) herdada dos antepassados e que deve
passar de geração em geração, através de séculos, sem perder a sua
força unificadora e iluminadora do clã» 366; 2) o encontro, toda a vida
é um encontro, desde o momento do nascimento até ao encontro
com a morte, com os antepassados; 3) a acolhida e a hospitalidade:
«Ndranga nya yadi khiyo nya vapfhumba» 367. De modo especial, esta é
a característica dos Vatonga, cuja terra, como dito, foi baptizada
pelos navegadores portugueses como «Terra da boa gente»; 4) a re-
lação, com Deus, os antepassados, a família e o clã. Amaral sublinha
a relação mãe-filho com estas palavras tocantes: «É muito significa-
tiva a relação de intimidade que une o filho à mãe, não somente du-
rante a gestação e o aleitamento, mas durante toda a vida. A criança

364 Ibidem, p. 385.


365 Ibidem, p. 388.
366 Ibidem, p. 389.

367 «Boa casa é a que acolhe hóspedes», Ibidem, p. 393.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página154

154 | MUNTUÍSMO

africana passa a maior parte das horas do dia às costas da mãe. A


mãe trabalha, transpira com a sua criança às costas. Este contacto
directo, corpo a corpo, permite uma profunda e intensa osmose tér-
mica, hídrica e emocional, muito importante para a segurança e o
equilíbrio psíquico e emocional da criança. A mãe é também, na
África, a principal educadora dos filhos. É ela que imprime na cons-
ciência, no coração e no carácter dos filhos, as normas morais, so-
ciais e religiosas tradicionais da comunidade. O filho é ligado à sua
mãe por fortes laços de afectividade, de respeito e de fidelidade» 368.
Por fim, o Africano tem uma relação profunda com a sua terra e, se
forçado a emigrar para longe, viverá sempre com uma profunda
nostalgia do seu mundo que deixara; 5) a simpatia/empatia: por sim-
patia, Amaral entende a grande capacidade de compaixão, de
comunicar com as alegrias e os sofrimentos dos outros; 6) a alegria e
a festa, que sempre impressionaram os estrangeiros que visitam a
terra africana. Não obstante os problemas e o sofrimento, a África
«é caracterizada pela sua alegria contagiante, a sua alma vibrante, o
seu canto, dança e ritmo envolvente, o seu carácter escaldado e fes-
tivo» 369. O sorriso no rosto dos africanos é sempre tocante. Amaral,
que viveu muito tempo também na Itália, pergunta-se porque não
encontra o mesmo sorriso e alegria de viver nos rostos das pessoas;
7) a esperança e o futuro: os povos africanos vivem na esperança de
um futuro de libertação, embora todos os países tenham já al-
cançado a independência. Libertação do subdesenvolvimento, da
fome, do analfabetismo, da corrupção, das guerras fratricidas.
Depois de ter vivido na América Latina, Amaral interroga-se por-
que é que as populações indígenas sul-americanas foram aniquila-
das, enquanto os negros africanos resistiram ao impacto da omnipo-
tência dos invasores europeus. Provavelmente, isso é devido à força
da RTA que, mesmo na diáspora, sempre alimentou a esperança de
algum dia retornar à própria terra de origem. Mesmo na África, a

368 Ibidem, pp. 400-401.


369 Ibidem, p. 403.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página155

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 155

RTA é o remédio para lutar contra dramas do continente, e evitar o


desespero que levaria o povo inteiro a um suicídio colectivo.
Destas considerações de Amaral podem-se deduzir indicações
claríssimas acerca da ideia de pessoa na cultura africana.
Na Conferência sobre o Personalismo, realizada na Universidade
Pedagógica da Maxixe (UniSaF), Amaral interveio com um impor-
tante contributo, citado acima. No capítulo central, «O Conceito de
Muthu ou pessoa humana no pensamento tradicional africano»,
Amaral apresenta cinco definições de «pessoa» africana: 1) pessoa
como centro consciente do universo: todas as principais categorias
dos seres que povoam o universo ontológico africano (Deus, espíri-
tos, homens, natureza, seres visíveis e invisíveis) são vistos em
função da sua relação com a pessoa humana; Amaral afirma que o
pensamento africano é caracterizado por uma «cosmologia antro-
pocêntrica»: «A «pessoa-consciência» vivifica e anima o mundo de
tal modo que a alma, o espírito ou a mente da «pessoa-consciência»,
é também a alma do mundo. A ordem do mundo e a ordem da
«pessoa-consciência» são idênticas. O que acontece no mundo acon-
tece também na «pessoa-consciência». A desordem da «pessoa-
-consciência» afecta e desorganiza todo o universo. Portanto, no
conceito africano é a «pessoa-consciência» que dá ordem, signifi-
cado e unidade ao universo» 370. 2) Pessoa como centro do equilíbrio
das forças cósmicas. A pessoa humana como manifestação da cons-
ciência constitui o centro e o ponto de equilíbrio desta harmonia
universal, cuja fonte e controlador último é Deus. Tudo quanto
acontece na pessoa humana toca directamente o universo. 3) Pessoa
como processo gradual de crescimento: «Na visão bantu das coisas,
a pessoa não nasce já feita, mas vai se fazendo gradualmente no
processo iniciático através de instruções, ritos, símbolos e cerimó-
nias significativas e eficazes. É um longo processo que começa antes

370 A. B. AMARAL, Conceito de pessoa na cultura tradicional africana e a sua contribuição


específica na formação da nova cultura globalizada, pro-manuscriptum, Maxixe, UniSaF, 2009,
p. 8.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página156

156 | MUNTUÍSMO

do nascimento físico do indivíduo e se prolonga para além da sua


morte física» 371. Ao longo da vida, a pessoa passa do «menos ser»
ao «mais ser», do «menos pessoa» ao «mais pessoa», até atingir
o pleno estatuto de Muthu, isto é, de pessoa plenamente madura,
consciente, autónoma, responsável, solidária e comunicadora de
vida. 4) Pessoa como ser de relação e participação comunitária. Para
o Africano, a vida é fundamentalmente radicada no princípio de
participação comunitária, a vida é essencialmente relação: «O Afri-
cano não consegue conceber a sua existência sem a comunidade,
sem a família. Para ele, ser pessoa humana é pertencer a uma dada
comunidade, e pertencer a uma comunidade significa participar nas
crenças, cerimónias, rituais, nas angústias e nas esperanças dessa
comunidade» 372. Pobre não é quem não tem dinheiro, mas quem
não tem uma família. 5) Pessoa como sujeito integrado e pluridi-
mensional. Cada relação (vertical ou horizontal) envolve sempre a
totalidade da pessoa humana e o Africano tem uma visão unitária e
integrada da realidade (pessoa, sociedade, mundo), na qual arte,
religião, mitologia, pensamento especulativo e afectividade inte-
ragem. Amaral termina a sua reflexão sustentando que a superação
da «pobreza antropológica» 373 consiste no reencontro com o próprio
passado histórico e cultural, para viver com paixão o hoje e abrir-se
com esperança no futuro, porque não é possível um crescimento
autêntico a partir da ignorância ou negação de si próprio. E conclui:
«acredito que a Cultura Tradicional Africana pode contribuir para a
formação da nova cultura globalizada com alguns dos valores mais
nobres do seu património cultural: a abertura ao sentido religioso e
transcendente, o sentido de relação e participação comunitária, a
visão global e integral da pessoa humana pluridimensional, o sen-
tido de esperança, para evitar que a nova cultura globalizada seja

371 Ibidem, p. 9.
372 Ibidem, p. 10.
373 É clara a referência à ideia do teólogo da libertação africano, Engelbert Mveng.

Cf. E. MVENG, «Pauperizzazione e liberazione», in R. GIBELLINI, Percorsi di teologia


africana, Bréscia, Queriniana, 1994.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página157

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 157

construída sobre uma visão redutiva, secularizada, individualista e


egoística da pessoa humana» 374.

c) A cultura dos Vathswa (ou Mathswa): Francisco Lerma Martínez

A segunda etnia presente na nossa província é a dos Mathswa,


cujos traços fundamentais são expostos no estudo de outro grande
«sábio», Francisco Lerma Martínez, na sua obra El pueblo Tshwa
de Mozambique: el ciclo vital y los valores culturales (1980-2002) 375.
Francisco Lerma é um missionário espanhol e antropólogo, que tra-
balhou mais de trinta anos em Moçambique, publicou vários livros
de antropologia, foi professor universitário e, recentemente, con-
sagrado bispo da Diocese de Gurué, no norte de Moçambique.
Por muitos anos trabalhou com o povo Mathswa no distrito da
Massinga. Na sua obra, Lerma apresenta o contexto geográfico
e humano, o ciclo vital e a dimensão religiosa do povo Tshwa
(Mathswa ou Vathswa). O povo Tshwa é o mais numeroso da Pro-
víncia de Inhambane, representando mais de metade da população,
ocupando a parte centro-setentrional da província. Dos cerca de um
milhão e duzentos mil mathswa, mais da metade vive na nossa pro-
víncia, sendo que os demais se encontram espalhados pelas Provín-
cias de Maputo, Sofala, nordeste da África do Sul e sudeste do
Zimbabwé 376.
A língua dos Mathswa é o Xithswa, a língua mais falada na
província. É muito aparentada com outras línguas do sul de Mo-
çambique, como o Ci-chopi, Xi-changane; Xi-ronga e Zulu da África
do Sul. Lerma afirma que, durante a revolução socialista, depois da
independência, o primeiro presidente encarava as línguas locais
como desintegradoras da unidade nacional. As Igrejas Metodista e
Católica desempenharam um papel importante na conservação e

374 Ibidem, p. 12.


375 F. LERMA, El pueblo Tshwa de Mozambique: el ciclo vital y los valores culturales (1980-
-2002), Múrcia, Laborum, 2005, 334 pp. Existem outros estudos acerca da cultura tshwa,
de Alípio Siquisse e José Martins Mapera.
376 Cf. Ibidem, pp. 23-44.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página158

158 | MUNTUÍSMO

promoção da língua xithswa por via da produção de gramáticas,


dicionários e textos vários na língua local 377.
Quanto ao panorama religioso, a religião tradicional é praticada
por 16% da população; a Igreja Católica, depois de cerca de 50 anos
de evangelização, conta com 24% da população; a Igreja Metodista,
18%; as Igrejas autónomas (Zione, Velhos Apóstolos e Igreja Luz),
cerca de 34%; o Islão, 2% 378.
Os Tshwa, como demonstram escavações arqueológicas, pin-
turas rupestres e utensílios descobertos, fixaram-se na região muitos
séculos antes da presença árabe e portuguesa. Com a chegada dos
portugueses, criou-se um entreposto comercial em Inhambane. As
imposições feitas pelos portugueses criaram sempre tensões com a
população indígena.
A evangelização sistemática começou apenas em finais de 1800,
graças aos Jesuítas, primeiramente, e aos Franciscanos, mais tarde,
que, partindo de Mongue (fracção de Maxixe), espalharam-se pelo
sul de Moçambique. A partir dos anos ‘40, os Missionários da Con-
solata evangelizaram o norte da Província de Inhambane. O colo-
nialismo desprezava a língua e a cultura local, intervinha na no-
meação dos chefes locais, controlava a produção e a migração, e
discriminava os indígenas, entre assimilados e não assimilados.
Para insurgir-se contra o colonialismo, em 1962, Eduardo Mon-
dlane funda a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), e, a 25
de Setembro de 1964, começa a luta armada pela independência,
que será proclamada a 25 de Junho de 1975. Seguiu-se a contra-
-revolução por parte das forças armadas da oposição (RENAMO),
que culminou com a guerra civil entre 1976 e 1992. Muitos Vathswa
viram-se obrigados a abandonar as suas terras. A cidade de Massin-
ga passou rapidamente de 5000 a 70 000 habitantes. Milhares de pes-
soas sequestradas e massacradas. A 4 de Outubro de 1992, foram fir-
mados os acordos de paz, em Roma, entre a FRELIMO e a RENAMO;

377 Cf. Ibidem, pp. 46-47.


378 Cf. Ibidem, pp. 53-56.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página159

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 159

seguiram-se, finalmente, as eleições democráticas, ganhas, por três


vezes consecutivas, pelo partido FRELIMO 379.
Quanto à organização sociopolítica dos Vathswa, Lerma afirma
que não existe uma «autoridade» para todo o povo, não obstante a
vida pública ser bastante organizada. O povo é formado pela so-
ciedade em pequena escala, reinos compostos por pequenas sedes,
por seu turno subdivididas em linhagens e famílias. Os provérbios
populares (titekatekane) contêm ensinamentos sobre a autoridade 380.
Quanto à organização familiar: a unidade conjugal é formada
pelo Dadani (pai), Mamani (mãe) e Vanana (filhos), que vivem na
Muti (casa). Várias Muti (Mimuti) em relação entre elas, por via de
laços de parentela, constituem uma área matrimonial guiada pelo
mais velho dos chefes das Muti, denominado Hosi ya tinganakana.
Vários Hosi ya tinganakana formam um grupo cujo chefe é o Hosi ya
Tala. Vários Hosi ya Tala formam um reino cujo chefe supremo é o
Hosi ya Ngoma, o rei soberano 381. O rei é o gerente da terra, que
administra em nome da comunidade e a distribui entre as famílias.
Os emigrantes que têm necessidade de uma terra para construir a
sua casa dependem do rei. Para além da função administrativa, o rei
exerce a função judicial, velando pelo respeito das leis. É o juiz su-
premo que julga os casos mais graves. As sentenças vão da expul-
são do território, multas, às ameaças de maldições, etc. 382. Exerce
também uma função económica que consiste em garantir a subsis-
tência económica dos seus súbditos; e a função religiosa como res-
ponsável do culto dos antepassados (Muphahlo) e outros ritos, como
guia espiritual da comunidade: «En el Hosi Ya Ngoma el pueblo se
siente unido por la sangre, por los valores culturales, por el idioma y por la
tierra, experimentando concretamente su identidad» 383.

379 Cf. Ibidem, pp. 57-78.


380 Por exemplo: «A tikuzi timbiri ta tivu a ti tsame utsamu ginwe», traduzido: «Dois
hipopótamos machos não vivem no mesmo lugar», equivalente a dizer que dois chefes
não podem coexistir contemporaneamente, no mesmo espaço.
381 Cf. Ibidem, pp. 97-104.

382 Cf. Ibidem, pp. 105-106.

383 Ibidem, p. 107.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página160

160 | MUNTUÍSMO

Existe o Conselho de Governo, presidido pelo Hosi ya Ngoma e


formado pelos chefes das sedes menores, chefes dos grupos ou li-
nhagens, anciões ou conselheiros (Madota), e emissários ou men-
sageiros do rei. O rei é eleito pelos membros do Conselho entre os
parentes do rei precedente (patrilinear), que gozem de boa saúde e
de boa fama entre a população (conduta moral e qualidade de go-
verno). Esta organização política dos Vathswa conviveu paralela-
mente com a colonial. Houve uma pequena integração, com base na
qual o rei servia de porta-voz da Administração colonial, cobrava os
impostos e controlava a população. Durante os anos da Revolução
(1975-1992), as autoridades tradicionais foram excluídas da vida
social e política, foram perseguidas e passaram a agir em clandes-
tinidade. Como o acordo de paz (1992), foram reavaliadas e in-
tegradas em função do seu papel de coesão social como guardiãs
dos valores da comunidade. Assumiram o nome de autoridade comu-
nitária. Lerma observa justamente que «Sin duda no es fácil combinar
la autoridad tradicional con la estructura de um Estado moderno. Hay que
buscar fórmulas para que la combinación de lo tradicional con lo moderno
sea equilibrada, eficaz y eficiente para el bien cómun de todos. Todo esto im-
plica que se reconozca el papel simbólico que la autoridad tradicional en-
cierra como guardián de la tierra y garante del orden social» 384. Estes
chefes mantiveram unido o povo Thswa ao longo de séculos, através
da relação entre os vivos, com a mãe terra e com o mundo espiritual
dos antepassados.
Na segunda parte da sua obra, Lerma passa a tratar do ciclo vital
com estas palavras, que têm no âmago a definição de pessoa: «La per-
sona (Munhu) se siente profondamente insertada en la madre tierra a través
de los antepasados; por medio de ellos la persona se siente unida al origen de
la vida (Wutomi). Según el mito primordial de la creación, el ser supremo
(Nungungulu), que los VATSHWA reconecem como creador, ha puesto en
la madre tierra el principio de la vida, pues de ella surge la humanidad» 385.

384 Ibidem, p. 116.


385 Ibidem, p. 125.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página161

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 161

Esta vida transmite-se de geração em geração por via dos antepas-


sados, e este evento primordial é recordado em cada rito com o der-
ramamento por terra de uma bebida, que evidencia a comunhão
entre eles. O ciclo vital compreende essencialmente 5 etapas: nasci-
mento, puberdade, matrimónio, enfermidade e morte.
Com o nascimento de um filho se garante o poder e a linhagem.
Os ritos que se cumprem à nascença não são unívocos, pois se
devem às várias influências (políticas e culturais, como indepen-
dência, guerra civil, intercâmbio com as culturas limítrofes: Ndau a
norte, Vatonga ao centro e Chope/changane a sul) e podem variar de
zona para zona. Ultimamente, os postos sanitários locais assistem a
cada vez mais partos. Todavia, muitos partos acontecem ainda em
casa. Antes de dar à luz, a parturiente deve revelar às «anciãs» que
a assistem o nome do pai do nascituro. Se algo não dá certo durante
o parto, se coloca em dúvida a paternidade da criança e se deverá
resolver o problema depois. À nascença ocorrem gritos de júbilo
(Nkulungwane): se se trata de um rapaz, os gritos serão mais fortes,
porque com o seu nascimento se reforça a linhagem paterna. Se se
trata de uma menina, os gritos serão menos fortes, porque algum
dia ela deixará a casa paterna para casar-se. Seguem-se vários ritos
de integração, entre os quais a apresentação à terra, ao fogo, à água,
aos ventos e à lua. Nas culturas orais assume grande importância a
imposição do nome, ou melhor, dos nomes que indicam a comple-
xidade da pessoa. O nome une a pessoa ao mundo dos antepassa-
dos e indica a sua missão na vida 386.
Entre os vários ritos de iniciação, são fundamentais os da passa-
gem de uma idade e condição à outra. A iniciação masculina com-
portava muitos rituais, mas, nos dias que correm, reduz-se apenas
à circuncisão, feita nos centros sanitários. Antigamente celebravam-
-se os ritos de iniciação com a separação de um grupo de rapazes

386 Os filhos nascidos mudos são considerados filhos de incesto e de união proibida;

os filhos nascidos de um adultério são legitimados, cumprindo determinadas pres-


crições. Caso contrário, pertencem aos avós maternos e são considerados filhos de pai
«incógnito». Cf. Ibidem, pp. 138-139.
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162 | MUNTUÍSMO

dos dez aos catorze anos num bosque, no qual deviam ser observa-
dos preceitos, proibições, provas e instruções sob a conduta dos seus
mestres. Após uma semana, ou dois meses, no máximo, retornavam
à comunidade para uma festa, na qual lhes era comunicado o nome
novo. Após a festa, cada família levava o próprio filho para casa 387.
As meninas participam nos ritos de iniciação quando aparecem
as primeiras menstruações. Os ritos são organizados pelas tias pa-
ternas, que submetem as meninas a provas de força e de carácter, e
as instruem sobre a própria cultura e a vida. Posteriormente, as me-
ninas deverão submeter-se a outros ritos, que marcam a passagem à
idade adulta.
Lerma adverte que não se pode reduzir o rito de iniciação à sim-
ples circuncisão ou iniciação sexual. A iniciação é algo de mais com-
plexo: processo psicológico de evolução da personalidade que
marca a passagem da adolescência à idade adulta; processo social
de inserção do jovem na sociedade; processo de introdução à visão
do mundo da própria comunidade; processo pedagógico de exercí-
cio dos valores da própria cultura; processo religioso de contacto
com a realidade espiritual e rituais do próprio povo; e enfim, pro-
cesso de iniciação e inserção global na vida da sociedade.
Quanto ao matrimónio, não se trata apenas de um contrato entre
um homem e uma mulher, mas entre duas famílias. É um matrimónio
exógamo e patrilocal. Normalmente monogâmico, embora seja admi-
tida a poligamia. A residência é junto da casa paterna. Os progeni-
tores não podem impor as suas decisões sobre o matrimónio de seus
filhos, pois são os tios paternos (de ambos os esposos) quem tem voz
a esse respeito. De facto, foram eles que cuidaram da sua educação
desde a infância. Na base do processo de contratação está o lowolo
(dote) que regula os princípios, normas e ritos da nova família 388. O

387Cf. Ibidem, pp. 143-158.


