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Ideologia:

uma breve história do conceito


Marcus V. Mazzari

C Ideologia e contraideologia, Alfredo


om a publicação em 2010 do volume

Bosi se lança a um considerável desafio,


o qual pode ser sintetizado na metáfo-
ra do “nó ideológico”. Essa imagem se
explicita no título do último ensaio, que
busca desenovelar os vários fios envolvi-
dos na trama ideológica vislumbrada na
obra ficcional de Machado de Assis (em
especial, nas Memórias póstumas de Brás
Cubas). Mas, para enfrentar tal tarefa, é
necessário antes abrir clareiras no treme-
dal teórico que envolve o conceito de
“ideologia” e, para isso, Bosi percorre
um longo itinerário, que vai às raízes da
filosofia ocidental. Pois se a palavra idéo- BOSI, A. Ideologia e contraideologia:
logie foi cunhada em 1796 pelo pensador temas e variações.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
sensista Destutt de Tracy, a pré-história
desse conceito pode ser sondada já na
oposição, articulada por Platão, à ativi-
dade dos sofistas, “primeiros profissio- Impressiona, em primeiro lugar, a
nais da retórica e do mercado ideológi- profusão de teóricos visitados ao longo
co que a história da filosofia registra”. É dos 25 ensaios do livro. Em seu primeiro
claro que esse percurso pela intrincada bloco (transpondo-se o portal de entra-
trajetória do conceito “ideologia” não é da “socrático-platônico”) estão Francis
realizado apenas em função da obra ma- Bacon, cuja doutrina dos “ídolos” avul-
chadiana, pois na verdade todo o livro ta como um marco inicial na reflexão
constitui um extraordinário esforço de moderna sobre ideologia, assim como
elucidar alguns dos fios que o pensamen- Montaigne e Thomas Morus. Alfredo
to ocidental urdiu em “nó ideológico”; Bosi passa em revista vários outros no-
mas, chegando o leitor ao último ensaio, mes envolvidos nos embates ideológicos
vários pressupostos da argumentação dos primeiros tempos da Era Moder-
crítica lhe estarão suficientemente cla- na, enfocando na sequência as Luzes,
ros, refiram-se eles a concepções de Karl o período pós-revolucionário, e assim
Mannheim, Marx e Engels, dos moralis- sucessivamente, até chegar a Habermas
tas, ou ainda a particularidades da histó- e outros contemporâneos. Contudo, a
ria do liberalismo na Europa, nos Esta- linearidade da cronologia é complexi-
dos Unidos e, sobretudo, no Brasil. ficada à medida que se criam vasos co-

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municantes entre os ensaios, o que dá teórico da tolerância teria sido ao mesmo
grande vivacidade ao conjunto. Desse tempo acionista da Royal African Com-
modo, o esboço utópico de Morus re- pany, e em seu esboço social a escravidão
torna, acompanhado de comentários de estaria legitimada enquanto “um ato de
Horkheimer, num momento posterior força tornado legal (a lawful conqueror)
do livro, que destaca as circunstâncias e reconhecido como pacto imemorial”.
históricas propiciadoras do advento das Não por acaso, o segmento sobre Locke
utopias renascentistas, sobretudo a mi- figura na segunda parte do livro, voltada
séria dos camponeses ingleses e italianos, às intersecções ideológicas entre Brasil e
que Morus e Tommaso Campanella atri- Ocidente, em cujo contexto levanta-se
buíram à ausência de limites para a pro- uma das teses centrais do livro, que res-
priedade privada. surge no ensaio sobre Machado susten-
Na impossibilidade de se deter aqui tando que o liberalismo excludente não
sobre cada um dos teóricos comentados, representa uma excrescência brasileira,
valeria ressaltar alguns momentos do deslocamento aberrante de ideias euro-
amplo panorama construído pelo autor, peias para o nosso contexto, mas antes
como os capítulos dedicados ao pensa- “um complexo de medidas econômicas
mento de Rousseau, resistente às “má- e políticas efetivas que regeram todo o
ximas” ideológicas de seu tempo, ou de Ocidente atlântico desde o período na-
Montesquieu, que deu ênfase às ideias poleônico e a Restauração monárquica
de “condição” e “relação” para a com- francesa”.
preensão do “Espírito das Leis”. Em Essa observação ajuda a elucidar o
outro capítulo particularmente denso, desenho geral do livro: vários pontos
sintetizam-se linhas de força do pensa- desenvolvidos na primeira parte, que
mento de Vico, Condorcet e Hegel sob percorre momentos cruciais do pensa-
o prisma de três figuras: o ciclo dos fluxos mento ocidental, retornam na segunda,
(corsi) e refluxos (recorsi) na filosofia da que se debruça mais especificamente
história viquiana; a linha reta do “perfec- sobre aspectos da história brasileira, em
tibilismo” (termo que remonta ao Dis- particular liberalismo, escravidão e luta
curso sobre a desigualdade de Rousseau) abolicionista, ou ainda projetos traba-
no teórico do progresso Condorcet; e, lhistas, sobretudo sob o governo de Ge-
ainda, a espiral dialética delineada por tulio Vargas, cuja análise se desenvolve
Hegel, espécie de linha ascendente que, perante o pano de fundo do Welfare
voltando sobre si mesma para cumprir o State inglês e do État-Providence. O fio
seu percurso, só avança “depois de ter- que alinhava esses 25 ensaios é explicita-
-se curvado, compondo uma figura que mente o conceito de ideologia, que Bosi
é ascendente na direção geral e, por um opera em suas duas acepções, designa-
breve momento, parece fechar-se no seu das por Norberto Bobbio como sentido
movimento interno”. Também a teoria forte e fraco. O primeiro caracteriza-se
política de John Locke é minuciosamen- por uma dimensão por assim dizer me-
te reconstituída por Bosi, que aponta, já tonímica, já que busca conferir camufla-
nesse manancial do liberalismo inglês, a gem universal a interesses particulares, e
“conjugação de retórica universalizante remonta, sobretudo, à Ideologia alemã,
e interesses particulares”, pois afinal o em que Marx e Engels definem ideolo-

