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Ambos nos falam do extraordinário poder que, pela fé, opera milagres, num convite
àquela conversão que, mais do que uma momentânea prece num momento de particular
aflição, se deve traduzir no habitual abandono das nossas vidas nas paternais mãos do nosso
providente Criador. O sentido da nossa vida é o de uma incessante peregrinação para a casa
do Pai e o instante da nossa morte mais não é do que o fim desse breve período terreno da
nossa existência e o começo da sua etapa definitiva, na eternidade de Deus. Por isso, todos os
instantes da nossa vida deveriam reflectir esse sentido de transcendência, sem o qual a
existência humana resultaria um trágico absurdo.
Quis a Providência que, tendo no ano passado assegurado este serviço litúrgico a
pedido do Presidente da Real Associação de Lisboa, por impedimento do Senhor Cónego João
Seabra, de novo o faça este ano, graças ao mesmo amável convite, que muito me honra. Por
isso, cumpre-me agradecer a fidalga hospitalidade do meu Pároco e titular desta belíssima
Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, bem como oportunidade que se me dá de me associar
a tão justa homenagem às vítimas do regicídio. É para mim especialmente grata a ocasião que
assim se me oferece de servir a Família Real, que cumprimento nas reais pessoas do Senhor
Dom Duarte e da Senhora Dona Isabel, Duques de Bragança, pedindo-lhes que aceitem os
meus respeitos pela Instituição que encarnam, na comunhão dos ideais cristãos que professam
com exemplar fidelidade. Peço ainda que contem sempre com o modesto óbolo da minha
oração, que os não esquece nunca, nem a seus filhos, Suas Altezas o Príncipe da Beira e os
Infantes de Portugal.
Uma tal atitude cristã deve-se traduzir não apenas pela fervorosa oração por El-Rei
D. Carlos e pelo Príncipe Real, mas também pelos seus assassinos, uma vez que é timbre dos
discípulos de Cristo, em contraposição aos seguidores de outras religiões, o mandamento
novo da caridade (cfr. Jo 13, 34-35), que obriga ao amor dos inimigos (cfr. Mt 5, 43-48). E,
porque a Igreja é, pela sua própria natureza, católica, ou seja, universal, esta nossa prece não
se limita apenas àqueles protagonistas da tragédia que antecedeu e propiciou, há mais de um
século, a implantação da república portuguesa, antes abarca todos os heróis da nossa Pátria e
da nossa fé, e também todas as vítimas inocentes da intolerância e do fanatismo, bem como
todos os criminosos e homicidas, na esperança de que a misericórdia divina os perdoe e
acolha, com a mesma espantosa magnanimidade que experimentou, no momento da sua
morte, o bom ladrão (cfr. Lc 23, 39-43).
que para alguns mais não é do que um acontecimento brutal é, para os seus mais próximos
familiares, causa de um imenso desgosto. Neste sentido, a dimensão nacional ou política do
regicídio, de tão funestas consequências para a História de Portugal, não deve levar a esquecer
a dimensão mais propriamente familiar do terrível drama que, com aquele duplo crime, se
abateu sobre a nossa Família Real.
cristão pode ficar indiferente ante a tragédia que o regicídio representou para a Família Real
que, por ser a primeira da nação e a que melhor encarna a nossa memória e identidade, é
também, de algum modo, a família de todos nós.
5. Deus é família. Segundo São Marcos, «depois de Jesus ter atravessado de barco
para a outra margem do lago» (Mc 5, 21), chegou «um dos chefes da sinagoga, chamado
Jairo. Ao ver Jesus, caiu a seus pés e suplicou-Lhe com insistência: “A minha filha está a
morrer. Vem impor-Lhe as mãos, para que se salve e viva”» (Mc 5, 22-23).
Era chefe da sinagoga, mas não se vale da sua autoridade, nem do correspondente
prestígio, para alcançar a graça da cura, que impetra humildemente na sua qualidade de pai,
para a filha moribunda. Esquece-se da compostura que porventura seria de esperar de alguém
com a sua posição social e cai aos pés de Jesus, num acto de tão profundo abatimento que
Nosso Senhor «foi com ele» (Mc 5, 24), como que compelido pelo seu amor paterno e
fazendo seu o sofrimento de Jairo.