388 Lerma apresenta aqui o debate acerca da necessidade de manter ou abolir o
lowolo. Em particular apresenta as teses a favor do lowolo de ADRIANO LANGA, O Lobolo e
o seu significado na Tradição e Hoje: Acta da 5.ª Semana Teológica, Matrimónio, Beira, 2000,
pp. 131-170.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página163

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 163

matrimónio é celebrado com um banquete e uma festa que pode


durar até três dias.
Em caso de esterilidade pode-se recorrer à poligamia. As outras
esposas deverão ser submissas à primeira esposa. Em casos de
adultério, conflitos ou esterilidade, recorre-se ao divórcio, que se
torna efectivo com a restituição do lowolo. Existe também uma lei
sobre o levirato.
Lerma recorda que nas últimas décadas estas instituições sofre-
ram ataques dramáticos, devido às grandes transformações sociais e
à guerra. A família sofreu bastante, muitos se refugiaram em outras
cidades, principalmente Maxixe, Inhambane e Maputo. Com os acor-
dos de paz, muitos retornaram às suas terras e reconstruíram as suas
casas. Os elos familiares começaram a recompor-se 389.
Uma etapa fundamental do ciclo vital diz respeito à doença e às
curas. As gerações passadas tinham as curas tradicionais como
único remédio contra as doenças. Lerma afirma que para a socie-
dade tshwa a doença tem sempre uma causa que deve ser des-
coberta. Actualmente recorre-se sempre mais à medicina moderna,
nos vários centros sanitários, onde existem, todavia, pouquíssimos
médicos e muitos funcionários administrativos.
Os Vathswa classificam as doenças em: naturais; provenientes
dos antepassados; causadas pelo comportamento do próprio doen-
te; causadas pelos outros (inveja, ódio, etc.). Quem deverá descobrir
a causa da doença é o Nyatihlolo, uma pessoa dotada de qualidades
psicológicas, morais e místicas. Indica as causas da morte, os ritos
de reconciliação com os mortos e as penas ou indemnizações reque-
ridas aos culpados.
O especialista da cura é o Nyanga (curandeiro), que faz as suas
cerimónias com muita ênfase para criar um intenso clima místico.
Outro especialista dos ritos mágicos é o Noyi (mago ou feiticeiro),
que causa doenças e outras adversidades e é muito temido pela
comunidade.

389 Cf. Ibidem, pp. 175-195


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página164

164 | MUNTUÍSMO

Normalmente, os ritos de cura acontecem de noite, perto do


fogo, com o doente circundado por parentes e diante do curandeiro.
Dançarinas e tocadores de tambores criam um clima espiritual
muito intenso, enquanto se invocam os antepassados. Com a cauda
de um animal na mão direita, o curandeiro opera os seus ritos de cura.
No fim, agradece-se ao curandeiro com dons e dinheiro e cortam-se os
cabelos de quem foi curado, reintegrando-o na sociedade 390.
A última etapa do ciclo vital é a morte. Os Vatshwa têm grande
consideração pela velhice e consideram-na uma meta almejada por
todos, porque é tempo da plenitude, da memória, da transmissão
do património cultural, dos conhecimentos e da experiência. Quan-
do um indivíduo morre em idade avançada, com muita descendên-
cia, na sua casa, circundado pela família, com uma boa reputação
económica e social, a morte é considerada boa. Quando estas con-
dições não se verificam, a morte é considerada uma desventura. Se
o ancião morre infeliz, a sua morte é causa de males sem fim, tor-
nando-se necessário um sacrifício de expiação.
A família inteira deve participar do funeral. A comunicação fre-
quentemente acontece com o toque de tambores. O corpo é sepul-
tado juntamente com objectos do defunto, e na fossa são jogados
perfumes e pó de talco, depois todos os presentes colaboram para
deitar a terra na fossa até cobri-la. Por fim, procede-se a um peque-
no elogio fúnebre. Depois todos se dirigem à casa do defunto, la-
vam-se as mãos num recipiente de água que contém algumas
poções e, finalmente, serve-se uma refeição. Os parentes observam
um período de luto de um ano. Oito dias após a morte, celebra-se a
cerimónia de deposição das flores sobre o túmulo. Outras cerimó-
nias ocorrem depois de 30 dias, três ou seis meses, um ano, con-
forme os costumes locais.
Por fim, na terceira parte, Lerma trata da dimensão religiosa.
Adverte de início a sua intenção de marginalizar a terminologia hu-
milhante, frequentemente usada na descrição da Religião Tradicio-

390 Cf. Ibidem, pp. 197-223.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página165

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 165

nal Africana. As definições de animismo, feiticismo, totemismo, an-


cestralismo e magia baseiam-se em dados mal colhidos. Lerma afir-
ma: «El fenómeno religioso como es vivido tradicionalmente por los
VATHSWA es la religion natural y tradicional, que fue conservada y
trasmitida oralmente por generaciones sucesivas hasta nuestros días» 391. A
definição mais partilhada é Religião Tradicional Africana, que contém
as seguintes verdades: crença num Ser Supremo, criador e se-
nhor 392; nos antepassados, seus intermediários; em outros seres es-
pirituais. Prevê igualmente normas de comportamento ético e proi-
bições. Lerma afirma que, na base da religião tradicional tshwa,
encontra-se uma visão vitalista, segundo qual o universo é repleto
de forças vitais que mantêm a sua consistência e dinamismo 393. A
religião tshwa abraça todos os aspectos da vida e não prevê sepa-
ração entre sagrado e profano. O espaço da prática religiosa é a fa-
mília, e todos os parentes têm a obrigação de participar.
Os antepassados são a pedra angular da religiosidade tshwa, por
via dos quais os Vatshwa entram directamente em contacto com
Deus. É necessário, antes de mais, consultar o adivinho (Nyatihlolo)
para conhecer as modalidades do sacrifício e proceder a todos os
preparativos, que podem requerer até muitos dias e dinheiro. São
sacrificados animais cuja carne é dada em parte aos antepassados,
cabendo a outra parte ao celebrante do rito e aos participantes da
cerimónia. Tocam-se tambores e outros instrumentos, começam as
danças e a festa prolonga-se pela noite dentro, até à manhã do dia
seguinte. O sacrifício tradicional dá-se na passagem dos ciclos
vitais, por motivos de viagem, nas colheitas ou quando os antepas-
sados o requerem por via de uma comunicação mística 394.
A concepção religiosa dos Vathswa responde aos interrogativos

391 Ibidem, p. 244.


392 Lerma, na sua obra Religiões Africanas Hoje. Introdução ao Estudo das Religiões Tra-
dicionais em Moçambique, Maputo, Paulinas, 2009, nas pp. 121-130, mostra como em
todas as etnias de Moçambique existe uma fé monoteísta.
393 Cf. Ibidem, p. 245.

394 Cf. Ibidem, pp. 247-258.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página166

166 | MUNTUÍSMO

fundamentais e universais acerca da origem, sentido e fim da vida,


e sobreviveu a todas as provas da história, desde o tráfico dos
negros, o domínio colonial, as condenações da parte do Islão e do
Cristianismo, às perseguições por parte da revolução marxista-
-leninista e da actual globalização.
A criação pertence apenas a Nungungulu (Deus), o único ser tido
por Muvangi (criador). Ele é igualmente pai (Dadani) e omnipotente
(Wa Ntamu Wontlhe); é o Xikwembu (espírito) superior a todos os
Swikembu (espíritos bons ou maus), Tinguluve (espíritos dos ante-
passados) e qualquer Moya, Muhefemulo (espírito vital, alma). Deus
criou os animais, depois, o homem e a mulher, sobre os quais infun-
diu o Moya (espírito vital), tiveram filhos e multiplicaram-se. O pri-
meiro homem foi aquele que, diferentemente dos animas, construiu
a própria casa. Por um desacordo entre o homem e a mulher 395,
ambos perderam os seus poderes e começaram a ter necessidade de
intermediários para relacionarem-se com Deus. Muitos fenómenos
naturais são considerados teofanias, sem cair no animismo, porque
a nenhum destes fenómenos se atribui uma divindade. A Deus
deve-se obediência, respeito, fé, temor e amor.
O nome exclusivo de Deus é Nungungulu, embora existam outros
nomes tais como Xikwembu (espírito supremo), Amatilo (que habita
os céus), Muvangi (criador), Hosi (rei, chefe e senhor), Nwinyi
(patrão, dono), entre outros 396. Existem regras morais que regulam o
comportamento, a vida pública ou política e a vida sexual. Lerma
indica a linha vital que prevê: Deus, antepassados, outros defuntos,
outros espíritos, todas as pessoas vivas, a natureza.
Para que um defunto se torne antepassado é necessário tomar
em consideração três factores: linha biológica ou parental; linha
ética e de comportamento; posição social ocupada antes da morte.
Na visão global da religião dos Vathswa, a pessoa é um ser em
relação horizontal e vertical. Desta relação nasce o sentido comu-

395 Devido às mortes do seu cão e do seu gato.


396 Ver a lista em Ibidem, p. 269.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página167

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 167

nitário da vida. Nada existe senão em relação vital com os outros, a


vida não se desenvolve sem esta relação, a geração passada e pre-
sente formam uma só comunidade. E Lerma cita Mercy Amba
Oduye: «Sólo nos conocemos verdaderamente a nostro mismos, siendo
fieles a nuestra comunidad pasada y presente. Los éxitos y los fracasos per-
sonales tienen poca importancia» 397.
Em conclusão, a religião dos TSHWA é um fundamento da cul-
tura dos Vathswa.

d) A cultura dos Vacopi (Changana/Chope): Adriano Langa

Fazemos agora alusão à terceira etnia presente na nossa provín-


cia, a dos Vacopi. Para este estudo baseamo-nos na obra de outro
grande «sábio»: Adriano Langa: Questões cristãs à religião tradicional
africana – Moçambique 398, e em vários encontros mantidos com o
autor, quer por motivos académicos (por via de conferências havi-
das na Universidade Pedagógica Sagrada Família – Maxixe), quer
por motivos pastorais, pois Adriano Langa é também o bispo da
Diocese de Inhambane.
A obra da qual nos ocuparemos é um estudo acerca da cultura
changana/chope, uma etnia que se encontra ao sul da província de
Inhambane e se estende até ao rio Limpopo.
Langa faz um estudo da Religião Tradicional (RT) com o intento
de favorecer um diálogo com a religião cristã, seguindo a clássica
metodologia das três mediações: socioanalítica, hermenêutica e
prática.
Inicia com a descrição do fenómeno da RT no contexto chan-
gana/chope, partindo da ideia de Deus, os sinais da sua presença,
os seus nomes (indica sete, embora não todos adequados, como por
exemplo, Hosi); os espíritos, comparando o conceito ocidental dua-
lista ao africano. Lamenta a falta de uma filosofia sobre o homem

397Ibidem, pp. 277-278.


398A. LANGA, Questões Cristãs à Religião Tradicional Africana – Moçambique, Braga,
Editorial Franciscana, 1992.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página168

168 | MUNTUÍSMO

africano, sendo por isso difícil definir o espírito da RT. Existem


apenas filosofias acerca dos africanos negros, mas não feitas pelos
negros 399! Os espíritos dividem-se em xikwembu (espírito), nguluve
(antepassado que se manifesta dentro da família) e xigono (antepas-
sado que se manifesta fora da família). Langa é muito crítico no con-
fronto com Junod, pois o último faz passar por factos o que são sim-
plesmente hipóteses levantadas por um etnólogo 400.
A categoria mais importante na RT é a dos tinguluve – de modo
que muitos chamaram a RT de «culto dos antepassados» –, que
Langa define com estas palavras: «Os tinguluve são ascendentes fa-
miliares, clânicos ou tribais, que desempenham, entre outras, a
função protectora dos seus descendentes vivos... e esperam dos seus
descendentes a lembrança, através da oferta de sacrifícios em sua
honra e memória. Dos vivos esperam também receber o sustento:
alimento, casa, vestuário, etc.» 401. Todos os mortos são tinguluve?
Para Junod, a resposta é sim 402.
Entretanto, as crianças não o são na verdade, porque não podem
exigir culto para si próprias.
Outro elemento importante da RT é o Noyi/Inloyi («feiticeiro» ou
bruxo), alguém que desde a nascença (algo de ontológico) pode rea-
lizar acções maléficas. É um poder transmitido por via da mãe. O
seu objectivo é prejudicar outrem, pois é movido pelo ódio e pela
inveja. Pode matar outras pessoas e escravizar as suas almas, pas-
sando a ser chamadas xigono/tchigono. Estes espíritos executam
todos os planos dos Noyi. Quando um xigono é capturado pelo exor-

399 Cf. Ibidem, p. 21.


400 Cf. Ibidem, p. 53. Por exemplo, quanto às possessões de jovens iniciados, Junod mis-
turou as suas observações com as interpretações relativas a outras realidades africanas.
401 Cf. Ibidem, pp. 56-57. O autor tenta uma explicação da realização entre os dois sig-

nificados de nguluve: antepassado e porco. Tal como o porco é um animal de fácil


domesticação, pouco exigente, e porque vive em áreas abertas, exposto às intempéries,
o antepassado é igualmente pouco exigente, permanece preso numa árvore e exposto às
intempéries. Outros nomes que figuram são: vakhale (mestre de sapiência) e vakokwani
(avós).
402 Cf. Ibidem, pp. 58-59.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página169

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 169

cista (Mufembi), denuncia imediatamente o nome do seu mandante.


Para contrastar a intervenção (feita a distância) do Noyi é necessária
uma intervenção levada a cabo por um n’anga/nyanga, através de
uma cerimónia de exorcismo.
Entre os cultos mais importantes conta-se o Mhamba (sacrifício):
os cultos não são nacionais, mas clânicos, existindo até famílias que
não praticam. Através deste rito, os descendentes exprimem o seu
amor e memória filiais 403. O sacrifício é presidido pelo chefe clânico
ou pelo nyanga/nianga.
Outro rito igualmente importante é o Swikwembu ou Tingoma
(por vezes confundido com o rito dos tinguluve). Junod denomina
este rito como «toque dos tambores»: com um «barulho infernal»
obriga-se a revelação do espírito que vem expulso do possuído.
Outra figura importante é a do adivinho (Muihalhuvi).
Em conclusão, Langa apresenta a RT como um sistema coerente
de referência que corresponde a uma determinada cosmovisão do
Homem changana/chopi: uma unidade cósmica e um sistema
dinâmico.
Qual será o futuro da RT? Langa responde que se trata de um
problema que diz respeito a todas as religiões, e não apenas à afri-
cana: «O futuro perspectiva uma solução inevitável. Isso não deve
significar um fatalismo, mas sim um engajamento de todos numa
busca de síntese entre aquilo que é cultural, e somos tradicionalmen-
te, e aquilo que desejamos ser numa cultura técnico-científica» 404.
Na segunda mediação (hermenêutica), Langa tenta uma leitura
da RT através do Evangelho e das ciências humanas. A religião
cristã apresenta quatro objecções à RT: a figura de Deus é deficitária,
não vem caracterizada claramente; os intermediários (tinguluve)
tornam-se seres quase divinos, tomando o lugar da divindade que
devem mediar 405. Mas Langa faz notar justamente que este desvio

403 Cf. Ibidem, p. 78.


404 Ibidem, p. 135.
405 Ibidem, p. 149.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página170

170 | MUNTUÍSMO

sucede também em outras religiões; quanto à pessoa humana na RT,


não existem pessimismos nem dualismos: continua aberta a questão
da liberdade do Homem africano diante da RT; por fim, acusa-se a
RT de ser apenas comunitária, em detrimento do indivíduo, mas
Langa compara o culto comunitário da RT às Comunidades Eclesiais
de Base, que tiveram muita prosperidade na América Latina.
Para a explicação e compreensão da RT, Langa recorre às ciências
humanas e, particularmente, à parapsicologia, porque em sua opi-
nião, «até o presente, só ela foi capaz de descer assim tão fundo para
auscultar o mundo que as ciências clássicas não só não foram capa-
zes de explorar suficientemente, como também tentaram e tentam
ainda justificar o seu “snobismo” negando a sua existência» 406.
Langa recorre à parapsicologia porque se presta a explicar, entre
os factores basilares da RT: 1) a possibilidade de comunicar entre os
vivos e os mortos, justificando a possibilidade de uma comunicação
misteriosa entre duas pessoas (sugestão telepática). Para Langa con-
tinuam justificados os possessos, aqueles que entram em transe,
transfigurações, aparições, etc.; 2) a existência ou não de poderes
ocultos: a parapsicologia admite a «telargia», ou seja, a transforma-
ção da energia física, temporal, como a telecinese e a fantasmacine-
se; 3) o adivinho: a parapsicologia admite a percepção das sensações
(hiperestesia) e as percepções extra-sensoriais, como a clarividência
e a telepatia. Admite a existência dos médiuns, pessoas dotadas de
percepções particulares que as tornam mediadoras entre duas pes-
soas. E Langa conclui afirmando que, «entretanto, em todas estas di-
mensões a RT tem muito a dizer e [a] ensinar ao Cristianismo, so-
bretudo na vivência, no concreto» 407; e, finalmente, a parapsicologia
demonstra que na RT existe algo de verdadeiro, e isto abre espaço à
pesquisa.
Na terceira mediação, a prática, Langa tenta esboçar uma teolo-
gia da inculturação. O ponto de partida é que todas as culturas hu-

406 Ibidem, p. 147.


407 Ibidem, p. 180.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página171

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 171

manas são portadoras de uma mensagem divina, e isso é ine-


gável 408. O problema central diz respeito à relação entre a cultura e
a mensagem cristã, por isso é necessário fazer uma discriminação.
Todavia, Langa critica tal prática pelo modo em que foi operada por
parte de muitos missionários, pois gerou, na maioria dos casos,
resultados desastrosos. No passado, a Santa Sé interveio frequente-
mente para corrigir certas descrições muito pessimistas feitas pelos
missionários. Langa exorta certos missionários a mudarem de
profissão, ao invés de permanecerem nas suas missões, perdendo
tempo e saúde. Quanto à «conversão» dos africanos ao Cristia-
nismo, esta deverá ocorrer sem renunciar à própria personalidade
mais profunda, «onde repousa o seu próprio ser que não pode ser
alienado» 409. A conversão deve ser «consciente», dito diversamente,
o indivíduo deve saber dizer conscientemente adeus aos próprios
«ídolos» para não ter remorsos no futuro.
A evangelização deve conhecer a RT, de modo a que possa expor
a mensagem cristã com toda a clareza, e deixar que se realize o diál-
ogo entre a pessoa e o Evangelho. Tudo deve ocorrer num contexto
comunitário.
A inculturação autêntica deve ser feita em profundidade, e não
limitar-se à solução dos problemas quotidianos. Os passos a seguir
são: primeiramente, redescobrir a cultura tradicional, porque para
inculturar o Evangelho é necessário que esta exista e tenha cons-
ciência de si própria; e quem deve redescobrir a cultura moçambi-
cana são os próprios moçambicanos 410. Esta reconstrução não deve
significar um «regresso» ao passado, «ressuscitar os mortos», «pu-
rismo», mas reencontrar o verdadeiro sentido e a história de muitos
gestos e fazer uma síntese entre passado e presente. Será o próprio

408 Cf. Ibidem, p. 243.


409 Ibidem, p. 213
410 Depois da independência, iniciou-se no país uma «reconstrução» cultural. To-

davia, a este propósito, Severino Ngoenha afirma que «a independência não nos recon-
ciliou com as culturas tradicionais», in S. NGOENHA, Das Independências às Liberdades,
Maputo, Ed. Paulistas, 1993, p. 112.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página172

172 | MUNTUÍSMO

povo a levar a cabo esta operação, ajudado por «especialistas». Por


fim, Langa recorda que a teologia é a fé que se interroga dentro de
uma cultura, e não a tradução em língua local de reflexões feitas por
outros. Existirá uma teologia africana quando se utilizar a simbolo-
gia, imagens e conceitos religiosos africanos para pensar a fé em
Jesus Cristo, assim como fez, a seu tempo, o Ocidente. Langa la-
menta que «não te[nhamos] orgulho em podermos falar de uma
teologia africana em Moçambique» 411.
E conclui que «a pedra de toque» para analisar a cultura chan-
gana/chope é a pessoa humana plenamente realizada 412. E o Evangelho
liberta a pessoa humana e a faz crescer mais 413.

e) A metodologia da Sage Philosophy

No trabalho de entrevista aos «sábios», recorremos à metodolo-


gia da filosofia africana proposta por Henry Odera Oruka, na sua
famosa obra Sage Philosophy. Indigenous Thinkers and Modern Debate
on African Philosophy (Filosofia da Sageza. Pensadores Indígenas e
Debate Moderno sobre a Filosofia Africana) 414.
Neste livro, Oruka propõe-se legitimar um método da filosofia
africana que não siga os cânones da filosofia clássica europeia, mas
parta da vida e do pensamento dos «sábios», depositários da sa-
piência e, por conseguinte, da filosofia africana. Limitamo-nos a
expor esta metodologia e a aplicá-la na pesquisa que levamos a cabo
com cerca de duzentos «sábios» entrevistados, que vivem no ter-
ritório da Maxixe, Província de Inhambane, sem entrar, pelo menos

411 Ibidem, p. 231.


412 Cf. Ibidem, p. 242.
413 Uma observação crítica que podemos fazer ao texto de Langa é que, para legiti-

mar alguns aspectos da tradição africana, o autor tenha recorrido a uma pseudo-
-ciência, como é o caso da parapsicologia. A tradição africana não deve eximir-se da
crítica racional. Se uma tradição é verdadeira, a razão não fará mais do que reconhecer
o seu valor.
414 H. O. ORUKA, Sage Philosophy. Indigenous Thinkers and Modern Debate on African

Philosophy, Leiden, E. J. Brill, 1990, p. 278.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página173

