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MANUEL
BUENO,
MÁRTIR
“Se
temos
esperança
em
Cristo
somente
para
esta
vida,
somos
os
mais
dignos
de
compaixão
de
todos
os
homens”.
(2
Cor
15,19)
Agora
que
o
bispo
da
diocese
de
Renada,
a
que
pertence
esta
minha
querida
aldeia
de
Valverde
de
Lucerna,
anda,
ao
que
se
diz,
empenhado
no
processo
de
beatificação
de
nosso
Dom
Manuel,
ou
melhor,
São
Manuel
Bueno,
que
aqui
foi
pároco,
quero
deixar
consignado,
como
uma
confissão
–
e
só
Deus
sabe,
eu
não,
o
destino
que
terá
-‐,
tudo
o
5 que
sei
e
lembro
daquele
santo
maternal
que
satisfez
os
mais
íntimos
anseios
de
minha
alma,
que
foi
meu
verdadeiro
pai
espiritual,
o
pai
de
meu
espírito,
o
meu,
o
espírito
de
Ângela
Carballino.
O
outro,
meu
pai
carnal
e
temporal,
mal
conheci,
pois
faleceu
quando
eu
era
pequeninha.
Sei
que
não
era
daqui
e
se
fixou
em
nossa
Valverde
de
Lucerna
ao
casar-‐se
aqui
mesmo
10 com
minha
mãe.
Trouxe
consigo
uns
quantos
livros
–
o
Quixote,
obras
clássicas
de
teatro,
alguns
romances,
histórias,
o
Bertoldo1…
uma
miscelânea
–
e
esses
livros,
quase
os
únicos
que
havia
em
nossa
aldeia,
encheram
de
sonhos
a
menina
que
eu
era.
Minha
mãe
não
contava
quase
nada
dos
atos
da
vida
de
meu
pai
e
do
que
ele
costumava
dizer.
Os
atos
e
os
ditos
de
Dom
Manuel,
a
quem,
como
o
povo
todo,
ela
adorava,
e
de
quem
15 estava
enamorada
–
castamente,
claro
–,
tinham
apagado
a
lembrança
do
marido.
Mas
a
cada
dia,
recitando
o
rosário,
recomendava-‐o
fervorosamente
a
Deus.
De
nosso
Dom
Manuel
eu
me
lembro
como
se
fosse
ontem,
embora
eu
tivesse
apenas
dez
anos
–
isso
antes
de
me
mandarem
para
o
colégio
religioso
na
cidade
episcopal
de
Renada.
Teria
ele
então,
o
nosso
santo,
uns
trinta
e
sete
anos.
Era
alto,
magro,
aprumado,
20 tinha
a
cabeça
como
a
grimpa
da
nossa
Penha
do
Abutre
e
em
seus
olhos
morava
o
profundo
azul
de
nosso
lago.
Atraía
os
olhares
de
todos
e,
com
os
olhares,
os
corações,
e
quando
nos
olhava
parecia
ultrapassar
a
carne
como
a
um
cristal
para
esquadrinhar
nossos
corações.
Todos
gostávamos
dele,
sobretudo
as
crianças.
E
que
coisas
dizia!
Coisas,
não
palavras.
E
o
povo
já
farejava
sua
santidade
e
se
deixava
inebriar
e
possuir
25 por
tal
aroma.
E
então
meu
irmão
Lázaro,
que
estava
na
América
e
regularmente
enviava
o
dinheiro
que
nos
permitia
viver
com
decorosa
folga,
fez
com
que
minha
mãe
me
matriculasse
no
colégio
religioso,
para
que
minha
educação
se
completasse
fora
da
aldeia
–
e
olha
que
Lázaro
nem
simpatizava
com
as
freiras.
Dizia
a
carta:
“Como
não
há
por
aí,
que
eu
saiba,
30 colégios
laicos
e
progressistas,
e
menos
ainda
para
senhoritas,
temos
de
nos
contentar
com
o
que
há.
O
importante
é
que
Angelita
se
instrua
e
não
permaneça
entre
esses
cascas-‐grossas
da
província.”
E
entrei
para
o
colégio,
queria
ser
professora.
Mas
logo
me
engasguei
com
a
pedagogia.
1
Bertoldo, Bertolino y Cacaseno, folhetim de prestígio popular na Espanha e na América espanhola,
no século passado e no início deste.
3
colégio,
sobretudo
no
convívio
de
uma
colega
que
se
tornou
muito
ligada
a
mim
e
que,
às
vezes,
propunha
que
entrássemos
juntas
para
o
mesmo
convento
e
fizéssemos
um
juramento
de
irmandade
perpétua,
firmado
com
sangue,
e
que
noutras
vezes,
com
os
olhos
semicerrados,
sonhava
com
noivos
e
aventuras
matrimoniais.
Nunca
mais
soube
o
45 que
foi
feito
dela.
E
olha
que,
quando
falávamos
de
Dom
Manuel,
ou
quando
minha
mãe
o
mencionava
em
cartas
–
em
quase
todas
–
minha
amiga
exclamava,
arrebatada:
“Sorte
a
tua,
querida,
poder
viver
perto
de
um
santo,
um
santo
vivo,
de
carne
e
osso,
e
poder
beijar-‐lhe
a
mão!
Quando
voltares
para
lá,
não
deixa
de
me
escrever
muito,
muito
mesmo,
e
de
me
dar
notícias
dele”.
50
PASSEI
NO
COLÉGIO
uns
cinco
anos,
que
agora
se
esfumam,
na
memória
distante,
como
os
sonhos
das
madrugadas,
e
aos
quinze
voltei
para
a
minha
Valverde
de
Lucerna.
E
toda
ela
era
Dom
Manuel,
Dom
Manuel
e
o
lago,
Dom
Manuel
e
a
montanha.
Estava
ansiosa
por
conhecê-‐lo,
queria
me
colocar
sob
sua
proteção
e
que
traçasse
o
caminho
da
minha
55 vida.
Diziam
que
se
tornara
padre
para
dar
assistência,
como
um
pai,
aos
filhos
de
uma
irmã
que
recentemente
enviuvara,
que
no
seminário
se
destacara
pela
agudeza
mental,
pelo
talento,
e
que
rejeitara
oportunidades
de
brilhante
carreira
eclesiástica
para
dedicar-‐se
tão
só
à
sua
Valverde
de
Lucerna,
à
sua
perdida
aldeia
que
parecia
um
broche
prendendo
60 o
lago
à
montanha
que
se
olhava
nele.
E
como
queria
bem
aos
seus!
A
vida
dele
era
salvar
casamentos
desajustados,
aproximar
filhos
rebeldes
dos
pais
ou
aproximar
os
pais
dos
filhos,
confortar
os
amargurados,
os
desanimados,
e
ajudar
a
todos
a
bem
morrer.
Disse-‐lhe:
– Olha, dá um pai para essa pobre criancinha que só tem por si o papai do céu.
– Quem sabe, meu filho, quem sabe. E não é uma questão de culpa…
Hoje
o
pobre
Perote,
inválido,
paralítico,
tem
como
arrimo
e
consolo
de
sua
vida
aquele
filho
que,
graças
à
santidade
de
Dom
Manuel,
ele
reconheceu
como
seu,
embora
não
o
fosse.
75
NA
NOITE
DE
SÃO
JOÃO,
a
mais
curta
do
ano,
costumavam
e
ainda
costumam
acorrer
ao
nosso
lago
todas
as
pobres
mulherinhas,
e
não
poucos
homenzinhos,
que
se
julgam
4
possuídos,
endemoniados,
e
que,
acho
eu,
são
apenas
histéricos
e
não
raro
epilépticos,
e
Dom
Manuel
empreendeu
a
tarefa
de
ser
ele
mesmo
o
lago,
a
piscina
probática2,
80 aliviando-‐os
de
seus
penares
e
tentando
curá-‐los.
E
era
tal
o
efeito
de
sua
presença,
de
seu
olhar,
e
era
tal
a
dulcíssima
autoridade
de
suas
palavras
e,
sobretudo,
de
sua
voz
–
que
milagre
de
voz!
–
que
conseguiu
curas
surpreendentes.
Crescia
sua
fama,
fazendo
com
que
todos
os
enfermos
da
região
o
procurassem
e
ao
nosso
lago.
Uma
vez
veio
uma
mãe
e
pediu
que
fizesse
um
milagre
para
salvar-‐lhe
o
filho.
Dom
Manuel
respondeu,
85 sorrindo
tristemente:
–
Não
tenho
licença
do
bispo
para
fazer
milagres.
Uma
de
suas
maiores
preocupações
era
a
de
que
todos
andassem
limpos.
Se
encontrava
alguém
com
a
roupa
rasgada,
dizia:
“Vai
lá
com
o
sacristão
que
ele
remenda”.
O
sacristão
era
alfaiate.
E
no
primeiro
dia
do
ano,
quando
iam
felicitá-‐lo
por
ser
o
dia
de
seu
santo
–
90 era
o
próprio
Jesus
Nosso
Senhor
–
exigia
que
todos
se
apresentassem
de
camisa
nova,
e
quem
não
tinha
ganhava
uma
dele.
Demonstrava
ter
por
todos
o
mesmo
afeto.
Se
dava
mais
atenção
a
alguns,
era
aos
mais
desgraçados
ou
que
lhe
pareciam
mais
rebeldes.
E
como
havia
na
aldeia
um
coitado,
idiota
de
nascimento,
Blasillo,
o
bobo,
era
deste
que
mais
cuidava,
até
lhe
ensinou
certas
95 coisas
e
era
um
milagre
que
tivesse
conseguido.
Decerto
o
pingo
de
inteligência
que
restava
ao
bobo
o
fazia
imitar,
como
um
pobre
macaco,
o
seu
Dom
Manuel.
Sua
voz
maravilhosa,
uma
voz
divina,
que
fazia
chorar.
Na
missa
maior3
ou
na
missa
solene4,
quando
ele
entoava
o
prefácio5
a
igreja
estremecia
e
todos
se
comoviam.
Seu
canto,
saindo
do
templo,
ia
quedar
adormecido
sobre
o
lago
e
no
sopé
da
montanha.
No
100 sermão
da
Sexta-‐Feira
Santa,
quando
clamava
“Meu
Deus,
meu
Deus,
por
que
me
abandonaste?”6,
um
arrepio
encrespava
o
povo,
como
em
certos
dias
o
vento
norte
encrespa
o
lago.
E
era
como
se
estivessem
ouvindo
o
próprio
Nosso
Senhor
Jesus
Cristo,
como
se
a
voz
brotasse
do
velho
crucifixo
a
cujos
pés
tantas
gerações
de
mães
tinham
exposto
suas
aflições.
Um
dia
sua
mãe,
a
mãe
de
Dom
Manuel,
ouvindo-‐o,
não
pôde
105 conter-‐se,
e
do
chão
do
templo
onde
estava
sentada,
gritou:
“Meu
filho!”
E
todos
choraram
copiosamente.
