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TRÊS VISÕES SOBRE COR E RAÇA NO BRASIL

Jonathan W. Warren, Racial Revolutions: Antiracism and Indian


Resurgence in Brazil, Durham, Duke University Press, 2001. 363 p.
Robin E. Sheriff, Dreaming Equality: Color, Race, and Racism in Urban
Brazil, East Brunswick, Rutgers University Press, 2001. 264 p.
Sandra Lauderdale Graham, Caetana Says No: Women’s Stories from a
Brazilian Slave Society, Cambridge, Cambridge University Press, 2002.
183 p.

Estes são três livros não apenas mui- mistura desconcertante de sofrimen-
to diferentes como também desi- to e alegria, cordialidade e racismo
guais: uma narrativa histórica extre- que constitui os limites das vidas de
mamente detalhada e originalmen- pessoas pobres nas favelas do Rio de
te concebida; um ensaio panfletário Janeiro. As intuições da autora so-
orientado politicamente; e uma bre a favela nos oferecem uma ma-
etnografia cuidadosa e bem escrita, ravilhosa perspectiva tanto sobre a
centrada no conflito entre discurso baía de Guanabara quanto sobre a
e prática. Os três livros efetivamente cidade do Rio, com seus mais de oito
compartilham uma mesma preocupa- milhões de habitantes. Uma etnogra-
ção com as relações raciais no Brasil fia detalhada como esta era neces-
e, mais especificamente, com os me- sária já há muito tempo.
canismos de dominação racial. Dis- No Brasil, ao longo dos últimos vinte
tinguem-se, entretanto, no que anos, aproximadamente, nós sofre-
concerne à perspectiva adotada em mos com divisões acadêmicas e po-
relação à agência e à negociação, bem líticas que afetam o estudo das rela-
como no quanto de esperança ou de- ções raciais e, em particular, a for-
sespero os autores projetam sobre o ma de encarar o racismo de estilo
futuro das relações raciais no Brasil. brasileiro. Os sociólogos têm sido os
O livro de Robin Sheriff, Dreaming que mais francamente vêm denun-
Equality, merece ser recomendado ciando os limites absurdos à mobi-
quando menos pelo tempo que a au- lidade social impostos à grande po-
tora passou em campo e pelo pulação negra e mestiça; entretan-
envolvimento emocional que de- to, eles também têm de modo geral
monstra. Por cerca de dezoito me- se recusado a pesquisar a forma
ses, ela viveu e estudou em meio à como opera o complexo que eu cha-

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mo de “cultura da cor” brasileira – Sheriff e outros têm indicado que há
o modo classificatório e hierárquico diferentes domínios nas relações ra-
como as pessoas de diferentes cores ciais, uns mais árduos que outros.
e posições sociais falam sobre cor e Um domínio interessante é o qua-
diferença. Os antropólogos têm ou dro complexo e em transformação do
ignorado a questão racial ou defen- casamento, ou melhor, do mercado
dido a excepcionalidade do Brasil. do namoro e da construção da no-
Há um número de razões complexas ção de uma rede de possíveis mari-
para isso, incluindo o ressentimen- dos. Surpreendentemente, a autora
to pela forma como os estudiosos não encontra pessoas falando livre-
baseados nos Estados Unidos lidam mente sobre sexualidade e suas co-
com o assunto e com os antropólo- nexões com “raça”. Em minha ex-
gos brasileiros (em geral simples- periência esse sempre foi um “gati-
mente os ignorando). Sheriff conse- lho êmico”. Ao realizar pesquisas
gue evitar a armadilha de transfor- com as classes econômicas mais bai-
mar a inegável diferença do Brasil xas no Brasil, falar de sexo, prazer,
em relação aos Estados Unidos em parceiro ideal e beleza sempre foi
um diferencial anti-racista desse uma forma de tornar mais fácil para
tipo. as pessoas falar de “raça” e racis-
Ela trabalha com estudiosos basea- mo, um tema de outra forma tenso e
dos localmente, cita-os cuidadosa- com freqüência inibidor.
mente, e desenvolve proposições ori- A autora explora a linha entre “cul-
ginais, em vez de dar, uma vez mais, tura de cor” e práticas racistas, e a
a irritante impressão de que ela já forma pela qual as pessoas de classe
sabia de tudo antes de ir a campo. baixa criam seus próprios discursos,
Seu livro é construído em cinco ca- subvertendo os discursos oficiais so-
pítulos e está centrado nas visões dos bre o Brasil como uma nação intrin-
habitantes da favela do Morro do secamente e distintivamente mesti-
Sangue Bom. O estudo lança luz so- ça. Uma coisa é prezar a mestiça-
bre as perspectivas da classe baixa gem de cima para baixo – por exem-
sobre “raça”, as visões das famílias plo, quando a elite declara que “afi-
de classe média quase sempre bran- nal somos todos mestiços”. Outra
cas que vivem “lá embaixo”, ou, coisa é quando o discurso da mistu-
como as pessoas dizem, “no asfal- ra é feito de baixo para cima – quan-
to”, e as dos ativistas mais escolari- do os despossuídos proclamam que
zados de classe média do pequeno, só há uma única raça humana, por-
mas politicamente relevante, movi- que todos os brasileiros têm sangue
mento negro. negro (ou algo do comportamento e