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 173

por ora, no debate a respeito do fundamento e legitimidade deste


procedimento.
Simultaneamente, cientes das críticas dos filósofos africanos aos
etnofilósofos, procuraremos evitar os erros do «unanimismo» e do
«anti-oralismo». O primeiro, amplamente demonstrado por Houn-
tondji na sua crítica aos etnofilósofos, consiste em generalizar as in-
formações recolhidas como se todos os membros de uma determi-
nada etnia pensassem do mesmo modo, sem nenhuma divergência
ou particularidade. Procuraremos evitar afirmações do tipo: «Os Va-
tonga pensam que…», ou «Na cultura Mathswa o conceito de
pessoa é…», etc. Outro erro, sublinhado por Castiano, consiste em
considerar os sábios que produziram o nosso conhecimento sobre
determinados temas como simples «informantes anónimos», sem
identificá-los e caracterizá-los na sua particularidade. Para evitar o
último perigo, todos os sábios com os quais entramos em contacto
foram identificados pelo nome completo, tendo igualmente apre-
sentado em apêndice os nomes de todos os estudantes universitá-
rios que nos ajudaram na recolha dos dados. O terceiro erro, que de-
finimos «anti-oralismo», é o de considerar filosófico apenas o texto
escrito, sem dar valor algum à oralidade ou aos «textos orais». Este
é um preconceito particularmente combatido por Oruka.
Antes de entrar no pensamento africano, adverte Oruka, é neces-
sário operar uma desconstrução, porque o modo africano de filoso-
far não corresponde ao grego ou europeu. Não é um pensamento
nascido sobre a mesa de trabalho, mas procede da experiência con-
creta do Homem com a realidade; não é apenas um pensamento ra-
cionalista, mas algo ligado à sageza e à pesquisa da verdade; não é
um pensamento impregnado de lógica, mas de intuição; não é um
pensamento agnóstico, mas vinculado à religião. Oruka apresenta
três correntes ou escolas de pensamento na filosofia africana. A es-
cola etnológica: a diferença cultural entre o Ocidente e a África é ine-
gável, enquanto o primeiro segue parâmetros científicos, a segunda
contempla interacções de forças, espíritos, etc. O pensamento não é
algo ligado apenas a um grupo social, mas a toda uma sociedade, à
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página174

174 | MUNTUÍSMO

sageza dos antigos. A abstracção, a crítica, são formas de pensar


estranhas ao pensamento africano, onde a mente é uma extensão da
totalidade do corpo, onde não existe distinção entre cogito e sum. A
escola racionalista, que se recusa a aceitar que na filosofia africana
haja coerência de pensamento científico e metodológico: embora a
filosofia ocidental seja essencialmente escrita, este não é um factor
fundamental para fazer filosofia. Por fim, a escola histórica, cuja
preocupação é clarificar o que não é filosofia africana.
Oruka distingue quatro trends [tendências] da filosofia africana:
1) Professional philosophical texts; 2) nationalist-ideological theories;
3) ethnographical studies; 4) Sage Philosophy. Esta última «consists of the
expressed thoughts of wise men and women in any given community and
is a way of thinking and explaining the world that fluctuates between po-
pular wisdom and didactic wisdom, and expounded wisdom and a ra-
tional thought of some given individuals within a community» 415.
Oruka indica a metodologia de distinção entre wisdom and non-
-wisdom (sabedoria e não-sabedoria), porque «certain statements are
wise sayings while others are common-place assertions» 416. Distingue
três tipos de afirmações, declarações: i) sábias (wise statements);
ii) comuns (commonplace statements); iii) tolas (foolish statements). É
inútil acrescentar que nos interessam apenas as asserções do pri-
meiro tipo, visto as demais serem non-wisdom.
É importante considerar o contexto. Uma afirmação é sábia
quando quem a propõe é capaz de dar as razões da sua afirmação:
distingue-se deste modo a Philosophic-Sage da Folk-Sage (sabedoria
filosófica da sabedoria folclórica).
É importante fazer muitas entrevistas: se para a antropologia isto

415 «1) Textos filosóficos profissionais; 2) teorias nacionalisto-ideológicas; 3) estudos

etnográficos; 4) Filosofia da Sageza.» Esta última «consiste em pensamentos expressos


de homens e mulheres sábios em qualquer comunidade, e é uma maneira de pensar e
explicar o mundo que oscila entre a sabedoria popular e sabedoria didáctica, e sabedo-
ria exposta e pensamento racional de alguns indivíduos dentro de uma comunidade»
[T. do A.], Ibidem, p. 28.
416 «Certas declarações são sábias, enquanto outras são afirmações comuns» [T. do

A.], Ibidem, p. 29.


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PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 175

é necessário para chegar a uma concepção comum ou a um con-


senso, para a sage philosophy permite ver as diferentes concepções e
suscitar o diálogo dentro da comunidade.
Muitos sábios são capazes de expor as suas crenças e práticas
internas à comunidade dando uma interpretação crítica. O objectivo
da pesquisa é encontrar as soluções dos problemas ou revelar as ex-
plicações encontradas pelo sábio ou pelo grupo. A metodologia da
sage-philosophy deverá ser capaz de oferecer-nos uma visão totali-
zante da estrutura de uma crença da comunidade.
O investigador tem um papel fundamental e, como um maiêuta,
deve provocar o sábio informante: «The interviewer is to help the sage
give birth to his full views on the subject under consideration» 417.
Por fim, Oruka convida a escolher preferivelmente sábios «analfa-
betos», por não terem sido «influenciados» pela educação colonial.
Em todo o caso, afirma que «Wisdom is not a property of the illiterate
societies. Is a human quality found in any form of society» 418.
O livro de Oruka continua apresentando várias entrevistas reali-
zadas com vários sábios sobre diversos temas.
Conforme adiantámos, limitamo-nos a aplicar a metodologia
proposta por Oruka (assim como a de Alexis Kagame, em Filosofia
bantu comparada) sem colocar em questão a sua legitimidade 419.
Seleccionamos duzentas pessoas consideradas «sábias» da parte
dos membros de várias comunidades, ou pelo menos consideradas

417 «O entrevistador ajuda o sábio a dar à luz os seus pontos de vista completos sobre

o assunto em causa» [T. do A.], Ibidem, p. 31.


418 «A sabedoria não é uma propriedade das sociedades sem escrita. É uma qualidade

humana encontrada em qualquer forma de sociedade» [T. do A.], Ibidem, p. 32. Oruka re-
conhece que existem sábios que receberam uma educação moderna, como Julius Nyerere,
ou Mahatma Gandhi, na India. A maior parte dos sábios entrevistados recebeu uma edu-
cação «moderna». Ademais, nos dias de hoje, são as pessoas mais influentes no seio das
comunidades. As autoridades «analfabetas» são cada vez mais reduzidas e prevalente-
mente presentes nas zonas rurais, onde o nível de instrução é relativamente baixo.
419 Para aprofundar o debate acerca deste tema Cf. B. H ALLEN , A Short History of

African Philosophy, Bloomington, 2002, pp. 50-55; K. M. KALUMBA, «Sage Philosophy: Its
Methodology, Results, Significance and Future», in K. WIREDU, A Companion…, o.c.,
pp. 274-281.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página176

176 | MUNTUÍSMO

pessoas significativas e que desenvolvem um papel relevante no


seio da comunidade. Muitas delas são professores em escolas pri-
márias ou secundárias. Maioritariamente, as entrevistas deram-se
nas línguas locais. Na nossa cidade e território circunstante falam-
-se duas línguas locais (para além do português, língua oficial), pois
para além da etnia dos Vatonga, falante da língua Guitonga, duran-
te a guerra civil assistiu-se a uma grande imigração de membros da
etnia mathswa, falantes da língua Xitswa. Existe ainda uma mino-
ria de pessoas da etnia vacopi, falante da língua Chopi (ou Copi). O
afluxo dos Mathswa verificou-se, sobretudo na zona urbana, enquan-
to a etnia vatonga continua prevalentemente nas zonas rurais 420.

Compêndio das entrevistas com duzentos sábios


dos povos Vatonga, Vathswa e Vacopi

No prosseguimento da nossa pesquisa sobre a ideia de pessoa


nas culturas vatonga e mathswa e vacopi, apresentamos de segui-
da, como já adiantado, a metodologia sugerida e utilizada por Ale-
xis Kagame, Odera Oruka e, também, por Amaral Bernardo Amaral.
Como indica Oruka, os «sábios» são homens e mulheres signi-
ficativos no seio da comunidade, muito respeitados, cujos nomes
são apresentados abaixo, como fez Kagame e segundo indicam
Oruka e Castiano. As profissões que estes sábios exercem são diver-
sificadas: professores; líderes religiosos e comunitários; médicos
tradicionais; anciãos conselheiros; artesãos; etc. Todas as entrevistas
foram registadas, transcritas em português e arquivadas juntamente
com a fotografia do entrevistado e a assinatura.
Cada entrevistado foi identificado pelo nome completo, lugar e
data de nascimento, etnia, referência aos estudos realizados e à edu-

420 No que toca às nossas celebrações eucarísticas: na cidade, para além do portu-
guês, as leituras são feitas também em gitonga e em xitswa, enquanto nas comunidades
periféricas, celebramos a Eucaristia exclusivamente em língua gitonga.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página177

PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 177

cação recebida, situação familiar (estado civil, número de filhos, ou


de esposas, ou maridos, etc.), profissão ou papel que desenvolve no
seio da comunidade e a religião que professa. Cada entrevista con-
siste num diálogo (palabre) na língua local, sobre quatro temas par-
ticulares, e em relação entre eles: as ideias de pessoa, comunidade,
Deus e educação. Ao longo da nossa exposição, prestaremos
atenção particular à ideia de pessoa.

É surpreendente notar a semelhança da palavra pessoa nas várias


línguas bantu: o munthu, precedentemente descrito, é denominado
muthu na língua gitonga, munhu na língua xithswa e im’ntu ou in’thu
na terceira língua da Província de Inhambane, a língua chope, fa-
lada pelo povo Vacopi. Muitos vacopi encontram-se na cidade de
Maxixe por motivos de estudo e de trabalho, e representam a ter-
ceira etnia mais numerosa, depois dos Vatonga e Mathswa.
Das entrevistas resulta que o requisito comum para ser uma
pessoa é a posse de qualidades e valores aceites pela sociedade.
Caso contrário, tem-se apenas um indivíduo e não uma pessoa 421. O
que torna uma pessoa tal não é uma qualidade em si, mas um con-
junto de qualidades reconhecidas, ligadas à comunidade. De facto, a
condição primordial para que se considere pessoa é a convivência
com os semelhantes e o respeito das normas de convivência social.
Um ser é pessoa graças às suas acções: se forem acções boas, diz-se
que «este é verdadeiramente uma pessoa» 422. Uma pessoa é tal se
tem plena consciência dos próprios actos 423.
Um indivíduo não é pessoa (oyu khandri muthu) quando não age
segundo a razão 424. Embora a opinião comum encare o ser pessoa

421 Cf. Entrevistado Pitorane Matavela, n.º 163 da lista dos entrevistados. Doravante

os entrevistados serão citados apenas pelo nome em itálico e pelo número correspon-
dente na lista.
422 As qualidades mais recorrentes entre os entrevistados são: respeito, honestidade,

simpatia, saber saudar e relacionar-se bem com os outros.


423 Cf. Augusto Chelene, n.º 34.

424 Cf. Agostinho Jossua, n.º 8.


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178 | MUNTUÍSMO

ligado às próprias acções e ao reconhecimento da comunidade 425,


há quem considere que para ser uma pessoa basta ter nascido e per-
tencer à espécie humana, e entre as qualidades requeridas basta res-
pirar e ter vida, independentemente das acções e comportamento
em relação aos outros, de modo que um louco que ignora as leis
sociais é igualmente pessoa 426. Podemos contudo considerar que
esta opinião, embora interessante, resta isolada, enquanto, como
veremos, a comunidade tem um papel fundamental na definição de
uma pessoa como tal.
Outro aspecto importante na definição da pessoa é a liberdade e
vontade. À pergunta «a pessoa é um ser livre ou determinado por
algo/alguém?», responde-se em modo divergente. Há quem con-
sidere «que a pessoa é livre, não é determinada por ninguém e por
nada. É um ser vivente existente na terra, talvez a única coisa que a
pode determinar seja a divindade, mas mesmo assim a divindade
não tem dever de cobrar nada, porque a vida é dessa pessoa» 427.
Liberdade absoluta, determinada por ninguém, nem mesmo Deus.
Há, entretanto, quem afirme o contrário, ou seja, «que a pessoa não
é livre, é dependente porque não pode fazer apenas o que quer, mas
depende de outras pessoas, de um grupo de indivíduos, que traça
normas morais de convivência e que devem ser consideradas, caso
contrário o indivíduo não é considerado pessoa, mas é guitandra
valayi, não educável» 428. Em síntese, uma pessoa dentro de uma so-
ciedade não é completamente livre, mas é-o dentro de certos limi-
tes. Trata-se, então, de liberdade dentro de parâmetros preestabele-
cidos 429. Uma liberdade conduzida por uma força inteligente,
porque é a inteligência que guia o caminho da vida da pessoa 430.

425 Podemos sintetizar a opinião mais difundida nas palavras concisas de João Cons-

tantino: «Pessoa é um conjunto de qualidades e valores aceitáveis na sociedade e o con-


trário disso seria apenas indivíduo.»
426 Cf. Teixeira Carlos, n.º 191.

427 Cf. José João Maguirimussa, n.º 109.

428 Cf. Lourenço da Silva, n.º 118.

429 Cf. Jeremias Julião Macuacua, n.º 92.

430 Cf. José Dinganhane Chambela, n.º 107.


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PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 179

Emerge claramente que a liberdade pessoal é «condicionada»


por regras sociais que determinam as condições de possibilidade da
liberdade.
A definição que se pode traçar destas entrevistas é de pessoa
como um ser social. Uma pessoa é, por natureza, um ser social, e não
seria pessoa sem a existência do outro. O outro torna o indivíduo
pessoa: «Um indivíduo não é pessoa sozinho, porque este é parte in-
tegrante da comunidade, e sendo um ser social deve saber conviver
com os outros» 431. Uma pessoa é tal na medida em que sabe en-
volver-se em actividades sociais importantes para a comunidade,
como são os casos de participar aos funerais, às reuniões da comu-
nidade e aos ritos religiosos 432. Viver em sociedade é essencial para
ser pessoa: quem vive sozinho é mal visto ou considerado um
doente, porque até os loucos buscam companhia 433. Todos têm
necessidade dos outros. Até o morto, para ser sepultado, precisa dos
outros. A socialização começa na família: para a tradição africana,
quem não tem família não é alguém, não pode ser auto-suficiente,
porque ninguém nasce por si próprio e ninguém tem o direito de
isolar-se dos outros.
Os nossos entrevistados foram interrogados também sobre a
relação entre ser pessoa e a fé em Deus. Há quem argumente que
antes de se crer em Deus é necessário crer nos próprios progeni-
tores, porque são os encarregados de Deus para dar-nos a vida, sem
a qual não existiria a pessoa, e sem esta última não existiria fé em
Deus 434. A fé em algo de sobrenatural é essencial para ser pessoa,
independentemente de o ser no qual se crê ser ou não chamado
Deus 435. Com efeito, antes de uma escolha «confessional», existem
outros parâmetros que determinam o ser pessoa, nomeadamente a
comunidade, a cultura, a tradição. O Africano é um ser essencial-

431 Cf. Hilário Guibunda, n.º 79.


432 Cf. Natália Jamal, n.º 151.
433 Cf. Simião Alfredo Muendane, n.º 188.

434 Cf. Gueze Tsemane, n.º 76.

435 Cf. Maria Luísa Mercedes, n.º 133.


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180 | MUNTUÍSMO

mente religioso, independentemente da religião que professa. Mas,


mesmo sem professar alguma religião, nos momentos mais difíceis
sempre recorre a Deus. Pelo facto de ser racional, a pessoa sabe que
existe alguém que a criou 436. Existe também a falta de fé, e este facto
é considerado um problema para muitas famílias. Para uns, é pos-
sível ser pessoa mesmo sem fé, mas reconhece-se que seria melhor
ter fé em Deus. De facto, sem a condução divina não é possível dis-
cernir o bem do mal e, por conseguinte, será mais fácil cometer
males 437.
Na falta de um guia divino pode-se orientar igualmente com
base numa boa educação familiar, respeito pelas tradições e pelos
outros. A lei divina é vista como ocasião para purificar os ensina-
mentos da tradição: quando o bom comportamento se conjuga com
a fé, a pessoa adquire muita credibilidade e respeito no seio da
comunidade.
Pessoa e Homem são a mesma coisa? O termo que indica Ho-
mem é o mesmo (muthu/munhu), no sentido de ser humano. Se se
quer indicar o homem como género masculino, o termo em gitonga
é mwama, e, em xithswa, wanunai; para a fêmea diz-se, respectiva-
mente, nhamayi e wansati.
Homem e mulher são ditos vathu (gitonga). Por homem entende-
-se, não quem tem muitas esposas, como se pensa popularmente,
mas quem sabe conviver com os outros racionalmente 438.
Ser pessoa vai para além de ser Homem porque é algo ligado ao
bom comportamento, à moralidade e à boa convivência.
E os mortos, são pessoas? Os mortos são definidos ndinguluvi (gi-
tonga) e tinguluvi (xithswa), seres que têm por missão proteger a
família. Para a maioria dos entrevistados, os mortos, porque espíri-
tos, não são pessoas, pois após a morte têm outra denominação, a de
antepassados (em gitonga, vafis ou valifuto, e, em xitswa, tinguluvi),

436 Cf. Ernesto Marringue, n.º 57.


437 Cf. Januário Maela, n.º 90.
438 «Vule agunani mapimo nya yadi.» Cf. Albertina Mário Rombe, n.º 10.
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PALABRE COM «SÁBIOS» AFRICANOS | 181

que vivem pelas suas almas (maphuvo/mimoya). Os antepassados são


pessoas que perderam o corpo, mas que sobrevivem nas suas almas,
à espera da ressurreição 439. Os nomes dos antepassados são conti-
nuamente evocados, e comunica-se com estes através do rito do ku
palha (rito africano no qual se usam bebidas tradicionais e farinha de
milho). Quando alguém morre e deixa de existir como pessoa, dá-
-se o seu nome aos recém-nascidos, para que seja recordado 440. Isto
serve quer para homenagear o defunto, quer para transmitir a
«sorte» do defunto ao novo membro da família.
Estas afirmações sobre a ideia de pessoa confirmam em parte
quanto reportado, precedentemente, ao longo da análise dos vários
filósofos africanos.
Parece-nos oportuno lançar um olhar em torno de outros temas
directamente ligados à ideia de pessoa, como são os casos de comu-
nidade, Deus, educação.
O termo comunidade é traduzido de várias formas, e não há con-
senso sobre a definição oficial que varia entre libandla ou tsawai em
gitonga e tlawa e bandla em xithswa. Por libandla/bandla entende-se,
mais precisamente, a comunidade religiosa, o lugar no qual as pes-
soas se encontram para tratar de temas religiosos, rezar, etc. En-
quanto tlawa indica a comunidade como união de pessoas que têm
os mesmos traços culturais 441. Embora de forma indirecta, os mortos
fazem parte da comunidade e querem sempre ser recordados.
Um membro da comunidade jamais poderá ser expulso dela,
mas deverá ser recuperado, aconselhado e reintegrado.
Deus é denominado Nungungulo(u) em ambas as línguas, que deve-
ria significar Nongo Ngulo, ou seja, grande parente, grande amigo 442.
Ele tem poderes particulares (como ser invisível, imortal, etc.) opera
milagres para melhorar a convivência entre os homens sobre a terra.

439 Cf. Hilário Guibundana, n.º 76. Aqui é evidente a influência da evangelização.
440 Cf. Simião Alfredo Muendane, n.º 188.
441 Cf. Augusto Chelene, n.º 34.

442 Cf. Luís Gonzaga Auze, n.º 120.


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182 | MUNTUÍSMO

Deus deve prover a chuva necessária, a paz e a vida às pessoas 443. A


tarefa de Deus é proteger o Homem. Deus se revela através da bon-
dade dos homens 444.
Educação: nos dias que correm, têm mais influência, na educação
dos jovens, a televisão, a escola, a igreja… porque é nestes espaços
que eles passam a maior parte do seu tempo 445. Os sábios lamentam
o desinteresse dos jovens pela educação tradicional, porque a con-
sideram plena de tabus e pouco clara. A educação tradicional é con-
fiada aos tios, porque os pais não se sentem em grau de falar dos
tabus aos seus filhos, especialmente no que toca à sexualidade.
Concluindo, Educação é a transmissão de valores dos mais velhos
aos mais jovens, a fim de prepará-los para a vida. Em gitonga Sihe-
bulo, Milayo, e em xitswa, Zuigonzo, Milayo. Concebe-se igualmente
como um processo de desenvolvimento (gondziselo; ku kula crescer,
em xithswa) das capacidades físicas, intelectuais e morais da
pessoa, visando a sua melhor integração na sociedade ou comu-
nidade. Em síntese, os nossos entrevistados insistem não tanto na
instrução, mas na educação moral e em como viver bem em socie-
dade. A educação deve preparar o jovem para enfrentar a vida fu-
tura, respeitar Deus e o próximo, gostar do trabalho e respeitar os
costumes do próprio povo 446.
Em Apêndice, apresentamos, em cumprimento do nosso dever, a
identificação de todos os entrevistados, na nossa ideal Palabre, se-
gundo a Sage Philosophy, e na página dos Agradecimentos citamos
todos os estudantes do curso de Filosofia de Educação da nossa Uni-
versidade (a.a.2010), que nos ajudaram na recolha das entrevistas.