Há ainda quem pense que Deus é uma espécie de Gigante Egoísta (cfr Oscar Wilde,
O Gigante Egoísta, in Obra completa, Ed. José Aguilar Ltda., Rio de Janeiro 1961, págs. 244-
247), que observa, impávido e sereno, as alegrias e os sofrimentos das criaturas, como se mais
não fossem do que uma sua sádica distracção. Mas a fé cristã ensina, pelo contrário, que Deus
é Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e nosso, pela infusão do amor do Espírito Santo nos
nossos corações. Por isso, não somos apenas criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus,
mas seus filhos caríssimos, na medida em que, pela graça, nos foi dada a participar a natureza
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divina (cfr 2Pd 1, 4).
Ciente desta tão gozosa e deslumbrante realidade, São Paulo cantava a grandeza
desta nossa filiação divina: «tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não têm
proporção com a glória que se manifestará em nós. Pelo que este mundo espera
ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus. De facto, a criação foi sujeita à vaidade
[…] com a esperança de que também a própria criação será livre da sujeição à corrupção,
para participar da liberdade gloriosa dos filhos de Deus» (Rm 8, 18-21). E São Pedro
concluía que os cristãos, por obra e graça do Baptismo, são «uma geração escolhida, um
sacerdócio real, uma nação santa, um povo adquirido por Deus» (1Pd 2, 9).
Neste sentido, talvez não seja temerário afirmar que a razão teológica da instituição
monárquica se encontra na revelação trinitária do mistério de Deus, ou seja, na sua estrutura
familiar. Para além deste fundamento transcendente ou sobrenatural, que eventualmente não
colhe para quem não professa a religião cristã, pode-se também afirmar que a instituição
monárquica, pela sua natureza profundamente familiar, tem um carácter essencialmente
natural, porque institui, na cúpula da organização política, o modelo familiar, que é a base
antropológica de qualquer organização social.
Família Real. Não em vão, o Chefe da Casa Real francesa e a sua geração recebe um
significativo nome: a Família de França. É assim porque os Reis e os seus descendentes são,
de algum modo, a expressão mais representativa da soberania, não apenas na sua actualidade,
mas também na sua origem e evolução. Se a pátria é, etimologicamente, a «terra dos pais»,
não pode ser simbolizada senão através da família que estabelece a relação histórica com os
fundadores da nacionalidade, até porque um representante eleito por sufrágio é sempre um
homem de facção, que tende a beneficiar os seus próprios eleitores contra os restantes
cidadãos, não se identificando nunca, por conseguinte, com todos os seus compatriotas.
Embora não atingidas pelos disparos dos regicidas, as Rainhas Dona Maria Pia e
Dona Amélia foram, ainda que incólumes, umas das principais vítimas do regicídio. Ambas
Rainhas sofreram, respectivamente, a morte de filhos seus, tendo a Senhora Dona Maria Pia
perdido também um seu neto e a Senhora Dona Amélia, seu augusto marido.
Dois significativos gestos atestam o heroísmo maternal destas duas últimas Rainhas,
que o regicídio irmanou na mesma saudade e dor.
Por sua vez, a atitude da Senhora Dona Amélia, por ocasião do regicídio, não poderia
ter sido mais valerosa. Ante o estrondo dos disparos, que irromperam, segundo o relato de D.