Dir-‐se-‐ia
que
o
grito
maternal
brotara
dos
lábios
entreabertos
daquela
Dolorosa7
–
o
coração
transpassado
por
sete
espadas
–
que
havia
numa
das
capelas
do
templo.
E
depois
Blasillo,
o
idiota,
percorria
as
ruelas
da
aldeia
a
repetir
num
tom
patético,
como
um
eco:
“Meu
Deus,
meu
Deus,
por
que
me
abandonaste?”
Quem
o
110 ouvia,
emocionava-‐se
até
as
lágrimas.
E
o
bobo
não
cabia
em
si
de
contente
com
seu
triunfo
imitativo.
Tamanha
era
a
ascendência
de
Dom
Manuel
sobre
o
povo
que
ninguém
se
atrevia
a
mentir
na
frente
dele
e
todos
se
confessavam
sem
ter
de
comparecer
ao
confessionário.
Certa
vez
ocorreu
um
crime
hediondo
numa
aldeia
próxima,
e
o
juiz,
um
insensato
que
115 mal
conhecia
Dom
Manuel,
mandou
chamá-‐lo.
2
Piscina junto ao templo de Jerusalém, onde eram lavados os animais destinados ao sacrifício.
3
Missa celebrada em determinada hora do dia, para que compareça todo o povo.
4
Missa cantada, em que o celebrante é acompanhado pelo diácono e pelo subdiácono.
5
Prece do cânon, que é a parte central da missa.
6
Mt., XXVII, 46; M., XV, 34.
7
Imagem da Virgem Maria em pleno sofrimento pela morte de Jesus.
5
–
Vamos
ver
se
o
senhor
consegue
que
esse
bandido
diga
a
verdade.
–
Para
que
venha
a
ser
castigado?
–
disse
Dom
Manuel.
–
Não,
senhor
juiz.
Não
tiro
dos
homens
verdades
que
talvez
possam
levá-‐los
à
morte.
Isso
é
entre
eles
e
Deus…
A
justiça
humana
não
me
diz
respeito.
“Não
julgueis
e
não
sereis
julgados”8,
disse
o
Nosso
Senhor.
125
NA
ALDEIA
TODOS
iam
à
missa,
ainda
que
só
para
ouvi-‐lo,
vê-‐lo
no
altar,
onde
parecia
transfigurar-‐se,
o
rosto
iluminado.
Um
santo
exercício
tinha
sido
introduzido
por
ele
no
culto
popular:
reunia
o
povo
na
igreja,
homens
e
mulheres,
velhos
e
crianças,
umas
mil
pessoas,
e
todos,
em
uníssono,
rezávamos
o
Credo:
“Creio
em
Deus
Pai,
Todo
Poderoso,
130 Criador
do
Céu
e
da
Terra…”
e
daí
até
o
fim.
E
não
era
um
coro,
era
uma
só
voz,
uma
voz
simples
e
una,
fundidas
todas
numa
só
e
como
se
esta
fosse
uma
montanha,
cuja
grimpa,
não
raro
perdida
entre
as
nuvens,
era
Dom
Manuel.
Ao
chegar
no
“creio
na
ressurreição
da
carne
e
na
vida
eterna”,
a
voz
dele
ia
sumindo,
ia
mergulhando
na
voz
do
povo,
como
num
lago,
até
calar-‐se.
E
eu
ouvia
as
badaladas
do
campanário
da
vila
que,
dizem,
está
135 submersa
no
lago
–
badaladas
que,
dizem,
também,
são
ouvidas
na
noite
de
São
João
–
e
eram
as
badaladas
da
vida
submersa
no
lago
espiritual
de
nossa
aldeia.
Ouvia
a
voz
de
nossos
mortos,
que
ressuscitavam
em
nós
na
comunhão
dos
santos.
Mais
tarde,
quando
conheci
o
segredo
de
nosso
santo,
pude
compreender
o
que
ocorria
nessas
ocasiões:
ia
uma
caravana
em
marcha
no
deserto
e,
tombando
o
líder
quase
ao
fim
da
jornada,
140 aqueles
que
o
acompanhavam
erguiam
seu
corpo
sem
vida
aos
ombros
e
com
ele
chegavam
à
terra
da
promissão.
Ninguém
queria
morrer
senão
agarrado
à
sua
mão
como
a
uma
âncora.
Jamais
em
seus
sermões
clamava
contra
ímpios,
maçons,
liberais
ou
hereges.
Por
que
o
faria,
se
não
os
havia
na
aldeia?
Nem
contra
a
má
imprensa.
No
entanto,
um
dos
temas
145 mais
frequentes
em
seus
sermões
era
a
condenação
do
idioma
mal-‐empregado.
Porque
desculpava
tudo
e
a
todos
desculpava.
Não
queria
acreditar
na
má
intenção
de
ninguém.
8
Mt., VII, 1; Lc., VI, 37.
9
“Pois daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”; Mt., XXII, 21; Mc., XXII, 17; Lc., XX,
25.
6
150 E
ele:
– Importa menos o que alguém quer dizer do que aquilo que diz sem querer…
Sua
vida
era
ativa
e
não
contemplativa,
fugia
como
podia
de
não
ter
o
que
fazer.
Quando
ouvia
aquele
dito
de
que
a
ociosidade
é
a
mãe
de
todos
os
vícios,
acrescentava:
“É
a
mãe
do
pior
de
todos,
que
é
o
pensar
ocioso”.
E
quando
perguntei
o
que
queria
dizer
com
155 isso,
respondeu:
“Pensar
ocioso
é
pensar
para
não
fazer
nada
ou
pensar
demais
no
que
se
fez
e
não
no
que
se
precisa
fazer.
O
que
se
fez,
está
feito
e
pronto,
não
há
nada
pior
do
que
o
arrependimento
sem
remédio”.
Fazer!
Fazer!
Bem
compreendi,
desde
então,
que
Dom
Manuel
fugia
do
pensar
ocioso
e
da
solidão,
e
que
algum
pensamento
o
perseguia.
Estava
sempre
ocupado
e,
não
poucas
vezes,
sua
ocupação
era
inventar
ocupações.
160 Escrevia
muito
pouco
para
si,
deixou
tão
só
apontamentos,
pequenas
notas.
Em
troca,
fazia
o
papel
de
memorialista
dos
outros
e
auxiliava
as
mães,
escrevendo
suas
cartas
para
os
filhos
ausentes.
– Volta para casa e diz ao teu pai que eu mesmo me encarrego.
Ao retornar com a rês, deu com o pai, que vinha ao seu encontro bem constrangido.
170 No
inverno,
cortava
lenha
para
os
necessitados.
Quando
secou
a
nogueira
em
cuja
sombra
brincara
em
criança
e
com
cujas
nozes
se
regalara
durante
tantos
anos
–
“uma
nogueira
matriarcal”,
dizia
–
pediu
o
tronco,
dele
extraiu
seis
tábuas
que
guardava
ao
lado
da
cama
e,
do
que
sobrou,
fez
lenha
para
os
pobres.
Também
fazia
bolas
para
os
rapazes
jogarem
e
muitos
brinquedos
para
a
criançada.
180 –
Um
bebê
que
nasce
morto
ou
morre
recém-‐nascido,
assim
como
o
suicídio,
são
mistérios
terríveis
para
mim.
Um
bebê
com
os
braços
abertos
em
cruz!
7
Ia
seguidamente
à
escola
auxiliar
o
professor,
ensinava
junto
com
ele
e
não
se
limitava
ao
catecismo.
Vivia
fugindo
da
ociosidade
e
da
solidão,
de
tal
modo
que,
estando
sempre
onde
o
povo
se
reunia,
principalmente
os
jovens
e
a
criançada,
costumava
participar
dos
bailes.
Mais
de
uma
vez
tocou
o
tambor
para
os
moços
e
as
moças
dançarem.
Se
isso
190 fosse
feito
por
outro,
poderia
parecer
uma
grotesca
profanação
do
sacerdócio.
Feito
por
ele,
adquiria
um
caráter
sagrado,
como
um
rito
religioso.
No
soar
do
ângelus,
abandonava
o
tambor
e
a
baqueta,
descobria-‐se
e
todos
o
imitavam.
Rezava:
“O
anjo
do
Senhor
anunciou
a
Maria:
Ave
Maria…”
E
depois:
195
–
O
MAIS
IMPORTANTE
–
disse
uma
vez
–
é
que
o
povo
seja
feliz,
que
todos
estejam
de
bem
com
a
vida.
A
alegria
de
viver
vem
primeiro
do
que
tudo.
Ninguém
deve
querer
morrer
antes
que
Deus
queira.
–
Pois
eu
quero
–
desabafou
uma
mulher
que
recém
enviuvara.
–
Quero
seguir
meu
200 marido.
– Para quê? – ele retrucou. – Deves ficar aqui para rogar a Deus pela alma dele.
Certa
vez
passou
pela
aldeia
um
grupo
de
pobres
mamulengos.
O
líder,
que
trazia
a
mulher
doente,
grávida,
e
três
filhos
que
o
auxiliavam,
fazia
o
papel
de
palhaço.
No
momento
em
que,
na
praça,
ele
divertia
as
crianças
e
alguns
adultos,
a
mulher,
sentindo
que
piorava,
retirou-‐se,
escoltada
por
um
olhar
de
angústia
do
palhaço
e
pelas
risotas
210 dos
meninos.
E
escoltada
também
por
Dom
Manuel,
que
pouco
depois,
num
quarto
da
pensão,
ajudou-‐a
a
bem
morrer.
E
quando,
terminada
a
festa,
soube
o
povo
e
soube
o
palhaço
da
tragédia,
todos
se
dirigiram
à
pensão,
e
o
pobre
homem,
chorando,
disse
a
Dom
Manuel:
– Tem razão quem diz, senhor padre, que o senhor é um santo!
215 Aproximou-‐se,
querendo
tomar-‐lhe
a
mão
para
beijá-‐la,
mas
Dom
Manuel
se
adiantou
e
tomou
a
dele
entre
as
suas.
–
O
santo
és
tu,
honrado
palhaço.
Vi-‐te
trabalhar
e
compreendi
que
trabalhas
não
só
para
dar
pão
aos
teus
filhos,
mas
também
para
dar
alegria
aos
filhos
dos
outros,
e
eu
te
digo
que
tua
mulher,
a
mãe
de
teus
filhos,
que
encomendei
a
Deus
enquanto
trabalhavas
e
220 distribuías
a
felicidade,
descansa
no
seio
do
Senhor,
e
que
tu,
quando
fores
para
junto
dela,
tu,
os
anjos
te
pagarão
a
sorrir
por
todos
aqueles
que,
no
céu,
fazes
sorrir
de
contentamento.
8
E
todos
os
adultos
e
crianças
choraram
e
choraram,
tanto
de
tristeza
como
de
uma
misteriosa
satisfação
que
na
tristeza
se
afogava.