443 Cf. Miguel Menengene, n.º 145.


444 Cf. Januário Maela, n.º 91.
445 Cf. Josefa Manuel Matandalasse, n.º 113.

446 Cf. Jertrude Filipe, n.º 93.


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CAPÍTULO III

Revisão sistemática e perspectivas

«Muntuísmo»: um «novo» modelo teórico de Pessoa?

Após ter reconstruído, na primeira parte, a história das ideias


concernentes à noção de pessoa nas obras dos mais significativos
filósofos africanos, e após a pesquisa de campo por via de estudos e
palabres com muitos «sábios» do nosso território, interrogados indis-
criminadamente sobre o mesmo tema, chegamos à parte final: a da
revisão sistemática e da reflexão propositiva à luz da conclusão.
A principal dificuldade que enfrentámos nesta parte foi a de per-
manecer o mais possível ligados ao objecto material da nossa pes-
quisa, que é a ideia de pessoa na filosofia contemporânea africana,
sem nos deixar envolver por muitas outras reflexões e perspectivas
que nos surgiam ao longo do percurso, de tal forma que, mais do
que chegar a uma conclusão, o discurso alargava-se a numerosos
outros temas relacionados.
Tentámos oferecer uma representação crítica de cada autor, de
modo a fazer emergir o pensamento de cada um deles a respeito
desta ideia, uma ideia que enucleámos também nos autores que não
trataram directamente do tema, tendo-o feito em modo transversal.
A nossa preocupação não era de carácter linguístico nem simples-
mente fenomenológico, mas era de reconstruir uma história das
ideias, na qual também os filósofos mais significativos da área lusó-
fona pudessem ter um espaço importante.
Dividimos a terceira parte em dois parágrafos: no primeiro, re-
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184 | MUNTUÍSMO

tomamos de modo sistemático a ideia de pessoa que emerge de


todos os contributos intervenientes e, no segundo , certamente mais
original 447, tentamos focalizar o nó teórico do discurso e instruir um
processo de elaboração correcta de um novo modelo, que possa de-
linear a realidade e a verdade do ser pessoa, válido para todas as
pessoas. Neste modelo serão integradas as ideias de pessoa que sur-
giram das duas primeiras partes da pesquisa: o nosso contributo
será, então, apenas a nível formal, pois o objecto material foi pro-
posto pelos filósofos africanos.

1) Retomada sistemática

Passamos agora a delinear uma síntese da ideia de pessoa, re-


tomando sinteticamente os temas já tratados em modo analítico nas
páginas anteriores. Será inevitável alguma repetição e sobreposição
de discursos, onde se interceptam as ideias encontradas e reelabo-
radas numa síntese que, por vezes, vai para além da intenção dos
próprios autores. Desta retomada sistemática, ou balanço crítico,
poderemos passar para o nosso contributo na elaboração do modelo
apenas descrito acima, que possa dizer a verdade e não apenas a
realidade da pessoa africana. A retomada sistemática será necessa-
riamente sintética, pois damos por suficientemente clara a análise
feita na primeira parte.
Por uma questão de ordem, agrupamos os filósofos analisados
em duas correntes que podemos classificar nos seguintes termos:
uma corrente cuja preocupação central é mais cultural/filosófica
(Tempels, Kagame, Mulago, Mbiti, Menkiti, Gyekye, Junod, Amaral,
Lerma, Langa e os «sábios» entrevistados) e outra, mais histórica/
/política (Ela, Eboussi Boulaga, Lopes, Ngoenha, Castiano). Re-
conhecemos que toda classificação é arbitrária e limitada, porque
existem autores que se colocam em modo transversal entre as duas
correntes, como são os casos de Eboussi Boulaga e Castiano.

447 Junto com as duas secções originais dedicadas aos filósofos lusófonos e o trabalho

de campo desenvolvido com as duzentas entrevistas.


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REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 185

a) A corrente cultural/filosófica

O nosso ponto de partida foi a análise de um texto muito contro-


verso e contestado, da autoria de Tempels, o qual identificava no
termo Muntu a ideia de pessoa como aquele que vive radicado na
sua ontologia e teodicéia. Esta ontologia e teodicéia intrínseca à tra-
dição africana teria «feito viver», durante milénios, gerações inteiras
bantu até aos nossos dias. A questão subjacente, e retomada conti-
nuamente também por outros autores, foi a da verdade desta tradi-
ção, que atesta a presença de um pensamento filosófico de fundo, e
não de mero folclore. Sublinhámos preliminarmente que, para rea-
lizar o seu projecto, Tempels recorre à conceitualização ocidental,
enquanto Kagame e Oruka mostram outro tipo de abordagem, o
primeiro recorrendo à análise linguística das línguas locais, e o se-
gundo, à «sageza» filosófica dos «sábios» africanos.
Para Tempels, Pessoa (Muntu) é o homem que tem como valor
essencial a vida; a sua sageza consiste no conhecimento da sua onto-
logia, que se baseia na noção fundamental do conceito de ser como
força vital. Esta intuição filosófica funda-se na evidência externa e in-
terna. Os Bantu têm uma clara consciência moral e sabem reconhe-
cer o bem e o mal conforme as leis naturais: é bom tudo quanto pro-
move a força vital, e mau tudo quanto a deprime. Concluímos a
análise desta concepção de pessoa em Tempels introduzindo as ca-
tegorias de imanência e economia do ser – o que para os ocidentais
é ser imanente (ideia abstracta), para os Bantu é ser económico
(força vital).
O ganho mais importante que pudemos obter da obra de
Tempels é a hipótese de um «primado» cultural dos «negros» sobre
os «brancos», porque os negros teriam chegado primeiro à intuição
da ideia de um Deus único. Consideramos esta antecedência dos
negros em relação à concepção de Deus único não irrelevante, por-
que da «verdade» sobre Deus, como analisaremos de seguida, deri-
va a verdade sobre o homem. Por fim, com Tempels começa-se a
sublinhar quanto a superioridade de uma cultura sobre outra não
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186 | MUNTUÍSMO

diga respeito necessariamente ao campo económico, segundo as


ideologias ocidentais, mas concerne, sobretudo ao da sageza/
/sapiência. O conceito do primado da vida, por fim, contestado e
criticado largamente, retorna continuamente na obra de muitos filó-
sofos africanos 448.
A primeira reacção foi a de Kagame, que acusa Tempels de ter
definido como filosofia bantu o que na realidade era a visão do
mundo de uma tribo apenas, e de não ter documentado as suas
teses. Da análise linguística, Kagame chega à definição de pessoa
(Muntu) como «ser de inteligência», cujas faculdades incluem a do
«coração», que para o Ocidente é a vontade, onde reside a liberdade
e também a concupiscência. Inteligência/coração corresponde a
conhecer/amar: se para a filosofia clássica a finalidade do homem
era conhecer e amar a Deus para gozar da vida eterna, para os
Bantu a finalidade é ditada pela função progenitora do homem e da
mulher, do primado antropológico da procriação, que garante o per-
petuar-se da força vital na descendência. A morte não destrói o
Muntu, mas separa do corpo material o espírito vital da inteligên-
cia: a pessoa continua, não mais como um ser vivo, mas como um
existente.
Mulago afirma que todos os seres participam da união vital, uma
comunhão contínua com todas as coisas e pessoas, visíveis e
invisíveis. O primeiro princípio vital é o prolongamento da vida do
Muntu. As famílias são ligadas por um pacto de sangue. A religião é
o laço vital que une entre si, vertical e horizontalmente, todos os
seres, vivos e mortos. Existe vida depois da morte e relações entre
vivos e mortos. Mulago defende uma filosofia da união vital entre
os Bantu, concebida como conhecimento natural das coisas nas suas
causas profundas e últimas. É a «sageza» dos Bantu. No Cristianis-

448 Cf. a ideia de união vital em V. MULAGO, Un visage africain du christianisme – L’union

vitale bantu face à l’unité vitale ecclesiale, Paris, Présence Africaine, 1965; a ideia de vitalo-
gia de M. N. NKEMNKIA, Il pensare africano come vitalogia, Roma, Cittá Nuova, 1995; e
muitos outros vistos acima, que colocam o valor da vida como o ou um dos principais
valores da cultura africana.
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REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 187

mo, esta união vital é expressa pela «koinonia», que permite a comu-
nhão com o mundo para além do sensível.
O homem africano, como emerge da reflexão de Mbiti, é um ser
ontologicamente religioso: a pessoa africana insere-se numa ontolo-
gia religiosa antropocêntrica. A morte atinge apenas ao corpo e não ao
espírito da inteligência, que é a essência do homem. A ideia de Deus
é de um ser transcendente, que, todavia, é também imanente, pois,
como criador, cuida das suas criaturas. Não existe idolatria. O mal
não provém de Deus, por isso não se lhe oferecem sacrifícios, mas
pode provir dos espíritos aos quais se oferecem sacrifícios.
A ética dinâmica africana define uma pessoa com base naquilo
que faz, e não naquilo que é. Um homem é bom ou mau não com
base no que demonstra ser concretamente, por via das suas acções,
e não com base em definições abstractas. Por isso Mbiti lamenta o
deslocamento do «nós» ao «eu» na reflexão africana, como um
reflexo negativo da influência do individualismo ocidental.
Devemos a Mbiti o axioma mais famoso da filosofia africana:
«I am because we are; and since we are, therefore I am.» Não menos im-
portante é o aforismo zulu: Umuntu ngumuntu ngabantu – «Uma
pessoa é pessoa através de outra.» Em conclusão, na ética compar-
tilhada pelos mais importantes autores da filosofia africana, é essen-
cial a centralidade do conceito segundo o qual cada homem é do-
tado da máxima dignidade de pessoa, conquanto seja plenamente
inserido na comunidade e se reconheça parte de um todo.
Também para Menkiti a pessoa é definida pela comunidade e um
homem adquire plenamente a dignidade de pessoa apenas depois
de um processo, um caminho para atingir a maturidade. Trata-se de
uma progressão ontológica. A pessoa é tal porque em grau de
respeitar completamente a moral: crianças e jovens não são ainda
pessoas porque não têm ainda uma intencionalidade moral. Não
estão ainda, de facto, totalmente inseridas na comunidade, com
todas as responsabilidades que o papel de adulto comporta. Mesmo
nesta ulterior especificação, ligada à idade, sublinha-se que é a
comunidade a conferir ao indivíduo o estatuto de pessoa.
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188 | MUNTUÍSMO

Uma reflexão original, e contrária à quase totalidade dos filóso-


fos africanos é-nos dada por Gyekye, para quem a doutrina segun-
do a qual a comunidade torna o indivíduo pessoa ressente-se de
uma persistente influência do marxismo em muitos filósofos africa-
nos. Não nos devemos esquecer, a propósito, da importância da
história da sua nação, o Ghana, guiada por um regime de tipo so-
cialista, instaurado por Kwame Nkrumah após a independência.
Nkrumah, na sua obra de filosofia política, Consciencism Philosophy
and Ideology for Decolonization and Development, with Particular Refe-
rence to the African Revolution (Londres, 1964), reivindica para o pen-
samento tradicional africano ideias materialistas e, sobretudo comu-
nitaristas, originárias e inatas, afins ao marxismo ocidental, que por
isso, embora mais compatíveis com as sociedades tradicionais das
democracias modernas, comprometidas com o imperialismo e o
colonialismo, não ofereceriam nenhuma novidade às novas nações
africanas em busca de um modelo de governo, em grau de fazê-las
prosperar nas independências. Gyekye tem presente outros prota-
gonistas da filosofia política comunitarista africana, como Julius
Nyerere, presidente da Tanzânia, que foram simpatizantes das
ideias marxistas, em nome do resgate do sistema comunitário tradi-
cional das populações locais, contra o modelo de Estado à imagem
das democracias europeias, às quais igualmente imputava a cumpli-
cidade com o colonialismo e o imperialismo 449.
Para Gyekye, ser pessoa não é um status por adquirir. É, antes
pelo contrário, inato ao homem, porque todo o indivíduo é filho de
Deus e, por isso, pessoa: tem interesses particulares, vontade e dese-
jos, capacidade de pensar e agir de modo autónomo.
Amaral apresenta um homem africano que deve superar o seu
complexo de inferioridade e saber dialogar em igual condição com o
homem ocidental, que, por sua vez, deve superar o seu complexo de
superioridade. O homem africano, com base na sua educação tradi-
cional, que opera nele uma transformação ontológica, permanece

449 J. NYERERE UJAMAA, Essays on Socialism, Londres, 1968.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página189

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 189

ancorado nos seus valores africanos, sintetizados em sete categorias


existenciais: a escuta, o encontro, a acolhida e hospitalidade, a rela-
ção, a simpatia/empatia, a alegria e a festa, a esperança e o futuro.
Lerma define a pessoa (Munhu) como aquele(a) que está profun-
damente radicado na mãe terra através dos antepassados, nos quais
reside o princípio da vida. Os ritos de iniciação marcam a passagem
da adolescência à idade adulta. A velhice é tempo de plenitude.
Langa vê o homem africano como parte de uma unidade cósmica
e de um sistema dinâmico. Langa interroga-se acerca da liberdade
da pessoa humana defronte à religião tradicional, e sobre a ênfase
que esta dá à comunidade em desvantagem do indivíduo. A própria
personalidade mais profunda, na qual repousa o próprio ser, não
poderá ser negada, mesmo no caso de uma conversão à religião
cristã. A conversão deve ser consciente: saber dizer conscientemente
adeus aos próprios ídolos, para não ter remorsos futuramente. Exis-
tirá uma teologia africana quando a reflexão for feita a partir de
símbolos, imagens e conceitos religiosos africanos 450.
Das palabres com os sábios emergiram considerações interessantes
que confirmaram quanto os filósofos tinham já exposto de modo
sistemático. De modo lapidário e sistemático, focalizamos a ideia de
pessoa como modalidade dinâmica, e não como essência estática:
um indivíduo é pessoa com base nas suas acções, na sua relação
com os membros da comunidade, é dotado de vontade própria, é
um ser livre nos limites impostos pelas regras de convivência, que
são as condições de possibilidade da liberdade. Para ser pessoa é
necessário crer em algo de sobrenatural.

b) A corrente histórica/política

Depois destes autores, que aprofundaram a ideia de homem de


um ponto de vista cultural/filosófico, retomamos sinteticamente a

450Achamos interessante o estudo e as considerações de Langa, não obstante alguns


nós críticos apresentados no meu texto: Teologia africana contemporânea, pró-manuscrito,
Maxixe, UniSaF, 2010.
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190 | MUNTUÍSMO

ideia de pessoa emergente da análise dos filósofos da área histó-


rica/política.
A figura de homem defendida por J.-M. Ela é de um ser oprimi-
do que tem necessidade de ser liberto: não só da opressão econó-
mica causada pelo colonialismo, mas também do imperialismo cleri-
cal que mantém as comunidades cristãs dependentes. Dependendo
da sua praxis na sociedade, a religião é fonte de alienação e de
opressão. J.-M. Ela nega que o subdesenvolvimento africano seja
causado pela sua tradição e religião, porque a causa é política e his-
tórica. A religião, em muitos casos, foi ocasião para reorganizar-se e
rebelar-se. J.-M. Ela conclui que, infelizmente, a independência não
significou liberdade, posto que o novo opressor é personificado
pelo próprio irmão.
Muntu, na ideia de Eboussi Boulaga, é o Homem na condição
africana que luta por afirmar a sua humanidade. E frequentemente
o faz negando a própria identidade para aceder à humanidade do
dominador. O Muntu não é o homo africanus inventado pela etnofilo-
sofia. O Muntu é atacado pela individualidade ocidental, que con-
trapõe o tradicional ao racional 451. Para o Muntu não existem dua-
lismos, apenas a comunidade dos homens que buscam em conjunto
a verdade. A tradição não é folclore, mas fonte da autenticidade afri-
cana. Cansado de sufocar a sua origem, o Muntu liberta-se da filo-
sofia alienante, ironizando com ela e redimensionando a sua abran-
gência. A filosofia será recuperada como filosofia emancipadora,
prática, no horizonte ético. A ontologia é recuperada a partir da
crise do ser. As qualidades necessárias ao Muntu são a lucidez no
saber distinguir as máscaras dos rostos e a humildade de quem pa-
rece sucumbir diante do inimigo, mestre na arte de vencer sem ter
razão.
O Muntu, segundo Lopes, é a pessoa humana que se encontra

451 Para Eboussi Boulaga, a superioridade do Ocidente reside no seu mistério «sa-

grado» que é o dinheiro.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página191

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 191

diante da dialéctica entre a conservação da tradição e o desafio da


modernidade. A solução consiste numa nova perspectiva filosófica
orientada para a comunicação a nível continental: comunicação
interperiférica. Lopes propõe uma «espiritualidade comunicativa»
que coloque todos os homens em comunicação entre si. Os seres
humanos realizam-se como tal apenas por via da comunicação.
Muntu significa propriamente relação e comunicação. Superação do
machismo e recolocação do Muntu no feminino. Denuncia a ideia de
ser da pessoa num sentido único imposto pelo Ocidente. O Muntu é
um sujeito de direitos e deveres que todos devem respeitar e
defender, independentemente do lugar de nascimento da pessoa.
O homem que emerge da reflexão de Ngoenha é um homem que
viveu à margem da história e pretende tornar-se sujeito da história.
O primeiro passo foi a reivindicação da soberania dos próprios
países, porque sem emancipação jamais se será sujeito da própria
história.
Para Castiano, o homem foi sempre feito objecto, mesmo nas
lutas abolicionistas. Embora sujeitos de conhecimento, os negros
sempre foram usados como informadores anónimos. Os novos pro-
tagonistas da subjectivização são os jovens da cheetah generation, e os
dois movimentos do afrocentrismo e do ubuntuísmo. Castiano reivin-
dica uma racionalidade que vai para além da racionalidade. O ho-
mem africano de Castiano é o que, cansado de ser objectivado,
torna-se sujeito que se abre à intersubjectividade.
Retomaremos mais amplamente as ideias de Castiano e de
Eboussi Boulaga, que consideramos «transversais» às duas correntes.

