o qual pode ser sintetizado na metáfo- ra do “nó ideológico”. Essa imagem se explicita no título do último ensaio, que busca desenovelar os vários fios envolvi- dos na trama ideológica vislumbrada na obra ficcional de Machado de Assis (em especial, nas Memórias póstumas de Brás Cubas). Mas, para enfrentar tal tarefa, é necessário antes abrir clareiras no treme- dal teórico que envolve o conceito de “ideologia” e, para isso, Bosi percorre um longo itinerário, que vai às raízes da filosofia ocidental. Pois se a palavra idéo- BOSI, A. Ideologia e contraideologia: logie foi cunhada em 1796 pelo pensador temas e variações. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. sensista Destutt de Tracy, a pré-história desse conceito pode ser sondada já na oposição, articulada por Platão, à ativi- dade dos sofistas, “primeiros profissio- Impressiona, em primeiro lugar, a nais da retórica e do mercado ideológi- profusão de teóricos visitados ao longo co que a história da filosofia registra”. É dos 25 ensaios do livro. Em seu primeiro claro que esse percurso pela intrincada bloco (transpondo-se o portal de entra- trajetória do conceito “ideologia” não é da “socrático-platônico”) estão Francis realizado apenas em função da obra ma- Bacon, cuja doutrina dos “ídolos” avul- chadiana, pois na verdade todo o livro ta como um marco inicial na reflexão constitui um extraordinário esforço de moderna sobre ideologia, assim como elucidar alguns dos fios que o pensamen- Montaigne e Thomas Morus. Alfredo to ocidental urdiu em “nó ideológico”; Bosi passa em revista vários outros no- mas, chegando o leitor ao último ensaio, mes envolvidos nos embates ideológicos vários pressupostos da argumentação dos primeiros tempos da Era Moder- crítica lhe estarão suficientemente cla- na, enfocando na sequência as Luzes, ros, refiram-se eles a concepções de Karl o período pós-revolucionário, e assim Mannheim, Marx e Engels, dos moralis- sucessivamente, até chegar a Habermas tas, ou ainda a particularidades da histó- e outros contemporâneos. Contudo, a ria do liberalismo na Europa, nos Esta- linearidade da cronologia é complexi- dos Unidos e, sobretudo, no Brasil. ficada à medida que se criam vasos co-
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municantes entre os ensaios, o que dá teórico da tolerância teria sido ao mesmo grande vivacidade ao conjunto. Desse tempo acionista da Royal African Com- modo, o esboço utópico de Morus re- pany, e em seu esboço social a escravidão torna, acompanhado de comentários de estaria legitimada enquanto “um ato de Horkheimer, num momento posterior força tornado legal (a lawful conqueror) do livro, que destaca as circunstâncias e reconhecido como pacto imemorial”. históricas propiciadoras do advento das Não por acaso, o segmento sobre Locke utopias renascentistas, sobretudo a mi- figura na segunda parte do livro, voltada séria dos camponeses ingleses e italianos, às intersecções ideológicas entre Brasil e que Morus e Tommaso Campanella atri- Ocidente, em cujo contexto levanta-se buíram à ausência de limites para a pro- uma das teses centrais do livro, que res- priedade privada. surge no ensaio sobre Machado susten- Na impossibilidade de se deter aqui tando que o liberalismo excludente não sobre cada um dos teóricos comentados, representa uma excrescência brasileira, valeria ressaltar alguns momentos do deslocamento aberrante de ideias euro- amplo panorama construído pelo autor, peias para o nosso contexto, mas antes como os capítulos dedicados ao pensa- “um complexo de medidas econômicas mento de Rousseau, resistente às “má- e políticas efetivas que regeram todo o ximas” ideológicas de seu tempo, ou de Ocidente atlântico desde o período na- Montesquieu, que deu ênfase às ideias poleônico e a Restauração monárquica de “condição” e “relação” para a com- francesa”. preensão do “Espírito das Leis”. Em Essa observação ajuda a elucidar o outro capítulo particularmente denso, desenho geral do livro: vários pontos sintetizam-se linhas de força do pensa- desenvolvidos na primeira parte, que mento de Vico, Condorcet e Hegel sob percorre momentos cruciais do pensa- o prisma de três figuras: o ciclo dos fluxos mento ocidental, retornam na segunda, (corsi) e refluxos (recorsi) na filosofia da que se debruça mais especificamente história viquiana; a linha reta do “perfec- sobre aspectos da história brasileira, em tibilismo” (termo que remonta ao Dis- particular liberalismo, escravidão e luta curso sobre a desigualdade de Rousseau) abolicionista, ou ainda projetos traba- no teórico do progresso Condorcet; e, lhistas, sobretudo sob o governo de Ge- ainda, a espiral dialética delineada por tulio Vargas, cuja análise se desenvolve Hegel, espécie de linha ascendente que, perante o pano de fundo do Welfare voltando sobre si mesma para cumprir o State inglês e do État-Providence. O fio seu percurso, só avança “depois de ter- que alinhava esses 25 ensaios é explicita- -se curvado, compondo uma figura que mente o conceito de ideologia, que Bosi é ascendente na direção geral e, por um opera em suas duas acepções, designa- breve momento, parece fechar-se no seu das por Norberto Bobbio como sentido movimento interno”. Também a teoria forte e fraco. O primeiro caracteriza-se política de John Locke é minuciosamen- por uma dimensão por assim dizer me- te reconstituída por Bosi, que aponta, já tonímica, já que busca conferir camufla- nesse manancial do liberalismo inglês, a gem universal a interesses particulares, e “conjugação de retórica universalizante remonta, sobretudo, à Ideologia alemã, e interesses particulares”, pois afinal o em que Marx e Engels definem ideolo-