Mais
tarde,
recordando
aquele
instante
225 solene,
compreendi
que
a
imperturbável
alegria
de
Dom
Manuel
era
a
forma
temporal
e
terrena
de
uma
infinita
e
eterna
tristeza
que,
com
heroica
santidade,
ele
ocultava
aos
olhos
e
aos
ouvidos
dos
demais.
COM
AQUELA
CONSTANTE
atividade,
participando
das
tarefas
e
das
diversões
de
todos,
230 parecia
querer
fugir
de
si
mesmo,
querer
fugir
de
sua
solidão.
“Temo
a
solidão”,
repetia.
No
entanto,
de
vez
em
quando
ia
sozinho,
margeando
o
lago,
às
ruínas
daquele
velho
mosteiro
onde
parecem
repousar
ainda
as
almas
dos
piedosos
cistercienses10
que
a
História
sepultou
no
esquecimento.
Lá
está
a
sala
do
chamado
Padre
Capitão
e
diz-‐se
que,
em
suas
paredes,
remanescem
marcas
das
gotas
de
sangue
com
que
as
salpicava
ao
235 mortificar-‐se.
O
que
pensaria
ali
o
nosso
Dom
Manuel?
Lembro-‐me
de
que
uma
vez,
ao
falarmos
sobre
o
mosteiro,
perguntei-‐lhe
por
que
não
lhe
ocorrera
optar
pelo
claustro.
Ele
respondeu:
–
Não
é
tanto
porque
tenha
minha
irmã
viúva
e
meus
sobrinhos
para
sustentar,
pois
Deus
sempre
ajuda
seus
pobres,
é
mais
porque
não
nasci
para
ermitão,
para
anacoreta.
A
240 solidão
mataria
minha
alma.
De
resto,
se
é
preciso
um
mosteiro,
o
meu
é
Valverde
de
Lucerna.
Não
devo
viver
só.
Não
devo
morrer
só.
Devo
viver
por
meu
povo
e
morrer
por
ele.
Como
poderia
salvar
minha
alma
se
não
salvo
a
de
meu
povo?
–
Sim,
porque
o
Senhor
lhes
concedeu
a
graça
da
solidão
que
a
mim
me
negou,
e
tenho
245 de
me
resignar.
Não
posso
pôr
a
perder
meu
povo
para
ganhar
minha
alma.
Deus
me
fez
assim.
Eu
não
resistiria
às
tentações
do
deserto.
Eu
não
poderia
carregar
sozinho
a
cruz
do
nascimento.
COM
ESSAS
LEMBRANÇAS,
das
quais
vive
minha
fé,
quis
retratar
Dom
Manuel
tal
como
250 era
na
época
em
que
eu,
mocinha
de
dezesseis
anos,
voltei
do
colégio
religioso
de
Renada
para
o
nosso
mosteiro
de
Valverde
de
Lucerna.
E
tornei
a
me
colocar
à
sombra
de
meu
monge.
–
Viva!
A
filha
da
Simona!
–
disse,
quando
me
viu.
–
Já
uma
moça
e
sabendo
francês,
255 bordar,
tocar
piano
e
sei
lá
mais
o
quê!
Está
chegando
a
hora
de
te
preparar
para
nos
dar
outra
família.
E
teu
irmão
Lázaro,
quando
volta?
Continua
no
Novo
Mundo,
não
é?
10
Da ordem beneditina de Cister, fundada no século XI, na França, por São Roberto de Molesmes, é
difundida por São Bernardo de Claraval.
9
–
O
Novo
Mundo!
E
nós
aqui
no
Velho!
Quando
lhe
escreveres,
pergunta
da
minha
parte,
de
parte
do
padre,
quando
voltará
do
Novo
para
o
Velho
Mundo,
trazendo
as
novidades
260 de
lá.
Diz
também
que
ele
encontrará
o
lago
e
a
montanha
do
mesmo
jeito
que
os
deixou.
Quando
fui
confessar,
minha
perturbação
era
tanta
que
não
conseguia
articular
uma
palavra.
Rezei
o
“eu
pecadora”
a
balbuciar,
quase
soluçando.
–
O
que
há
contigo,
cordeirinha?
–
ele
estranhou.
–
De
que
ou
de
quem
tens
medo?
Não,
não
estás
tremendo
ao
peso
dos
teus
pecados
nem
por
temor
a
Deus.
Estás
tremendo
265 por
minha
causa,
não
é?
Comecei a chorar.
–
Mas…
o
que
te
disseram
de
mim?
Que
histórias
são
essas?
Tua
mãe,
talvez?
Vamos
lá,
te
acalma
e
faz
de
conta
que
estás
conversando
com
teu
irmão…
Criei coragem e comecei a contar minhas inquietudes, minhas dúvidas, minhas tristezas.
270 –
Ai,
ai,
ai,
onde
andaste
lendo
essas
coisas,
Maria
Sabichona?
Isso
é
literatura.
Não
te
deixa
influenciar
muito
por
ela,
nem
por
Santa
Tereza11.
Se
queres
te
distrair,
lê
o
Bertoldo,
como
lia
teu
pai.
Saí
da
minha
primeira
confissão
grandemente
reconfortada.
E
aquele
meu
receio
inicial,
aquele
mais
do
que
respeito,
aquele
medo
com
que
me
acercara
dele,
transformou-‐se
275 numa
profunda
compaixão.
Eu
era
então
uma
mocinha,
quase
uma
menina
ainda,
mas
começava
a
ser
mulher,
já
sentia
no
corpo
o
sumo
da
maternidade,
e
no
confessionário,
intuindo
uma
espécie
de
muda
confissão
no
sussurro
submisso
da
voz
daquele
santo
homem,
lembrei-‐me
de
que,
quando
clamara
na
igreja
as
palavras
de
Jesus
Cristo.
“Meu
Deus,
meu
Deus,
por
que
me
abandonaste?”,
a
mãe
dele,
a
mãe
de
Dom
Manuel,
280 respondera
lá
do
chão:
“Meu
filho!”,
e
ouvi
novamente
esse
grito
a
dilacerar
a
quietude
do
templo.
E
tornei
a
me
confessar
com
ele
para
consolá-‐lo.
–
Sabes
o
que
diz
o
Catecismo:
“Não
perguntes
a
mim,
que
sou
ignorante.
A
Santa
Madre
285 Igreja
tem
doutores
que
saberão
responder”.
–
Eu,
Eu
doutor?
Eu?
Nem
por
sonho.
Eu,
doutorinha,
sou
apenas
um
pobre
pároco
de
aldeia.
E
essas
perguntas…
sabes
quem
te
instiga,
quem
te
leva
a
fazer
essas
perguntas?
O
Demônio!
11
Santa Tereza de Ávila (1515-1582), religiosa espanhola e também escritora, que empreendeu a
reforma da Ordem do Carmelo, fundando em Ávila o primeiro convento das carmelitas descalças.
Foi processada e presa pela Inquisição. Sua canonização data de 1622.
10
–
E
se
ele
fizesse
essas
perguntas
ao
senhor,
Dom
Manuel?
– A quem? A mim? O Demônio? Não nos conhecemos, filha, não nos conhecemos.
–
Não
faria
caso.
E
chega!
Fim
de
conversa!
Alguns
doentes
de
verdade
estão
à
minha
295 espera.
Fui
embora
pensando,
não
sei
por
que,
que
nosso
Dom
Manuel,
tão
afamado
exorcista
de
endemoniados,
não
acreditava
no
Demônio.
Perto
da
Igreja
encontrei
Blasillo,
o
bobo.
Vendo-‐me,
quis
fazer
uma
demonstração
de
suas
habilidades,
e
repetia:
“Meu
Deus,
meu
Deus,
por
que
me
abandonaste?”
Cheguei
em
casa
muito
deprimida
e
me
fechei
no
300 quarto
a
chorar,
até
que
veio
minha
mãe.
–
Angelita,
sabes
o
que
estou
achando?
Com
tanta
confissão,
vais
acabar
te
tornando
freira…
–
Não
se
preocupe,
mamãe
–
respondi
-‐,
tenho
de
sobra
o
que
fazer
aqui
na
aldeia.
A
aldeia
é
o
meu
convento.
– Por que te preocupas com o Inferno, se não vais para lá?
– Eu me preocupo com os outros. Existe ou não existe?
–
Deves
crer
no
céu,
nesse
céu
que
vemos.
Olha
lá
–
e
o
apontava,
sobre
a
montanha
e,
abaixo,
refletido
no
lago.
315 – Mas é preciso que se creia no Inferno, assim como se crê no Céu.
–
Sim,
é
preciso
crer
em
tudo
o
que
crê
e
ensina
a
crer
a
Santa
Madre
Igreja
Católica,
e
Apostólica,
e
Romana…
e
chega!
Pude ler um não sei quê de tristeza em seus olhos, azuis como as águas do lago.
11
320 PASSARAM
AQUELES
ANOS
como
um
sonho.
A
imagem
de
Dom
Manuel
ia
crescendo
em
mim
sem
que
eu
me
desse
conta,
pois
era
uma
pessoa
tão
cotidiana,
tão
de
cada
dia
como
o
pão
que
diariamente
pedimos
no
Pai
Nosso.
Eu
o
auxiliava
quanto
podia
em
seus
misteres,
visitava
seus
doentes,
nossos
doentes,
as
meninas
da
escola,
arrumava
o
arcaz
da
igreja,
fazia
de
conta,
como
dizia
ele,
que
era
a
diaconisa.
A
convite
de
uma
ex-‐colega
325 de
escola,
passei
uns
dias
na
cidade,
mas
não
pude
ficar
mais,
a
cidade
me
sufocava,
eu
sentia
falta
de
alguma
coisa,
tinha
sede
da
vista
das
águas
do
lago,
fome
das
penhas
da
montanha,
e
sentia,
sobretudo,
a
falta
de
meu
Dom
Manuel,
como
se
sua
ausência
me
chamasse,
como
se
corresse
perigo
longe
de
mim,
como
se
precisasse
de
mim.
Começava
a
sentir
uma
espécie
de
amor
maternal
por
meu
pai
espiritual.
Queria
ajudá-‐lo
a
carregar
330 a
cruz
de
seu
nascimento.
E
ASSIM
CHEGUEI
aos
meus
vinte
e
quatro
anos.
Na
mesma
época,
voltou
da
América
meu
irmão
Lázaro.
Trazia
o
pequeno
capital
que
conseguira
juntar
e
o
propósito
de
nos
levar,
a
mim
e
a
nossa
mãe,
para
morar
na
cidade,
talvez
em
Madrid.
Dizia:
335 – Aqui a gente se imbeciliza, embrutece e fica cada vez mais pobre.
E acrescentava:
Eu
calava,
embora
disposta
a
resistir
à
emigração,
mas
nossa
mãe,
que
já
passava
dos
340 sessenta,
se
opôs
desde
o
princípio:
“Na
minha
idade,
mudar
de
ares!”,
dizia.
E
sem
demora
deixou
claro
que
não
poderia
viver
longe
da
vista
de
seu
lago,
de
sua
montanha
e,
principalmente,
de
seu
Dom
Manuel.
