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olho d’água

Doença não dá em poste. Doença dá em


gente. E gente é tudo igual.
mary help

Alguns, como Pé de Cana, chegam aqui desnutridos, cambaios,


os dentes apodrecidos pela sarjeta. Outros, como Mary Help, che-
gam azucrinando a enfermaria, cobertas de pulseiras e anéis, os
pés escalavrados de sujeira. Muitos, como Chupa-Molho, são tra-
zidos em camburões da polícia, ou escoltados pelo corpo de bom-
beiros. Mas todos chegamos impregnados de ódio, medo, solidão
e álcool.
Eu cheguei de ambulância. Me levaram, amarrado, para a
enfermaria de emergência e me aplicaram uma dose dupla da sos-
sega leão. Quando dei por mim, dias depois, estava no meio dessa
escória. Fui acordando e dando de cara com Chupa-Molho, um
baiano magro, pernas avermelhadas e inchadas, que me ofereceu
cigarro.
Não sei o que estou fazendo aqui. Não tenho nada a ver com
essa gente feia, pobre, mal-encarada. É preciso trancar o armário
onde guardo alguns pertences, mas não existe cadeado para todos.
De noite, basta adormecer um pouco, e eles surrupiam qualquer
coisa que estiver dando sopa.
Da enfermaria, ouço os gritos dos que não conseguem dormir.
Outro dia, armou-se uma confusão no banheiro, nem sei o que foi,
mas ninguém pregou olho com um filho da puta gritando que que-
ria a mãe dele. “Minha mãe, minha mãe!” Que mãe o quê, cara. Sua
velha tá mortinha da silva. Morreu de desgosto, a infeliz!

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Me enterraram aqui, isso sim. Não sou como eles. Meu pai
é funcionário do Ministério da Saúde, em Brasília. Às vezes vem
me visitar em carrão chapa branca. Cansou. Não gasta mais um
tostão na minha carcaça. As clínicas bacanas não deram certo.
Nada dá certo. Me sobrou esta enfermaria de cachaceiros de sar-
jeta. Mas não sou como eles. Tive gravata importada, sapatos de
cromo, carro do ano. E nem assim o safado do Pipo me vendeu
uma cachaça naquele pé-sujo de Copacabana. Disse que me que-
ria bem e que a minha cota estava encerrada. Ali, eu não bebia
mais. Mentira. Nunca criei tanto caso assim pra ser escorraçado
daquele botequim fuleiro. Deve ter sido dedo de meu pai. Bem
feito. Fui beber o que havia em casa. Dizem que álcool 90 graus
esculhamba o sistema neurológico. Foda-se.
Não há nada a fazer. Fico pelo pátio fumando e tomando café.
Mas não se pode estar em sossego. Os loucos se misturam com
a gente e vêm pedir cigarro de cinco em cinco segundos. Tenho
vontade de meter a mão na cara de todo mundo. Não dou. Que
se danem. Mary Help formou um grupinho animado na outra
mesa. É engraçada, mas me cansa. Não para de falar. Deve ser a
medicação. É doida varrida, mas boa gente. Sabe das coisas. Outro
dia me contou que na enfermaria das mulheres a barra é muito
mais pesada. Pegaram a Vandinha e fizeram o serviço de madru-
gada. Mary Help é safa. Faz acordo, arruma alianças, é esperta,
não toma alguns remédios que deixam a criatura abestalhada. “Eu
gosto de mulher, porra!”, ela me conta. Não deve ser mole encarar
um enfermeiro de um metro e oitenta, ainda mais quando se é
sapatão. Na enfermaria dos homens não quero nem saber. O pro-
blema é o negócio do roubo. Me afanaram um isqueiro. Fiquei
puto. E daí? Nem bispo tem, pra reclamar.
Ninguém fica no hospital muito tempo. Às vezes uma semana,
às vezes um pouco mais. A conta de limparem o sujeito e tocarem
pra rua de novo. Chupa-Molho já está aqui há um mês. Foi ele

