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Jacques Mousseau
PHILIPPE ARIÈS – A família, tal como a conhecemos hoje, não. Muitas pessoas
pensam que depois de séculos de estabilidade a família começou repentinamente a sofrer
mudanças, e que os problemas atuais da família tiveram sua origem num passado distante.
Na verdade, nossos problemas são o resultado de um novo tipo de família – que vem se
desenvolvendo há séculos e que se tornou tanto um refúgio para todos os problemas quanto
uma prisão.
JACQUES MOUSSEAU – Pelo que entendi, temos que distinguir a família dos
sentimentos que alimentamos em relação a ela. A família talvez pareça ser a mesma, mas as
nossas atitudes em relação a ela podem variar bastante.
PHILIPPE ARIÈS – Dignidade. Você pode ver que nem conhecemos mais o
significado da palavra. Para entende-la, temos que conhecer o teatro espanhol do século
XVII. Acima de tudo, estava a honra da mulher. Mas essa honra não se limitava às atitudes
em relação a ela. Podia também ser gravemente ameaçada por circunstâncias que hoje em
dia pareceriam inofensivas.
A honra e a segurança só estavam ameaçadas nas épocas de crise. No resto do
tempo, a função essencial da família era organizar a vida cotidiana. O homem não era capaz
de viver sozinho; tinha que cooperar com sua mulher, fosse no trabalho do campo ou no seu
trabalho de artesão. Quando a família não estava ameaçada, o núcleo formado pelo casal e
os filhos tendia a se separar em grupos.
Muitos estudiosos escreveram sobre a família patriarcal, supondo que esta fosse
composta de várias gerações ou várias famílias vivendo juntas. Acredito que tais famílias
eram raras na cultura ocidental. A família patriarcal do Ocidente, ao contrário, limita-se a
definir sua linhagem através do pai e da mãe, chegando até os primos mais distantes.
Este sentimento de linhas de parentesco se manifesta com mais intensidade na
nobreza, mas outros grupos sociais apresentam um sentimento de mesma intensidade por
aquilo que podemos chamar de comunidade: um grupo de parentes próximos ou distantes,
vizinhos, clientes e patrões. Este mundo era geograficamente próximo, mas as pessoas não
viviam numa mesma casa. Há duzentos anos a comunidade tinha um papel importante no
carinho pela criança e na sua sociabilização.
PHILIPPE ARIÈS – Exato. A criança vivia em um grupo muito maior que a família,
e entre eles escolhia seus amigos. Na verdade, a família se expandia num grupo.
Atualmente existem situações como estas em algumas tribos africanas. Lá, a criança
pertence não à família, mas a um grupo mais abrangente. A família mantém uma relação
individual com a criança, que vai herdar suas propriedades; mas o afeto entre os indivíduos
é determinado pelas escolhas e influências que ocorrem dentro desse grupo.
Do mesmo modo, há duzentos anos a família não tinha um papel emocional e sim
econômico: preservar e transmitir propriedades e estabilizar a comunidade trabalhadora.
Por exemplo, quando um artesão morria, sua esposa se casava com o assistente chefe, com
o objetivo de preservar o negócio.
JACQUES MOUSSEAU – Seu trabalho mostra também que os habitantes das
aldeias eram separados mais por sexo do que por grupo familiar.
PHILIPPE ARIÈS – Claro ! Seria ridículo e infantil dizer que não havia amor. Estou
só dizendo que o amor não era considerado necessário para a formação, duração e
estabilidade da família. Quando um homem se casava, era possível que nunca tivesse visto
sua noiva antes. Mesmo assim, com mais freqüência do que se imagina, era ele quem a
escolhia. Em ambos os casos, havia fortes fatores econômicos que determinavam sua
escolha. Normalmente, a esposa seria alguém que pudesse ajuda-lo no campo ou em sua
oficina.