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gia como “falsa consciência” – também timo dizer, portanto, que se trata de um como inversão da objetividade históri- projeto “contraideológico”, e sua con- ca, conforme se formula nessa célebre tribuição entre nós se fará sentir tanto passagem: “Se no todo da ideologia os nos estudos sociológicos como literários homens e suas relações aparecerem de (por exemplo, na árdua tarefa de des- ponta-cabeça, como numa camera obs- trinçar “nós ideológicos” em obras do cura, então esse fenômeno resulta do porte das Memórias póstumas). Entende- seu processo histórico de vida, do mes- -se daí a relevância que o autor dispensa mo modo como a inversão dos objetos ao pensamento – e, mais ainda, à práxis – na retina resulta do imediato processo de figuras como Gramsci e Simone Weil, físico de vida”. aproximadas justamente numa chave de Mas se o estudo de Bosi abre amplo resistência. Pelo lado brasileiro, a empa- espaço a essa obra de Marx e Engels que tia de Bosi faz avultar Joaquim Nabuco inaugurou nova fase na crítica ideoló- e Celso Furtado, aos quais são dedicados gica, ele não dispensa menor atenção à dois dos mais belos ensaios. Como per- outra acepção do termo “ideologia”, na ceberá o leitor, nesse livro que abrange qual o qualificativo “fraco” se deve ape- tão vasto material teórico e histórico, a nas à sua dimensão não valorativa, que clareza da exposição encontra-se intima- faz jus ao sentido etimológico de “dou- mente conjugada com a atenção ao fato trina de ideias”. Esse significado mais concreto (a verità effettuale della cosa flexível, como também se pode entender encarecida por Maquiavel) e a tendência o adjetivo “fraco”, é tributário da socio- a sempre historicizar concepções e ações logia do saber (Wissenssoziologie) e terá das figuras enfocadas, conforme se mos- recebido sua elaboração mais consistente tra exemplarmente em relação a nomes na obra de Karl Mannheim Ideologia e como Perdigão Malheiro e Tavares Bas- utopia (1929), que consequentemente tos, já antes enaltecidos por Nabuco. ocupa posição de relevo na argumenta- É claro que, em face de um trabalho ção crítica de Alfredo Bosi. Nessa pers- de tão amplo espectro, pode-se apontar pectiva, ideologia equivaleria de certo para uma ou outra lacuna, fazer essa ou modo à “visão de mundo”, ultrapassan- aquela ressalva etc. Um possível exem- do o significado mais restrito de “falsa plo: Ernst Bloch é mobilizado, ao lado consciência”, o que já se prefigura, como de Walter Benjamin, na argumentação – lembra o excelente “interlúdio weberia- aliás, plenamente legítima – que procura no”, na opção de Max Weber pelo termo mostrar o lado “desalienante” da religião; “ética” (e não ideologia) protestante. contudo, essa tarefa seria mais dificultosa Acolhendo a hipótese habermasiana se fosse considerado (pois também con- de uma relação emancipadora entre “co- traideologias e utopias não estão isentas nhecimento e interesse”, pode-se dizer de contradições) que Bloch, o filósofo do que uma das motivações que imantam “princípio-esperança” e do “ainda não”, o esforço teórico desenvolvido nesse li- foi um dos mais veementes defensores vro é o desejo de adensar a resistência ao do estalinismo. E já que os dois últimos “liberalismo econômico puro e duro”, ensaios da primeira parte são dedicados que recrudesceu consideravelmente nas ao “projeto fáustico” e ao Fausto de Goe- últimas décadas do século XX. Seria legí- the, seria cabível uma referência a Oswald
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Spengler, que em sua obra de inspiração nietzschiana A decadência do Ocidente caracterizou pioneiramente o homem ocidental, em sua incansável aspiração por transformar o mundo e expandir fronteiras, como “fáustico”, contrapon- do-o ao homem “apolíneo” da Antigui- dade, voltado tão somente ao presente e, assim, alheio à dimensão do passado e do futuro. Mas semelhantes objeções ou eventuais lacunas que se possam verificar nessa incursão de Alfredo Bosi pela espi- nhosa história do conceito de ideologia serão afinal irrelevantes diante dos seus inúmeros méritos, entre os quais está o de aguçar a percepção do leitor para aqui- lo que Paul Ricouer chamou de “clausura ideológica” (clôture idéologique).
Marcus V. Mazzari é professor de Teoria
Literária e Literatura Comparada na USP, tradutor e também autor, entre outros, de Labirintos da aprendizagem – Pacto fáustico, romance de formação e outros te- mas de literatura comparada (Editora 34, 2010). Elaborou os prefácios, comentários e notas aos volumes Fausto I (Editora 34, 2004 – edição revisada e ampliada: 2010) e Fausto II, de Goethe (Editora 34, 2007), em tradução de Jenny Klabin Segall. @ – mazzari@usp.br