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quem me ofereceu cigarro quando acordei na emergência. Che-
gamos quase no mesmo dia, eu de ambulância, ele de camburão.
Estava zoando no botequim, bateu em quatro, quase entrou em
coma. Juntos, fomos transferidos para a Unidade de Tratamento do
Alcoolismo. Chupa-Molho trabalhava na construção civil. Tinha
mulher, tinha filhos. Todo mundo aqui tem sua história. Cada uma
mais cabeluda que a outra. Chega uma hora, eu nem presto mais
atenção. É um rol de desgraças. Fechei o aparelho de escuta. Meu
ouvido não é pinico, porra. Isso eu aprendi nos botecos da madru-
gada. No fundo no fundo, tudo é igual. Uns pés-duros, uns sem
eira nem beira, uns zé-manés. Eu venho de outra raça de gente.
Tenho outra história, outro passado. Essa cambada nem sabe o que
é caviar.
O negócio do apelido é de lascar. Foi Pé de Cana quem me
botou um. Pegou. Ninguém mais me chama pelo sobrenome: Bon-
fim. Me rebatizaram de Lord Zé, porque me dou ares de nobreza.
Filhos da puta. Não sou um morto de fome, seus pinguços de
merda, bando de sacanas, pudins de cachaça. Tive relógio de ouro.
Minha estrada é outra, canalhas. Agora fico no meu canto. Não
tujo nem mujo. Desço para o pátio e fico bebendo um café atrás do
outro. O velho manda cigarro. Tenho conta na cantina.
Olho d’Água chegou a pé. Veio de ônibus, fedendo a cachaça,
o povo se afastando com medo. Veio em trapos, imundo, mijado
e cagado nas calças. Pegou a condução na marra, sentou lá na
frente, não disse palavra, exalando álcool destilado. Houve uma
espécie de pavor geral. Sei mais ou menos o que é isso. Saltou na
guarita do hospital, passou pelos guardas arrastando a perna e foi
entrando até cair no meio do pátio. Mas chegou. Ô, raça.
– É Olho d’Água! – gritou Nogueirão e, num pulo, atravessou
o jardim em direção à trouxa de trapos caída em frente da cantina.
Mary Help foi ainda mais rápida. Ao ouvir o berro daquele doido
de um metro e noventa, sempre calado e arredio, largou o grupi-

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nho que bebia refrigerante e passou por mim em furiosa corre-
ria. Nogueirão tinha chegado antes, e segurava o corpo magro de
Olho d’Água, indiferente àquele cheiro de merda que se instalara
em minhas narinas. “Porra, quem é esse cara?” Chupa-Molho e
Pé de Cana já vinham atrás dos enfermeiros, apontando: “É Olho
d’Água! É Olho d’Água!”
Enquanto a equipe providenciava socorro e levava o cama-
rada para a unidade de emergência, um ranger de fibras passava
pelo manicômio inteiro. Como se a corda de um violino fosse
ferida pelo arco, segundos antes do acorde inicial de um concerto
dodecafônico. Doía no cérebro, nos nervos, nas veias, na alma, na
planta dos pés. Eu ainda me lembrava.
Mas quem era Olho d’Água? O psiquiatra de plantão passou
apressado, entrou no elevador e sumiu no segundo andar – onde,
todos nós sabíamos, se fechava a porta de aço da emergência. No
pátio, era um ouriço da zorra. “Olho d’Água voltou! Olho d’Água
tá vivo!” Eu olhava aquela esculhambação toda por causa de um
negro velho e fedido e não entendia coisa nenhuma. Vivo ou
morto, ninguém se dava muito ao trabalho de grandes estimas e
sentimentos. Nas idas e vindas das internações, cada um se acostu-
mara a receber com indiferença o desaparecimento daqueles com-
panheiros fugazes de um ou dois dias, de um ou dois meses. “Joci-
lene se matou!” “Galalau morreu de cirrose!” “Zeca foi atropelado!”
“Batista se jogou do viaduto!” Tudo vinho da mesma pipa, com
algumas gradações e variantes. O Cineasta, por exemplo, se fodeu
com droga. Bateu uma esquizofrenia braba, passeava pra lá, pra
cá no Hospital, “me dá um cigarro?” e me enchia o saco contando
aquela lenga-lenga de ter sido internado à força pelo irmão, que
queria roubar seu dinheiro num negócio de herança. Ou qualquer
coisa parecida, que tudo dava no mesmo. Pura porra-louquice.
“Eu não sou doente não, doutor! Meu irmão é que é um ladrão,
safado, filho da puta!” E, enquanto vociferava, a língua batia nos