O sentimento tinha um importância maior nas camadas mais baixas da sociedade;
talvez porque se casavam muito tarde. Entre a burguesia e a nobreza, o sentimento não era
muito importante, embora algumas vezes ele nascesse depois do casamento. Se não existia
amor, não havia razão alguma para o casal se separar. Havia muitas outras razões para
manter o homem e a mulher juntos. Naquela época, a ênfase que damos à compatibilidade
de gênios seria considerada estranha ou até mesmo imoral.
O Duque de Saint-Simon, no clássico “Hemoires”, é um bom exemplo. Antes do
casamento ele nunca tinha visto aquela que viria a ser sua mulher. Tinha pedido a mão da
irmã dela em casamento, mas seu futuro sogro respondeu: “Não. Prefiro casar esta aqui
primeiro”. Mais tarde, eles vieram a se amar profundamente, e em seu testamento Saint-
Simon pediu que seus caixões fossem acorrentados um ao outro para que pudessem
permanecer juntos após a morte.
O que acabei de dizer sobre o casal se aplica também aos filhos. Embora fosse
comum existir amor e carinho na relação pais-filhos, nem o sentimento, em sua expressão
eram necessários. Eles não tinham nenhuma obrigação de amar um ao outro ou fingir que o
faziam.
É lógico que não passamos abruptamente desse tipo de família para o atual. Durante
o século XVI aparece a família intermediária, moldada nos padrões das classes mais altas.
Esta evolução se centrou na criança. Você deve estar lembrado do que nós dissemos sobre a
comunidade, que ela era responsável pela sociabilização e educação da criança.
JACQUES MOUSSEAU – Você frisa muito as funções da família, mas quase não
fala em sua composição. Alguns pesquisadores, principalmente David Riesman (ver “The
Young Are Captives of Each Other”, uma conversa com David Riesman, PT Outubro 1969)
elaboraram uma teoria sobre a história do homem baseada na composição da família. A
teoria de Riesman parece se basear no fato de ter existido uma época em que o homem
passou da família tribal para a família nuclear. Essa teoria é válida?
PHILIPPE ARIÉS – É difícil responder porque é muito cedo ainda para ver o
movimento em perspectiva. Não sabemos se essa revolta é somente contra um determinado
tipo de família ou se vai levar à formação de outras famílias. Ou seja, se’ra que os jovens
vão se casar mais cedo que seus pais e formar o mesmo tipo de família? Ou será que essa
revolta é uma contestação mais global, mais radical? Será que estamos formando um novo
tipo de acasalamento, completamente diferente de tudo aquilo que a humanidade já viu?
Serei cauteloso nas minhas respostas. Mas acredito que a revolta em relação à família é
somente um dos aspectos da revolta ocidental em relação à sociedade mecanizada. É a
revolta de um prisioneiro vivendo em mundo limitado que se torna cada vez mais limitado.
A proliferação de automóveis e de aparelhos de televisão tem reduzido mais ainda
as oportunidades das pessoas se encontrarem. Na França, por exemplo, a falta de pessoas
nos cafés da cidade, à noite, deixa qualquer um perplexo. Antes, esses cafés
contrabalançavam o gueto familiar. Tanto os jovens quanto os mais velhos os
freqüentavam, não só para beber, mas também para se encontrarem fora do ambiente
familiar. Esta necessidade, tão antiga, que era aceita por todos, foi anulada – proibida até –
pela civilização industrial.
JACQUES MOUSSEAU – Como as pessoas vivem mais, o gueto parece ser uma
carga maior ainda.
PHILIPPE ARIÈS – Acho que seria melhor se falássemos de uma “civilização mais
próxima da natureza”. A reação contra a família moderna está ligada a uma determinada
atitude, eu já estava quase dizendo ecológica, uma reação a nossa distância da natureza. O
homem certamente não é uma criatura da natureza, ele é uma criatura cultural, mas se
distanciou tanto dela que sua condição tornou-se intolerável.