Perspectivas

Neste ponto, pretendemos dar o nosso contributo, que, repisa-


mos, não diz respeito ao aspecto material do problema, mas ao
formal.
O objecto material é produzido pelos próprios filósofos africa-
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página192

192 | MUNTUÍSMO

nos, e eu, na condição de não africano, não estou «autorizado» a


dizer aos africanos o que é a pessoa africana.
O nosso contributo diz respeito ao objecto formal, ou seja, à
questão do método, que instrui o estatuto epistemológico necessário
para que o discurso sobre a pessoa seja filosófico. Este aspecto veri-
tativo não se pode interromper, sob pena de o discurso sobre a
pessoa permanecer prisioneiro de um pensamento inautêntico. E
nós tentamos fazê-lo através de uma leitura transversal de filósofos
africanos e ocidentais, metendo-os em diálogo (na paz do desejo de
intersubjectividade de Castiano e outros).

a) A questão metodológica

Pensamos poder afirmar que o discurso teórico acerca da ideia


de pessoa africana possa ser bem instruído.
Propomo-nos delinear algumas reflexões teóricas que possam
servir de estímulo à reflexão e aprofundamento posteriores.
A ideia de pessoa afunda as raízes em tempos mais remotos,
antes mesmo da filosofia grega, na civilização do Oriente Médio, na
Bíblia, enquanto texto por excelência de sabedoria, e na civilização
africana do antigo Egipto, com as suas profundas relações com as
antigas civilizações bantu. Esta ideia alcança, por fim, a sua máxima
expressão filosófica e especulativa na reflexão metafísica que se de-
senvolve no contexto da tradição da teologia trinitária.
A ideia de pessoa em África impõe-se na sua originalidade, por-
que traz consigo a ideia de abertura ao transcendente e à ideia de
comunidade. Sem a comunidade a pessoa não existe. E, concomi-
tantemente, quando se fala de pessoa, fala-se da sua relação com o
transcendente. Em África, um indivíduo não é pessoa senão em
relação com os outros e com Deus (o sobrenatural).
Pessoa, no sentido africano, é um termo que exprime a originali-
dade do Muntu com um estatuto ontológico irreduzível ao dos
outros entes.
O princípio «I’m because we are…», diferentemente do cogito ergo
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página193

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 193

sum, contém já em si a sua verdade. O autoconhecimento do próprio


ser (ergo sum) não coincide com a sua verdade. O princípio africano,
muito mais que o cartesiano, já diz a verdade da pessoa que encon-
tra o seu sentido, a sua verdade, apenas na relação com os outros e
com «Deus». O simples facto de existir (segundo o princípio carte-
siano) não é revelador da verdade acerca de si. A falta da verdade
sobre si, que emerge do princípio cartesiano, não é devida à dúvida
metafísica acerca da verdade do pensar (que Descartes pretende
superar sugerindo que, «mesmo se duvido, penso, logo sou»), mas
da impossibilidade de poder deduzir a verdade do ser do próprio
existir: a certeza de existir não é ainda verdade do próprio existir 452.
Se a cultura ocidental teve de recorrer a mitos para explicar um
sentido (verdade) que podia prescindir dos outros ou do Outro, a
cultura africana já tinha em si a sua resposta: os mitos não podiam
fazer mais do que confirmar uma verdade já evidente no próprio ser
da pessoa. A outra pessoa, limitada e finita como eu, não pode ga-
rantir a verdade do meu existir, porque ela também deve ser «ga-
rantida» na sua verdade. Eu também, em busca da «minha» ver-
dade, sou o «outro» para a outra pessoa, que é igualmente em busca
da «sua» verdade. Ambos percebemos que a «nossa» verdade não
pode ser encontrada em nós, nem mesmo em outros como nós, li-
mitados, finitos e também em busca da «sua» verdade. Apenas um
Outro, infinito, pode dar o sentido, a verdade, ao meu existir. Este
sentido, esta verdade, pode ser acessível apenas por meio de um
«salto» qualitativo, uma escolha, um entregar-se, dito por outros
termos, uma liberdade que se encontra a si mesma graças a esta
solução de continuidade. A verdade do homem, ou melhor, da
pessoa, é verdade da pessoa em liberdade, por isso é transcendente e
pode ser apenas «esperada» e jamais deduzida.
A liberdade é efectivamente «livre» quando o homem escolhe
sem dispor de uma certeza absoluta. Sem esta condição não se

452 Cf. V. MELCHIORRE, Essere Persona. Natura e Struttura, Novara, Fondazione A. e G.

Boroli, 2007, pp. 218-220.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página194

194 | MUNTUÍSMO

trataria de uma escolha, mas de uma constrição, de uma simples e


pura consequência necessária, previsível, inevitável. Por isso, a liber-
dade é livre quando a sua verdade está acima de si mesma, e apenas
pode ser esperada, pressagiada, antecipada num «acto de fé».
Parafraseando Castiano, com a ideia de pessoa em África en-
tende-se a superação da subjectividade da autoconsciência (cogito ergo
sum) com a busca da verdade da própria subjectividade fora de si
mesma, que conduz necessariamente à abertura ao outro/Outro,
isto é, à intersubjectividade.
Trata-se de uma verdade não apenas metafísica, mas histórica,
onde é mantida a dialéctica entre a instância teórica e o modelo
prático (síntese entre teoria e práxis).
A cultura africana, dada a natureza metafísica da sua religiosi-
dade, não operou a dicotomia na reflexão filosófica entre o religioso
e o natural, porque, de facto, os dois coincidem, tratando-se de uma
«verdade» conseguida humanamente, sem revelações ou teofanias.
Esta dicotomia é já radicada na cultura ocidental, onde as religiões
«reveladas» operaram necessariamente uma cisão entre a fé e a filo-
sofia. Quando Castiano, ou Ngoenha (ou ainda outros) reivindicam
a emancipação da filosofia africana da religião, o que querem, con-
cretamente? Se por religião entendem a reflexão teológica cristã, he-
braica ou muçulmana, têm razão, porque os pontos de partida são
diversos, pelo que filosofia e teologia devem necessariamente per-
manecer separadas. Mas se se referem à religião tradicional afri-
cana, podemos interrogar-nos seriamente sobre o que resta do ho-
mem africano sem a religião tradicional africana. Ela é, para todos
os efeitos, a cultura, a essência do ser africano.
Se o ponto de partida das teologias «reveladas» e das teologias
«naturais» (melhor, filosoficas ou metafísicas) é diferente, em algum
momento ambas atingem um ponto comum, a verdade última do
homem e do mundo, uma verdade que reside necessariamente fora
da finitude do homem e do mundo. Deste ponto de encontro, os
caminhos separam-se novamente, visto que a teologia «revelada»
funda a sua reflexão nos dogmas que dão a «certeza» do saber da fé,
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página195

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 195

enquanto as outras seguem a via da probabilidade da sua verdade,


que continua apenas e sempre a nível de «hipótese» ou postulado,
pois não é «confirmada» por nenhuma revelação nem pela meta-
física, porque esta última não pode ir para além de si mesma.
Embora os caminhos sejam diversos, a teologia «revelada» reen-
contra a teologia «natural» ou «filosofia da religião» quando passa
da dogmática (ou sistemática) à teologia fundamental 453.
Conforme fizemos menção, a verdade da pessoa não se encontra
na própria pessoa porque finita, nem pelo mesmo motivo nas
outras pessoas, mas num Outro, que necessariamente não pode ser
finito, condição sem a qual não poderia dizer a verdade da pessoa.
O Homem em si poderia viver uma vida «vivida» mesmo prescin-
dindo do discurso da verdade, mas, neste caso, uma vida vivida
jamais seria uma vida «verdadeira». A filosofia pós-moderna já colo-
cou radicalmente em discussão a necessidade da verdade, substituin-
do o critério da verdade por outros critérios mais «utilitaristas» 454.

453 Pontualmente, Bertuletti escreve: «Se si vuole evitare una proiezione in Dio delle stesse

condizioni di appropriazione della sua parola, la ragione del carattere simbolico del linguaggio
della fede non può essere vista unicamente nel carattere di evento della rivelazione, ma questo
deve essere a sua volta correlato alle condizioni antropologiche, per le quali la rivelazione di Dio
non può esibire la sua evidenza se non come compimento della libertà» («Se se quer evitar uma
projecção em Deus das mesmas condições de apropriação da sua palavra, a razão do ca-
rácter simbólico da linguagem da fé não pode ser vista unicamente no carácter de even-
to da revelação, mas este deve ser por sua vez relacionado às condições antropológicas,
pelas quais a revelação de Deus não pode exibir a sua evidência senão como completa-
mento da liberdade» [T. do A.], in A. BERTULETTI, «Il concetto di Persona e il sapere teo-
logico», in AA.VV., L’idea di persona, Vita e Pensiero, Milão, 1996, n. 23, pp. 10-11.
454 A este propósito é muito interessante o debate entre Pascal Engel e Richard Rorty

sobre a verdade: diante das conhecidas posições de Rorty, e da filosofia pós-moderna


em geral, quanto à desnecessidade da verdade, que deixa o lugar a outros critérios como
o da utilidade, Engel responde: «Supponiamo che si dica, come fa per lo più Rorty, che l’uti-
lità è un criterio sovente più importante della verità per stabilire il valore di una concezione. Ma
come si può dire che una concezione è utile se non si sa se è vera? Lo struzzo può trovare utile
affondare la testa nella sabbia. Ma sarebbe utile in the long run? […] Quale significato possono
avere gli sforzi, spesso meritori e degni di lode, che Rorty dispiega nel suo dialogo con i contem-
poranei del campo analitico, se neppure il vero con la minuscola ha senso?» («Suponhamos que
se diga, como faz Rorty, que o utilitário é um critério muitas vezes mais importante da
verdade, para estabelecer o valor de um conceito. Mas como se pode dizer que um con-
ceito é útil se não se sabe se é verdade? A avestruz pode achar que é útil para ela enter-
rar a cabeça na areia. No entanto, seria útil a longo prazo? [...] Que significado pode ter
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página196

196 | MUNTUÍSMO

A filosofia africana pretende, como exorta Eboussi Boulaga, tirar


as máscaras para ver os rostos, sem confundir uns com os outros.
Não nos esqueçamos de que, enquanto os Gregos e os Romanos es-
tavam ainda vivendo uma religiosidade falsa, porquanto o politeís-
mo é a negação da verdade sobre Deus, da qual deriva a negação da
verdade sobre o homem, os Africanos haviam já alcançado a ver-
dade do monoteísmo e, por consequência, a verdade sobre o pró-
prio homem.
Uma antropologia fechada nos limites da finitude fecha-se à pos-
sibilidade de acesso à verdade do homem: na finitude não existe
verdade alguma, antes pelo contrário, no seu fechamento a finitude
é a negação da verdade. De igual modo, uma abertura aos outros
finitos não é capaz de dizer a verdade do homem. A verdade do
homem ou é infinita ou não é verdade, porque se dissolveria no
breve espaço temporal em que vem a ser pronunciada: seria aquilo
que definimos vida «vivida», mas não verdadeira. Dito diversa-
mente, uma pessoa é pessoa quando reconhece o seu fundamento, a
sua verdade, fora de si, num Outro infinito.
A verdade do homem que, como repisamos, é tal na condição de
ser infinita, é o fim que dá sentido ao presente. Verdade que por sua
natureza (infinita) não pode ser deduzida, mas apenas «acolhida»
no presente da intencionalidade do sujeito, para antecipar a ocor-
rência da verdade que torna a vida verdadeira e que poderá ser con-
firmada apenas no fim.
«In questa ambivalenza consiste l’essenza del finito. L’anticipazione è nello
stesso tempo una effettiva realizzazione anticipata del futuro e solo un’antici-
pazione ancora aperta. Poiché il futuro anticipato non dipende dalla coscienza,
solo il suo realizzarsi potrà decidere della verità dell’anti-cipazione, benché
questa sia già una presenza anticipata del futuro. La storia è costituita da

os seus esforços, muitas vezes meritórios e dignos de louvor, que Rorty implanta no seu
diálogo com os contemporâneos do campo analítico, se nem mesmo o verdadeiro com o
minúsculo tem sentido?», [T. do A.], in P. EENGEL e R. RORTY, A cosa serve la verità?, Bo-
lonha, Il Mulino, 2007.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página197

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 197

questa mediazione fra la coscienza anticipante e la realtà del futuro che essa
anticipa e che si anticipa in essa. Ciò vale in generale per la coscienza storica
come tale» 455.

Naturalmente, para a revelação cristã esta antecipação da ver-


dade final realiza-se em Jesus Cristo, enquanto para a religião afri-
cana é apenas prefigurada na relação com os antepassados.
A ideia de pessoa na cultura africana poderia ser reformulada no
seguinte horizonte: pessoa é aquele que antecipa no presente a sua
verdade, na abertura aos outros e ao Outro, sob mediação dos ante-
passados. Sem esta abertura/antecipação não existe pessoa «ver-
dadeira», apenas um indivíduo (homem) que vive (vida «vivida»,
mas não autêntica) sem verdade.
Penso que o famoso axioma de Mbiti: «I am because We are; and
since We are, therefore I am» («Eu sou porque nós somos e como
somos, logo existo»), assim como o aforismo zulu «Umuntu ngu-
muntu ngabantu» (Uma pessoa é uma pessoa através de uma outra),
não exprimem integralmente a ideia de pessoa africana, pois se li-
mitam à dimensão horizontal de abertura aos outros, preterindo a
dimensão vertical que pertence ontologicamente à pessoa africana.
Gostaríamos de propor um aforismo mais completo: «I am because I
believe and I love» («Eu sou porque acredito e amo»). Apenas estas
duas aberturas (vertical e horizontal) podem dizer a verdade do
homem e superar a finitude.
Se para o Cristianismo a superação da finitude se resolve em
Jesus Cristo, como garantia da antecipação da própria verdade
futura no presente, para o Muntu não existem garantias reveladas,

455 «Nesta ambivalência consiste a essência do finito. A antecipação é, ao mesmo

tempo, uma efectiva realização antecipada do futuro e uma antecipação ainda aberta.
Pelo facto de que o futuro antecipado não depende da consciência, somente o seu rea-
lizar-se poderá decidir sobre a verdade da antecipação, embora esta seja já uma presen-
ça antecipada do futuro. A história é constituída por esta mediação entre a consciência
antecipadora e a realidade do futuro que ela antecipa e que se antecipa nela. Isto vale
em geral pela consciência histórica como tal» [T. do A.], A. BERTULETTI, Il concetto di per-
sona..., o.c., p. 12.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página198

198 | MUNTUÍSMO

apenas um estado de «suspensão» defronte à precariedade de si e


da sua obra, onde a palavra é apenas e sempre mundana (mesmo se
pronunciada em nome de Deus, dos Antepassados, da Pátria, etc.).
É esta a conclusão de Eboussi Boulaga, quando fala de «crise do
Muntu», pensamento da crise, ou crise radical do pensamento. Mas
é exactamente através da crise que se abre o acesso à verdade. En-
quanto para o homem moderno (ocidental) não existe saída da crise
defronte à finitude, visto não reconhecer uma verdade fora de si
mesmo, para o Muntu a saída encontra-se no resgate das suas tradi-
ções mais autênticas, operando um discernimento entre as máscaras
e os rostos. O Muntu não deverá limitar-se às respostas imediatas ten-
tadas diante do drama da finitude (fantasmas, vozes misteriosas,
visões obscuras, etc.), mas recriar e reinterpretar a resposta funda-
mental já intrínseca à tradição, que se concretiza quando se abre ao
espírito infinito (mediado pelos antepassados).
Para o Muntu da religião tradicional, este espírito infinito não se
identifica com Jesus Cristo, mas se identifica com um quid que per-
mita definir e falar de verdade, sentido, fundamento, etc., e logo de
verdade do homem, abrindo os espaços do infinito, o qual somente
ele constitui a identidade da pessoa.
Desta nova «iniciação», o Muntu encontra o motivo e o sentido
da sua vida, numa verdade vislumbrada ou, como dissemos acima,
prefigurada, e que encontrará a sua confirmação apenas no fim. De
facto, a verdade da pessoa não é deduzível do seu fundamento, por-
que deve ser um acto de liberdade que se concretiza na história: «li-
bertà non è originariamente la decisione per questo o quell’oggetto, ma lib-
ertà in rapporto a se stessi, possibilità di autodeterminazione. L’oggetto
della libertà è il soggetto stesso nella sua unità. Nella scelta l’uomo dis-
pone liberamente di sé, decide della qualità del suo essere» 456.
É impossível justificar o fundamento último que é escolhido

456 «Liberdade não é, originariamente, a decisão por este ou aquele objecto, mas

liberdade em relação a si mesmo, possibilidade de autodeterminação. O objecto da liber-


dade é o mesmo sujeito na sua unidade. Na escolha, o homem dispõe liberalmente de si,
decide da qualidade do seu ser» [T. do A.], Ibidem, p. 17.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página199

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 199

como antecipação através do acto de liberdade do homem, porque é


irreduzível à experiência pessoal. Passa-se então da razão especula-
tiva à razão prática: na acção concreta justifica-se a «verdade» da
própria escolha e autodetermina-se a pessoa como tal: «l’etico si
radica nella costituzione ontologica del sé, poiché l’agire media in modo
originario l’accesso alla sua identità» 457.
A ideia de pessoa é fundamental para falar-se de verdade e vice-
-versa. A impossibilidade da fundação metafísica, consequente à
crise dos fundamentos, vem substituída pela instância da subjecti-
vidade e da história. A verdade é acessível enquanto se dá na histo-
ricidade e esta sua antecipação na história concorre para determiná-
-la. Segundo Bertuletti, o nó teórico do conceito de pessoa é: «che la
questione della verità si decida nell’unità singolare di assolutezza e storic-
ità dell’autoattestazione della coscienza» 458. É precisamente neste acto
de fé que se «costituisce la verità dell’esperienza storica come tale, la
qualità originaria dell’autoattestazione della coscienza» 459. No conceito
de pessoa reúnem-se as duas pretensões da singularidade e da uni-
versalidade, porque a incondicionalidade da verdade (universal)
actua-se inseparavelmente na sua concretização histórica. A ver-
dade continua indedutível porque não pertence à ordem do ne-
cessário, mas à do mais que necessário, é um dom que se antecipa e
actualiza na escolha do sujeito.
Do ponto de vista epistemológico, é possível uma teoria da
pessoa africana?
Tentamos agora elaborar uma teoria da pessoa africana, partindo

457 «O ético se enraíza na constituição ontológica do si, pois o agir medeia em modo
originário o acesso à sua identidade» [T. do A.], Ibidem, p. 22. O problema, como de-
monstrará Bertuletti, será articular os dois níveis (ético e ontológico) sem resolver o
primeiro no segundo, como fez Heidegger, nem o segundo no primeiro, como fez
Lévinas, que absolutizando a alteridade deduz desta a auto-identidade do sujeito. Uma
correcta articulação do ético e do ontológico é fundamental para a determinação do
saber ontológico.
458 «Que a questão da verdade se decide na unidade singular de incondicionalidade

(assolutezza) e historicidade da auto-atestação da consciência» [T. do A.], Ibidem, p. 25.


459 «Constitui a verdade da experiência histórica como tal, a qualidade originária da

auto-atestação da consciência» [T. do A.], Ibidem.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página200

200 | MUNTUÍSMO

das reflexões de Castiano, retomadas em forma crítica e sustentadas


também pelas reflexões de Lévinas 460.
Castiano e Lévinas, embora partindo de realidades e contextos to-
talmente diferentes, partilham a ideia de superação da ideia de razão
da filosofia ocidental, definida por Castiano como razão «colo-
nizada» que não contempla a possibilidade de uma razão alargada
às comunidades locais. Castiano reivindica uma fundação da filoso-
fia africana não com base nos cânones da racionalidade, mas das ra-
cionalidades, ao ponto de afirmar que é uma obsessão racionalista
apresentar a filosofia como uma reflexão sistemática e crítica. Na
nossa nota crítica a esta ideia de Castiano, defendemos que é des-
viante pensar noutra coisa para além da racionalidade, porque fora
da racionalidade existe apenas irracionalidade: mesmo para «com-
bater» a racionalidade, devemos recorrer a um discurso racional e,
então, continuamos sempre no espaço da racionalidade. Castiano
fala de racionalidade no plural e afirma que, na tentativa de libertar-
-se da colonização, a filosofia africana autocolonizou-se, e, por isso,
faz um apelo a uma «crítica radical» contra a máscara da «ideologia»
universalista, da objectividade e das tradições clássicas da prática
científica de tradição eurocêntrica 461. Trata-se da mesma tentativa de
Lévinas de superar a tradição filosófica ocidental, sempre em busca
de uma teoria geral do ser, marcada pelo princípio de totalidade, que
sufoca toda a alteridade e transcendência, e gera egoísmo, hegemo-
nia, violência. À ideia de totalidade, Lévinas contrapõe a ideia de in-
finito 462 (alteridade), que não pode ser delimitado pela razão, porque

460 Giovanni Ferretti, na obra de co-autoria, já citada AA.VV., L’idea di persona, Vita e
Pensiero, Milão, 1996, intervém com um artigo interessante, sob o título: «Variazioni del
concetto di persona in Emmanuel Lévinas», pp. 457-516. Fazemos referência especial às
conclusões da nossa tese de licenciatura em Filosofia, Ética ou retórica sobre o outro? As
aporias da ética como filosofia primeira de Emmanuel Lévinas. Nas obras «Totalité et Infini» e
«Autrement qu’être», pro-manuscriptum, Maputo, UP, 2004.
461 Ver acima. É interessante confrontar as posições de Remi Brague sobre o eurocen-

trismo: R. BRAGUE R., Il futuro dell’occidente. Nel modello romano la salvezza dell’Europa,
Milão, Bompiani, 2008.
462 «Questo libro si presenta allora come una difesa della soggettività, ma non la coglierà al li-

vello della sua protesta puramente egoistica contro la totalità, né nella sua angoscia di fronte alla
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página201

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 201

a razão sempre tende a identificar, dominar, negar as diferenças, de


modo que da violência da ontologia a nível teórico passa-se à vio-
lência a nível prático, com a violência contra os «diferentes» 463.
É necessário romper esta ontologia da totalidade, que leva ao to-
talitarismo: uma ruptura que não pode ser conduzida pela razão,
que deste modo manteria o seu primado e domínio, mas pela expe-
riência prática existencial, que se manifesta no encontro concreto
com o outro. Este princípio da autoridade manifesta-se originaria-
mente apenas na relação ética, onde a alteridade do outro é radical-
mente reconhecida e respeitada. Esta relação antecipa e funda o uso
da razão e da linguagem. O outro manifesta-se a mim no rosto: um
rosto que é infinito, linguagem, ética 464.
Por seu turno, Castiano vê a superação da ideia de totalidade, re-
tomando a ideia de descolagem e descolonização conceitual de Crahay
e Wiredu, que ocorre operando uma ruptura radical entre a cons-
ciência reflexiva e a consciência dos mitos. Esta descolonização não
comporta o abandono de todas as disciplinas ocidentais, mas a sua
aplicação dentro dos sistemas do pensamento africano.
Neste ponto, insere-se a questão da verdade das crenças comuns,
em cujo interior é possível encontrar uma racionalidade subjacente,
partindo do particular para chegar a demonstrar a universalidade
de todas as culturas 465. Insere-se, mais precisamente, a ideia de in-
tersubjectividade de Castiano: saída do eu para entrar em diálogo

morte, ma come fondata nell’idea di infinito. […] Questo libro presenterà la soggettività come ciò
che accoglie Altri, come ospitalità. In essa si consuma l’idea dell’infinito.» («Este livro se apre-
senta então como uma defesa da subjectividade, mas não a compreenderá ao nível do
seu protesto puramente egoísta contra a totalidade, nem na sua angústia diante da
morte, mas como fundada na ideia de infinito. […] Este livro apresentará a subjectivi-
dade como aquilo que acolhe Outros, como hospitalidade. Nela se consome a ideia de
infinito» [T. do A.], E. LÉVINAS, Totalità e Infinito, Milão, Jaca Book, 2000.
463 Lévinas afirma que a este perigo não escaparam os filósofos do ser, os quais não

reconheciam outra realidade ou verdade fora de si mesmos. Entre eles, Lévinas cita Só-
crates, Hegel, Heidegger.
464 Este texto, incluindo as devidas citações da obra Totalità e Infinito, encontra-se no

meu texto, Ética ou retórica sobre o outro?..., o.c., pp. 13-36.