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cacos de dente que haviam sobrado da cocaína. Mas Cineasta
era de outra enfermaria e só enchia o saco durante as manhãs,
no pátio comum a todos nós – loucos, débeis mentais, drogados,
cachaceiros, alcoólatras, mendigos e até doutores. “Doença não dá
em poste. Doença dá em gente. E gente é tudo igual” – dizia Mary
Help às gargalhadas. Pois é.
Durante uma semana ninguém falou em Olho d’Água. Todo
mundo sabia que o velho tava no soro, mais morto que vivo. Eu
ficava quieto no meu canto, tinindo de curiosidade. Mas me dava
ao respeito. Não ia sair por ali xeretando a vida de ninguém, quanto
mais a de um bebum de sarjeta. Sentava na cantina, bebericava
meu café preto, fumava um cigarro atrás do outro, mas escondia
o maço. Vez em quando um psicótico de merda abria o berreiro
quando eu lhe negava uma tragada. “Seu filho da puta!” Eu nem te
ligo. “Vai te foder, cara!” Às vezes tinha que chamar os seguranças
pra me defender das porradas.
Mary Help, naquele jeito despachado só dela, batia longos
papos com a enfermagem para saber de Olho d’Água. Depois, reu-
nia Chupa-Molho, Pé de Cana, Nogueirão, Miss Ana, Dona Eva,
Professor e Cineasta pra zoar na cantina. Nogueirão era louco
de todo, esquizofrênico brabo, não saía nunca, não dava um pio,
inchado de Haldol. Professor dormia no leito ao lado do meu, na
uta, era formado em Letras, entendia de latins e gregos, conhecia
gramática, e aproveitava as internações periódicas pra ler qualquer
coisa que lhe caísse nas mãos, fosse o que fosse. Miss Ana, cheia de
flores na cabeça e de banho tomado no pequeno chafariz do jar-
dim, vinha do outro prédio, do andar das doentes mentais, de onde
se ouvia gritos a noite inteira. Era de lá que Mary Help sabia das
madrugadas meladas de esperma e loucura. Dona Eva era a Rai-
nha do Hospício. Doente crônica, a imensa cafuza de peitos fartos
tinha os cabelos rajados de branco e muito lisos, dava-se a pouca
conversa, e não tinha lembrança de quando pisara o hospital pela

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primeira vez. Agora, já velha, fixara moradia naquele mundo que
fedia a suor impregnado de antidepressivos e antipsicóticos.
Olho d’Água deixou a emergência numa manhã de domingo,
quando o pátio do hospital estava quase sempre vazio. Fazia sol.
Eu estava sentado na ponta do banco comprido que ladeia o pré-
dio, pernas cruzadas, ensimesmado, quando o vi espreguiçar-se
com um enorme prazer de estar vivo. O uniforme azul com o
carimbo no peito dançava em volta daqueles arremedos de pernas
que tinham escapado da paralisia infantil. O cambito da direita
mal se aguentava sob o corpo, e era preciso que Olho d’Água o
apoiasse na ponta do pé, feito bailarina. Mas ele rodopiou linda-
mente na umidade da manhã, levantou os braços e gritou para si
mesmo: “Obrigado, meu Deus, por estar aqui!”
O susto me deixou completamente idiota por algum tempo.
Mas quem era aquele imbecil, resto de gente, merda humana, rebo-
talho dos rebotalhos, dançando debaixo do sol todo satisfeitinho
e faceiro? Está agradecendo o quê, infeliz? Nogueirão, na outra
ponta do banco, levantou-se e, sem dizer palavra, arrastando-se
como um enorme sáurio, colocou-se ao lado de Olho d’Água, de
onde não se afastou nem um dia sequer durante os dois meses
em que o diabo do velho incendiou o hospital com sua absurda
alegria de viver.
Nogueirão, meu grande amigo!
Olho d’Água parecia sinceramente feliz em ver aquele louco
furioso, que precisava da sua santa dose matinal de Haloperidol
para não matar um safado por dia. Olhei bem nas fuças deste
cavalão debiloide e vi uma doçura sem tamanho iluminando seus
olhos amortecidos pela medicação. Aqui dentro, o olho de todo
mundo fica esmaecido, fosco, às vezes dilatado, às vezes a meio
pau, mas todos, todos, guardiães de tristezas imemoriais.
Olho d’Água não. Fagueiro como um pardalzinho moleque,
Olho d’Água enfiou o braço no braço de Nogueirão e saíram a