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da cultura negras em seu sangue). damente. Na maior parte das vezes
O reconhecimento da mistura racial o estilo de Sheriff é sedutoramente
que parte do grupo de elite é usado agudo: “é parte da natureza da de-
para apoiar o status quo. Para o gru- mocracia racial, combinada como
po dos mais pobres, a declaração é está com narrativas de amor inter-
mais como um credo, corporificando racial e hierarquias racializadas de
o sonho de uma sociedade racial- poder e exclusão, que torna o mun-
mente justa ainda por se realizar. Um do branco simultaneamente sedutor
pequeno detalhe: Sheriff insiste em e excludente para pessoas como
que a elite política e cultural no Bra- Dona Beatriz” (p. 148).
sil fala de “democracia racial”. Na Infelizmente sua tentativa de inves-
realidade o termo não está (mais) em tigar “para cima” – um esforço opor-
uso, mesmo em construções acadê- tuno especialmente no Brasil, onde
micas ou elitistas de “raça”. O ter- o estudo das relações raciais vem
mo usado agora é “mistura” nas clas- com freqüência ignorando as clas-
ses baixas e “miscigenação” em nar- ses altas – não chega a ser bem su-
rativas pretensamente intelectuais. cedida. De certa maneira Sheriff
Podem-se ouvir críticos da desigual- confirma que os antropólogos ten-
dade racial brasileira vergastarem o dem a ser mais perspicazes no estu-
“mito da democracia racial”, mas já do das classes baixas. Em sua pes-
ninguém postula que o Brasil seja quisa entre a classe média, a sele-
uma democracia desse tipo. Esse ção de entrevistados é bastante ale-
mito, apesar de vivo e gozando de atória. Ademais, a autora ignora os
boa saúde no âmbito da cultura po- mestiços e a importante subcultura
pular, foi deixado sem porta-voz ofi- boêmia, predominantemente branca,
cial. que está bem estabelecida no gran-
Talvez o contraste mais radical en- de e famoso bairro de Santa Tereza,
tre as relações raciais no Brasil e nos perto da comunidade onde ela viveu.
Estados Unidos seja o de que no pri- Ambos os grupos negligenciados
meiro tanto brancos quanto negros, constituem um segmento razoavel-
com diferentes agendas, insistem mente intermediário da população.
obstinadamente, como diz Sheriff, Sua participação teria adendado uma
que fazem parte de uma mesma fa- interessante dimensão à representa-
mília. Afro-brasileiros não se con- ção afinal polar do Rio de Janeiro
tentam com o status de minoria ét- proposta por Sheriff. A cidade tem
nica e racial. Como resultado, ações sofrido muito com representações
e narrativas de “compartilhamento” etnográficas excessivamente sim-
têm de ser desempenhadas reitera- plistas, usualmente em termos de