465 Ver acima.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página202

202 | MUNTUÍSMO

com os outros sujeitos reconhecidos como interlocutores válidos,


dignos e sapientes.
Mas, do nosso ponto de vista, o ponto crucial é exactamente esse:
a abertura ao outro não diz ainda a verdade sobre mim mesmo, a
verdade da pessoa.
Castiano traz o discurso sobre a liberdade: não basta uma desco-
lagem (Crahay) ou uma descolonização (Wiredu), nem mesmo uma li-
bertação histórica (Ngoenha), torna-se necessária uma libertação
conceitual, epistémica, isto é, a liberdade do sujeito africano de falar
de si, construir o próprio discurso e pensamento sobre si mesmo,
sujeito da própria história. Castiano continua sustentando a liber-
tação da etnofilosofia, da filosofia africana, da religião. A este pro-
pósito, Castiano acusa Mbiti de confundir a filosofia e a religião.
Quanto a nós, é Castiano quem confunde o que é a religião: de facto,
a religião africana é uma religião natural, e por isso metafísica; não
se pode falar da cultura ou filosofia africana prescindindo da reli-
gião africana; uma religião revelada, ao invés, não é filosofia, mas
teologia, o ponto de partida da sua reflexão é a verdade revelada,
dogmática. No primeiro caso, trata-se de teodicéia (filosofia da re-
ligião, ou ontologia racional), no segundo de teologia (sistemática e
fundamental).
No caso de uma fundação teorética da ideia de pessoa africana,
considerando as exigências de descolagem e descolonização e o recurso
a outras racionalidades, conforme o diktat de Castiano, é necessário
chegar a uma fundação recorrendo a uma nova linguagem para a
filosofia africana.
Também Lévinas, na sua crítica à totalidade, pretendia abando-
nar a ontologia da filosofia ocidental, mas, na verdade, Derrida
acusa Lévinas de aderir ainda à linguagem ontológica (ao λόγος dos
gregos): as suas críticas à fenomenologia de Husserl e à ontologia de
Heidegger foram feitas fenomenologica e ontologicamente. De
fronte à crítica de «finitudismo» dirigida por Lévinas contra Hei-
degger, devido à historicidade do ser, Derrida acusa Lévinas de «in-
finitismo», pois parece querer substituir o pensamento grego-oci-
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página203

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 203

dental pelo hebraísmo, e denuncia uma cumplicidade equívoca


entre filosofia e teologia. Lévinas responde que a relação com a alte-
ridade não é algo de teológico, mas de humano (fonte de sentido) 466.
Será com base nestas críticas que, treze anos depois de Totalité et
infini (1961), Lévinas escreverá Autrement qu’être (1974).
Procurar uma nova linguagem, que não deve ser confundida
com uma língua, é também o desafio da filosofia africana 467. Lé-
vinas passa a interpretar a subjectividade usando uma nova lingua-
gem feita de termos «originais» como paciência, passividade, um pelo
outro, exposição, expiação, responsabilidade, substituição, etc. O seu
objectivo é colocar em questão a referência da subjectividade à
essência e encontrar para o homem uma relação (parental) diferente
da que o liga ao ser. Como em Totalité et infini, Lévinas critica o pri-
mado do ser e procura um sentido para a transcendência, para além
da ontologia (autrement qu’être), desta vez recorrendo a uma lingua-
gem já não ontológica, mas «metafísica». Lévinas pretende libertar a
subjectividade do sujeito a partir da reflexão sobre a verdade, a
relação do sujeito com o outro, com o infinito, que deixa o seu traço
no rosto do outro 468.
O recurso à noção de traço marca uma aproximação de Derrida
às ideias levinasianas, mantendo, porém, a diferença: para Derrida é
inevitável uma contaminação entre a alteridade e o ser (ontologia),
enquanto para Lévinas não existe nenhuma contaminação, graças
ao recurso à ética.
Mesmo para a filosofia africana, a pessoa define-se em base à in-
tencionalidade do sujeito: a sua abertura aos outros é uma necessi-

466 É este o problema crucial: é possível uma linguagem que diga a relação do ho-

mem com o outro, com o infinito, que não seja teológico-religiosa, mas filosófica? Sobre
o debate entre Derrida e Lévinas, cf. FERRETTI, La Filosofia di Lévinas, Turim, Rosenberg &
Sellier, 1999, pp. 311-316.
467 Como recorda Castiano. O problema linguístico – diz o autor, diferentemente de

outros filósofos africanos – não é uma questão crucial. O importante é comunicar (inter-
subjectivação), independentemente da língua que se usa.
468 Para mais aprofundamentos acerca dos temas de Autrement qu’être, veja-se o meu

texto: Ética ou retórica sobre o outro?..., o.c., pp. 39-49.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página204

204 | MUNTUÍSMO

dade que funda a própria ideia de pessoa (I’m because we are…). O


discurso metodológico torna-se ainda mais pontual, porque para a
filosofia africana trata-se de aceder a um novo método.
O novo método de Lévinas tem em vista superar a fenomenolo-
gia de Husserl, que reconduzia tudo ao eu, pois recorre a uma ra-
cionalidade superior, usando uma linguagem metafórica no limite
da razão, e visa também superar a ontologia de Heidegger, pois o
senso originário encontra-se não apenas para além da esfera dos
entes, mas também do ser, com o limite de usar termos que se pre-
tendia superados. Os novos métodos que Lévinas utilizará são o da
análise fenomenológico-intencional, que consiste no partir dos traços
do Dito para retornar ao Dizer, e o método transcendental, que consiste
em partir dos significados objectivados para retornar às suas condi-
ções de possibilidade. A nova linguagem baseia-se em dizer e «des-
dizer», ênfase, exagero, hipérbole, que transforma os termos onto-
lógicos em éticos, mais adequados a dizer a transcendência. Mas o
método de Lévinas não é sistematizado: ele próprio considera uma
perda de tempo ocupar-se de questões metodológicas.
Seria interessante apresentar as críticas de Dussel ao pensamento
de Lévinas, e como chega à elaboração de um método da filosofia
da libertação para a América Latina, mas isso distanciar-nos-ia
demais do nosso tema. Basta fazer menção ao facto de que o intento
de Dussel, como o dos filósofos africanos para o homem africano, é
encontrar o lugar do índio na história universal, de modo que se
torne sujeito da história. Dussel elabora uma teoria do diálogo na
qual os povos latino-americanos, junto com as outras periferias do
mundo, tornam-se interlocutores de igual dignidade com os outros
povos.
Também a «teologia da libertação» é devedora da filosofia levi-
nasiana 469.

469 Cf. F. M. REJÓN, «La morale fondamentale della teologia della liberazione», in
I. ELLACURIA, J. SOBRINO (dir.), Mysterium Liberationis. I concetti fondamentali della teologia
della liberazione, Roma, Ed. Borla/Cittadella, 1992, p. 251, n. 17.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página205

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 205

Segundo nos parece, a filosofia africana poderá obter impor-


tantes ideias desta reflexão. Lévinas reivindica uma «outra» lin-
guagem que possa dizer a verdade do sujeito aberto ao infinito 470.
Mas que tipo de linguagem? Quando temos a diferença (ou diffé-
rance para Derrida, não identidade) a linguagem pode apenas ser
parodística 471?
A linguagem que melhor especifica a abertura do sujeito ao
outro, ou ao Outro, é a simbólica, que negativamente indica a impos-
sibilidade de uma conceitualização da verdade, e positivamente a
possibilidade de dizer a verdade através de uma palavra que diga a
intenção de um acto. Isto evita-nos o arbítrio de pensar por metá-
foras e permite-nos uma redefinição da verdade da pessoa humana
num modo argumentado. A mesma razão exclui a possibilidade de
deduzir o sentido ontológico da diferença, porque o acesso à ver-

470 Para quanto concerne a uma possível releitura de Lévinas por parte da filosofia
africana, cf. por exemplo o livro de ELIAS KIFON BONGMBA, African Witchcraft and
Otherness. A Philosophical and Theological Critique of Intersubjective Relations, 2001. Trata-se
de um trabalho de filosofia e teologia africana, publicado nos EUA, que se serve do pen-
samento de Lévinas – em particular da ideia do Outro – para analisar o conceito de tfu
(bruxaria) entre o povo Wimbum, dos Camarões, e propõe uma crítica radical às inter-
pretações comuns de bruxaria, a partir da ideia de intersubjectividade, com uma her-
menêutica levinasiana. Apresentamos a respeito o juízo de Robert Bernasconi, filósofo
norte-americano, autor de estudos sobre Lévinas muito citados pelos filósofos africanos,
que actualmente, como estudioso do racismo, está empenhado com sucesso na filosofia
africana: «For all those who believe that the future of philosophy is pluralistic and cross-cultural,
Elias Kifon Bongmba's African Witchcraft and Otherness offers a unique view of that future.
Bongmba uses Levinas to critique tfu – the result being a rich and controversial study of the
application of Western philosophy to African society. The book is a wonderful mixture of personal
anecdote and philosophical analysis that leaves far behind the pseudo-problems that too often pre-
occupy philosophers» («Para todos aqueles que acreditam que o futuro da filosofia é plu-
ralista e multicultural, a African Witchcraft and Otherness de Elias Kifon Bongmba ofere-
ce uma vista única sobre esse futuro. Bongmba usa Levinas para criticar tfu – a bruxaria
– sendo o resultado um estudo rico e controverso da aplicação da filosofia ocidental à
sociedade africana. O livro é uma mistura maravilhosa de anedota pessoal e análise fi-
losófica, que deixa para trás os pseudoproblemas que muitas vezes preocupam os filó-
sofos»). Na contracapa do livro citado. Para uma leitura de Levinas, cf. R. BERNASCONI-
-S. CRITCHLEY, Re-Reading Levinas, Bloomington, Indiana University Press, 1991; R. BER-
NASCONI -S. C RITCHLEY, The Cambridge Companion to Levinas, Cambridge, Cambridge
University Press, 2002.
471 Para Lévinas, a gramatologia de Derrida não é um discurso sobre o ser, mas sobre

os simulacros (os traços) do ser.


Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página206

206 | MUNTUÍSMO

dade do ser não é conceitual, mas apenas intencional: a absoluta


transcendência da verdade pode ser acessível apenas através da es-
colha livre do sujeito que deste modo a antecipa no presente. É esta
a verdade da liberdade 472.
Numa primeira conclusão, poderemos dizer que a ideia de
pessoa africana, que se funda na abertura aos outros (I’m because we
are…) e ao Outro («ser ontologicamente religioso») realiza o ideal de
pessoa muito mais que a ideia de pessoa ocidental, que se funda no
indivíduo (cogito ergo sum) e é fechada ao transcendente (ateísmo e
agnosticismo). O axioma africano «I am because we are; and since we
are, therefore I am», que é a quintessência da tradição africana, leva-
-nos ao conhecimento de um Deus «comunitário» através da reli-
gião natural (metafísica africana): não se trata de uma religião reve-
lada, onde Deus se manifesta e revela a verdade acerca de si mesmo
(trinitário) e a verdade acerca do homem (feito à imagem de Deus),
mas, pelo contrário, uma religião que parte do homem (comunitá-
rio), o qual, graças ao conhecimento da própria natureza (pessoa),
descobre como é «feito» o seu criador. Deus pode dizer, do mesmo
modo, «I Am because We are; and since We are, therefore I Am» porque
é um Deus que é comunidade, como defende também a teologia tri-
nitária cristã. Não esqueçamos que uma das maiores obras escritas
acerca do mistério da Trindade, e logo acerca da pessoa, é da autoria
de um africano: Santo Agostinho de Hipona 473.

b) Por um personalismo africano («Bela nyumbani»)

Nesta última parte pretendemos tentar um contributo para o


esboço de um personalismo africano. Ousamos fazer este passo con-
fortados não apenas pelo estudo teórico sobre a pessoa africana rea-
lizado nestes anos, mas também por anos de convivência com estas

472 Cf. BERTULETTI, o.c.


473 Borden Parcher Browne, já no início de 1900, na América, afirmava que o funda-
mento metafísico da identidade pessoal do homem deve ser uma mente infinita e
dotada de personalidade: Deus como Pessoa. Cf. V. MELCHIORRE, Essere Persona. Natura
e Struttura, Novara, Fondazione Boroli, 2007, p. 27.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página207

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 207

pessoas africanas e com a sua cultura. A vida prática vivida com


estes africanos permitiu-me conhecer muito mais sobre quem é a
pessoa africana.
Os filósofos e teólogos da libertação latino-americanos sustentam
que ninguém pode fazer, seriamente, filosofia ou teologia da liber-
tação sem viver na América Latina e sem assumir a causa dos
pobres. De facto, experimentei a enorme diferença entre a teologia
da libertação que estudei na Facoltà Teologica dell’Italia Settentrio-
nale, em Milão, e a teologia da libertação que conheci e vivi nos
anos transcorridos na América Latina, no encontro com os vários
teólogos e militantes, e sobretudo em contacto com os pobres.
Não sei se os filósofos africanos defendem o mesmo diktat dos
colegas latino-americanos, mas, certamente, os anos passados em
África permitiram-me compreender mais a fundo a filosofia e a cul-
tura africanas, abrindo-me a visões maravilhosas e inesperadas.
Também acedi ao convite «Bela nymbani» («entre em casa») 474 e
entrei na casa destes indígenas africanos que me acolheram como
um irmão.
Vivi 12 anos em Inhambane, uma terra estupenda e estendida ao
longo de uma baía ao largo do oceano Índico, em contacto com os
membros das etnias Vatonga, Vathswa e Vacopi.

474 Os anciãos da terra de Sewe (Inhambane, Moçambique) contam que, a 10 de Ja-

neiro de 1498, o famoso navegador português Vasco da Gama, a caminho das Índias,
chegou com as suas embarcações à baía de Inhambane. Era um dia muito chuvoso.
Avizinhando-se dos indígenas, perguntou-lhes qual era o nome da localidade. Vendo a
forte chuva, estes dirigiram-lhe a palavra com um sorriso nos lábios: «Bela nyumbani»
(«entre em casa»), e ofereceram-lhes hospitalidade e produtos locais. Impressionado por
tanta hospitalidade, Vasco da Gama escreveu que naquele dia havia entrado na bela
terra de «Inhambane», terra de boa gente. De facto, havia interpretado as palavras dos
indígenas como resposta à sua questão. Ainda hoje, a terra de Sewe é chamada «Inham-
bane», «Terra da boa gente». Esta história real, embora revestida de lenda, resume per-
feitamente a natureza da pessoa africana: hospitaleira, aberta aos outros e generosa. Esta
figura é um emblema não só da gente desta terra (de Inhambane e de Moçambique),
mas da África inteira. Se quiséssemos perguntar idealmente aos africanos qual é a sua
ideia de pessoa, com um sorriso nos lábios, responderiam-nos ainda hoje com estas
duas palavras, que valem muito mais do que inteiros tratados filosóficos sobre a pessoa:
«Bela nyumbani!»
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página208

208 | MUNTUÍSMO

Nos primeiros tempos, mergulhei literalmente na escola dos


sábios indígenas, frequentando um curso de inculturação, que me
introduziu na cultura e tradição locais. Segui um curso de língua
Guitonga com professores que a têm como língua materna. Nos pri-
meiros anos, trabalhei na pastoral da formação da juventude, em
contacto com milhares de jovens pertencentes às três etnias, com os
quais tive numerosos intercâmbios culturais que me dotaram de um
conhecimento profundo das suas tradições. Cinco anos depois da
minha chegada à África, graduei-me em filosofia numa universi-
dade estatal (Universidade Pedagógica de Moçambique), estudan-
do em particular a filosofia africana, com os professores Severino
Elias Ngoenha e José Paulino Castiano. Nos anos seguintes, fui
docente na Universidade Pedagógica Sagrada Família (uma delega-
ção da Universidade Pedagógica) em Maxixe, ocupando-me de Fi-
losofia e Teologia Africana, e de Filosofia e Teologia contemporânea.
O debate com os estudantes durante as aulas ajudou-me a conhecer
e aprofundar sempre mais os usos e costumes dos Vatonga,
Vathswa e Vacopi.
Nos últimos três anos, em vista do doutoramento, aprofundei
especificamente o tema da ideia de pessoa na filosofia africana,
cujos resultados apresentam-se neste texto.
O objectivo principal da minha pesquisa era demonstrar a origi-
nalidade do pensamento africano a respeito da ideia de pessoa. A
filosofia africana, por si só, é uma surpresa para muitos europeus,
que a ignoram completamente. Nos últimos anos, todos quanto me
pediam informações sobre o meu tema de pesquisa, ouvindo-me
responder que se debruçava sobre a filosofia africana, pergun-
tavam-se invariavelmente: «Mas existe uma filosofia africana?» A
maior surpresa será, não apenas descobrir que existe uma filosofia
africana, mas que existe igualmente um modelo teórico de pessoa
africana, muito mais autêntico do que outros modelos conhecidos.
O modelo que delineamos é o do «Muntuísmo», definido como
modelo teórico do «personalismo africano».
Os princípios fundamentais do personalismo são: Deus, Pessoa,
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página209

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 209

Comunidade. Ao longo do estudo procurámos fazer emergir estes


princípios do personalismo, presentes na filosofia e cultura africana,
mais do que na ocidental, a ponto de podermos concluir que a filo-
sofia africana é essencialmente personalista. Dito diversamente, po-
demos afirmar que o personalismo ocidental é apenas teórico, não
corresponde à vida do homem ocidental, enquanto o africano é
prático, vivido na vida concreta dos africanos.
Partamos da dimensão transcendental. A filosofia ocidental con-
temporânea, a partir de Nietzsche, perdeu a sua dimensão trans-
cendental 475. À «morte de Deus» seguiu-se a morte da filosofia, a
crise dos fundamentos. O critério da verdade como princípio fun-
damental para a filosofia foi substituído por outros critérios mais
«utilitaristas» 476. As próprias filosofias da práxis mostram interesse
em transformar o mundo, mais do que em preocupar-se com a ver-
dade absoluta. Uma filosofia que marginaliza ou exclui a ideia de
Deus não pode ser considerada personalista. Os filósofos ocidentais,
pelo menos os da área norte-atlântica, sofrem de uma «ignorância»
teológica que barra, preconceituosamente, o acesso às razões da fé.
Pensamos que, assim como nenhum teólogo pode ignorar a filosofia
– de facto, todos os teólogos a estudam ampla e aprofundada-
mente –, também os filósofos não podem ignorar a teologia. Um
grande número de filósofos latino-americanos e africanos é com-
posto por teólogos, facto que abre-lhes o acesso ao discurso da ver-
dade, do sentido do homem e do mundo.

475 É verdade que já na Idade Moderna, e com o Iluminismo, introduziu-se a contes-

tação da ideia de Deus e da religião, mas manteve-se ainda a pesquisa da verdade, e a


metafísica.
476 Basta citar os filósofos pós-modernos, entre os quais Rorty, Lyotard, Vattimo, para

aperceber-se como o critério da utilidade substituiu o da verdade. Para Rorty, a filosofia


terminou, porque foi desmembrada em várias disciplinas autónomas e mais perti-
nentes, de modo que as novas ciências fazem melhor o que antes fazia a filosofia. Para
Lyotard, a filosofia terminou porque o mundo antigo, dominado da ideia tipicamente
filosófica da totalidade, foi substituído pela fragmentação e particularidade do saber
prático. Para Vattimo, o fim da filosofia é marcado pela substituição do pensamento
«forte» pelo pensamento «fraco», o qual não se baseia mais na verdade absoluta, mas
sobre opiniões compartilhadas. Cf. O meu Curso de Filosofia Contemporânea. A Filosofia
Pós-moderna, pro-manuscriptum, Maxixe, UniSaF, 2008.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página210

210 | MUNTUÍSMO

Quanto à dimensão da Pessoa. Com o preconceituoso fechamento


da filosofia ocidental às razões da fé, fecha-se igualmente o acesso à
verdade da pessoa. Como dito, afirmar o ser da pessoa não diz nada
acerca da verdade do seu ser. A ideia de pessoa no Ocidente é a de
um ser individual que busca o seu sentido em si mesmo, prescin-
dindo de Deus e dos outros.
No que toca à dimensão da Comunidade, o Ocidente concebe a
comunidade como espaço de reivindicação dos direitos individuais
(no sentido da filosofia marxista ou filosofias da práxis), e não como
uma realidade de comunhão na qual a pessoa encontra o seu
sentido.
A ideia de pessoa na filosofia africana contemporânea contém
em si os três princípios fundamentais do personalismo: Deus-
-Pessoa-Comunidade. A pessoa africana é um ser ontologicamente
religioso: a sua fé em Deus funda a verdade da pessoa. A comuni-
dade é um elemento fundamental (I am because we are…), sem o qual
o indivíduo seria desenraizado. O ponto fraco para a formulação de
um «personalismo africano» parece ser precisamente a ideia de
pessoa que desapareceria perante a supremacia da comunidade. De
facto, o indivíduo parece desaparecer diante da comunidade.
Vimos, porém, a posição de Kwame Gyekye que reivindica uma
identidade de pessoa como ser livre, capaz de escolhas autónomas e
com valores intrínsecos. Redesenhámos o seu discurso fazendo
alusão à história política do Gana pós-independente.
Como Gyekye, pensamos que o «comunitarismo» africano, ao
longo dos anos, se tenha tornado um «lugar-comum», que frequen-
temente é contradito pela realidade. Após muitos anos de con-
vivência em terras africanas, apercebemo-nos que a comunidade é
importante, mas não determinante na vida do sujeito. Conhecemos
mulheres que se recusaram a submeter-se ao ritual da purificação
imposto pela família; jovens que tomaram decisões sobre a sua vida
em contraste com as decisões da família; numerosas pessoas que se
destacaram em muitos campos – o académico, o artístico, o político,
etc. – mostrando forte personalidade. Por todos estes factos, pode-
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página211

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 211

mos concluir que a cultura africana é essencialmente personalista.