– Vocês são como as gatas, não desgrudam de casa! – repetia meu irmão.
Quando
se
deu
conta
do
império
que,
sobre
o
povo
e
especialmente
sobre
nós,
minha
345 mãe
e
eu,
exercia
o
santo
homem
evangélico,
insurgiu-‐se
contra
ele:
aquilo
era
um
exemplo
da
teocracia
obscurantista
em
que
estava
mergulhada
a
Espanha.
E
começou
a
resmungar
sem
descanso
todos
os
velhos
lugares
comuns
progressistas,
anticlericais
e
até
antirreligiosos
que
tinha
trazido,
renovados,
do
Novo
Mundo.
Para
ele,
feudal
era
um
termo
pavoroso.
Feudal
e
medieval
eram
os
dois
qualificativos
que
esbanjava
quando
queria
condenar
alguma
coisa.
Ficava
desconcertado
com
o
nulo
efeito
de
suas
diatribes
sobre
nós
e
sobre
o
povo,
que
o
355 ouvia
com
respeitosa
indiferença:
“Esses
campônios
não
se
sensibilizam
com
nada”.
Mas
12
como,
por
ser
inteligente,
era
um
homem
bom,
logo
reconheceu
a
espécie
de
império
que
Dom
Manuel
exercia
e
sua
obra.
Eu perguntava:
– Imagino.
E
continuava
não
entrando
na
igreja
e
a
fazer
praça
de
sua
descrença,
ainda
que
sempre
resguardasse
Dom
Manuel.
Entre
as
pessoas,
não
sei
como,
foi-‐se
formando
certa
expectativa
em
torno
daquilo
que
seria,
digamos,
um
duelo
entre
meu
irmão
Lázaro
e
365 Dom
Manuel,
ou
antes
a
conversão
daquele
por
este.
Ninguém
duvidava
que
o
pároco
o
atrairia
à
sua
paróquia.
Lázaro,
por
sua
vez
–
isso
ele
me
disse
logo
-‐,
desejava
muito
ver
e
ouvir
Dom
Manuel
na
igreja,
aproximar-‐se
dele
e
com
ele
conversar,
conhecer
o
segredo
daquele
império
espiritual
sobre
as
almas.
Mas
se
fazia
de
rogado,
até
que
um
dia
–
por
curiosidade,
disse
–
foi
ouvi-‐lo.
370 –
Isso
é
outra
coisa
–
comentou
depois.
–
Não
é
como
os
outros,
mas
a
mim
não
me
engana:
é
muito
inteligente
para
crer
no
que
é
obrigado
a
ensinar.
Quanto
a
mim,
meu
irmão
insistia
para
que
eu
lesse
os
livros
que
trouxera
e
outros
que
375 me
estimulava
a
comprar.
–
Então
o
teu
irmão
Lázaro
insiste
em
que
deves
ler?
Pois
lê,
minha
filha,
lê
e
dá
a
ele
esse
prazer.
Sei
que
só
lerás
o
que
vale
a
pena.
Lê,
mesmo
que
seja
um
romance.
As
histórias
chamadas
verdadeiras
não
são
necessariamente
superiores.
É
melhor
ler
do
380 que
se
ocupar
com
os
mexericos
e
as
bisbilhotices
do
povo.
Mas
lê,
sobretudo,
livros
edificantes,
que
te
deixam
de
bem
com
a
vida,
numa
satisfação
amena
e
silenciosa.
FOI
ENTÃO
QUE
nossa
mãe
adoeceu
gravemente
e
veio
a
falecer.
Nos
últimos
dias,
o
385 sonho
dela
era
que
Dom
Manuel
convertesse
Lázaro,
de
modo
que
um
dia
tornasse
a
vê-‐
lo
no
céu,
num
cantinho
estrelar
qualquer
de
onde
se
avistasse
o
lago
e
a
montanha
da
Valverde
de
Lucerna.
Ela
ia
antes,
para
ver
Deus.
13
–
Não
irás
embora,
não
–
dizia-‐lhe
Dom
Manuel
-‐,
ficarás
aqui
mesmo:
o
teu
corpo
aqui,
390 nesta
terra,
e
a
tua
alma
aqui
também,
nesta
casa,
vendo
e
ouvindo
teus
filhos,
embora
sem
ser
vista
ou
ouvida
por
eles.
–
Deus,
minha
filha,
está
aqui
e
em
toda
parte,
tu
O
verás
daqui
mesmo.
E
nos
verás
a
todos
n’Ele
e
O
verás
em
nós.
–
O
céu
dela
é
continuar
te
vendo
e
este
é
o
momento
de
lhe
dar
o
céu.
Diz
que
rezarás
por
ela.
400 – Mas…
–
Mas…?
Diz
que
rezarás
por
ela,
a
ela
deves
a
vida,
e
tenho
certeza
de
que,
prometendo,
rezarás,
e
rezando…
Meu
irmão
se
aproximou
de
nossa
mãe
agonizante
e,
com
os
olhos
marejados,
prometeu
solenemente
que
rezaria
por
ela.
405 –
E
eu
no
céu
por
ti,
por
todos
vocês
–
ela
respondeu,
e
beijando
o
crucifixo,
olhos
fitos
nos
olhos
de
Dom
Manuel,
entregou
sua
alma
a
Deus.
FICAMOS
SOZINHOS
na
casa,
meu
irmão
e
eu.
A
morte
de
minha
mãe
pôs
Lázaro
em
410 contato
mais
estreito
com
Dom
Manuel,
que
daí
em
diante
me
deu
impressão
de
descuidar-‐se
um
pouco
de
seus
outros
pacientes,
de
seus
outros
necessitados,
para
dar
assistência
ao
meu
irmão.
Pelas
tardes
iam
passear
os
dois
às
margens
do
lago
ou
até
as
ruínas
revestidas
de
hera
do
velho
mosteiro
cisterciense.
415 –
É
um
homem
maravilhoso
–
Lázaro
convinha.
–
Deves
saber,
claro:
dizem
que
no
fundo
do
lago
há
uma
aldeia
submersa
e
que,
na
noite
de
São
João,
à
meia
noite,
ouvem-‐se
as
badaladas
do
sino
de
sua
igreja.
–
Acho
que
no
fundo
da
alma
de
nosso
Dom
Manuel
há
também
uma
aldeia
submersa,
420 afogada,
e
que
de
vez
em
quando
se
ouvem
suas
badaladas.
14
–
Sim,
uma
aldeia
submersa
na
alma
de
Dom
Manuel…
e
por
que
também
na
tua?
É
o
cemitério
das
almas
de
nossos
avós,
os
avós
de
nossa
Valverde
de
Lucerna…
feudal,
medieval!
425 MEU
IRMÃO
TORNOU-‐SE
assíduo
frequentador
da
missa,
para
ouvir
Dom
Manuel,
e
quando
se
propalou
que
cumpriria
seus
compromissos
de
paroquiano,
que
comungaria
quando
os
demais
comungassem,
o
povo,
intimamente,
regozijou-‐se,
por
acreditar
que
ele
agora
era
um
igual.
Mas
foi
um
contentamento
tal,
tão
limpo,
que
Lázaro
não
se
sentiu
vencido
ou
diminuído.
430 Sobreveio
o
dia
de
sua
comunhão,
diante
do
povo
todo
e
com
o
povo
todo.
Dom
Manuel,
branco
como
a
neve
de
janeiro
na
montanha
e
tremendo
como
treme
o
lago
fustigado
pelo
vento
norte,
aproximou-‐se
dele
com
a
hóstia
na
mão,
e
tremia
tanto
que,
ao
levá-‐la
à
boca
de
Lázaro,
deixou-‐a
cair,
ao
mesmo
tempo
em
que
parecia
ter
uma
vertigem.
Foi
o
próprio
Lázaro
que
juntou
a
hóstia
e
a
pôs
na
boca.
E
o
povo,
vendo
que
Dom
Manuel
435 chorava,
chorou
também,
e
alguns
diziam:
“Como
gosta
dele!”
E
então
–
era
madrugada
–
um
galo
cantou.
Já em casa com meu irmão, pendurei-‐me em seu pescoço e o beijei.
–
Lázaro,
ai,
Lázaro,
que
alegria
nos
deste,
a
mim
e
a
todos,
os
vivos
e
os
mortos
e
principalmente
à
mamãe,
à
nossa
Mãe.
Viste
só?
O
pobre
Dom
Manuel
chorava
de
440 alegria.
Ah,
que
alegria
nos
deste!
–
Por
isso?
Para
nos
dar
alegria?
Antes
de
mais
nada,
fizeste
por
ti
mesmo,
por
tua
conversão.
E
então
Lázaro,
meu
irmão,
tão
pálido
e
tão
trêmulo
quando
Dom
Manuel
ao
lhe
dar
a
445 comunhão,
fez-‐me
sentar
na
mesma
poltrona
em
que
costumava
sentar
nossa
mãe,
tomou
fôlego
e
me
disse,
como
fazendo
uma
íntima
confissão
doméstica
e
familiar:
–
Olha,
Angelita,
chegou
a
hora
de
te
dizer
a
verdade,
toda
a
verdade,
e
te
direi
porque
é
preciso
dizer,
porque
não
posso,
não
devo
escondê-‐la
de
ti
e
porque,
de
resto,
mais
cedo
ou
mais
tarde
acabarias
descobrindo,
ainda
que
pela
metade,
o
que
seria
muito
pior.
450 Serena
e
tranquilamente
contou
uma
história
que
me
afundou
num
lago
de
tristeza:
de
como
Dom
Manuel,
naqueles
passeios
às
ruínas
do
velho
mosteiro
cisterciense,
vinha
insistindo
para
que
não
escandalizasse
a
aldeia,
para
que
desse
bom
exemplo,
para
que
participasse
da
vida
religiosa
do
povo,
para
que
fingisse
acreditar
se
não
acreditava,
para
que
ocultasse
suas
ideias
a
respeito,
mas
sem
nunca
tentar
catequizá-‐lo
e,
de
modo
455 algum,
convertê-‐lo.
15
–
É
tão
possível,
minha
irmã,
tão
possível!
E
quando
eu
estranhei:
“Mas
é
você,
você,
o
sacerdote,
que
me
aconselha
a
fingir?”,
ele,
balbuciante:
“Fingir?
Fingir
não!
Isso
não
é
fingir!
Toma
água
benta
e
acabarás
crendo,
já
disse
alguém”.
Olhando-‐o
nos
olhos,
460 perguntei:
“E
você,
de
tanto
celebrar
missa
acabou
crendo?”
Ele
olhou
para
o
lago
e
seus
olhos
se
encheram
de
lágrimas.
Foi
assim
que
descobri
seu
segredo.
– Lázaro – gemi.
E
passou
pela
rua
Blasillo,
o
bobo,
a
gritar
“Meu
Deus,
meu
Deus,
por
que
me
abandonaste?”
E
Lázaro
estremeceu,
pensando
que
ouvia
a
voz
de
Dom
Manuel
ou
quem
465 sabe
a
de
Nosso
Senhor
Jesus
Cristo.