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caminhar pelo pátio para assuntar os arredores do prédio. Para-
ram, encantados, no pequeno jardim com uma fonte no meio,
onde Miss Eva adorava tomar banho com os braços para o céu, na
lembrança partida de seus tempos de “paz e amor, bicho!” De longe,
eu os via fuçando as plantas ressequidas, examinando a folhagem,
cavucando aquele pedaço de terra de uns poucos metros quadra-
dos. Foi ali que Mary Help encontrou o velho:
– Minha menina!
Aquele rosto de mulher marcado pelo álcool transformou-se,
subitamente, com a ternura do chamamento. Olhei pra ela e vi,
pela primeira vez, em lugar da criatura vulgar e agitada que zoava
dia e noite em todos os cantos do hospital, apenas uma criança
tímida e sem jeito, frágil e pequenina.
Olho d’Água! Que bom te ver, meu irmão!
Era boa essa. “Meu irmão!” Estavam bem arranjados de paren-
tela, os doidos. Aquele bêbado sarnento, todo investido de frater-
nidades, abria o bico e os malucos voejavam em torno dele feito
abelhas. Um por um, cada um a seu tempo, foram sendo recebidos
com uma pequena palavra, um abraço, um sorriso, um tapinha nas
costas, uma gargalhada. Até Cineasta, aquele chato monocórdio a
repetir a lenga-lenga do roubo da herança, havia parado a lamúria
e cercava Olho d’Água sem abrir a boca. Mas, porra, por que ama-
vam tanto aquele sujeito fodido?
Olho d’Água arrumou-se no leito vago à minha esquerda. Eu
estava estirado na cama, fumando e coçando o saco quando ele
chegou, silencioso. Deu boas tardes e resmunguei qualquer coisa.
Só. Não ficou parlapatando pra cima de mim, que não tolero papo
de bebum. Os caras têm um prazer indecente em ficar repetindo
sempre a mesma história, o que fizeram de horrores pelo mundo
afora e quem era o grande culpado filho da puta pelo fato de esta-
rem ali e serem o que eram. Como Zenaide, aquela grandíssima
safada com fuças de inocência, que jurava beber por causa da mãe,