Manuel II, «como numa batida às feras», «uma perfeita fuzilada» (D. Manuel II, Notas
absolutamente íntimas, 21-5-1918, cit., pág. 49), a Rainha não só não se amedrontou – como
a grande maioria dos presentes, que, apavorados, fugiram à desfilada – como se pôs de pé na
carruagem, dando assim o corpo ao manifesto. Quereria, decerto, defender os seus, nem que
fosse a troco da sua própria vida. Ficou para a História a sua reacção patética, bramindo o
ramo de flores que, no cais, momentos antes, lhe tinha sido oferecido por uma sua afilhada, ao
mesmo tempo que gritava: «Infames, infames!» (Rui Ramos, D. Carlos, Círculo de Leitores,
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Rio de Mouro 2006, pág. 316). A infâmia dos que traiçoeiramente abateram, pelas costas, El-
Rei, foi o pedestal de que a Providência se serviu para elevar este imperecível monumento ao
heroísmo desta Rainha de Portugal, esposa e mãe mártir (D. Manuel II, Notas absolutamente
íntimas, 21-5-1918, cit., pág. 53).
No esteio das suas augustas antecessoras, e em especial destas duas últimas Rainhas
de Portugal, a Senhora Dona Isabel tem sido um extraordinário exemplo de virtude cristã,
prestando deste jeito um inestimável serviço à Instituição e a Portugal. Bem haja, Alteza Real,
por este vosso eficacíssimo apostolado que, não obstante a sua silenciosa descrição, é sonoro
pregão dos ideais cristãos! Aceitai a nossa homenagem pela vossa fidelidade aos valores
espirituais que, desde a sua fundação, nortearam este Reino que é de Maria e que é vosso e
que, juntamente com o Senhor Dom Duarte, tão dignamente representais. Queira Deus que
todos quanto se revêem neste mesmo ideário se comprometam, de acordo com o exemplo de
Vossas Altezas Reais, a honrar os seus compromissos cristãos e familiares, na certeza de que,
deste modo, não só prestam um valioso serviço à pátria e à Casa Real, como contribuem
principalmente para a construção do Reino de Deus.
Não exagerarei se comparar o nosso país àquela doente «que tinha um fluxo de
sangue havia doze anos, que sofrera muito nas mãos de vários médicos e gastara todos os
seus bens, sem ter obtido qualquer resultado, antes piorava cada vez mais» (Mc 5, 25-26). O
nosso Estado padece uma imparável hemorragia de mundos e fundos, que conduziu o nosso
país a uma quase inimaginável situação de endividamento e de pobreza. Os recorrentes
sacrifícios que são pedidos à população, não só não produzem frutos de um maior bem-estar
social, como parecem contribuir para o agravamento diário da já agonizante situação. Os
muitos «médicos» que se abeiraram da Pátria moribunda, sempre com juras de prodigiosas
receitas, em nada contribuíram para a desejada e prometida cura e, com os seus generosos
honorários, agravaram ainda mais o seu empobrecimento.
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Sem saúde, sem receitas, sem recursos que bastem para a nossa digna sustentação,
sem hipóteses de saldar a gigantesca dívida pública e sem políticos capazes de gizarem uma
solução nacional, só nos cabem duas possíveis reacções: o desespero dos incrédulos, ou a
esperança da fé.
Quando a Polónia cristã padecia o jugo comunista, um prelado, tendo em conta que o
seu país se encontrava cercado, em todas as suas fronteiras, por nações satélites da então
poderosa União Soviética, assim se dirigiu aos fiéis:
- Já que não nos podemos voltar para norte, nem para sul, para oeste, nem para
leste, dirijamo-nos para a única direcção que nos resta: para cima, para o alto, para o Céu!
Quando Jesus disse que a filha de Jairo não estava morta, mas apenas adormecida,
«riram-se d’Ele» (Mc 5, 40). Adivinho esse mesmo esgar trocista nos que agora pensam que
Portugal é morto e enterrado e, por isso, descrêem esta palavra final de alento. Que seja. Mas
peço o arrojo da esperança aos filhos desta bendita terra de Santa Maria, para que, como os
nossos antepassados em 1385 e em 1640, também agora perseverem na ousadia da fé. Elevai
pois, de novo, o estandarte das quinas e fazei vida da vossa vida a oração do poeta: «Senhor,
falta cumprir-se Portugal!» (Fernando Pessoa, O Infante, último verso, in Mensagem, Edição
clonada do original da Biblioteca Nacional, Guimarães Editores, 2009, pág. 61).