–
Então
compreendi
o
que
o
move
–
prosseguiu
–
e
compreendi,
por
fim,
sua
santidade.
Porque
é
um
santo,
minha
irmã,
um
santo
completo.
Ao
perseverar
em
me
atrair
para
sua
santa
causa
–
e
é
uma
causa
santa,
santíssima
–,
não
considerava
que
seria
uma
vitória,
mas
um
voto
pela
paz,
pela
felicidade,
ou
pela
ilusão,
se
preferes,
daqueles
que
470 estão
sob
seu
cuidado.
Compreendi
que,
se
os
engana
assim,
se
é
que
isso
é
enganar,
não
é
para
ganhar
nada.
Rendi-‐me
às
suas
razões
e
eis
a
minha
conversão.
Não
me
esquecerei
jamais
do
dia
em
que,
dizendo-‐lhe
eu:
“Mas
Dom
Manuel,
a
verdade,
antes
de
mais
nada,
a
verdade”,
ele,
trêmulo,
sussurrou
ao
meu
ouvido
–
e
olha
que
estávamos
só
os
dois
no
meio
do
campo:
“A
verdade?
A
verdade,
Lázaro,
pode
ser
algo
terrível,
algo
475 intolerável,
algo
mortal.
As
pessoas
simples
não
poderiam
conviver
com
ela”.
Eu
lhe
perguntei:
“E
por
que
você
me
deixa
entrevê-‐la
aqui,
agora,
como
numa
confissão?”
E
ele:
“Porque
se
não
o
fizesse
me
atormentaria
tanto,
tanto,
que
acabaria
gritando-‐a
no
meio
da
praça,
e
isso
jamais,
jamais,
jamais.
Eu
estou
aqui
para
fazer
viver
as
almas
de
meus
paroquianos,
para
fazê-‐los
felizes,
para
fazer
com
que
sonhem
ser
imortais,
e
não
480 para
matá-‐los.
É
preciso
que
vivam
saudavelmente,
com
unanimidade
de
sentido,
e
isso
não
poderiam
fazer
com
a
verdade,
com
a
minha
verdade.
Que
vivam.
Nisso
a
Igreja
acerta:
faz
com
que
vivam.
Religião
verdadeira?
Todas
são
verdadeiras
enquanto
fazem
viver
espiritualmente
os
povos
que
as
professam,
enquanto
os
consolam
por
terem
nascido
para
morrer,
e
para
cada
povo
a
religião
mais
verdadeira
é
a
dele
mesmo,
aquela
485 que
o
fez.
A
minha?
A
minha
é
me
consolar
consolando
os
demais,
embora
o
conselho
que
lhes
dou
não
me
sirva”.
Jamais
me
esquecerei
de
suas
palavras.
–
Então
a
tua
comunhão
foi
um
sacrilégio
–
me
atrevi
a
insinuar,
arrependendo-‐me
no
mesmo
instante.
– Para enganá-‐lo?
16
495 –
Que
sei
eu…!
Decerto
crê
sem
querer,
por
hábito,
por
tradição.
O
que
não
se
pode
fazer
é
despertá-‐lo.
E
que
viva
com
sua
pobreza
de
sentimentos
para
que
não
adquira
torturas
de
luxo.
Bem
aventurados
os
pobres
de
espírito!12
–
Isso
aprendeste
com
Dom
Manuel.
E
chegaste
a
cumprir
aquilo
que
prometeste
à
nossa
mãe
agonizante:
que
rezarias
por
ela?
500 –
Como
não?
Que
pensas
de
mim?
Achas
que
sou
capaz
de
faltar
com
minha
palavra,
quebrar
uma
promessa
solene
feita
no
leito
da
morte
de
uma
mãe?
– Sei lá… Podes ter prometido só para consolá-‐la na hora da morte…
– Cumpriste, então?
505 – Cumpri e não deixei um só dia de rezar por ela
– Por ti mesmo! E de agora em diante, por Dom Manuel.
E
cada
um
foi
para
seu
quarto,
eu
a
chorar
a
noite
toda,
a
rezar
pela
conversão
de
meu
510 irmão,
de
Dom
Manuel,
e
no
caso
de
Lázaro,
para
que
se
convertesse
não
sei
bem
a
quê.
DEPOIS
DESSE
DIA,
continuando
a
ajudar
Dom
Manuel
em
seus
misteres,
eu
tremia
quando
com
ele
estava
a
sós.
E
ele
parecia
perceber
meu
estado
de
espírito
e
adivinhar-‐
lhe
a
causa.
E
quando
me
aproximei
dele
no
tribunal
da
penitência
–
quem
era
o
juiz?
515 Quem
era
o
réu?
Os
dois,
ele
e
eu,
curvamos
a
cabeça
e
começamos
a
chorar.
E
foi
Dom
Manuel
quem
rompeu
o
tremendo
silêncio
para
dizer,
com
uma
voz
que
parecia
sair
de
uma
sepultura:
– Mas tu, Angelita, tu crês como nos teus dez anos, não é? Crês?
520 – Pois continua. E se tiveres alguma dúvida, oculta-‐a de ti mesmo. É preciso viver.
12
…porque deles é o reino dos céus: Mt., V, 3; Lc., VI, 20.
17
–
Creio.
525 –
No
quê,
padre,
no
quê?
Crê
na
outra
vida?
E
que
ao
morrer
não
morremos
completamente?
E
que
voltaremos
a
nos
ver
e
a
nos
querer
no
mundo
vindouro?
O
senhor
crê
nessa
outra
vida?
530 Agora,
ao
escrever
esta
memória,
eu
me
pergunto:
por
que
não
quis
me
enganar?
Por
que
não
me
enganou,
como
enganava
os
outros?
Por
que
se
afligiu
tanto?
Porque
não
podia
enganar
a
si
mesmo
ou
porque
não
podia
me
enganar?
E
quero
acreditar
que
se
afligia
porque
não
podia
enganar-‐se
para
me
enganar.
–
Agora
–
acrescentou
–
reza
por
mim,
por
teu
irmão,
por
ti
mesma,
por
todos.
É
preciso
535 viver.
E
é
preciso
dar
a
vida.
–
Não,
não,
tens
que
te
casar.
Lázaro
e
eu
acharemos
um
noivo
para
ti.
Tens
que
te
casar,
540 o
casamento
vai
te
curar
dessas
preocupações.
–
Sei
bem
o
que
digo.
E
não
te
angusties
demais
por
causa
dos
outros,
cada
qual
já
tem
de
sobra
o
que
cuidar
de
si
mesmo.
–
Logo
o
Senhor
vem
me
dizer
uma
coisa
dessas,
Dom
Manuel!
Logo
o
senhor
vem
me
545 aconselhar
a
me
casar
para
cuidar
de
mim
e
não
me
envolver
com
os
problemas
dos
outros!
Logo
o
Senhor!
–
Tens
razão,
já
nem
sei
o
que
digo,
Angelita.
Já
nem
sei
o
que
digo
desde
que
ficou
claro
que
estou
me
confessando
contigo.
Ah,
sim,
é
preciso
viver,
é
preciso
viver.
– Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, te absolvo, padre.
E saímos da Igreja, e ao sair eu sentia que estremeciam minhas entranhas maternais.
18
555 MEU
IRMÃO,
INTEIRAMENTE
dedicado
às
obras
de
Dom
Manuel,
era
seu
mais
assíduo
colaborador
e
companheiro.
O
segredo
compartilhado
os
unia
mais
e
mais.
Acompanhava-‐o
nas
visitas
aos
doentes,
às
escolas,
e
punha
seu
dinheiro
à
disposição
do
santo
homem.
Pouco
faltou
para
que
aprendesse
a
ajudar
na
missa.
E
ia
entrando
cada
vez
mais
na
alma
insondável
de
Dom
Manuel.
560 –
Que
homem
–
dizia.
–
Ontem,
olha
só,
estávamos
passeando
à
beira
do
lago
e
ele
disse:
“Aqui
está
a
minha
tentação
maior”.
E
como
o
interrogasse
com
o
olhar,
explicou:
“Meu
pobre
pai,
que
morreu
com
quase
noventa
anos
–
ele
mesmo
me
contou
–,
era
um
torturado
pela
tentação
do
suicídio,
que
o
perseguia
já
nem
se
lembrava
desde
quando,
‘desde
o
berço’,
dizia.
Defender-‐se
dela
era
sua
vida.
Para
não
sucumbir,
extremava-‐se
565 em
cuidados.
Contou-‐me
cenas
terríveis.
Aquilo
parecia
uma
loucura.
E
eu
a
herdei.
Ah,
como
me
chama
essa
água
que
reflete
o
céu,
com
sua
aparente
quietude
–
a
correnteza
vai
por
baixo.
Minha
vida,
Lázaro,
é
uma
espécie
de
suicídio,
o
que
vem
a
dar
na
mesma.
Mas
que
vivam
eles,
os
outros,
que
vivam
os
nossos!”
E
ajuntou:
“Aqui
o
rio
se
arremansa
em
lago,
para
logo
ali,
na
descida
para
a
meseta,
precipitar-‐se
em
cascatas,
saltos
e
570 corredeiras,
perto
da
cidade.
A
vida
aqui
na
aldeia
também
é
um
remanso.
Mas
a
tentação
do
suicídio
é
maior
aqui,
à
vista
do
remanso
que
reflete
as
estrelas,
do
que
perto
das
cascatas
que
dão
medo.
Olha,
Lázaro,
ajudei
a
morrer
esses
pobres
camponeses,
ignorantes,
analfabetos,
que
pouco
ou
nada
conheciam
além
da
aldeia,
e
pude
ouvir
de
seus
lábios,
quando
não
adivinhava,
a
verdadeira
causa
de
suas
doenças
575 finais,
e
pude
ver
ali,
na
cabeceira
de
seus
leitos
de
morte,
todo
o
negror
dessa
cratera
que
é
o
tédio
de
viver.
Mil
vezes
pior
do
que
a
fome!
Portanto,
Lázaro,
sigamos
nos
suicidando
em
nossa
obra
e
em
nosso
povo,
e
que
o
nosso
povo
sonhe
sua
vida
como
o
lago
sonha
o
céu”.
Outra
vez
vimos
uma
zagala,
uma
pastorinha
de
cabras
que,
de
pé
sobre
um
montículo
na
vertente
da
montanha,
à
vista
do
lago,
cantava
com
uma
voz
mais
580 fresca
do
que
as
águas
do
próprio
lago.
Dom
Manuel
me
fez
parar
e,
apontando-‐a,
disse:
“Olha,
é
como
se
o
tempo
tivesse
acabado,
como
se
essa
pastorinha
estivesse
ali
desde
sempre,
do
jeito
que
está,
cantando
como
está,
e
como
se
assim
fosse
ficar
para
sempre,
como
estava
quando
comecei
a
ter
consciência
de
mim
mesmo,
como
estará
quando
não
mais
eu
a
tiver.