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“uma velha desgraçada que me odeia, uma rata de Igreja agarrada
ao terço dia e noite”. Coitada da velha! Oitenta e quatro anos pelos
cornos e ter que aturar aquela sacana bêbada dentro de casa, dan-
do-lhe porrada e saindo atrás de homem. Zenaide namorava qual-
quer um. Até os doidos se masturbavam pensando nas suas pernas
grossas saindo do uniforme curto. Eu tinha horror a esse tipo de
bebum sonso, hipócrita, babaca. Os “vítimas da humanidade” são
a pior categoria de pinguço. Você até tira a cachaça dessa escória,
mas não tira a dissimulação, a inveja, o mau-caratismo crônico.
Durante uma semana não perdi Olho d’Água de vista. Onde
quer que fosse, o grupinho estava sempre junto. Continuavam a
fazer a maior algazarra no refeitório e no pátio, mas, aos poucos,
uma alegria difusa e quieta foi tomando conta de cada um deles.
A coisa tinha começado no jardim. Olho d’Água pulava cedo da
cama e era o primeiro a tomar café depois de engolir o coquetel
de comprimidos matinais. Em seguida, descia para cuidar daquela
meia dúzia de arbustos estropiados, comandando Nogueirão e
Mary Help na tarefa de catar folhas, buscar água, limpar ervas
daninhas. Logo atrás chegavam Pé de Cana, Chupa-Molho e Miss
Ana, toda sorridente, embalando o pessoal com uns mantras desa-
finados. Depois vinha Dona Eva, que se sentava no banco de ferro,
apreciando o movimento. Ninguém ficava parado. Olho d’Água
não deixava. “Vamos mexer essa bunda, gente!” Estava sempre
arranjando serviço, era jeitoso para carpintaria, consertava um
treco aqui, pintava uma mesinha ali, trocava uma lâmpada acolá,
e assim ia indo no andor dos dias. Em pouco tempo, via-se peque-
nas marcas de sua passagem pelo hospital, tudo muito simples,
coisa singela, como um vaso de folhagens colocado na enfermaria
das mulheres ou um armário cheirando a tinta fresca.
Topei com ele, de jeito, numa daquelas manhãs em que me
deixara ficar fumando na cama, olhando para o teto, acompa-
nhando as voltas do ventilador. Não pensava em nada. Pensar

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dói. Olho d’Água passou por mim e, como quem não quer nada,
comentou: “melancolia mata, Bonfim”. Levei um susto tremendo.
Não tanto pela filosofia de botequim, mas pelo tom de voz, grave
e sereno, e por ter me chamado pelo meu próprio nome, Bonfim.
Danei-me. E que tinha ele a ver com minhas inúmeras tentativas
de suicídio das quais o álcool era a menos dolorosa? Já nem me
lembrava mais quantas vezes morrera. Quantos pedaços de mim
largara pelo caminho, esquartejados. A infância se perdera e eu
não tinha mais nada que valesse a pena. Fiquei puto, mas alguma
nota doce e profunda, sinceramente amorosa na voz daquele
velho, me deixou mais assustado ainda. Percebi, em mim, uma
espécie de ternura por aquele pobre bebum sem eira nem beira,
que dentro de muito pouco tempo seria posto na rua onde teria,
ao seu dispor, a vastidão da sarjeta. “Vire-se!”
Olho d’Água não esperou resposta e sumiu no corredor dando
bons dias a quem encontrasse no caminho. Até os gatos que revi-
ravam as latas de lixo, tristes e magros, tinham sua cota de afa-
gos. Olho d’Água fazia tudo com prazer e quem estava ao seu lado
pegava, por contágio, esse jeito grato de estar no mundo. Eu não o
perdia de vista. Mas ainda não sabia que o amava tanto.
Sabia que em um tempo muito, muito remoto, eu provara
a cachaça Olho d’Água, uma das melhores que este país já viu.
Melhor ainda que a afamada Imaculada Serra Grande, cujo nome,
muito mais que o sabor, me era prazeroso à boca. Mas isso foi na
época em que a qualidade da bebida, assim como o violino, ainda
significava alguma coisa na minha vida. Hoje meus dedos retorci-
dos de artrite não tocam mais as cordas do instrumento. E pouco
se me dá a procedência do álcool destilado. Mas foi no Engenho
Olho d’Água que Raimundo Nonato da Silva tomou o primeiro
leite de menino. A paralisia infantil o pegou já taludo. O resto foi
um rol de misérias. Escutei uns pedaços dessa história aqui e ali, e
não era muito diferente das demais. Não era a história que impor-