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extremos: as favelas e o asfalto, os qual o silêncio e as vozes se combi-
bandidos e a polícia. nam nas narrativas sobre relações
Em um ponto, Sheriff cai novamen- raciais no Brasil. Deveria ser inclu-
te no que parece ser uma abordagem ído nos cursos de relações raciais
do Brasil tipicamente centrada nos comparadas. Dreaming Equality é
Estados Unidos. Ela descreve a ên- um livro a ser lido.
fase na classe em vez de na “raça” Racial Revolutions é um livro com
adotada pelo discurso popular sobre outro objetivo e animado por um
relações raciais como resultado de motor bem diferente. Jonathan
um script público que gira em torno Warren tem um envolvimento com-
de apagar a tensão racial (p. 179). pletamente diverso com a “causa ra-
Talvez o que já foi descrito na déca- cial” – ele é menos emocional e é
da de 1940 por Franklin Frazier movido por uma agenda política ex-
como um “compromisso não expres- plícita. Menos que uma etnografia,
so” de não discutir o racismo tam- este livro vai mais na linha das acu-
bém corresponda à opinião popular sações panfletárias contra o trata-
de que o racismo não tem solução. mento bárbaro dos índios no Brasil.
Uma vez que se desperte o fantasma No que me concerne, não é a causa
do racismo, a “raça” se torna algo pela qual ele se levanta o que inco-
que não se pode resolver ou fingir moda, mas a forma descuidada com
ignorar por mais tempo. De uma a qual ele parte para a batalha. Pas-
etnógrafa cuidadosa e intuitiva como sado e presente, fontes de primeira
Robin Sheriff poderíamos esperar e de segunda mão são combinados
uma discussão mais sutil. Felizmen- em uma maneira muito pouco usu-
te, na conclusão ela se supera nova- al, e freqüentemente com uma ter-
mente, contando-nos como sente minologia que não deixa as coisas
saudades da beleza do sonho coleti- claras para o leitor, apesar de um
vo dos brasileiros negros e pobres oportuno glossário anexado ao livro.
de uma igualdade social e racial. O autor emprega uma pletora de
No epílogo Sheriff aponta as mudan- novos termos e lemas “raciais”:
ças dramáticas resultantes do au- “exorcismo indígena”, “estoques ra-
mento tanto do uso quanto da venda ciais”, e “índios pós-tradicionais”.
de cocaína nos bairros pobres cario- Com relação ao último termo, pode-
cas, e a inacreditável violência in- se argumentar que a palavra “índio”
tercomunitária, familiar, da polícia sempre refletiu um conjunto de tra-
e das gangues que os acompanha. dições inventadas. Estudos desen-
Este livro é um convite à etnografia. volvidos no Brasil (o de John
Faz-nos pensar sobre a maneira pela Monteiro entre outros) têm demons-

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trado que os “velhos” índios já eram “raça” e “identidade” são categori-
“pós-tradicionais” nos séculos XVII as discursivas as quais se deve sem-
e XVIII. No campo dos estudos ét- pre e a todo o momento explicar em
nicos e raciais, parcimônia na utili- seu contexto – e não usá-las como
zação de novos termos analíticos é, lemas na narrativa do etnógrafo. A
em minha opinião, um requisito força do livro está em seu foco sobre
imperativo. o que observadores externos perce-
Entretanto efetivamente o livro tem bem como formas fracas de
mérito: insiste na comparação das indianidade: o índio de Minas Ge-
relações entre negros e brancos com rais e do sul da Bahia. Ambos os
as relações entre índios e brancos. grupos estão lutando pelo reconhe-
Warren combina a longa tradição de cimento de sua cultura e pelo direi-
pesquisa das condições de vida e da to a suas terras. Para eles, o direito
produção cultural dos índios do Nor- à terra, bem como a defesa contra a
deste com uma defesa ativa dos di- violência, estão mais bem assegura-
reitos civis e étnicos destes brasilei- dos quando se reconhece oficialmen-
ros nativos. O governo e mesmo an- te a identidade étnica indígena.
tropólogos negam o status dos índi- O que significa ser índio em um país
os por conta de sua suposta falta de que preza a mistura, tanto na cultu-
“autenticidade”. Warren argutamen- ra popular como na de elite? Qual o
te pleiteia o que se poderia chamar lugar do fenótipo e, de forma mais
de uma descrição branda da identi- geral, da aparência física para um
dade indígena, em vez de uma des- índio, ou para o processo de se tor-
crição dura. À identidade étnica com nar um (novo) índio? Quais as dife-
freqüência tem sido negado o direi- renças e similaridades entre os pro-
to de evoluir e se transformar – como cessos de formação identitária da
se ser índio fosse uma condição es- população afro-brasileira e as estra-
tática. tégias dos índios do Nordeste e de
A debilidade deste livro reside no Minas Gerais – regiões tradicional-
fato de que Warren habita a despre- mente vistas como não-indígenas e
ocupada fronteira entre o “racial” e onde as relações étnicas e raciais es-
o “étnico”. Parece haver uma inca- tão centradas na polaridade “negro”
pacidade de perceber que é exata- versus “branco”? De que forma não-
mente nesse terreno, no qual os usos índios imaginam a indianidade, e
analíticos e narrativos de termos como isso se reflete na formação da
como “raça” e “identidade” colidem, identidade e na auto-imagem dos
que temos que ser muito cuidadosos grupos analisados no livro? De que
e precisos, sempre lembrando que maneira novas formas de indianida-