Essa
zagala,
como
as
rochas,
as
nuvens,
as
árvores,
as
águas,
é
parte
da
585 natureza
e
não
da
história”.
Como
Dom
Manuel
sente
a
natureza,
como
lhe
dá
vida!
Nunca
me
esquecerei
daquilo
que
falou
no
dia
da
nevada:
“Já
viste
um
mistério
maior?
A
neve
caindo
no
lago
e
morrendo
nele,
ao
mesmo
tempo
em
que,
com
sua
touca,
cobre
a
montanha”.
590 DOM
MANUEL
PRECISAVA
conter
meu
irmão
em
seu
zelo
e
em
sua
inexperiência
de
neófito.
E
como
tivesse
sabido
que
Lázaro
andava
condenando
certas
superstições
populares,
alertou-‐o:
–
Deixa!
É
tão
difícil
fazê-‐los
compreender
onde
termina
a
crença
ortodoxa
e
começa
a
superstição!
E
mais
ainda
para
nós.
Deixa,
assim
eles
se
consolam.
Mais
vale
crerem
em
595 tudo,
até
mesmo
em
coisas
contraditórias,
do
que
não
crerem
em
nada.
Essa
história
de
19
que
aquele
que
crê
demais
acaba
por
não
crer
em
nada
é
coisa
de
protestante.
Não
protestemos.
O
protesto
mata
a
satisfação.
–
Olha,
a
água
está
rezando
a
ladainha
e
agora
diz:
Ianua
caeli,
oro
pro
nobis,
porta
do
céu,
ora
por
nós!
E
perlaram
em
suas
pestanas,
caindo
na
vegetação,
duas
lágrimas
fugidias,
nas
quais
banhou-‐se
como
a
banhar-‐se
no
orvalho,
tremeluzente,
o
lume
da
lua
cheia.
605
E
IA
PASSANDO
O
TEMPO
e
notávamos,
meu
irmão
e
eu,
que
as
forças
de
Dom
Manuel
começavam
a
decair,
que
já
não
conseguia
conter
de
todo
a
insondável
tristeza
que
o
consumia,
que
uma
enfermidade
insidiosa,
quem
sabe,
estava
a
minar
seu
corpo
e
sua
alma.
E
Lázaro,
talvez
para
distraí-‐lo,
perguntou-‐lhe
o
que
achava
de
fundar
na
igreja
um
610 sindicato
católico
agrário
ou
coisa
parecida.
– E é do outro?
–
O
Outro,
Lázaro,
está
aqui
também,
por
que
há
dois
reinos
deste
mundo.
Ou
melhor,
o
outro
mundo…
ora,
ora,
já
não
sei
o
que
estou
dizendo…
Quanto
à
idéia
do
sindicato,
é
um
ressaibo
da
tua
época
de
progressismo.
Não,
Lázaro,
não,
a
religião
não
existe
para
resolver
conflitos
econômicos
ou
políticos
deste
mundo
que
Deus
entregou
às
disputas
620 dos
homens.
Pensem
os
homens
e
obrem
os
homens
como
pensarem
e
obrarem:
que
se
consolem
por
ter
nascido,
que
vivam
contentes
–
o
mais
que
puderem
–
na
ilusão
de
que
tudo
isto
tem
uma
finalidade.
Eu
não
vim
aqui
para
submeter
os
pobres
aos
ricos
ou
pregar
aos
ricos
que
se
submetam
aos
pobres.
Resignação
e
compaixão
em
todos
e
para
todos.
Porque
também
o
rico
tem
de
se
resignar
à
sua
riqueza,
e
à
vida,
e
também
o
625 pobre
tem
de
ser
compassivo
com
o
rico.
Questão
social?
Esquece,
isso
não
nos
diz
respeito.
Que
inaugurem
uma
nova
sociedade,
em
que
não
haja
ricos
nem
pobres,
em
que
esteja
justamente
repartida
a
riqueza,
em
que
tudo
seja
de
todos…
e
daí?
Não
vês
que
do
bem-‐estar
geral
brotará,
mais
forte
do
que
tudo,
o
tédio
de
viver?
Sim,
bem
sei
que
um
desses
líderes
da
chamada
revolução
social
disse
que
religião
é
o
ópio
do
povo.
630 Ópio…
ópio…
ópio,
sim.
Nós
damos
o
ópio
ao
povo,
e
que
durma
bem
e
tenha
bons
sonhos.
Eu
mesmo,
com
minha
louca
atividade,
administro
ópio
em
mim
mesmo.
E
não
consigo
dormir
bem
e
menos
ainda
ter
bons
sonhos…
Este
terrível
pesadelo!
Também
13
Jo, XXVII, 36.
20
posso
dizer,
como
o
Divino
Mestre:
“Minha
alma
está
triste
até
à
morte”14.
Não,
Lázaro,
não,
de
nossa
parte
nada
de
sindicatos.
Se
eles
o
fizerem,
acharei
que
está
bem,
assim
se
635 distraem.
Que
brinquem
de
sindicato,
se
isso
os
faz
felizes.
NA
ALDEIA
TODOS
notaram
que
Dom
Manuel
estava
perdendo
as
forças,
que
facilmente
se
cansava.
Até
sua
voz,
aquela
voz
que
era
um
milagre,
adquiriu
certo
estremecimento
íntimo.
Chorava
por
qualquer
motivo,
e
quando
falava
ao
povo
sobre
o
640 outro
mundo,
a
outra
vida,
detinha-‐se
a
todo
instante,
fechando
os
olhos.
“É
que
está
vendo
o
além”,
diziam.
E
então
era
Blasillo,
o
bobo,
que
mais
chorava.
Porque
Blasillo
chorava
já
mais
do
que
ria
e
até
seu
riso
se
parecia
um
choro.
Na
última
Semana
Santa
que
Dom
Manuel
celebrou
conosco,
em
nosso
mundo,
em
nossa
aldeia,
o
povo
pressentiu
o
fim.
E
como
ressoou
então
aquele
“Meu
Deus,
meu
Deus,
por
645 que
me
abandonaste?”,
o
último
que
Dom
Manuel
soluçou
em
público!
E
também
assim
quando
repetiu
o
que
disse
o
Divino
Mestre
ao
bom
ladrão:
“Amanhã
estarás
comigo
no
Paraíso”15
–
ele,
Dom
Manuel,
costumava
dizer:
“Todos
os
ladrões
são
bons”.
E
a
última
comunhão
geral
administrada
pelo
nosso
santo!
Quando
foi
dá-‐la
a
meu
irmão
–
desta
vez
com
a
mão
firme
–,
após
o
litúrgico…
in
vitam
aeternam,
inclinou-‐se
ao
ouvido
dele
e
650 disse:
“Nossa
vida
eterna
é
aqui
mesmo…
que
sonhem
com
a
eternidade…
a
eternidade
de
alguns
anos…”
E
a
mim,
na
minha
vez:
“Reza,
minha
filha,
reza
por
nós…”.
E
logo,
em
voz
baixa
que
parecia
vir
de
outro
mundo,
disse
algo
tão
extraordinário
que
nunca
pude
esquecer
e
trago
no
coração
como
o
maior
mistério:
“…
e
reza
também
por
Nosso
Senhor
Jesus
Cristo”.
655 Levantei-‐me
sem
forças,
como
sonâmbula.
E
tudo
ao
redor
parecia
um
sonho.
Pensei:
“Também
rezarei
pelo
lago
e
pela
montanha”.
E
em
seguida:
“Estarei
endemoniada?”
E,
em
casa,
peguei
o
crucifixo
com
o
qual
minha
mãe
entregara
sua
alma
a
Deus,
e
olhando-‐
o
através
das
lágrimas
e
lembrando-‐me
do
“Meu
Deus,
meu
Deus,
por
que
me
abandonaste?”
de
nossos
dois
Cristos,
o
da
Terra
e
o
da
aldeia,
rezei:
“Seja
feita
a
vossa
660 vontade
assim
na
terra
como
no
céu”.
E
depois:
“Não
nos
deixes
cair
em
tentação,
amém”.
Voltei-‐me
para
aquela
imagem
da
Dolorosa,
com
o
coração
atravessado
por
sete
espadas,
que
tinha
sido
o
mais
doloroso
consolo
de
minha
pobre
mãe,
e
rezei:
“Santa
Maria,
mãe
de
Deus,
rogai
por
nós,
os
pecadores,
agora
e
na
hora
de
nossa
morte,
amém”.
E
mal
terminara,
perguntei-‐me:
“Pecadores?
Nós,
os
pecadores?
E
qual
o
nosso
665 pecado?
Qual?”
E
passei
o
resto
do
dia
angustiada
com
essa
pergunta.
Na
manhã
seguinte
fui
procurar
Dom
Manuel,
que
ia
adquirindo
uma
solenidade
de
religioso
ocaso.
–
Não
sei
se
o
senhor
se
lembra,
padre:
há
muito
tempo,
quando
lhe
fiz
uma
pergunta,
o
senhor
respondeu:
“Não
perguntes
a
mim,
que
sou
ignorante.
A
Santa
Madre
Igreja
têm
670 doutores
que
saberão
responder”.
14
Mt., XXVI, 38; Mc., XIV, 34.
15
Lc. XXIII, 43. Jesus diz “ainda hoje” e não “amanhã”.
21
–
Sim,
me
lembro.
E
me
lembro
também
de
ter
dito
que
eram
perguntas
inspiradas
pelo
Demônio.
–
Pois
bem,
padre,
hoje
eu
volto,
a
endemoniada,
para
fazer
outra
pergunta
inspirada
pelo
meu
demônio-‐da-‐guarda.
– Ontem, na comunhão, o senhor me pediu que rezasse por nós e até por…
–
Em
casa
eu
fui
rezar
e
chegando
no
“rogai
por
nós,
os
pecadores,
agora
e
na
hora
de
nossa
morte”,
uma
voz
interior
me
perguntou:
“Pecadores?
Nós,
os
pecadores?
E
qual
o
680 nosso
pecado?
Qual
é
o
nosso
pecado,
padre?”
685 –
Vai
e
torna
a
rezar!
Torna
a
rezar
por
nós,
os
pecadores,
agora
e
na
hora
de
nossa
morte…
Sim,
no
fim
se
cura
o
sonho…
no
fim
se
cura
a
vida…
no
fim
se
acaba
a
cruz
do
nascimento…
E
como
disse
Calderón,
o
fazer
bem
e
o
enganar
bem
nem
mesmo
em
sonho
se
perdem…
690 E
CHEGOU,
POR
FIM,
a
hora
de
sua
morte.
Todos
a
viam
chegar.
E
foi
sua
maior
lição.
Não
quis
morrer
sozinho
e
ocioso.
Morreu
falando
ao
povo,
na
igreja.
Antes
de
pedir
que
o
levassem
para
lá
–
a
paralisia
já
o
impedia
de
mover-‐se
-‐,
chamou-‐nos
à
sua
casa,
a
mim
e
a
Lázaro.