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gia como “falsa consciência” – também timo dizer, portanto, que se trata de um
como inversão da objetividade históri- projeto “contraideológico”, e sua con-
ca, conforme se formula nessa célebre tribuição entre nós se fará sentir tanto
passagem: “Se no todo da ideologia os nos estudos sociológicos como literários
homens e suas relações aparecerem de (por exemplo, na árdua tarefa de des-
ponta-cabeça, como numa camera obs- trinçar “nós ideológicos” em obras do
cura, então esse fenômeno resulta do porte das Memórias póstumas). Entende-
seu processo histórico de vida, do mes- -se daí a relevância que o autor dispensa
mo modo como a inversão dos objetos ao pensamento – e, mais ainda, à práxis –
na retina resulta do imediato processo de figuras como Gramsci e Simone Weil,
físico de vida”. aproximadas justamente numa chave de
Mas se o estudo de Bosi abre amplo resistência. Pelo lado brasileiro, a empa-
espaço a essa obra de Marx e Engels que tia de Bosi faz avultar Joaquim Nabuco
inaugurou nova fase na crítica ideoló- e Celso Furtado, aos quais são dedicados
gica, ele não dispensa menor atenção à dois dos mais belos ensaios. Como per-
outra acepção do termo “ideologia”, na ceberá o leitor, nesse livro que abrange
qual o qualificativo “fraco” se deve ape- tão vasto material teórico e histórico, a
nas à sua dimensão não valorativa, que clareza da exposição encontra-se intima-
faz jus ao sentido etimológico de “dou- mente conjugada com a atenção ao fato
trina de ideias”. Esse significado mais concreto (a verità effettuale della cosa
flexível, como também se pode entender encarecida por Maquiavel) e a tendência
o adjetivo “fraco”, é tributário da socio- a sempre historicizar concepções e ações
logia do saber (Wissenssoziologie) e terá das figuras enfocadas, conforme se mos-
recebido sua elaboração mais consistente tra exemplarmente em relação a nomes
na obra de Karl Mannheim Ideologia e como Perdigão Malheiro e Tavares Bas-
utopia (1929), que consequentemente tos, já antes enaltecidos por Nabuco.
ocupa posição de relevo na argumenta- É claro que, em face de um trabalho
ção crítica de Alfredo Bosi. Nessa pers- de tão amplo espectro, pode-se apontar
pectiva, ideologia equivaleria de certo para uma ou outra lacuna, fazer essa ou
modo à “visão de mundo”, ultrapassan- aquela ressalva etc. Um possível exem-
do o significado mais restrito de “falsa plo: Ernst Bloch é mobilizado, ao lado
consciência”, o que já se prefigura, como de Walter Benjamin, na argumentação –
lembra o excelente “interlúdio weberia- aliás, plenamente legítima – que procura
no”, na opção de Max Weber pelo termo mostrar o lado “desalienante” da religião;
“ética” (e não ideologia) protestante. contudo, essa tarefa seria mais dificultosa
Acolhendo a hipótese habermasiana se fosse considerado (pois também con-
de uma relação emancipadora entre “co- traideologias e utopias não estão isentas
nhecimento e interesse”, pode-se dizer de contradições) que Bloch, o filósofo do
que uma das motivações que imantam “princípio-esperança” e do “ainda não”,
o esforço teórico desenvolvido nesse li- foi um dos mais veementes defensores
vro é o desejo de adensar a resistência ao do estalinismo. E já que os dois últimos
“liberalismo econômico puro e duro”, ensaios da primeira parte são dedicados
que recrudesceu consideravelmente nas ao “projeto fáustico” e ao Fausto de Goe-
últimas décadas do século XX. Seria legí- the, seria cabível uma referência a Oswald

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Spengler, que em sua obra de inspiração
nietzschiana A decadência do Ocidente
caracterizou pioneiramente o homem
ocidental, em sua incansável aspiração
por transformar o mundo e expandir
fronteiras, como “fáustico”, contrapon-
do-o ao homem “apolíneo” da Antigui-
dade, voltado tão somente ao presente
e, assim, alheio à dimensão do passado e
do futuro. Mas semelhantes objeções ou
eventuais lacunas que se possam verificar
nessa incursão de Alfredo Bosi pela espi-
nhosa história do conceito de ideologia
serão afinal irrelevantes diante dos seus
inúmeros méritos, entre os quais está o
de aguçar a percepção do leitor para aqui-
lo que Paul Ricouer chamou de “clausura
ideológica” (clôture idéologique).

Marcus V. Mazzari é professor de Teoria


Literária e Literatura Comparada na USP,
tradutor e também autor, entre outros,
de Labirintos da aprendizagem – Pacto
fáustico, romance de formação e outros te-
mas de literatura comparada (Editora 34,
2010). Elaborou os prefácios, comentários
e notas aos volumes Fausto I (Editora
34, 2004 – edição revisada e ampliada:
2010) e Fausto II, de Goethe (Editora
34, 2007), em tradução de Jenny Klabin
Segall. @ – mazzari@usp.br

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