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de podem ser construídas em regiões Esse tema está presente ao longo de
do Brasil onde populações de ascen- todo o livro, mas é considerado em
dência parcialmente indígena não profundidade no último capítulo, sig-
podem ou não querem organizar sua nificativamente intitulado “Contes-
vida coletiva em torno da economia tando a Supremacia Branca”.
primitiva? Estas são questões-chave Esses dois primeiros livros são ver-
centrais, e muito oportunas, levanta- sões editadas de teses de doutorado.
das pelo livro de Warren. Ser reco- Uma pesquisadora experiente escre-
nhecido como índio no Brasil pode veu o terceiro livro aqui resenhado.
mesmo trazer certas vantagens em É uma maravilhosa micro-história
comparação ao status da população sobre dominação e negociação en-
rural pobre (majoritariamente não- tre escravos e senhores na zona
branca). Mas é uma tarefa difícil, es- cafeeira de São Paulo. Caetana Says
pecialmente quando um grupo pode No é um livro instigante, bem escri-
ser facilmente visto como a versão to e maravilhosamente documenta-
local dos índios Lumbee ou Mashpee do. Seu uso extensivo de fontes
dos Estados Unidos. É difícil vislum- arquivísticas e a riqueza de informa-
brar o reconhecimento da “autentici- ções que ela nos apresenta são mais
dade” indígena pelas agências ofici- um exemplo de que, apesar da opi-
ais no Brasil, ainda mais do que na nião generalizada de que no Brasil
maior parte dos outros países da os arquivos relativos à escravidão
América – os Estados Unidos sendo foram destruídos na esteira da abo-
precisamente a extremidade oposta lição, registros paroquiais, registros
do espectro. De maneira interessan- de processos legais e testamentos
te, o autor postula que os índios que podem ser fontes maravilhosas para
estudou por um período razoavelmen- a pesquisa da vida cotidiana duran-
te longo conseguiram desenvolver te a escravidão – especialmente em
métodos anti-racistas e uma nova sociedades burocráticas tais como as
identidade coletiva. Eles parecem da América Latina. Com sua preo-
mesmo mais bem sucedidos que os cupação pelos detalhes cotidianos da
ativistas anti-racistas afro-brasileiros vida, pela afeição e pela raiva, por
em desafiar os pressupostos do siste- pequenos gestos de candura e de
ma brasileiro de relações raciais, que desafio, de conflito e negociação,
é baseado em uma combinação de pelo dar e tomar entre um senhor e
intimidade e distância, miscigenação escravos, e entre sua família e uma
e racismo, e na negação da impor- escrava, e por Caetana e sua famí-
tância de qualquer política de identi- lia, o livro mostra como história e
dade para os racialmente subalternos. antropologia deveriam, e podem,