E
ali,
os
três
a
sós,
nos
disse:
–
Cuidem
dessas
pobres
ovelhas,
que
se
consolam
de
viver,
que
creem
no
que
não
pude
695 crer.
E
tu,
Lázaro,
quando
tiveres
de
morrer,
morre
como
eu,
como
morrerá
nossa
Ângela,
no
seio
da
Santa
Madre
Igreja
Católica
Apostólica
Romana,
da
Santa
Madre
Igreja
de
Valverde
de
Lucerna,
bem
entendido.
E
até
nunca
mais,
pois
para
mim
já
se
acaba
esse
sonho
que
é
a
vida.
700 –
Não
te
aflige,
Ângela,
continua
rezando
pelos
pecadores,
pelos
recém-‐nascidos.
E
que
sonhem,
que
sonhem!
Que
vontade
eu
tenho
de
dormir,
dormir,
dormir
sem
fim,
dormir
por
toda
a
eternidade
e
sem
sonhar!
Esquecendo
o
sonho!
Quando
me
enterrarem,
que
seja
num
caixão
feito
com
aquelas
seis
tábuas
que
extraí
da
velha
nogueira
–
pobrezinha!
–,
em
cuja
sombra
brinquei
quando
era
menino,
quando
começava
a
sonhar…
Naquele
16
Comédia de Calderón de La Barca (1600-1681), poeta e dramaturgo espanhol.
22
705 tempo
eu
cria,
sim,
na
vida
eterna.
Isto
é,
parece-‐me
agora
que,
naquele
tempo,
eu
cria.
Para
um
menino
crer
basta
que
sonhe.
E
para
um
povo.
Essas
tábuas,
que
fiz
com
minhas
próprias
mãos,
estão
ao
lado
da
minha
cama.
–
Vocês,
certamente
se
lembram:
quando
rezávamos
o
Credo
a
uma
só
voz,
junto
com
o
710 povo,
quase
no
final
eu
me
calava.
Quando
os
israelitas
iam
chegando
ao
fim
de
sua
peregrinação
no
deserto,
o
Senhor
disse
a
Aarão
e
a
Moisés
que,
por
não
terem
acreditado
em
Sua
Palavra,
não
entrariam
com
o
povo
na
terra
prometida.
Mandou
que
subissem
o
Monte
Hor,
onde
Moisés
fez
com
que
Aarão
se
despisse17.
E
Aarão
morreu
ali.
Depois
Moisés,
já
nas
estepes
de
Moab,
subiu
ao
Monte
Nebo,
no
cume
do
Fasga,
diante
715 de
Jericó,
e
daquele
lugar
o
Senhor
mostrou-‐lhe
a
terra
que
fora
prometida
ao
seu
povo,
dizendo:
“nela
não
entrarás”.
E
ali
morreu
Moisés
e
ninguém
ficou
sabendo
onde
era
sua
sepultura.
E
deixou
Josué
como
chefe18.
Sê
tu,
Lázaro,
o
meu
Josué,
e
se
puderes
fazer
com
que
se
detenha
o
sol,
faz,
e
não
te
preocupes
com
o
progresso.
Como
Moisés,
conheci
Deus,
nosso
supremo
sonho,
face
a
face,
e
já
sabes
o
que
dizem
as
Escrituras:
720 aquele
que
vê
a
face
de
Deus,
aquele
que
no
sonho
vê
os
olhos
com
que
nos
olha,
morre
sem
remédio
e
para
sempre19.
Que
nosso
povo
não
veja
a
face
de
Deus,
enquanto
viva,
porque
depois
de
morto
não
há
problema,
não
verá
nada
mesmo…
E ele:
725 Eu,
Ângela,
reza
sempre,
e
continua
rezando
para
que
os
pecadores,
até
a
morte,
sonhem
com
a
ressurreição
da
carne
e
vida
eterna,,,,
Eu esperava um “quem sabe?”, mas Dom Manuel se afogou outra vez.
–
E
agora
–
continuou
-‐,
na
hora
da
minha
morte,
é
preciso
que
alguém
me
leve
à
igreja,
nesta
poltrona.
Quero
me
despedir
do
povo,
que
me
espera.
730 Foi
levado
à
Igreja
e,
ainda
na
poltrona,
colocado
ao
pé
do
altar,
na
capela-‐mor.
Tinha
nas
mãos
um
crucifixo.
Meu
irmão
e
eu
permanecemos
junto
dele,
mas
foi
Blasillo,
o
bobo,
quem
mais
se
aproximou.
Queria
agarrar
a
mão
de
Dom
Manuel,
queria
beijá-‐la.
E
como
alguns
tentassem
impedi-‐lo,
Dom
Manuel
os
repreendeu,
dizendo:
– Deixem que se aproxime. Vem, Blasillo, me dá tua mão.
–
Serão
poucas
palavras,
meus
filhos,
mal
tenho
forças
para
morrer.
E
não
tenho
nada
de
novo
a
dizer,
já
disse
tudo.
Vivei
em
paz,
felizes
e
na
confiança
de
que
todos
nós
nos
veremos
um
dia,
na
Valverde
de
Lucerna
que
lá
está,
entre
aquelas
estrelas
da
noite
que,
17
Para dar as vestes ao filho de Aarão, Eleazar. Sobre a morte de Aarão, Nm., XX, 22-29.
18
Dt., XXXII, 48-52, e XXXIV, 1-7.
19
“Não poderás ver minha face, porque ninguém me pode ver e permanecer vivo”: Ex., XXXIII, 20.
23
de
cima
da
montanha,
refletem-‐se
no
lago.
E
rezai,
rezai
a
Maria
Santíssima,
rezai
a
740 Nosso
Senhor.
Sede
bons,
que
isto
basta.
Perdoai
todo
o
mal
que
eu
tenha
feito
sem
querer
e
sem
saber.
E
agora,
depois
de
vos
dar
a
minha
bênção,
rezai
todos
vós
um
Pai-‐
Nosso,
uma
Ave-‐Maria,
uma
Salve-‐Rainha
e,
por
último,
o
Credo.
Com
o
crucifixo,
abençoou
o
povo.
Choravam
as
mulheres,
as
crianças
e
não
poucos
os
homens.
Em
seguida
começaram
as
orações,
que
Dom
Manuel
ouvia
em
silêncio
e
com
a
745 mão
na
mão
de
Blasillo,
que
ao
som
das
primeiras
rezas
já
dormia.
Primeiro
o
Pai-‐Nosso
com
seu
“seja
feita
a
Vossa
vontade
assim
na
terra
como
no
céu”,
depois
o
“Santa
Maria”
com
seu
“rogai
por
nós,
os
pecadores,
agora
e
na
hora
de
nossa
morte”,
depois
a
Salve-‐
Rainha,
com
seu
“gemendo
e
chorando
neste
vale
de
lágrimas”,
e
por
último
o
Credo.
NA
ALDEIA,
NINGUÉM
quis
acreditar
na
morte
de
Dom
Manuel.
Todos
esperavam
vê-‐lo
no
dia-‐a-‐dia
e
talvez
até
o
vissem
contornar
o
lago
e
refletido
nele,
tendo
por
fundo
a
760 montanha.
Continuavam
ouvindo
sua
voz
e
acorriam
à
sua
sepultura,
em
torno
da
qual
surgiu
todo
um
culto.
As
endemoniadas,
agora,
vinham
tocar
na
cruz
de
nogueira,
feita
também
pelas
mãos
dele
e
tirada
da
mesma
árvore
de
que
tirara
as
seis
tábuas
do
caixão.
E
os
que
menos
acreditavam
que
estivesse
morto
éramos
nós,
meu
irmão
e
eu.
Ele,
Lázaro,
continuava
a
tradição
do
santo,
e
começou
a
redigir
o
que
ouvira
dele,
notas
765 das
quais
me
servi
nesta
memória.
–
Ele
me
fez
um
homem
novo,
um
verdadeiro
Lázaro,
ressuscitado
–
dizia-‐me.
–
Ele
me
deu
fé.
775 –
Sim,
e
como
Dom
Manuel,
mas…
não
crendo
senão
neste
mundo,
esperam
sei
lá
que
sociedade
futura
e
querem
negar
ao
povo
o
consolo
de
crer
em
outro…
24
–
De
modo
que…
– De modo que é preciso fazer com que vivam da ilusão.
780 O
POBRE
PADRE
que
veio
substituir
Dom
Manuel
em
seu
curato
chegou
a
Valverde
de
Lucerna
esmagado
pelas
lembranças
do
santo
e
entregou-‐se
a
mim
e
ao
meu
irmão
para
que
o
guiássemos.
Não
queria
senão
seguir
as
pegadas
do
santo.
E
meu
irmão
lhe
dizia:
“Pouca
teologia,
heim?
Pouca
teologia.
Religião,
religião”.
Ao
ouvi-‐lo,
eu
sorria,
perguntando-‐me
se
o
que
estávamos
fazendo
não
era
teologia.
785 Comecei
então
a
recear
por
meu
pobre
irmão.
Desde
que
Dom
Manuel
morrera,
não
se
podia
dizer
que
vivia.
Visitava
diariamente
o
túmulo
e
passava
longas
horas
contemplando
o
lago.
Ansiava
pela
paz
verdadeira.
–
Não
te
preocupes.
É
outro
o
lago
que
me
chama,
é
outra
a
montanha.
Não
posso
viver
790 sem
ele.
–
Isso
é
para
os
outros
pecadores,
não
para
nós
que
vimos
a
face
de
Deus
e
em
seus
olhos
o
sonho
da
vida.
795 –
Não,
não.
Agora,
aqui
em
casa,
entre
nós
dois,
toda
a
verdade,
por
amarga
que
seja,
amarga
como
o
mar
onde
vão
parar
as
águas
desse
doce
lago.
Toda
a
verdade
para
ti,
que
te
defendes
tanto
dela…
– A minha, sim.
– Também a dele.
–
Uma
vez
Dom
Manuel
me
disse:
há
certas
coisas
que,
pensadas,
não
devem
ser
reveladas
a
ninguém.
Quando
retruquei
que
isto
correspondia
a
uma
experiência
dele,
805 fez-‐me
uma
confissão:
acreditava
que
mais
de
um
dos
grandes
santos,
e
quem
sabe
até
o
maior
deles,
tinha
morrido
sem
crer
na
outra
vida.
– É possível?
25
–
Ah,
é
tão
possível!
E
agora,
minha
irmã,
toma
cuidado,
de
modo
que
aqui
na
aldeia
ninguém
sequer
suspeite
de
nosso
segredo…
810 –
Suspeitar?
Se
em
um
ato
de
loucura
eu
tentasse
lhes
explicar,
não
entenderiam.
O
povo
não
compreende
palavras.
O
povo
só
compreende
o
que
vocês
dois
fizeram,
as
obras.
Querer
explicar
isso
ao
povo
seria
como
ler
para
crianças
de
oito
anos
trechos
de
Santo
Tomás
de
Aquino…
em
latim!
– Bem, quando eu me for, reza por mim, por ele, por todos…
815 E
por
fim
chegou
também
a
sua
hora.