Não só, como também há uma precedência do personalismo afri-
cano sobre o europeu.
Os filósofos e intelectuais africanos, a partir dos ensinamentos de
Cheikh Anta Diop, reivindicam o primado da antiga sapiência afri-
cana sobre a cultura grega, através da civilização do «Egipto negro»,
e também o primado da filosofia e teologia da libertação africana
sobre a latino-americana. Podemos, com justiça, reivindicar igual-
mente o primado do personalismo. Esta tese é também defendida
por Rufus Burrow Jr. no seu artigo «Personalism and African Tradi-
tional Thought»: «African theology and philosophy are essentially per-
sonalistic. Because African theology and philosophy are older, and it is
known that some ancient Western thinkers whose ideas influenced perso-
nalism actually learned these in Egypt, it is not far-fetched to say that
African traditional thought spawned personalism» 477.
Burrow continua afirmando que «Personalism maintains that the
God of African traditional religion, of the eighth century prophets and
Jesus Christ, is the Originator and Sustainer of all persons. Personalists
focus primarily on the centrality of persons-in-community» 478.
Segundo nos parece, a «pessoa africana» mantém o seu valor
único graças à abertura ao transcendente e à comunidade.
Nos debates sobre a África, geralmente, os afro-pessimistas atri-
buem o subdesenvolvimento da África à sua cultura, às suas
crenças e ao seu comunitarismo que contrasta com a lógica da acu-
mulação de capital, impedindo assim o desenvolvimento. Não
obstante o atraso da África em relação ao Ocidente, quanto ao as-

477 «A teologia e filosofia africanas são essencialmente personalistas. Porque a teolo-

gia e filosofia africanas são mais antigas, e é conhecido que alguns pensadores ociden-
tais antigos, cujas ideias influenciaram o personalismo actual, aprenderam estas no
Egipto, não é exagero dizer que o pensamento tradicional africano gerou o personalis-
mo» [T. do A.], em R. BURROW Jr., «Personalism and African Traditional Thought», in
Encounter, 61.3, 2000, p. 323.
478 «O personalismo sustenta que o Deus da religião tradicional africana, dos profe-

tas do século VIII a.C. e Jesus Cristo, é o Criador e Sustentador de todas as pessoas. O
personalismo centrar-se essencialmente na centralidade das pessoas-em-comunidade»
[T. do A.], Ibidem, p. 324.
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212 | MUNTUÍSMO

pecto económico, à luz de quanto analisado, certamente podemos


afirmar que tal atraso não afecta de maneira alguma o mais amplo
contexto humano, espiritual, moral, etc. A África é depositária de
grandes valores, intrínsecos à sua cultura.
Trata-se, então, de conciliar o desenvolvimento com os valores
africanos: por exemplo, como conciliar uma economia (a capitalista)
que se baseia na acumulação de bens e o dever de dividir os bens
com todos os membros da família alargada? Valores tradicionais e
globalização?
A via proposta por Eboussi Boulaga parece-nos justa: (re)partir
da tradição liberta do folclore e do essencialismo 479; saber distinguir
os rostos das máscaras; construir o discurso para si e para o outro com
vista a construir uma universalidade concreta que não é já dada,
mas em construção, para cuja construção o Muntu pode e deve con-
tribuir. A conclusão de Eboussi Boulaga é particularmente ilumi-
nante: o Muntu não deve sonhar para além da sua época «Gli basta
abitare la sua diversità e quella del mondo, con e nel progetto di essere per
se stesso e in virtù di se stesso, con la mediazione dell’avere e del fare. […]
Sono questi i lineamenti di una dialettica dell’autenticità, connessa a una
storia particolare della libertà ragionevole e aperta ad un universale con-
creto da fare, un’autenticità che non è altro per il Muntu che costruire il
tempo e lo spazio del suo impegno, il campo dell’esperienza che gli è possi-
bile in un mondo che lo circonda e che è insieme al suo interno» 480.
Não se trata nem da exaltação do homem africano como porta-
dor de valores e produtos exóticos, nem da sua subvalorização por

479 Para Eboussi Boulaga, essencialismo é procurar a autenticidade africana nas ori-
gens perdidas. Veja acima.
480 «Basta-lhe habitar a sua diversidade e a do mundo, com e no projecto de ser para

si mesmo e em virtude de si mesmo, com a mediação do ter e do fazer. […] São estas as
linhas de uma dialéctica da autenticidade, conectada a uma história particular da liber-
dade racional e aberta a um universal concreto a fazer, uma autenticidade que não é
outra coisa para o Muntu de que construir o tempo e o espaço do seu empenho, o cam-
po da experiência que lhe é possível num mundo que o circunda e que está ao mesmo
tempo no seu interior» [T. do A.], em F. EBOUSSI BOULAGA, La crise du Muntu. Authenticité
africaine et philosophie, Paris, Présence Africaine, 1977, tr. it.: Autenticità africana e filosofia.
La crisi del Muntu. Intelligenza, responsabilità, liberazione, Milão, ed. Mariotti, 2007, p. 241.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página213

REVISÃO SISTEMÁTICA E PERSPECTIVAS | 213

causa do atraso económico, mas simplesmente do reconhecimento


do valor da pessoa africana, assim como de cada pessoa em qualquer
parte do mundo. A pessoa africana é portadora de um valor acres-
cido, não indiferente: a abertura ao transcendente e aos outros a
torna mais autêntica em relação às ideias de pessoa fechadas nos
dolorosos espaços do individualismo e do agnosticismo.
Penso que esta seja a mensagem mais importante que a África
pode dar ao mundo: o valor da pessoa humana, que encontra a sua
verdade em Deus e no dom de si aos outros.
Esta ideia de pessoa africana é necessariamente indeduzível e
apenas pode ser dita metaforicamente, dando o justo valor e reco-
nhecimento ao carácter ulterior da sua verdade. A sua verdade não
é conceitualmente demonstrada, apenas confirmada historicamente
no facto de ter guiado e sustentado, por milénios, gerações inteiras
até aos nossos dias, superando os dramas da escravidão, do colo-
nialismo e do genocídio.
Definimos esta verdade da pessoa africana com o neologismo:
Muntuísmo. O Muntuísmo diferencia-se do Bantuísmo e do Ubuntuís-
mo, visto que os últimos indicam um conjunto de valores típicos da
cultura africana que abraça diversos campos. Por Muntuísmo enten-
demos o modelo de pessoa africana que encontra a sua verdade e
abertura transcendental e horizontal, que definimos no aforisma:
«I Am because I Believe and I Love.»
Num mundo confuso como o nosso, a sageza africana poderá
ajudar a reencontrar o sentido perdido de ser pessoa. Com a sua de-
sarmante simplicidade e com o seu sorriso, a pessoa africana lança-
-nos mais uma vez o seu convite: Bela Nyumbani!
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Agradecimentos

Um agradecimento especial a:

Prof.ª Francesca Bonicalzi, da Università degli Studi di Bergamo


(UniBg), minha orientadora.

Prof.ª Lidia Procesi, da Università degli Studi Roma Tre.

Prof. Severino Elias Ngoenha, da Universidade Pedagógica de Mo-


çambique.

Gostava também de agradecer:

Ao Ill.mo Prof. Giuseppe Bertagna e a todos os professores do Depar-


tamento de Scienze della Persona da UniBg.

Aos estudantes de Filosofia da Educação dos anos académicos 2008-


-2009 da Universidade Pedagógica Sagrada Família, e especialmente aos
estudantes do ano 2010 aqui citados, por nos terem ajudado na pesquisa
de campo:
Adelaide da C. Taimo; Alberto da Cruz Bilério; Alberto Niquice Ofice;
Almeida da C. Nhabomba; Amélia Manuel A. Lucas; Atanásio da C. Belar-
mino; Augusto Andela Junior; Baldovino Quehà; Benedita Arlindo Matias;
Benildo Francisco Nhabomba; Bento Alfredo Ombe; Benvinda da Vera
Bonifácio; Calton Armindo Mahoche; Cândido E. W. Chissengue; Carlos
Maurício Macaringue; Clara Felisberto Muhacha; Clarêncio Simão Muane;
Constantino Filipe Z. Muba; Cristina Teresa Leonardo; Cubilas Alberto
Siniquinha; Daniel Rongo Pascoal; Diamantino Destino Malaia; Dionísio
Fernando Salomão; Eduarda Maria Zacarias; Emílio Augusto Nhacundela;
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página216

216 | MUNTUÍSMO

Eugénio Alberto Siniquinha; Eunice da A. E. Machava; Felizarda Berane;


Filipe Caetano Chaúque; Florencia Luísa M. Canhore; Francisco Sebastião
Novele; Graça Alexandre Marengule; Guivith R. Mamuquele; Isabel Zero
Fernando; João Constantino Cofe; Jorge Jaime Chinangua; Jossua da
Esperança Jossua; Juca Mário Bata; Julião Teonildo A. Muhacha; Leonor
Felisberto; Lionel Nildo Castigo; Lorindo João Felix; Lurdes Sebastião
Macuácua; Mário João Dombole; Ondino João Chaimite; Patrice E. Muco-
cosolane; Reginaldo Alexandre; Ricardino Eusébio Pascoal; Ricardo Faus-
tino; Ricardo Manuel Tafula; Ricardo Noa Nhamuave; Samuel Joaquim
Inhalungo; Sandra A. C. Abdurahamane; Sandra Benedito Mazivile; Sílvia
Joana Bule; Sofia Senete Muchisse; Sónia Candida Daniel Simone; Sónia
César A. Muzazaila; Sónia Suzana Jacinto; Telávio José Churrana; Victor
Alberto Macuacua; Vitorino Bambo Chilamba; Xavier Bernardo Tauzene.

À minha Congregação da Sagrada Família, ao Superior-Geral P. Michel-


angelo Moioli, ao Superior Regional P. Gianmarco Paris, e à minha comu-
nidade religiosa da Maxixe: Irmã Lica Veloso, P. Fausto Ghirardelli, Irmã
Valdina Luiza Gonzaga, Ir. Luís Pazian, Irmã Creuza Maria Anastàsio,
P. Pierantonio Ubbiali, Irmã Isidora Veloso. O agradecimento é também
extensivo aos P. Casimiro Facco e P. Domingos Mazive, P. Angelo Fratus.

Aos meus familiares, especialmente Vanna, Riccardo e Nicole, parentes


e amigos.

Aos doutores Arsénio Chelengo, Julião Mouzinho Zandamela, Gabriel


Alfiado, Francisco Fernando, Stelio Paulino Mufaniquisso, Carlos Massan-
go, Shaun Bisset.

Aos docentes da UnisaF, especialmente à directora-adjunta, Dra. Crisa-


lita Djeco, aos estudantes e funcionários, e todos quanto directa ou indi-
rectamente me ajudaram nestes três anos de estudo.
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Bibliografia

Dividimos a nossa bibliografia em três apartados.


Na Literatura Principal constam os textos dos autores examinados que
formam o objecto material principal da nossa pesquisa.
Na Literatura Complementar figuram outros textos dos mesmos filósofos,
de que fizemos menção acima, ou de outros filósofos significativos que
completam o objecto material.
Por fim, na Literatura Secundária apresentamos todos os demais textos
analisados, que nos ajudaram a aprofundar a pesquisa, mas que não cons-
tituem directamente o objecto material do nosso estudo.

1. Literatura Principal

BOULAGA, Fabien Eboussi , La crise du Muntu. Authenticité africaine et philoso-


phie, Essai, Paris, Présence Africaine, 1977, 239 pp. (tr. it.: Autenticità
africana e filosofia. La crisi del Muntu. Intelligenza, responsabilità, libera-
zione, Milão, ed. Mariotti, 2007, 280 pp.).
CASTIANO, J. P., Referenciais da Filosofia Africana. Em busca da intersubjectiva-
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GYEKYE, K., An Essay on African Philosophical Thought: The Akan Conceptual
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JUNOD, H., Usos e costumes dos Bantos, Lourenço Marques, vol. I e II, 1974.
LOPES, F., Terzomondialità. Riflessioni sulla comunicazione interperiferica,
Turim, L’Harmattan-Italia, 1997.
KAGAME, A., La philosophie bantu-rwandaise de l'être, Bruxelles, ARSC, 1956,
448 pp.
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página218

218 | MUNTUÍSMO

__________, La philosophie bantu comparée, Paris, Présence Africaine, 1976,


334 pp.
MBITI, J., African Religions and Philosophy, 1969 (tr. it.: Oltre la magia, Turim,
SEI, 1992, 320 pp.).
MENKITI, I. A., «Person and Community in African traditional Thought», in
R. A. WRIGHT, African Philosophy: An Introduction, University Press of
America, 1979, pp. 57-68 [3.ª ed., 1984, pp. 171-181].
MULAGO, Vicent, Un visage africain du christianisme, Paris, Présence Afri-
caine, 1965, 263 pp.
NGOENHA, S. E., Das Independencias às Liberdades. Filosofia Africana, Maputo
Paulistas-África, 1993.
__________, Estatuto Axiológico da Educação, Maputo, Livraria Universitária
UEM, 1998.
TEMPELS, P., La philosophie bantoue, Bruxelles, 1945 (tr. it.: Filosofia bantu,
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WIREDU, K., GYEKYE, K. (eds.), Person and Community: Ghanaian Philosophical
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2. Literatura Complementar

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Itinerarium, Ano LIV / N.º 191, Braga, Maio-Agosto 2008, pp. 359-408.
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buição específica na formação da nova cultura globalizada, pro-manuscripto,
Maxixe, UniSaF, 2009.
__________, Religião Tradicional Bantu, Jangamo, 1998.
BOULAGA, Fabien Eboussi , «Le Bantou Problematique», in SMET, A. J. (ed.),
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Zaïre, 1975, pp. 349-380.
CASTIANO, J. P., A Longa Marcha para Uma Educação para Todos em Moçam-
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__________, Educar para quê?, Maputo, 2006.
KAGAME, A., «L’Ethno-philosophie des “Bantu”», in SMET A. J. (ed.), Philo-
sophie Africaine. Textes choisis I, Presses Universitaires du Zaïre, Kin-
shasa, 1975, pp. 93-114.
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MENKITI, I. A., «On the normative conception of a person», in WIREDU K., A
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AMARAL, A. B., A Celebração da Mhamba entre os Vatonga, Maputo, Edições
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__________, A Morte e os Ritos da Morte na Religião Tradicional Africana,
Beira, Nazaré, 2003.
__________, Dzitekatekane nya Vatonga. História, Clãs, Provérbios e Adágios
dos Vatonga de Inhambane, Milão, Edizioni Biblioteca Francescana, 2009,
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AMARAL, A. B., LAISSE, S. A. J. e NHACOTA, E. F., Dicionários Português-
-Gitonga, Oeiras, Edição Câmara Municipal de Oeiras, 2007, 229 pp.
ASSOGBA, Y., Jean-Marc Ela, Sociologo e Teologo africano con il boubou, Turim,
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BERTULETTI, A., «Il concetto di Persona e il sapere teologico», in AA.VV.,
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BIMWENYI-KWESHI, O., Discours théologique négro-africain. Problèmes des fonde-
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BONO, E. L., Ética ou retórica sobre o outro? As aporias da ética como filosofia pri-
meira de Emmanuel Lévinas. Nas obras «Totalité e Infini» e «Autrement
qu’être», pro-manuscripto, Maputo, UP, 2004.
__________, Curso de Filosofia Contemporânea. A filosofia pós-moderna, pro-
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BRAGUE, R., La saggezza del mondo, Catanzaro, Rubbettino, 2005.
__________, Il futuro dell’Occidente. Nel modello romano la salvezza dell’Eu-
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222 | MUNTUÍSMO

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Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página224
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Apêndice
Lista dos sábios africanos entrevistados

Nome completo Data de Profissão Língua


Nascimento materna

Abiatar Totiwa Vilanculo 10/02/1978 Pastor


(de uma Igreja) Xitswa
Adelina Reginaldo 25/06/1972 Pastora
(de uma Igreja) Guitonga
Adolfo Lucas Simoniane 24/07/1964 Professor
e catequista Guitonga
Afonso Albano Siquice 15/06/1977 Professor Xitswa
Afonso Ruben Maciel 26/05/1940 Professor Xitswa
Afonso Sinalo Bata 18/04/1939 Secretário
de bairro Guitonga
Agostinho A. Vilanculos 20/08/1983 Comerciante
e conselheiro Xitswa
Agostinho Jossua 1943 Animadora
de comunidade Guitonga
Agostinho Paulo Matavela 04/01/1940 Professor Guitonga
Albertina Mário Rombe 1953 Conselheiro
de comunidade Xitswa
Alberto Chambisse 1950 Professor Xitswa
Alberto Laitela 27/02/1947 Secretário
de bairro Xitswa
Alberto Macitela Chapo 27/06/1966 Chefe
do quarteirão Xitswa
Alberto Pequenino 1953 Catequista Guitonga
Alberto Rafael Siniquinha 21/01/1952 Ancião Guitonga
Alexandre dos Anjos Gabriel 27/02/1963 Professor Guitonga
Alexandre N. Vilanculos 25/06/1961 Agente de
serviço Xitswa
Alfredo Changuelane 1949 Mineiro Xitswa
Alfredo Francisco 06/11/1961 Professor Guitonga
Alfredo Mazango Zango 06/11/1932 Curandeiro Xitswa
Amélia Muando ------------- Conselheiro Xitswa
Amina A. Mussa Laca 14/02/1932 Cozinheira Guitonga
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226 | MUNTUÍSMO

Nome completo Data de Profissão Língua


Nascimento materna

Ana Pedro Pimba 25/04/1943 Pastora Xitswa


Ângela Maria Muendane --------------- Presidente
de uma Igreja Xitswa
Aníbal Naene 22/05/1961 Funcionário do
Min. da Saúde Guitonga
António Boavida M. Langa 15/03/1947 Instrutor Chope
António Gomes Matola 23/08/1970 Professor
universitário Xitswa
António Jorge Consule 13/04/1967 Gestor Guitonga
António Lourenço Tualufo 15/03/1961 Agente de
segurança Xitswa
António Manuel 13/07/1959 Professor Xitswa
António Pedro Gomes 12/04/1965 Professor Xitswa
Armando Namburete 05/02/1940 Alfaiate Guitonga
Artur Manuel 01/01/1957 Técnico
Pedagógico Xitswa
Augusto Chelene 07/04/1945 Curandeiro Xitswa
Augusto Nguila 20/06/1940 Padeiro Guitonga
Baptista Samuel Lichucha 02/08/1962 Camponesa
e conselheira Guitonga
Beatriz Elias 04/04/1944 Resp. da Igreja
Metodista Chope
Beatriz M. L. Vilanculos 23/06/1963 Membro da
Igreja Católica Xitswa
Belarmino Samussone 09/09/1959 Dactilógrafo Xitswa
Bernardo A. Maculule 15/03/1958 Agente
de serviço Xitswa
Bernardo C. Guirungo 07/08/1957 Professor Guitonga
Caferina P. Macuacua 23/07/1961 Professora Xitswa
Carmina da C. Novele 20/03/1949 Enfermeira
e conselheira Xitswa
Catarina Joaquim 26/11/1961 Professora Xitswa
Catarina Jossias 07/06/1968 Professora Guitonga
Catarina Taims Macuacua 22/08/1962 Professora Xitswa
Cecília J. Augusto Bambamba 15/01/1947 Camponesa Guitonga
Celeste Pende 13/06/1951 Evangelista Xitswa
Cristomo Nhambire 23/05/1947 Professora Guitonga
David Johane 08/01/1956 Funcionário do
Ap. do Estado Xitswa
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APÊNDICE | 227