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tava. O que me intrigava e comovia era aquilo que de si mesmo
Olho d’Água fizera, ao ser incapaz de sentir rancor.
Todas as terças-feiras, depois do jantar, o grupinho ia para a
reunião do aa, nas dependências do hospital. Era um arremedo
do aa que eu frequentara em tempos idos, onde se encontrava o
bebum de uísque e vodca, a turma chique e bacana da zona sul,
gente igual a mim, médicos, advogados, padres, artistas, tudo
arrastando pra cabeceira da mesa seu desespero e sua valentia de
vinte e quatro horas. No hospital, não. No hospital era o fundo do
poço, a lama, a escória, a cambada da rua. Mas todas as terças-fei-
ras, sem falta, Pé de Cana, Chupa-Molho, Professor, Mary Help e
Olho d’Água batiam ponto no confessionário. Uma noite, de pura
curiosidade, resolvi juntar-me a eles. Apareci sozinho, depois de
começada a sessão, e sentei-me na última fileira. “Concedei-me,
Senhor, serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar,
coragem para modificar aquelas que posso, sabedoria para distin-
guir umas das outras” e etcetera e tal. A enfermaria em peso estava
lá, e mais uns gatos pingados dos arredores do bairro. No fundo
da sala, eu resistia àquela maldita sensação de pertencimento, irri-
tado por me olhar nesse espelho retorcido de caras deformadas
pelo álcool e pela fome, pela miséria e pela dor. Uns arrastavam
as pernas inchadas até a cabeceira da mesa e purgavam cada deta-
lhe sórdido de suas histórias. Outros, sem jeito, diziam apenas o
nome e agradeciam a Deus e aos companheiros por terem aguen-
tado um dia inteirinho sem se encherem de cachaça. De repente,
Olho d’Água se levantou, e ao virar-se para a turma, me viu escon-
dido lá no fundo. Ficou um segundo sem dizer nada. Abriu um
sorriso largo, apoiou o pé doente no estrado, pousou a mão na
mesa e falou meia dúzia de palavras que apenas eu poderia enten-
der. Disse, mais ou menos, que éramos todos iguais e estávamos
num barco furado, lutando desesperadamente para sobreviver a
nós mesmos. Era preciso nos agarrarmos uns aos outros, e tentar

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fazer da vida alguma coisa que valesse a pena. “Se alguém perdeu
seu violino, que aprenda a ouvir passarinhos”. Era comigo. Esse
grandíssimo filho da puta sabia que eu tinha sido um violinista,
o melhor, o número um, aquele pelo qual a orquestra afinava o
instrumento. Como é que aquele sacana soubera disso? E como
poderia compreender o que era um spalla? Ouvir a música dos pas-
sarinhos! É boa essa. Aposto que o safado jamais ouvira Mozart na
vida, soluçando desesperadamente entre espasmos de dor e gozo.
Fiquei quieto, paralisado no meu canto, morto de vergonha como
se minha identidade secreta fosse subitamente revelada. Mas nin-
guém havia notado a insinuação de Olho d’Água.
Na saída, esperei o grupo para voltar à enfermaria. Sem dizer
palavra, ofereci cigarro a todos. Não sei por que fiz isso. Mary
Help, falastrona, não me incomodava mais como antes. Chupa-
Molho e Pé de Cana papeavam sobre suas vidas com Professor.
Vim atrás com Olho d’Água, fumando em silêncio. De repente, os
grilos fizeram a festa. Era noite já. Parei para ouvir aquele ranger
de patas. Olho d’Água parou também. Sem querer, e pela primeira
vez desde que chegara ao hospital, esbocei um sorrisinho meio
sem graça, que logo se alastrou e se transformou num riso his-
térico. Olho d’Água me acompanhou e rimos, os dois, até botar
os bofes pela boca, lágrimas na cara. Ele tinha razão. A vida era
maior que meus dedos tortos. Eu o abracei e disse: “Seu filho da
puta. Vou lhe ensinar a ouvir Mozart”.
Durante uns quinze dias passei a fazer parte do pequeno
grupo de Olho d’Água, sem maiores expansões afetuosas, que
não é do meu feitio, mas fruindo de uma certa sensação de com-
partilhar, com eles, um cotidiano menos desgraçado. Fui aceito
como parceiro no carteado que rolava nos fins de tarde, passei a
oferecer cigarros com mais frequência, e até me divertia quando
um ou outro me chamava de Lord Zé: “Lord Zé tá de bom humor,
gente. Aproveita! Olha o cigarro aí!” Professor trabalhava como