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conversar uma com a outra. O argu- reiteradamente em um contexto
mento-chave (p. 4) é que, mesmo onde, “Na ausência de uma ideolo-
numa sociedade com uma divisão de gia explícita construída sobre a raça,
poder radicalmente assimétrica, que os senhores brasileiros nunca se
mais escolhas do que poderíamos sentiram compelidos a elaborar, os
imaginar existiam em todos os la- donos de escravos justificavam seu
dos. A escrava Caetana insiste em poder através de uma conduta que o
não se casar, apesar das pressões costume gradualmente estabelecera
oriundas do plantel de escravos e de como apropriada” (p. 53). Eu acres-
seu pai. Seu status de solteira é sua centaria que os rituais e a prática da
maneira de lidar com a vida na fa- Igreja Católica – a qual tornou pos-
zenda. Em sua longa e infeliz luta sível que escravos e senhores
para levar uma vida de solteira e cultuassem o mesmo Deus, na mes-
“respeitável”, ela em última análise ma igreja, ainda que desde posições
ganha o apoio de seu senhor e de diferentes – junto com a existência
suas poderosas conexões. Em uma precoce de um considerável grupo
reviravolta brasileira, ela mobiliza de mestiços no âmbito da ordem da
o patronato contra o patriarcado. fazenda, teriam tornado mais difícil
Resta a questão de saber se isto foi a elaboração de rituais de domina-
possível devido a uma atitude sin- ção centrados em “raça” em vez de
gular ou extremamente racional por em status. De fato, este último ten-
parte do dono da fazenda. De acor- deu a ser o caso no Brasil.
do com Sandra Graham e outras pes- Em sua argumentação, Graham pe-
quisas recentes, especialmente as de netra na cultura escrita do Brasil da
Robert Slenes, “os brasileiros de década de 1830, a qual ela convin-
modo geral encontraram na família centemente qualifica de jurídica,
uma forma útil de ordenar a socie- mais que literária. O livro mostra o
dade, incluindo seus próprios escra- quão complexa e segmentada era a
vos” (p. 32). Casamentos escravos, escravidão brasileira. Escravos
entretanto, não eram sempre respei- manumissos com freqüência se man-
tados, e não era incomum que famí- tinham na órbita do antigo senhor –
lias fossem forçadas a se dividir. A gostasse ele ou não.
mágoa devia ser indizível. Talvez Manumissão era uma coisa; cidada-
tenha sido isso o que Caetana qui- nia real era uma questão completa-
sesse evitar. Ela combateu o patri- mente diferente. A marca registra-
arcalismo do senhor assim como o da da verdadeira liberdade estava na
dos negros. O livro detalha de que capacidade de não desempenhar fun-
forma o poder era desempenhado ções servis. Se o senhor estivesse re-

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almente em débito para com um de de brasileira e a desigualdade per-
seus escravos, além de declará-lo li- sistente que ainda existe na região?
vre, lhe daria um par de escravos. Este livro oferece uma série de su-
Uma outra marca registrada da es- gestões interessantes aos pesquisa-
cravidão brasileira era uma combi- dores das relações raciais no Brasil
nação peculiar de abuso físico vio- contemporâneo: como o status e o
lento e intimidade (p. 149), associa- comportamento, mais do que as re-
da a uma alternância entre limites gras, mantiveram as coisas em or-
draconianos para a liberdade pessoal dem; como uma hierarquia racial
e “favores” prestados diretamente pode existir sem uma ideologia ra-
pelo senhor a um escravo específico. cial explícita; como os pobres inves-
Não apenas o Brasil não era a terra tem na manipulação de conexões
do esclarecimento, como também não pessoais e insistem em saídas indi-
era a terra das regras claras e univer- viduais para a opressão, em vez de
sais. Era, afinal, um país com taxas investir em respostas coletivas. No
de analfabetismo impressionante- maravilhoso epílogo, Graham indi-
mente altas, combinadas com um ca as maneiras pelas quais um siste-
apreço pela papelada jurídica. ma estruturado sobre graus de escra-
Caetana Says No põe duas famílias vidão também podia implicar graus
sob o foco – a do mestre e a da es- de liberdade.
crava, a do dono e a da posse – deta- A limitação intrínseca de se traba-
lhando os vários níveis em que elas lhar com fontes escritas sobre pes-
se interconectavam. Graham vai soas que morreram há muito em úl-
além do arquétipo do escravo e do tima instância leva a uma incerteza
senhor e mostra pessoas, com cará- sobre como os conflitos (i. e., pro-
ter próprio. cessos judiciais) realmente termi-
Para os historiadores modernos, a nam. Entretanto, neste livro, a limi-
questão já não é se a escravidão bra- tação é transformada na força
sileira – ou cubana, ou colombiana motora por trás de uma autêntica
– era mais ou menos monstruosa que peça de trabalho investigativo na
a dos Estados Unidos ou a do Caribe qual as hipóteses fluem de forma
britânico. Mais interessante é a for- mais cuidadosa do que na maior par-
ma pela qual a escravidão logrou te dos textos antropológicos.
funcionar, muitas vezes contra todas Caetana Says No não é sobre antro-
as expectativas. De que maneiras as pologia, mas é um livro que os an-
relações sociais se desenvolveram no tropólogos (perspicazes) em campo
contexto da escravidão? E como es- deveriam ler.
sas relações afetam hoje a socieda- Livio Sansone

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