Nome completo Data de Profissão Língua


Nascimento materna

Delfina Filipe Ujembe 06/06/1966 Funcionário do


Ap. do Estado Xitswa
Diamantino D. Malaia 1949 Professor Guitonga
Domingas José Franca 15/08/1935 Técnico Guitonga
Ernesto J. M. Guiamba 03/11/1945 Pastor Xitswa
Ernesto Joaquim Surjao 28/04/1959 Professor Guitonga
Ernesto Julai Zunguze 05/03/1954 Ancião
Ernesto Marringue 1967 Professor
universitário Xitswa
Ernesto T. Ricardo Foliche 07/09/1964 Professor Guitonga
Etelvina Raúl Mazivila 13/03/1959 Professora Xitswa
Evelina Jaime 1965 Professora Guitonga
Felizarda M. Nhantumbo 24/04/1975 Professora Guitonga
Fernando E. Cumbane 20/08/1954 Técnico Guitonga
Fernando Jorge Novele 14/08/1961 Técnico de
comunicações Xitswa
Filipe Amone 1945 Conselheiro
de casais Guitonga
Filomena Victorino 18/11/1950 Funcionária Guitonga
Firmino Júlio 11/10/1953 Director
de escola Xitswa
Floriana Marcelino 12/03/1951 Agente
de serviço Xitswa
Francisco A. S. Novela 16/03/1958 Agrónomo Xitswa
Francisco Elija 13/02/1952 Líder
comunitário Guitonga
Francisco Jeremias 1938 Animador de
comunidade Guitonga
Francisco Mathe Muhoro 20/06/1940 Régulo Xitswa
Gil Raimundo 22/07/1985 Professor e
jornalista Xitswa
Gildo João Agostinho 20/12/1960 Professo Guitonga
Gildo Pedro Malawene 28/05/1977 Comerciante Guitonga
Gloria C. F. S. Chongola 30/01/1966 Secretária
de bairro Guitonga
Gueze Jermane 03/07/1945 Curandeiro Xitswa
Helana Lassita Chambele 08/08/1962 Doméstica Xitswa
Henrique Zacarias 05/08/1951 Catequista
católico Xitswa
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228 | MUNTUÍSMO

Nome completo Data de Profissão Língua


Nascimento materna

Hilário Guibundana ------------ Secretário


de bairro Guitonga
Hilário João Bata 23/01/1945 Carpinteiro Guitonga
Hilário Mudumela 1961 Professor Guitonga
Horácio Jaime Ofice 06/05/1959 Professor Guitonga
Hortêncio Júlio Marcos 07/01/1968 Conselheira
de comunidade Guitonga
Idália H. M. Macauze 14/01/1962 Pastora Xitswa
Irene Jeremias Chilungo 1952 Doméstica Xitswa
Isabel Armando Cuamba 01/11/1963 Evangelista Xitswa
Isabel Josias Maculuve 1960 Doméstica Xitswa
Isabel Maralela 1961 Curandeira Guitonga
Isabel Seneta Malanzela 23/11/1963 Professora Guitonga
Jaime Jaimine João 27/07/1943 Carpinteiro Guitonga
Januário Maela Alfaiate Guitonga
Jeremias Julião Macuacua 03/11/1964 Secretário
de bairro Xitswa
Jertrudes Filipe 1966 Tesoureiro
de comunidade Guitonga
Joana Djombosse Pacule 01/01/1950 Lavadeira Xitswa
Joana Lopes Bulha 26/01/1954 Enfermeira Guitonga
Joana Pencela Neves 09/05/1984 Camponesa Xitswa
João Cuamba Guinengane 07/09/1963 Professor Guitonga
João Feliciano Matsinhe 30/10/1975 Pastor Xitswa
João Fernando 24/06/1972 Professor Guitonga
João Filipe Guirengane 16/01/1937 Pedreiro
e secretário
de bairro Guitonga
João Rungo 15/08/1955 Técnico de
construções Guitonga
Joaquim A. Chinangua 26/06/1960 Professor
e educador Sena
Joaquim Fortunato 14/11/1939 Técnico de
construções Guitonga
Joaquim Jossias 22/09/1922 Ancião Xitswa
Joaquina U. Vilanculos 13/07/1968 Pastora Xitswa
Jorge J. Zacarias Matsinhe 25/09/1966 Catequista Xitswa
José D. Chambela 01/01/1954 Curandeiro Xitswa
José Feniosse 14/08/1969 Professor Guitonga
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página229

APÊNDICE | 229

Nome completo Data de Profissão Língua


Nascimento materna

José João Maguirimussa 02/10/1935 Comerciante Guitonga


José Naftal Matoimbe 10/04/1950 Religioso Xitswa
José Raimundo Guebuza 13/05/1954 Professor Guitonga
José Zaqueu 16/09/1946 Professor Guitonga
Josefa M. Matandalane 15/10/1944 Anciã Guitonga
Júlia Faela 01/01/1962 Curandeira Guitonga
Juliana Nicolau 05/12/1938 Professora Xitswa
Laura Acácio ------------- Professora Xitswa
Linda I. Simbada 18/05/1955 Professora Xitswa
Lourenço da Silva 07/01/1945 Motorista
e conselheiro Guitonga
Luís Francisco 19/09/1949 Pedreiro Guitonga
Luís Gonzaga Auze Professor
aposentado Guitonga
Luís Manuel 01/01/1961 Ferreiro Guitonga
Luísa Manuel ------------- Secretária
de bairro Guitonga
Manuel Alberto Florêncio 01/02/1964 Director
de escola Guitonga
Manuel A. José Bambo 17/02/1964 Deputado
no Parlamento Xitswa
Manuel Carlos Fonseca 12/11/1953 Professor
aposentado Xitswa
Manuel Filipe Gota 15/01/1955 Auxiliar Guitonga
Manuel José Matrena 04/01/1970 Líder
comunitário Xitswa
Marciana Zefanias 16/06/1949 Madrinha Chope
Marcos Tai Nhantumbo 27/02/1935 Professor Xitswa
Maria Bambo 07/11/1960 Líder religioso Guitonga
Maria de Lurdes S. Chale 24/06/1952 Professora Chope
Maria Joana Luís Lampião 28/12/1954 Professora Guitonga
Maria Luísa Mercedes 06/12/1932 Animadora Xitswa
Maria Rezia Laisse 22/08/1949 Contabilista Guitonga
Maria Rungo 24/03/1942 Camponesa Guitonga
Maria Safo 1951 Curandeira Guitonga
Maria Xavier Zaqueu 30/11/1950 Dactilógrafa
e conselheira Xitswa
Mariana de F. R. Fortunato 06/02/1959 Professora Xitswa
Mário Manuel 04/06/1950 Técnico de AP Guitonga
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página230

230 | MUNTUÍSMO

Nome completo Data de Profissão Língua


Nascimento materna

Marta Macolote 23/06/1965 Director de escola Guitonga


Maurício Flores 02/09/1955 Auxiliar
administrativo Guitonga
Mequilina Chitofo 1935 Camponesa Xitswa
Micas Raiane Gungulo 22/03/1962 Curandeira Xitswa
Miguel dos Santos 08/01/1972 Sacerdote Macua
Miguel Menengene Régulo Guitonga
Mónica Mequel Uamsse 10/07/1960 Professora Guitonga
Muando Bernando 24/02/1942 Ancião Guitonga
Muhammado Sejo 1950 Professor Xitswa
Mussagy S. Aly Dauto 26/11/1949 Sheick
da mesquita Guitonga
Nafitissa Jeque Manhisse Camponesa Xitswa
Natália Jamal 25/12/1944 Doméstica Guitonga
Natividade Ilda Francisco 07/03/1968 Chefe
de quarteirão Xitswa
Nunes Jermias Mulombo 01/08/1968 Pastor Xitswa
Oliveira Naftal 01/01/1947 Pastor Xitswa
Orlando Cuamba 26/04/1961 Professora Guitonga
Orlando E. Vilanculos 10/12/1973 Professor e
líder religioso Guitonga
Paciência F. Guibunda 16/01/1964 Professora Chope
Pascoal Jetuane 25/11/1977 Professor Guitonga
Paulo Baptista Bata 22/02/1949 Mecânico Guitonga
Paulo Filipe Guambe 28/02/1928 Professor Chope
Paulo Inácio 24/04/1960 Bibliotecário Guitonga
Paulo Palege 10/05/1962 Secretário
de bairro Xitswa
Pitorane T. Matavela 1943 Guarda Xitswa
Prezelina A. Mahumane 09/02/1963 Secretário
de bairro Guitonga
Rafael Baptista 30/04/1961 Professor Guitonga
Rafael Jaime Chissico 15/11/1952 Educador Xitswa
Rafael Tenossi 1957 Conselheiro Guitonga
Rafael Xavier Chilaule ------------ Ancião Xitswa
Raimundo Rafael Mabota 30/04/1946 Enfermeiro Chope
Rebeca W. Macuacua 21/06/1977 Professora Xitswa
Ricardo Menete 10/11/1957 Técnico
electrónico Xitswa
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página231

APÊNDICE | 231

Nome completo Data de Profissão Língua


Nascimento materna

Roberto Carlos Cumbe 10/04/1942 Líder


comunitário Xitswa
Romão Inácio Neves ------------- Técnico agrário Xitswa
Rosa Nguila 1958 Conselheira na
Igreja Católica Xitswa
Rosalina Manuel Mazive 20/05/1950 Conselheira
de comunidade Xitswa
Rosalina V. Monteiro 16/09/1935 Enfermeira Guitonga
Rungo Faustino Guilamba 12/11/1957 Carpinteiro Guitonga
Salvador Ricardo 02/02/1953 Técnico
pedagógico Xitswa
Samuel Foquiço Chachai 03/12/1953 Agente de
medicina Xitswa
Samuel Tualufo Sevene 06/09/1974 Professor Xitswa
Sara Zacarias 07/05/1958 Modista Xitswa
Sarafina Silva Namburete 16/07/1966 Doméstica Xitswa
Sartina Simone 1958 Doméstica Xitswa
Sebastião Ucela Vilanculo 04/02/1949 Pastor Xitswa
Simão Alberto Zimora 01/01/1962 Carpinteiro Guitonga
Simão Belanhane Manhenje 13/11/1943 Mecânico Guitonga
Simão Welemo 11/11/1941 Professor Xitswa
Simião Alfred Muendane 15/07/1958 Régulo Xitswa
Suzana Tauzene 11/03/1960 Professora Xitswa
Teresa Rungo 25/10/1939 Rep. da Igreja
Congregacional Xitswa
Texeira Carlos 04/04/1970 Custódio e
líder religioso Guitonga
Ventura P. Zamburene 01/01/1951 Religioso Guitonga
Victória Navesse Tanque 29/05/1943 Enfermeira Xitswa
Victorino P. Nhambomba 1940 Camponês Guitonga
Zaqueu F. Malambane 01/10/1945 Ancião Chope
Zeferino B. Manhice 1923 Alfaiate Xitswa
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Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página233

Índice onomástico

Agostinho de Hipona, 206 Castiano, 110, 113, 124, 125-140,


Aguiar, Joaquim António de, 119 173, 176, 184, 191, 192, 194,
Altuna, 149, 151 200-202, 208
Amaral, 32, 141, 144-156, 176, Césaire, 16, 115, 130
184, 188 Clemente de Alexandria, 23
Asante, 132-133 Colle, 39
Assogba, 47 Crahay, 129, 135, 137, 201, 202
Ayittey, 127 Critchley, 205
Baloi, 128 Delafosse, 115
Bernal, 132 Derrida, 6, 202-203, 205
Bernasconi, 205 Diop, 111, 132, 211
Berthoud, 113 Dos Santos, 145
Bertuletti, 195, 197, 199, 206 Du Bois, 115-116
Biko, 134 Dussel, 104, 204
Bimwenyi-Kweshi, 46-47 Eboussi, 8, 11, 15, 26, 86-102,
Blyden, 116 106, 110, 130, 184, 190-191,
Boff, 47 196, 198, 212
Bongmba, 205 Ellacuria, 204
Brague, 44, 124, 200 Engel, 195-196
Brecht, 127 Epis, 220
Broodryk, 135 Ferretti, 200, 203
Browne, 206 Freire, 134
Burrow, 211 Freud, 86
Bussotti, 113 Frobenius, 115, 149
Cahen, 122 Gandhi, 175
Casely-Hayford, 116 Garvey, 115-116
Muntui?smo:Apresentação 1 15/11/26 12:39 Página234

234 | MUNTUÍSMO

Gerdes, 128 Lopes, 100, 103-113, 131, 136,


Gibellini, 156 147, 184, 190-191
Goduca, 134 Lyotard, 209
Griaule, 129 Macamo, 122-123
Gruner, 81 Malinowsky, 115
Gutierrez, 47 Manguelle, 124
Gyekye, 76, 81-86, 184, 188, 210 Mapera, 157
Hallen, 175 Marinotti, 11, 26
Hardy, 115 Marquês de Pombal, 119
Hegel, 201 Massango, 142
Heidegger, 199, 201, 202, 204 Mbiti, 12, 46, 55-76, 77, 78, 128,
Hountondji, 116, 128-130, 136, 139, 184, 187, 197, 202
Melchiorre, 193, 206
138
Menkiti, 76-86, 184, 187
Jacob, 12
Miguel, 221-222
Ela, 14, 23, 45-55, 74, 111, 190
Mondlane, 113, 122
Jüngel, 25
Mouelle, 124
Junod, 32, 34, 121, 126-127, 152,
Moura, 147
168-169, 184
Mudimbe, 26, 62
Justino, 23
Mulago, 38-45, 184, 186
Kagabo, 26, 38
Mveng, 109, 117, 156, 221
Kagame, 12, 25, 26-38, 56, 62, 96,
Ngana yogo, 16
116, 129, 139, 175, 176, 184, Ngoenha, 52, 58, 111, 113-125,
185, 186 126, 130-131, 136, 138, 139,
Kalumba, 175 171, 184, 191, 194, 202, 208,
Kant, 129 215
Kimmerle, 81 Ngunga, 142, 143
Laisse, 148 Nhacota, 148, 219
Langa, 141, 162, 167-172, 184, Nkemnkia, 186, 223
189 Nkrumah, 188
Leghissa, 12, 26 Nuzzo, 24
Lerma, 140, 157-167, 184, 189 Nyanala, 147
Lévinas, 6, 12, 199, 200, 202-203, Nyerere, 54, 175, 188
204, 205 Oduye, 167
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ÍNDICE ONOMÁSTICO | 235

Oruka, 139, 141, 172-176, 185 Sobrino, 204


Osha, 136 Sócrates, 94, 102
Person, 147 Sopa, 123
Procesi, 11, 14, 26, 87, 102, 215 Tatiana, 12
Rahner, 25 Tempels, 11-25, 26, 30, 31, 45, 55,
Ramose, 134 56, 61, 67, 106, 116, 129, 130,
Rawls, 79 184, 185-186, 218, 221
Rejón, 204 Towa, 124, 130
Rorty, 195-196, 209 Tutu, 65, 117
Sartre, 79 Uthui, 126
Senghor, 105, 115 Vasco da Gama, 207
Serra, 122-123 Vattimo, 25, 209
Shutte, 64 White, 103
Siquisse, 157 Wiredu, 62, 77, 80, 81, 85, 136,
Sitoe, 143 137, 175, 201, 202
Smet, 12, 26, 218 Wright, 76
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Índice geral

Introdução ......................................................................................... 5

CAPÍTULO I – História das Ideias ................................................... 11


Pessoa («Muntu»): da etnofilosofia às teologias ....................... 11
Placide Tempels: Muntu = Pessoa como Força Vital ................. 11
Alexis Kagame: Ser de Inteligência ............................................ 26
Vincent Mulago: Ser como união vital ....................................... 38
Jean-Marc Ela: Ser oprimido ....................................................... 45
John Mbiti: Ser ontologicamente religioso ................................... 55
Menkiti Ifeany A. / Kwame Gyekye: Ser comunitário e Ser
pessoal ........................................................................................ 76
Fabien Eboussi Boulaga: Ser em crise ....................................... 86
Filomeno Lopes: Ser de comunicação ......................................... 103
Severino Elias Ngoenha: Ser sujeito da história ....................... 113
José Paulino Castiano: Ser de Intersubjectivação ...................... 125

CAPÍTULO II– Palabre com «sábios» africanos ............................ 141


A ideia de pessoa na cultura dos Vatonga, Vathswa e Vacopi 141
a) As línguas bantu ....................................................................... 142
b) A cultura dos Vatonga: Amaral Bernardo Amaral ................... 144
c) A cultura dos Vathswa (ou Mathswa): Francisco Lerma Martinez 157
d) A cultura dos Vacopi (Changana/Chope): Adriano Langa ....... 167
e) A metodologia da Sage Phisophy .............................................. 172
Compêndio das entrevistas com duzentos sábios dos povos
Vatonga, Vathswa e Vacopi ....................................................... 176
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238 | MUNTUÍSMO

CAPÍTULO III – Revisão sistemática e perspectivas .................... 183


«Muntuismo»: um «novo» modelo teórico de Pessoa? ........... 183
1) Retomada sistemática ............................................................ 184
a) Corrente cultural/filosófica .................................................... 185
b) Corrente histórico/política ..................................................... 189
Perspectivas .................................................................................... 191
a) A questão metodológica ............................................................. 192
b) Por um personalismo africano («Bela nyumbani») .................. 206

Agradecimentos ................................................................................ 215

Bibliografia ........................................................................................ 217

Apêndice ............................................................................................ 225

Índice onomástico ............................................................................ 233


Muntuísmo, neologismo formado pelo
autor a partir da palavra Muntu («pessoa», na
língua bantu), propõe-se como denomina-
ção de um modelo teórico de «personalismo
africano». A corrente do personalismo, no-
toriamente lançada na França, na primeira
Os velhos da terra de Sewe (Inhamba-
metade do século passado, por Emmanuel
ne, Moçambique) contam que, a 10 de
Mounier, encontra o seu habitat mais natu-
Janeiro de 1498, o famoso navegador ral na cultura africana que é, essencialmente,
português Vasco da Gama, a caminho personalista, enquanto assenta nos três pila-
das Índias, chegou com as suas embar- res da corrente: pessoa, comunidade, Deus.
Ezio Lorenzo Bono é professor de cações à baía de Inhambane. Era um dia No Ocidente, estes pilares desmoronaram:
Filosofia Contemporânea e Africana muito chuvoso. Avizinhando-se dos in- Deus já morreu (executado pelas instâncias
e de Filosofia da Educação, na Uni- dígenas, perguntou-lhes qual era o nome niilistas e positivistas da contemporaneida-
versidade Pedagógica-Maxixe (Uni- da localidade. Vendo a forte chuva, estes de); a comunidade é concebida prevalente-
mente como espaço de reivindicação dos
SaF), de que é director. É ainda pro- dirigiram-lhe a palavra com um sorriso
direitos individuais (no sentido na filosofia
fessor nos cursos de Mestrado e Dou- nos lábios: «Bela nymbani» («entre em marxista ou filosofia da práxis); e a pessoa
toramento da Universidade Pedagó- casa») e ofereceram-lhes hospitalidade e está reduzida ao indivíduo sem nenhuma
gica – Moçambique. produtos locais. Impressionado por tan- dimensão transcendental, sufocado na sua
Fez os seus estudos filosóficos, teoló- ta hospitalidade, Vasco da Gama escre- finitude (do preconceituoso fechamento da
gicos e pedagógicos em Itália, Brasil veu no seu diário que, naquele dia, havia cultura à ideia de Deus ficou, consequente-
e Moçambique, concluindo o douto- entrado na bela terra de «Inhambane», mente, também fechado o acesso à verdade
ramento na Università degli Studi di terra de boa gente. De facto, havia inter- da pessoa).
O Muntuísmo – diferente do ubuntuísmo e do
Bergamo (Itália). pretado as palavras dos indígenas como
bantuísmo, que acentuam mais a dimensão
resposta à sua pergunta. Ainda hoje, a
comunitária – coloca no centro o Muntu, o
Da sua obra literária, destaca-se: terra de Sewe é chamada «Inhambane», qual não desaparece perante a comunidade
• La possibilità di parlare di Dio in «Dio, «Terra da boa gente». Esta história real, (o comunitarismo africano é muitas vezes
mistero del mundo» di Eberhard Jüngel, embora revestida de lenda, resume per- um lugar comum contradito pela realidade) e
Bérgamo, 1987; feitamente a natureza da pessoa africa- nem perante Deus (lembrar que os africanos
• Ética ou retórica sobre o outro? As apo- na: hospitaleira, aberta aos outros e ge- chegaram ao monoteísmo antes dos Gregos
rias da ética como filosofia primeira nerosa. Esta figura é um emblema não e Romanos!), mas encontra propriamente a
de Emmanuel Lévinas. Nas obras «To- só da gente desta terra (de Inhambane e sua verdade plurimilenar na dimensão ho-
rizontal e vertical da sua existência. Uma
talité et Infini» e «Autrement qu’être», de Moçambique), mas da África inteira.
maior ênfase da centralidade da pessoa, em
Maputo, 2004; Se quiséssemos perguntar, idealmente,
relação à comunidade, poderá marcar uma
• L’idea di persona nella filosofia africa- aos africanos, qual é a sua ideia de «pes- nova dinâmica no desenvolvimento da hu-
na contemporanea, Bérgamo, 2011. soa», com um sorriso nos lábios, eles res- manitas africana.
ponderiam, ainda hoje, com estas duas «I am (Muntu) because I believe (Deus) and I
palavras, que valem muito mais do que love (Comunidade)»: é o aforismo que me-
inteiros tratados filosóficos sobre a pes- lhor sintetiza os três pilares do Muntuísmo,
soa: «Bela nyumbani»! ou seja, do personalismo africano.

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