Uma
doença
que
ia
minando
sua
robusta
natureza
parecia
ter-‐se
agravado
com
a
morte
de
Dom
Manuel.
–
Não
sinto
tanto
ter
que
morrer
–
dizia-‐me,
em
seus
últimos
dias.
–
Morre
comigo
outro
pedaço
da
alma
de
Dom
Manuel,
mas
o
que
sobra
dele
viverá
comigo.
Até
que
um
dia
até
os
mortos
morreremos
completamente.
820 Como
é
costume
em
nossas
aldeias,
quando
Lázaro
começou
a
agonizar
as
pessoas
entravam
em
nossa
casa
para
ver
sua
agonia
e
encomendavam
sua
alma
a
Dom
Manuel,
a
São
Manuel
Bueno,
mártir.
Meu
irmão
não
lhes
dizia
nada,
já
não
tinha
nada
a
dizer.
E
lhes
deixava
dito
tudo,
tudo
o
que
aqui
fica
dito.
Era
mais
um
grampo
a
unir
as
duas
Valverdes
de
Lucerna,
a
do
fundo
do
lago
e
a
que,
em
sua
superfície,
se
reflete.
Era
já
um
825 dos
nossos
mortos
com
vida
e,
a
seu
modo,
também
um
dos
nossos
santos.
FIQUEI
MAIS
DO
QUE
desolada,
mas
em
minha
aldeia
e
com
meu
povo.
E
agora,
depois
de
ter
perdido
meu
São
Manuel,
o
pai
de
minha
alma,
e
meu
Lázaro,
meu
irmão
mais
do
que
carnal,
espiritual,
agora
me
dou
conta
de
que
envelheci
e
como
envelheci…
Mas…
830 será
que
os
perdi?
Será
que
envelheci?
Será
que
está
chegando
a
hora
da
minha
morte?
É
preciso
viver!
E
ele
me
ensinou
a
viver,
ele
nos
ensinou
a
viver,
a
sentir
a
vida,
a
sentir
o
sentido
da
vida,
a
submergir
na
alma
da
montanha,
na
alma
do
lago,
na
alma
do
povo
da
aldeia,
a
nelas
nos
perder
para
nelas
permanecer.
Com
sua
vida
ele
me
ensinou
a
me
perder
na
vida
do
povo
da
minha
aldeia,
e
eu
não
sentia
mais
o
passar
das
horas,
dos
835 dias,
dos
anos,
que
a
água
do
lago
também
não
sentia.
Parecia
que
minha
vida
tinha
sido
sempre
igual.
Não
me
sentia
envelhecer.
Já
não
vivia
em
mim,
mas
em
meu
povo,
e
meu
povo
vivia
em
mim.
Eu
só
tinha
a
dizer
aquilo
que
eles,
os
meus,
diziam
sem
querer.
Saía
à
rua,
que
era
uma
estrada,
e
como
a
todos
conhecia,
vivia
neles
e
me
esquecia
de
mim,
ao
passo
que
em
Madrid,
onde
estive
uma
vez
com
meu
irmão,
como
não
conhecia
840 ninguém,
experimentava
uma
terrível
solidão
e
me
sentia
torturada
por
tantos
desconhecidos.
E
agora,
ao
escrever
esta
íntima
confissão
de
minha
experiência
com
a
santidade
alheia,
creio
que
Dom
Manuel
Bueno,
que
meu
São
Manuel
e
meu
irmão
Lázaro
morreram
crendo
não
crer
no
que
mais
nos
interessa,
mas,
sem
crer
que
criam,
crendo,
através
da
845 desolação
resignada.
26
Mas
por
que
–
muitas
vezes
me
perguntando
–
Dom
Manuel
não
tentou
converter
meu
irmão
também
como
um
engano,
com
uma
mentira,
fingindo
ser
crente
sem
sê-‐lo?
E
compreendi:
foi
porque
viu
que
não
o
enganaria,
que
com
ele
o
engano
não
prosperava,
que
só
com
a
verdade,
com
sua
verdade,
poderia
convertê-‐lo,
que
não
conseguiria
nada
850 se
representasse
para
ele
uma
comédia
–
tragédia,
melhor
dito
–,
a
mesma
que
representava
para
salvar
o
povo.
E
assim
ganhou
para
sua
piedosa
fraude,
com
a
verdade
da
morte,
dando
uma
razão
à
vida.
E
assim
me
ganhou
a
mim,
que
nunca
deixei
transparecer
a
ninguém
seu
divino,
seu
santíssimo
jogo.
Ele
cria,
e
creio
que
Deus
Nosso
Senhor,
não
sei
por
que
sagrados
e
insondáveis
desígnios,
fez
com
que
ambos
se
cressem
855 incrédulos.
E
creio
também
que
no
fim
da
caminhada
–
quem
sabe?
–
a
venda
lhes
caiu
dos
olhos.
E
eu…
Creio?
HOJE
TENHO
MAIS
DE
CINQUENTA
anos
e,
enquanto
escrevo
esta
memória,
aqui,
na
minha
velha
casa
materna,
noto
que
começam
a
branquear
minhas
recordações,
tal
860 como
meus
cabelos.
Está
nevando,
nevando
sobre
o
lago,
nevando
sobre
a
montanha,
nevando
sobre
as
lembranças
de
meu
pai,
o
forasteiro.
E
também
sobre
as
de
minha
mãe,
de
meu
irmão
Lázaro,
de
meu
povo,
de
meu
São
Manuel,
e
igualmente
sobre
a
lembrança
do
pobre
Blasillo,
meu
São
Blasillo,
que
ele
me
ampare
lá
no
céu.
E
esta
neve
apaga
esquinas
e
apaga
sombras,
pois
até
de
noite
ela
fulgura.
E
eu
não
sei
o
que
é
865 verdade
e
o
que
é
mentira,
nem
o
que
vi
e
o
que
apenas
sonhei
–
ou
melhor,
o
que
sonhei
e
o
que
apenas
vi
-‐,
nem
o
que
soube
nem
o
que
cri.
Não
sei
se
para
este
papel,
tão
branco
como
a
neve,
estou
transferindo
minha
consciência,
que
nele
há
de
ficar,
ficando
eu
sem
ela.
E
para
que
tê-‐la
agora?
Será
que
sei
alguma
coisa?
Será
que
creio
em
algo?
Aconteceu
de
fato
o
que
estou
870 contando?
E
aconteceu
tal
como
eu
conto?
E
essas
coisas
podem
acontecer?
E
isso
tudo
pode
ser
mais
do
que
um
sonho
sonhado
dentro
de
outro
sonho?
Serei
eu,
Ângela
Carballino,
hoje
com
cinquenta
anos,
a
única
pessoa
que,
nesta
aldeia,
vê-‐se
acometida
por
pensamentos
estranhos
aos
demais?
E
estes,
os
outros,
os
que
me
rodeiam,
creem?
E
que
quer
dizer
isso,
crer?
Ao
menos
eles
vivem.
E
agora
creem
em
São
Manuel
Bueno,
875 mártir,
que
sem
esperar
imortalidade,
os
manteve
na
esperança
dela.
Parece
que
o
ilustríssimo
senhor
bispo,
aquele
que
se
empenha
na
beatificação
de
nosso
santo
de
Valverde
de
Lucerna,
propõe-‐se
a
escrever
sua
vida,
uma
espécie
de
manual
do
perfeito
pároco,
e
para
tanto
anda
colhendo
todas
as
informações
possíveis.
A
mim
também
me
pediu
com
insistência,
tivemos
alguns
encontros
e
contei-‐lhe
muitas
coisas,
880 mas
nada
revelei
sobre
o
trágico
segredo
de
Dom
Manuel
e
meu
irmão.
E
é
curioso
que
não
tenha
suspeitado.
Confio
em
que
não
chegue
ao
seu
conhecimento
tudo
o
que
aqui
deixo
consignado.
Tenho
receio
das
autoridades
terrenas,
das
autoridades
temporais,
ainda
que
sejam
as
da
Igreja.
Mas aqui isto termina e seja seu destino o que venha a ser.
885
27
COMO
VEIO
PARAR
nas
minhas
mãos
este
documento,
esta
memória
de
Ângela
Carballino?
Eis
aqui,
leitor,
algo
que
devo
guardar
em
segredo.
Passo-‐a
para
ti
tal
como
a
recebi,
sem
qualquer
mudança
senão
a
correção
de
umas
poucas
particularidades
de
redação.
Dirá
alguém
que
muito
se
parece
com
outras
coisas
que
escrevi.
Isto
nada
prova
890 contra
sua
objetividade,
sua
autenticidade.
De
resto,
sei
eu
lá
se
não
andei
criando,
fora
de
mim,
seres
reais
e
efetivos,
de
alma
imortal,
sei
eu
lá
se
aquele
Augusto
Pérez,
de
meu
romance
Niebla,
não
tinha
razão
ao
pretender
ser
mais
real,
mais
objetivo
do
que
eu
mesmo,
que
acreditava
tê-‐lo?
Inventado…
Da
realidade
deste
São
Manuel
Bueno,
mártir,
tal
como
me
revelou
sua
discípula
e
filha
espiritual,
Ângela
Carballino,
desta
realidade
895 não
me
ocorre
duvidar.
Acredito
nela
mais
do
que
acreditava
o
próprio
santo.
Acredito
nela
mais
do
que
acredito
em
minha
própria
realidade.
E
agora,
antes
de
terminar
este
epílogo,
quero
lembrar-‐te,
caro
leitor,
o
versículo
nove
da
epístola
do
esquecido
apóstolo
São
Judas
–
o
mal
que
pode
fazer
um
nome!
–,
onde
se
conta
como
meu
celestial
patrono,
o
Arcanjo
São
Miguel
(Miguel
quer
dizer
alguém
como
900 Deus,
e
arcanjo,
arqui-‐mensageiro),
disputou
com
o
Diabo
o
corpo
de
Moisés
(Diabo
quer
dizer
acusador,
denunciante),
não
tolerou
que
o
tomaste
por
amaldiçoado
e
disse-‐
lhe:
“O
Senhor
te
repreenda”.
Aquele
que
quiser
entender,
que
entenda.
Sei
bem
que,
no
que
se
conta
neste
relato,
se
entendido
como
um
romance
(e
o
romance
é
a
história
mais
íntima,
mas
verdadeira,
daí
que
não
entenda
como
pode
alguém
se
indignar
ao
ouvir
que
o
Evangelho
é
um
romance,
pois
isto
significa
colocá-‐lo
acima
de
um
crônica
qualquer),
bem
sei
que,
no
que
se
conta
neste
relato,
nada
acontece,
mas
915 espero
que
seja
porque
tudo
permanece
dentro
dele,
assim
como
permanecem
os
lagos
e
as
montanhas
e
as
santas
almas
singelas
assentadas
além
da
fé
e
da
desesperança
que
neles,
nos
lagos
e
nas
montanhas,
fora
da
história,
em
divino
romance
se
esconderam.
28