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voluntário na biblioteca do hospital, onde acabei indo dar com os
costados, cansado de não fazer nada. A biblioteca tinha uns cin-
quenta volumes, e se distribuía em três ou quatro prateleiras arru-
madas por Olho d’Água. Era engraçado ver um ou outro doido
chegar, cavucar sem jeito as estantes, folhear as lombadas, e pegar
um volume, que levava ao colo como coisa preciosa para ler na
enfermaria. Pensei: “Esses malucos bem que iam gostar de ouvir
música!”
Um mês depois Chupa-Molho teve alta. Parecia inquieto e
calado, enquanto arrumava a sacola com seus poucos trecos – cueca,
aparelho de barba, sabonete, pasta e escova de dente, uma imagem
pequena de São Jorge. Eu percebia, nele, um oscilar indeciso entre
o contentamento e o medo. Arranjara uma casa para ficar de favor,
num quartinho dos fundos, enquanto desse e pudesse. Mas tudo
era provisório – a vida, o trabalho, a sobriedade. Me abraçou triste-
mente. “Tomara que não volte nunca mais, cara”, disse Mary Help,
acompanhada por Pé de Cana e Professor. Nogueirão, Miss Ana,
Cineasta e Dona Eva, hóspedes permanentes, eram da turma do
adeus. O resto de nós aguardava o dia da partida.
Aos poucos, um por um foi ganhando a rua. Alguns para-
vam no primeiro boteco, bem em frente ao hospital, e ali mesmo
enchiam a cara. Outros, na companhia de uma irmã, da mãe,
da mulher, suportavam mais algum tempo essa espécie de dor
que nos acompanha pelo simples fato de estarmos vivos. Depois
enfiavam o pé na jaca e voltavam para o hospital de camburão ou
ambulância.
Olho d’Água teve alta em uma manhã fria de agosto. Ganhara
uma muda de roupa limpa que Professor e eu lhe havíamos arru-
mado. De todos nós, era o único que não tinha para onde ir. Vivia
de uns biscates, com pouso em Copacabana, ao lado de uma bar-
raca de flores. Aguava as plantas, carregava embrulhos e recebia
com gratidão o prato de comida que lhe davam. Uma chuvinha

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fina começou a cair quando Olho d’Água correu o hospital afa-
gando os amigos pela última vez e pedindo, com jeito e graça, que
cuidassem do “seu” jardim. Abracei aquele pardalzinho contente e
levei-o até a saída. Todos nós fomos ao seu bota-fora. Mary Help
chorava. Nogueirão também. Eu o vi atravessar a guarita dos guar-
das, alcançar a rua e parar um instante, indeciso. O movimento dos
carros no asfalto o deixou zonzo. Hesitou. Lá fora, a vida, a sarjeta,
a fome, o frio, a sobrevivência marcada pela violência, a miséria
humana de todo o dia. Voltou-se lentamente e olhou para o pátio
do hospital onde, todos juntos, calados, acompanhávamos sua par-
tida. Sorriu e nos acenou. Depois, bruscamente, embarafustou-se,
capengando, pelo meio dos carros. “Deus lhe proteja, meu amigo”,
eu disse, chorando.

Cruzei com Olho d’Água pela última vez, meses depois. O dia
amanhecia em Copacabana. Eu vinha bêbado de um quiosque da
praia e nem percebi o céu avermelhado sobre minha cabeça. Cam-
baleando, sujo e desgrenhado, enviesei pela rua lateral em direção
à Barata Ribeiro. Um rabecão passou por mim e estacionou na
calçada deserta, próximo a uma barraca de flores. Vi um corpo
jogado entre a sarjeta e uns vasos de violeta. Duas mulheres saídas
da padaria, um mendigo e um garoto cheirando cola pararam para
olhar. Me aproximei. Era Olho d’Água. Me abaixei como pude, na
intenção de sacudir o velho para uma rodada de cachaça. Puxei
seu braço. Ele não se mexeu. Não respirava mais. Estava morto.
Quando dei por mim, embalava nos braços o pequeno corpo
nascido à sombra do Engenho Olho d’Água, enquanto, bem baixi-
nho, dizia “meu irmão, meu irmão”.

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